Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA RESENDE | ||
Descritores: | LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ CONDENAÇÃO PRESSUPOSTOS DEVER DE COOPERAÇÃO NEGLIGÊNCIA DOLO | ||
Data do Acordão: | 01/17/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA PROCEDENTE. | ||
Sumário : |
I- A condenação como litigante de má-fé, consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a atitude processual das partes, face ao uso que as mesmas possam ter feito dos mecanismos legais postos ao seu dispor. II- A sua imposição deverá sancionar uma atuação consciente da inadequação da conduta, quer por forma intencional, quer em termos gravemente negligentes, não contemplando situações, que desprovidas de tal carga volitiva, se possam traduzir na defesa de pretensões que não venham a obter provimento, mas que ainda se possam considerar englobadas num exercício legítimo de ação, na sua ampla vertente, maxime, no que à possibilidade do direito ao recurso respeita, sendo que sempre o juízo de censura a fazer deverá assentar em factos provados, donde resulte a conduta reprovável das partes nas vertentes enunciadas. III- O dever de cooperação é uma responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, competindo ao Juiz proceder à análise de falhas supríveis de que possam decorrer prejuízos para as partes, apreciando as possíveis soluções de direito, enquanto a parte, sem prejuízo das naturais divergências quanto decisão de facto ou de direito, deve ter o processo como o instrumento necessário para a justa composição do litígio, não importando assim a formulação de pretensões, nem de argumentário, sem consistência ou razoabilidade. | ||
Decisão Texto Integral: |
Revista 1038/21.0T8ANS-A.C1-A.S1
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Invocou que o Embargante/exequente no âmbito da sua atividade celebrou, em 19.10.2005, com DD dois contratos de mútuos com hipoteca e fiança no montante global de 85.000,00€, constituindo duas hipotecas sobre um prédio urbano, e que o Embargante diz ter sido adquirido pela Oponente, conforme registo de 8.02.2017, tendo o mutuário deixado de efetuar as prestações vencidas, após 10.10.2020. 3. EE, inconformada com a decisão que a condenou como litigante de má fé, veio interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: (Transcritas) 2. O tribunal a quo entendeu que, no recurso, a apelante omitiu que, à data, a apreensão do imóvel já não subsistia, porquanto, a impugnação da resolução em benefício da massa havia sido julgada procedente; 3. Assim, aquando da apelação, a aludida nulidade da sentença já havia perdido relevância prática, porquanto, o obstáculo à realização da penhora do imóvel já havia desaparecido, facto que não podia deixar de ser conhecido pelo mandatário da apelante, na medida em que fora notificado da daquela decisão; 4. E, segundo o douto aresto, recorrido, a apelante, representada por advogado, ao arguir a nulidade nas alegações de recurso, sem ter informado da decisão proferida no âmbito do processo de insolvência, sobre a procedência da impugnação da resolução em benefício da massa, terá omitido, ao menos com negligência grave, factos relevantes para a decisão do recurso, que a Relação veio a conhecer oficiosamente; 5. Pelo que, a apelante terá praticado, simultaneamente, omissão, grave, do dever de cooperação, incorrendo em litigância de má-fé, nos termos do artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c), do CPC; 6. Na petição de embargos de executado, entre outras questões, a embargante, aqui recorrente, alegou a impossibilidade de penhora do imóvel, por se encontrar apreendido no processo de insolvência, onde havia sido decretada a insolvência de DD; 7. Questão que não foi apreciada na douta sentença, ou seja, a questão colocada pela embargante não mereceu qualquer resposta do tribunal de 1.ª instância; 8. Por isso, na alegação de recurso, a apelante, ora recorrente, arguiu a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia; 9. A recorrente não litigou de má-fé, porquanto, não utilizou o processo de forma maliciosa e abusiva; 10. Muito pelo contrário, interpôs recurso que veio a ser julgado procedente pelo tribunal a quo; 11. E, com o devido respeito, de forma assertiva, limitou-se a invocar a omissão de pronúncia, já que ao juiz compete resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, conforme decorre do artigo 608.º, n.º 2, do CPC; 12. E nem se diga que tal questão perdeu interesse prático; 13. Pois, tratando-se de uma penhora indevida, a embargante tem todo o interesse em que o tribunal o declare, nomeadamente, para, no futuro, querendo, demandar o Senhor Agente de Execução numa ação de indemnização pelos prejuízos causados; 14.Acresce que, no modelo de reponderação, como acontece no nosso ordenamento, o recurso é configurado como um meio de controlo da decisão recorrida, cabendo ao tribunal ad quem controlar, apenas, se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, a decisão foi corretamente proferida; 15. Pelo que, é até duvidoso que na fase recursiva, a apelante pudesse alegar factos novos que não foram sequer tidos em conta pelo tribunal a quo (1.ª Instância); 16. E quando, em bom rigor, tal facto beneficia a parte contrária que nem sequer exerceu o contraditório; 17. Competia ao tribunal de julgamento (e não à parte), verificar, oficiosamente, se estavam, ou não, preenchidos os pressupostos, alegados pela embargante, que legalmente impediam a realização da penhora do imóvel; 18. Em bom rigor, no caso sub judice, existe uma clara divergência na interpretação da lei, a qual, salvo melhor opinião, não configura litigância de má-fé. 19. Com a prolação douto acórdão revidendo, foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c), do CPC e 545.º, do CPC. Termos em que, deverá o douto aresto da Relação de Coimbra ser revogado, por falta de fundamento legal para condenação da embargante, como litigante de má-fé, com as demais consequências legais. 4. Cumpre apreciar e decidir. 2.1.A questão a ponderar prende-se em saber se a Recorrente litigou de má-fé, incorrendo nas consequências determinadas no Acórdão sob recurso, sabendo-se que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso, em um grau, da decisão que condenou por litigância de má-fé, art.º 542, n.º 3, do CPC, como se verifica no caso dos autos. 2.2. Com efeito, entendeu o Tribunal da Relação que nas alegações de recurso da Recorrente/embargante entradas em juízo em 18.01.2022, uma das questões suscitadas foi a nulidade do despacho por omissão de apreciação de uma das questões colocadas no requerimento inicial, relativa à impossibilidade do Exequente/credor executar o imóvel objeto de penhora, por estar apreendido no processo de insolvência de DD, embora a omissão tenha ocorrido, perdeu a relevância prática, por aquando da interposição de tal recurso de apelação já não subsistia a apreensão para a insolvência, tendo em conta a decisão de 14.12.2021, transitada em julgado em 30.12.2021, o que não podia deixar de ser conhecido pelo Mandatário da Apelante. Desse modo, considerou o Tribunal da Relação, que não tendo aquele último prestado essa informação sobre o imóvel, omitiu com negligência grave, factos relevantes para a decisão do recurso, que só por iniciativa do Tribunal vieram ao seu conhecimento, praticando, simultaneamente, omissão grave do dever de cooperação, incorrendo em litigância de má-fé, nos termos dos artigos 542.º, n.º1, e n.º 2, alíneas b) e c) e 545, do CPC, pelo que tendo o ato sido imputável ao Mandatário da Recorrente, que não teve repercussões processuais, senão na medida em que gerou um acréscimo de atividade processual da Relação, e gozando a Embargante/executada do benefício de apoio judiciário, foi fixada a multa de 2 UC. Invoca a Recorrente que nos embargos de executado deduzidos, suscitou a impossibilidade de penhora do imóvel por se encontrar apreendido no processo de insolvência indicado, o que não foi apreciado na decisão da 1.ª Instância, tendo em conformidade arguido a nulidade, porquanto compete ao Juiz resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, conforme o art.º 608, n.º2, do CPC, nem essa questão perdeu interesse prático, pois sendo uma penhora indevida, tem interesse em que o Tribunal o declare, nomeadamente com vista a um futuro pedido de ressarcimento dos prejuízos causados. Mais alude que competindo ao Tribunal ad quem controlar face aos elementos apurado na instância recorrida, a decisão foi proferida de forma correta, surge-lhe como duvidoso que pudesse alegar factos novos, que não tinham sido tomados em conta pelo tribunal a quo, factos esses beneficiando a parte contrária, que não exerceu o contraditório, competindo ao Tribunal de julgamento verificar se estavam ou não preenchidos os pressupostos que segundo a Embargante impediam a realização da penhora do imóvel, existindo, em rigor, uma clara divergência de interpretação da lei, não configurando litigância de má fé, não tendo utilizado o processo de forma maliciosa e abusiva, tendo, aliás, obtido ganho de causa. 2.3. Vejamos. Sabe-se que o art.º 542, do CPC, determina que deverá ser considerado como litigante de má fé, e como tal condenado em multa e indemnização à parte contrária, se a pedir, quem, com dolo ou negligência grave[1], “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”, [n.º2, b)], e “tiver praticado omissão grave do dever de cooperação[2, c)]. Na formulação legal distinguem-se de forma clara, a má fé material ou substancial, verificada na situação aludida alínea a), e na alínea b), que dizendo respeito ao fundo da causa, reporta-se à própria relação jurídica material controvertida ou de direito substantivo, litigando a parte de modo a obter uma decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça, enquanto a má fé instrumental reporta-se a condutas, na mencionada alínea c), e na alínea d), relativas à relação jurídica processual[2], numa violação grave dos deveres de probidade, cooperação[3] e prudência, no sentido de a lei apenas admitir o exercício das faculdades processuais, de forma razoável, conforme a realidade objetivamente resultante dos autos, proibindo “ (…) o uso dos meios processuais que se fundam naquilo que nunca aconteceu (…)”[4]. A condenação prevista em tais termos, consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a atitude processual das partes, face ao uso que as mesmas possam ter feito dos mecanismos legais postos ao seu dispor. Como tal, a sua imposição deverá sancionar uma atuação consciente da inadequação da conduta, quer por forma intencional, quer em termos gravemente negligentes, não contemplando situações, que desprovidas de tal carga volitiva, se possam traduzir na defesa de pretensões que não venham a obter provimento, mas que ainda se possam considerar englobadas num exercício legítimo de ação, na sua ampla vertente, maxime, no que à possibilidade do direito ao recurso respeita, sendo que sempre o juízo de censura a fazer deverá assentar em factos provados, donde resulte a conduta reprovável das partes nas vertentes enunciadas. Referenciada, expressamente a violação do dever de cooperação, como avulta do art.º 8, do CPC, isto é, as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior, a saber, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (n.º1 do art.º 7, do CPC), sem prejuízo de o Juiz em qualquer altura do processo, para além do mais, convidar os mandatários a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes (n.º 2, do art.º 7, do CPC, importa ter presente que “Cumpre ao Juiz, sem prejuízo do ónus do impulso processual especialmente imposto pela lei às parte, dirigir ativamente o processo (…) promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (…)”, art.º 6, n.º1, do CPC, no âmbito do dever de gestão processual. Daí, que se acolha o entendimento que a cooperação exigível é uma responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais[5], competindo ao Juiz proceder à análise de falhas supríveis de que possam decorrer prejuízos para as partes, apreciando as possíveis soluções de direito, enquanto a parte, sem prejuízo das naturais divergências quanto decisão de facto ou de direito, deve ter o processo como o instrumento necessário para a justa composição do litígio, não importando assim a formulação de pretensões, nem de argumentário, sem consistência ou razoabilidade. Reportando-se o art.º 545, do CPC, à comunicação no caso, à Ordem dos Advogados, aquando da responsabilidade pessoal e direta do Mandatário nos atos em que se consubstancia a litigância de má-fé, no atendimento do enunciado, não se mostra despiciendo reafirmar a exigência que o Julgador seja prudente e cuidadoso, afastando a condenação por litigância de má-fé nos casos que possam suscitar dúvidas[6]. 2.4. Volvendo aos autos, temos que a Executada/embargante/recorrente, enquanto titular do bem dado como garantia relativamente a dois mútuos, celebrados por outrem, verificada a penhora do bem causa (9.09.2021) veio deduzir embargos (29.09.2021), invocando que o Exequente estava legalmente impedido de instaurar uma execução que atingisse o bem que fora penhorado por se encontrar apreendido em processo de insolvência. Na execução (17.11.2021) a Executada/embargante/recorrente deu a conhecer que o imóvel estava apreendido na insolvência pedindo a suspensão da instância, contrariada pelo Exequente, mencionando que a Executada tinha impugnado a resolução do negócio a favor da massa insolvente, não havendo ainda decisão (29.11.2021), tendo o Agente de Execução suspendido a execução quanto ao imóvel penhorado, por se encontrar apreendido a favor da massa insolvente, em 13.12.2021, e aquela decisão vindo a transitar em julgado em 30.12.2021. Antes, em 28.12.2021, foi proferido despacho limiar, nos embargos que os indeferiu liminarmente, não apreciando a questão suscitada quanto à efetivação da penhora do bem em referência, ainda quando se mostrava apreendido em processo de insolvência. A Embargante/executada/recorrente em 18.01.2022 interpôs recurso de apelação, insurgindo-se contra o decidido e invocando a nulidade de omissão de pronúncia sobre a impossibilidade da instauração da execução contra a Recorrente, por o bem objeto de penhora ter sido apreendido para a massa insolvente. A conduta reprovável determinando a condenação como litigante de má fé, decorre assim da falta de indicação pela Recorrente, que fora julgada procedente a ação de resolução, determinando o cancelamento do registo de apreensão para a insolvência, conforme foi apurado pelo Tribunal da Relação, face aos elementos constantes dos autos. Sem prejuízo da proximidade das ocorrências referidos, é certo não houve pronúncia sobre a questão posta pela Recorrente, confirmada pelo Acórdão sob recurso, considerando não ser necessário suprir a omissão por ter perdido a relevância prática, inexistindo assim o apontado óbice à execução e à penhora que já desaparecera antes da interposição do recurso. Ora, não tendo a 1.ª Instancia conhecido a questão em causa, para além da bondade do entendimento da Recorrente quanto à mesma, maxime reportada à ilegalidade da penhora realizada no momento em que o foi, e possíveis consequências que aquela pretenda retirar, a omissão imputada não nos surge com a carga volitiva, de uma atuação consciente da inadequação da conduta processual por parte da Recorrente e seu Mandatário, que se deva traduzir no grave juízo de censura, ainda se podendo considerar englobada numa ampla vertente do exercício de ação, no caso de recurso, repetindo-se que o Tribunal não deixou de obter os elementos tidos por convenientes para a decisão a proferir, para além, embora menos relevantemente, o recurso de apelação apresentado pela Recorrente ter obtido merecimento.
III – DECISÃO Nestes termos, decide-se conceder a revista, revogando a decisão que condenou a Recorrente como litigante de má-fé, e ordenou a comunicação nos termos do Acórdão sob recurso. Custas pela Recorrente, nos termos do art.º 527, n.º1, parte final, do CPC, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido. Graça Amaral
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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.
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