Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3446
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO
DELIBERAÇÃO SOCIAL
RENOVAÇÃO
DELIBERAÇÃO
Nº do Documento: SJ200610310034461
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : Se no decurso de uma acção de anulação de deliberações sociais, concretamente após a interposição de recurso, a sociedade R. vier dar conhecimento ao processo de que as deliberações julgadas nulas foram renovadas, deve o Tribunal recorrido, desde logo, julgar a acção improcedente, mui embora com custas a serem suportadas pela referida R..
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -

"AA" e BB intentaram, no Tribunal Cível de Lisboa, acção ordinária, contra Empresa-A Lª, pedindo a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia-geral de 05 de Agosto de 1993 e, ainda, que os sócios CC, DD e EE fossem declarados como responsáveis solidários pelos prejuízos causados não só a eles como à própria R. e, ainda, que seja anulada e declarada a falsidade da acta lavrada em instrumento notarial avulso relativo à referida assembleia e anulado o registo de amortização das suas quotas e do aumento do valor das quotas dos demais sócios.

A R. contestou por impugnação e por excepção.

Após julgamento, a acção foi julgada procedente e as deliberações postas em crise foram julgadas nulas.

Com esta decisão não se conformou a R. que apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas este manteve o sentido do julgado da 1ª instância.

Novamente irresignada a R. recorreu de revista para este STJ, que, detectando violação do disposto no art. 690º-A do CPC, decretou a anulação do acórdão impugnado.

Baixou, pois, o processo à Relação de Lisboa, e os Senhores Juízes Desembargadores, depois de terem dado cumprimento às orientações perfilhadas no aresto anulatório deste Supremo, acabaram por proferir nova decisão confirmando a sentença da 1ª instância.

Mais uma vez, a R. recorreu, pedindo revista da decisão da 2ª instância (cfr. fls. 455 - data de 09 de Dezembro de 2005).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 458 (15 de Dezembro de 2005).

Aconteceu que, a 01 de Fevereiro de 2006, a R. fez entrar em juízo um requerimento no qual, para além de fazer notar que ainda estava a decorrer o prazo para alegações, dava notícia de que, no dia 05 de Janeiro de 2006 (há um evidente lapso na referência ao "corrente mês"), convocou uma assembleia geral extraordinária de sócios para o dia 24 (evidentemente de Janeiro), na qual foi deliberado, por unanimidade, "renovar as deliberações tomadas na assembleia de 5 de Agosto de 1993, de amortizar compulsivamente as quotas dos referidos sócios AA e BB" e como resultado dessa amortização "as quotas serão proporcionalmente aumentadas fixando o novo valor nominal das quotas no seguintes montantes..." Tudo conforme fotocópia da acta nº 18 que se junta".
E, em conformidade com o explanado, pediu a sua absolvição do pedido ou, pelo menos, a absolvição da instância (cfr. fls. 463 e ss.).
Em respeito pelo contraditório, foram os recorridos - AA. ouvidos sobre tal pretensão e disseram que a mesma não podia proceder dado que "ainda pode ser arguida a nulidade da deliberação da assembleia geral da recorrente de 24 de Janeiro último" (cfr. fls. 473).

Perante esta realidade, o Exº Juiz Relator emitiu despacho do seguinte teor:
"Face à posição da parte contrária (fls. 473), aguarde o prazo das alegações de recurso interposto para o STJ.
Notifique a recorrente deste despacho, juntando cópia do requerimento de fls. 473" (cfr. fls. 474).

Logo de seguida, os AA.-recorridos vieram dar notícia da interposição de acção com vista à anulação das deliberações tomadas no passado dia 24 de Janeiro de 2006 (cfr. fls. 476).

Com a data de 23 de Março de 2006, o Exº Juiz Relator proferiu o seguinte despacho:
"Por falta de alegações, julgo deserto o recurso interposto a fls. 454 pelo recorrente CC do acórdão de fls. 443 e ss. (art. 690º, nº 3 do CPC).
Custas pela recorrente" (cfr. fls. 479)".

A R. reclamou para a conferência, mas esta confirmou a decisão do Relator.

Novamente inconformada com o decidido, eis que a R. recorre de agravo para este STJ pedindo a revogação do julgado.
Para tanto, apresentou a respectiva minuta que fechou com as seguintes conclusões:
- Por requerimento, enviado sob registo postal, em 31/01/2006, e dentro do prazo para apresentar alegação em recurso por si interposto, a recorrente apresentou prova da realização de Assembleia Geral Extraordinária, em 24 de Janeiro de 2006, na qual foi deliberado renovar, com efeito retroactivo, as deliberações tomadas na Assembleia de 5 de Agosto de 1993, cuja nulidade havia sido arguida nos presentes autos.
- Nesse mesmo requerimento, a recorrente requereu a absolvição da R. do pedido, nos termos do art. 663°, nº l do C.P.C., ou a absolvição da instância por impossibilidade ou inutilidade da lide.
- Por despacho de 16/02/2006, a decisão do requerido foi remetida para momento posterior, sendo que, nessa data, já havia decorrido o prazo para apresentação de alegações pela recorrente.
- Entretanto, e sem se pronunciar sobre o requerido, foi proferido despacho a julgar deserto o recurso interposto pela recorrente.

- Foi requerido, que nos termos do n°3 do art. 700° do C.P.C, sobre a matéria daquele despacho, fosse proferido acórdão da Conferência e, subsidiariamente, arguida nulidade processual.

- Pelo acórdão recorrido foi mantido aquele despacho, o qual decidiu também não se verificarem as nulidades alegadas.

- O acórdão recorrido enferma de errados pressupostos de Direito e violou o artigo 287°, n °l, al. e) do CPC.

- Efectivamente, a deliberação tomada pela nova Assembleia Extraordinária da recorrente de renovar com efeitos retroactivos a assembleia, cuja declaração de nulidade era o pedido nos presentes autos, constitui inutilidade superveniente da presente lide, que determinou a extinção da lide

- Inutilidade superveniente que o Tribunal estava obrigado a reconhecer, sem haver lugar a posterior tramitação processual, relativa ao recurso interposto.

- A declaração de descrição do recurso constitui acto inútil, legalmente proibido, violando assim também o artigo 137° do C.P.C.

Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

II -

A única questão com que deparamos no presente recurso diz respeito a saber se a decisão da conferência, confirmatória do despacho do Relator, está correcta em face da notícia que a recorrente trouxe aos autos da convocação de uma nova assembleia geral extraordinária na qual foram renovadas as deliberações julgadas nulas pela sentença da 1ª instância.
Esta notícia trazida aos autos pela própria R. não foi contrariada pela parte contrária, antes foi confirmada na justa medida em que, numa fase mais adiantada, vieram dizer que já tinham intentado acção com vista a obterem a anulação das deliberações tomadas na dita assembleia extraordinária (cfr. fls. 476).
É certo que em resposta à pretensão da R. em ver o processo findo, seja por absolvição do pedido, seja por absolvição da instância, veio a A. defender que a mesma não podia proceder porque ainda podia "ser arguida a nulidade da deliberação da assembleia geral da recorrente", mas não pôs em causa a alegação da R. no tocante à realização da assembleia nem ao seu resultado (renovação das deliberações antes julgadas nulas).

Será que a razão lhe assiste?

Vejamos.

As deliberações da assembleia de 05 de Agosto de 1993 foram julgadas nulas por não ter sido respeitado o estipulado na al. a) do nº 1 do art. 56º do CSC.
Considerando o teor da decisão proferida, a R. convocou uma nova assembleia-geral com o fito de renovar as nulidades que estiveram na base daquela e isto ao abrigo do nº 1 do art. 62º do CSC.
Isto mesmo consta da convocatória:
"Considerando que as deliberações tomadas na Assembleia Geral desta sociedade de cinco de Agosto de mil novecentos e noventa e três, foram impugnadas judicialmente ..., com fundamento na nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do art. 56º do Código das Sociedades Comerciais;
Considerando que esse processo judicial ainda se encontra pendente ....
Considerando que nos termos do artigo 62º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais uma deliberação nula por força das alíneas a) (sic) do nº 1 do art. 56º pode ser renovada por outra deliberação".

Ora, a pergunta que, naturalmente, se coloca tem a ver com as consequências da renovação de uma deliberação nula nos termos referidos.
Encontramos a resposta a esta questão em Pinto Furtado:
"...em caso de renovação, estamos em presença de uma nova e distinta deliberação, que substitui a primeira e assim inutiliza o pedido e a causa de pedir duma acção que tinha sido dirigida exclusivamente contra a deliberação primitiva.
A oposição que pretenda agora mover-se contra a deliberação renovadora envolve um novo e distinto pedido, voltado unicamente para esta e fundado, evidentemente, numa específica e diferente causa de pedir.
Ora, extinta a instância decorrente até aí (por impossibilidade do pedido, como se viu), não restará ao autor outra via que não seja, se para isso tiver fundamento, propor outra acção com esse objectivo" (in Deliberações Sociais, pág. 636 e 637).

Segundo Oliveira Ascensão, a renovação difere da confirmação por haver uma nova deliberação, o que significa "que o título precedente é substituído, pois os efeitos serão fundados na nova deliberação" (in Direito Comercial, Volume IV, pág. 298).

Esta ideia é, aliás, bem salientada no excelente Acórdão deste STJ de 23 de Março de 1999, onde sobressaem bastantes citações doutrinais:
"Através da renovação, os sócios refazem a deliberação que antes haviam tomado, concluindo sobre o seu objecto uma nova deliberação destinada a absorver o conteúdo daquela e a tomar no seu lugar" (in C.J., Ano VII, tomo II, pág. 31 e ss.).

Ou seja, renovadas as deliberações, em conformidade com o preceituado no já referido art. 62º do CSC, as anteriores - antes declaradas nulas - deixam de existir. Algum vício que persista refere-se, naturalmente, às novas - daí que, como bem observa Pinto Furtado, nesse caso, outra alternativa não há que propor uma nova acção.
E foi isso mesmo que aconteceu: perante a renovação das deliberações tomadas, os AA. intentaram uma nova acção com vista a obterem nova declaração de nulidade das mesmas.

Daqui resulta que este processo, no qual os AA. procuraram obter a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia-geral da R. que teve lugar no passado dia 05 de Agosto de 1993, deixou de ter razão de existir com a declaração comprovada e confirmada de que as mesmas foram renovadas ao abrigo do disposto no art. 62º, nº 1 do CSC. Morreu automaticamente.
Não faz sentido a partir daí continuar a dissertar sobre a validade das deliberações que deixaram de existir para o mundo do Direito.
Por isso mesmo, ao tomar conhecimento da renovação das deliberações, o Exº Relator, depois de se assegurar da veracidade do alegado pela R., deveria pura e simplesmente ter proferido decisão que pusesse termo ao processo.
Com o sempre devido respeito, diremos que nada justificava então julgar deserto o recurso respeitante à apreciação da validade de deliberações que já tinham saído do mundo do Direito.
Compreende-se, assim, todo interesse da R. em não permitir o trânsito de tal decisão. Se o fizesse, nolenti volenti, as mesmas deliberações teriam de ser consideradas ad aeternum nulas.

Haveria, pois, que, decretar o fim do processo (diga-se, aliás, que, aquando da prolação do despacho de fls. 474 - datado de 16 de Fevereiro de 2006 - já tinha decorrido o prazo devido para a apresentação de alegações) perante a comprovação da renovação das deliberações nulas.
Era isso, em suma, que deveria ter feito o Exº Relator ou, depois, a conferência.
Mas, como?
A ora recorrente defendeu que, por mor da renovação das deliberações nulas, fosse absolvida do pedido, em homenagem ao disposto no nº 1 do art. 663º do CPC ou, subsidiariamente, absolvida da instância, ex vi art. 287º, nº 1, al. c) do mesmo diploma adjectivo.

Com a renovação das deliberações nulas, a R. introduziu na lide um facto superveniente que tem a virtualidade de fazer extinguir os direitos dos AA. na presente acção. Jamais estes poderão ver, aqui e agora, declaradas nulas as deliberações tomadas no passado dia 5 de Agosto de 1993.
Como tivemos oportunidade de salientar, a impugnação das novas deliberações terá de ter lugar numa outra acção (pelos vistos, os AA. já trouxeram de novo a juízo a sua pretensão de ver declaradas nulas as deliberações renovadas e fizeram-no - e bem - numa outra acção).

Estamos, desta forma, perante a previsão do nº 1 do art. 663º do CPC e, com o assim, a única coisa que a conferência deveria ter feito era pura e simplesmente, alterando a decisão do Relator, decretar a absolvição da R. do pedido formulado pelos AA., muito embora com as custas a seu cargo.
Esta também é a posição de Pinto Furtado:
"", constituindo a renovação uma impossibilidade de procedência do pedido, mais do que uma inutilidade da lide, deve conduzir, não à absolvição da instância, mas "à absolvição do pedido, por facto extintivo posterior à propositura, nos termos do art. 663-1 CPC e com a disciplina de custas do nº 3 do mesmo preceito" (obra citada, pág. 635).

Impõe-se, portanto, a revogação do acórdão da conferência e a consequente absolvição da R. do pedido contra ela formulado pelos AA..

III -

Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se revogar o acórdão da Relação de Lisboa que julgou deserto o recurso de revista interposto pela R. e, consequentemente, absolver a mesma do pedido.
Custas nas instâncias pela R..
Sem custas o agravo (art. 2º, nº 1, al. g) do CCJ).

Lisboa, 31 de Outubro de 2006
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Borges Soeiro