Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1082/01-E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INEXISTÊNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Sumário :

1. Não tendo sido impugnada pelo Fundo de Garantia Automóvel a inexistência de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel alegada pelo autor na petição inicial, tal facto pode ser integrado na sentença, nos termos do art. 659º, nº 3, do CPC, mesmo que oportunamente não tenha sido consignado nos “factos assentes” fixados nos termos do art. 511º do CPC.

2. Atento o disposto no nº 3 do art. 722º do CPC, o uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação apenas é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à verificação do método discursivo que levou à ilação, ou quando estiver em causa a violação de alguma norma jurídica que exija determinada espécie de prova ou que estabeleça o valor de determinado meio de prova.

3. Ao abrigo do regime do seguro de responsabilidade civil automóvel regulado pelo Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, o facto de o acidente de viação automóvel constituir simultaneamente acidente de trabalho não confere ao FGA a possibilidade de deduzir na indemnização a pagar ao interessado os quantitativos que este receba ou tenha recebido da Seguradora com quem foi celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho.


A.G.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - MÓNICA demandou

LUCÍLIA e seu marido JOSÉ MARIA (entretanto falecido na pendência da causa e habilitado pela sua esposa, a já mencionada Lucília, e pelos seus filhos ANTÓNIO e RAMIRO) e o FUNDO de GARANTIA AUTOMÓVEL

Fundamentou o seu pedido num acidente de viação que vitimou mortalmente o seu marido J., o qual foi provocado culposamente por I. que igualmente faleceu, o qual tripulava um motociclo, sem que a sua responsabilidade estivesse coberta por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.

Pediu a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia global de PTE 77.225.989$00, sendo PTE 45.225.989$00 a título de danos patrimoniais, PTE 16.000.000$00 de danos não patrimoniais e PTE 16.000.000$00 de perda do direito à vida.

Contestaram os RR. impugnando essencialmente a matéria alegada na petição inicial.

Foi entretanto determinada a intervenção principal provocada da HERANÇA JACENTE de I., representada pelos 1ºs RR., não tendo a mesma contestado.

Na 1ª instância foi julgada parcialmente procedente a acção, sendo condenados solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e a Herança Jacente de I. no pagamento da quota-parte de 75% sobre os seguintes valores: € 60.000,00 pela perda do direito à vida, € 30.000,00 pelos danos morais da A., € 748,20 por danos patrimoniais e € 150.000,00 de danos patrimoniais futuros, com dedução de € 11.485,63 pagos pela Segurança Social. Ascendendo os valores a € 229.262,57, foram os RR. condenados no pagamento à A. da quantia de € 171.647,65, com juros de mora desde a citação. A Herança Jacente foi ainda condenada a pagar a quantia de € 299,28 e juros de mora desde a citação.

Interpuseram recursos de apelação o Fundo de Garantia Automóvel e a A., no âmbito dos quais a Relação de Évora revogou a sentença e, em substituição, com base na culpa exclusiva do condutor do motociclo, I., decretou a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 228.962,72, com juros de mora à taxa legal desde a data da sentença em 1ª instância até integral pagamento. A Herança Jacente foi ainda condenada a pagar à A. a quantia de € 299,28 que fora deduzida à indemnização global a título de franquia nos termos do art. 21º, nº 3, do Dec. Lei nº 522/85.

O Fundo de Garantia Automóvel interpôs recurso de revista e concluiu que:
a) …

A A. contra-alegou. A A. também interpôs recurso de revista onde concluiu que:
A. ….
Cumpre decidir.
II - Factos provados:
1. No dia 15-12-00, pelas 4h 10m, sobre a passagem desnivelada da Estrada da Graça, junto às Fontainhas, em Setúbal, ocorreu um embate entre o motociclo matricula ...-QN, conduzido por I., e o ciclomotor de matrícula 2-STB-..., conduzido por J., de 32 anos de idade, casado com a A.
2. O motociclo circulava no sentido Poente/Nascente e o ciclomotor circulava em sentido contrário, com a luz acesa na posição de médios, a uma velocidade não superior a 30 km/h
3. No local do embate, no centro faixa de rodagem, existem marcadas duas linhas longitudinais contínuas, de cor branca, delimitadoras das duas hemi-faixas de rodagem, sendo que a via, no local do embate, tem 6,20 m de largura e o local do embate situa-se à saída de uma curva com visibilidade.
4. No seu trajecto, o motociclo entrou na ponte da passagem desnivelada em sentido ascendente até ao cimo da mesma e descreveu uma curva para a esquerda e, logo após, outra para a direita. O ciclomotor circulava na mesma via, no sentido Nascente/Poente e ia entrar em sentido ascendente na ponte da mesma via e encontrava pela frente uma curva à esquerda seguida de outra curva à direita no cimo da ponte, passando a circular em sentido descendente.
5. O motociclo, após subir a ponte, descreveu uma ligeira curva à esquerda e iniciou a curva seguinte à direita, já em sentido descendente, invadiu a faixa de rodagem contrária e foi embater no ciclomotor sensivelmente a meio da hemi-faixa direita, atento o sentido de marcha deste.
6. No local do embate, situado dentro da localidade Setúbal, o piso da via é constituído de asfalto e a berma ladeada por separadores metálicos e existe iluminação pública, a qual estava em funcionamento quando ocorreu o embate.
7. Como consequência directa e necessária do acidente, J. sofreu várias e graves lesões traumáticas, nomeadamente esfacelo do membro inferior esquerdo, fractura dos ossos da bacia e fractura exposta da perna direita, que foi causa directa e necessária da sua morte, sendo que, em consequência do embate, faleceu também o condutor do motociclo, I..
8. O embate ocorreu quando J. se deslocava para o seu posto de trabalho, estando a trabalhar, com a categoria profissional de marinheiro de tráfego local, na empresa L.-Prestação de Serviços de Navegação, Ldª, sendo o exercício das suas funções a bordo de embarcação. Antes de trabalhar para a L., havia trabalhado para a E. como marinheiro e, antes, como pescador.
9. Auferia a remuneração base mensal ilíquida de PTE 73.500$00 e recebia ainda diariamente a quantia de PTE 675$00 a título de subsídio de alimentação. No ano de 2000, auferiu daquela empresa, a título de remuneração base líquida, a quantia de PTE 902.453$00 e a quantia de PTE 1.602.333$00, a título de ajudas de custo. Ao todo, recebeu da sua entidade patronal a quantia líquida de PTE 2.820.535$00, perfazendo a média mensal líquida de PTE 235.044$00.
10. No ano anterior, auferiu da mesma empresa, respeitante aos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Junho, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro o montante líquido de PTE 1.969.315$00, perfazendo a média mensal de PTE 218.812$00.
11. Nas folhas de pagamento da empresa consta na rubrica “remuneração” um valor de PTE 70.000$00, o qual, após Maio de 2000, passou para PTE 73.500$00. Da rubrica “subsídio de alimentação” consta o montante que oscila entre PTE 14.000$00 e PTE 16.800$00 e da rubrica “ajudas de custo” constata-se existir montantes que variam entre os PTE 102.600$00 e PTE 191.100$00. Ao lado da remuneração base, a entidade patronal atribuía outras vantagens patrimoniais, mensalmente, sob a rubrica de “ajudas de custo”. A retribuição efectiva seria a soma de todas as rubricas atrás referidas.
12. O falecido J. era um marinheiro altamente conceituado e gostava imenso da profissão que exercia; empenhava-se permanentemente no aprofundamento dos seus conhecimentos, procurando estar a par, o que conseguia, de todas as evoluções na área da sua profissão; era tido por todos os que o conheciam, como profissional que teria um grande futuro à sua frente; já era então um profissional largamente solicitado e disputado pelos seus serviços e conhecimentos; por colegas e patrões era tido como um profissional dedicado, estudioso, competente, responsável, respeitador e assíduo; sempre que havia necessidade de desenrascar este ou aquele serviço sempre estava disponível para tal; até em férias, sempre que o serviço o exigia, com sacrifício pessoal e da sua família, disponibilizava-se.
13. Fisicamente, era um homem robusto, sem defeitos físicos, não lhe sendo conhecida qualquer doença e teria de vida profissional activa à sua frente cerca de 38 anos, até aos 70 anos; poderia auferir nos seus previsíveis 38 anos de vida profissional activa, a quantia líquida não inferior a (38 x 2.820.535$00) = PTE 107.180.330$00.
14. Do embate resultou a destruição total do ciclomotor e parcial do motociclo, sendo que o ciclomotor foi adquirido por J. em 12-12-96 pelo preço de PTE 383.900$00 e antes do sinistro valia não menos de PTE 150.000$00.
15. Encontra-se inscrita em nome da A. e de J. a aquisição da fracção autónoma designada pela letra “I” do prédio urbano descrito na 2ª CRP de Setúbal sob o nº 01456/260489-I, freguesia de S. Sebastião, e inscrita na respectiva matriz predial sob o artigo 12852-I, para pagamento da qual contraíram um empréstimo junto do BIC, no montante de PTE 10.700.000$00, pelo prazo de 25 anos, encontrando-se actualmente, a A. a pagar, em juros e amortização do dito empréstimo a quantia mensal de PTE 52.637$00. A A. e J. adquiriram ainda uma viatura nova de matrícula ...-MX, cujo pagamento foi deferido em 60 prestações mensais e sucessivas de PTE 62.675$00; também o recheio da casa não foi adquirido a pronto pagamento, sendo deferido em prestações mensais e sucessivas de PTE 40.000$00; todos estes encargos foram assumidos tendo em conta essencialmente, o vencimento auferido pelo falecido João Henrique; com o falecimento deste, a A. ficou sozinha a suportar as mensalidades atrás referidas, tendo a A. recebido ajudas de familiares e amigos.
16. A A. havia casado com J. havia cerca de 17 meses, à data do falecimento deste, casamento rodeado de muito amor e paixão; havia para ambos muitos sonhos e projectos a realizar na vida que então iniciavam; pretendiam constituir família, ter o seu lar e filhos; era frequente ouvi-los fazer projectos tanto para a vida que pretendiam construir como para a educação que pretendiam dar aos seus filhos; J. adorava passear com a mulher, ora A. e era frequente vê-los juntos em bailes, festas, romarias, às compras ou passeando em feiras e mercados; constituíam um casal unido, alegre e feliz.
17. O falecimento de J. causou um choque, dor, desgosto e tristeza à A., sua mulher; representou e representa este desaparecimento para a A., o desmoronar de muitos e muitos sonhos que havia idealizado; a morte deixou a A. completamente destroçada, num vazio, onde a vida deixou de ter qualquer sentido ou rumo; por todos era conhecido o grande amor, amizade, dedicação e carinho que a A. nutria pelo seu marido; à medida que o tempo passa, mais a saudade se acentua, o desgosto se intensifica, a dor se agrava, tendo a A. ficado privada dos convívios de que partilhava com o seu falecido marido; a A. ficou e ainda se encontra psicologicamente bastante afectada; o casal, para o Natal e Ano Novo que se aproximava, projectavam uma grande festa, alargada a toda a família, havendo muita coisa já adquirida para esse fim.
18. A A. encontra-se empregada no Hospital Distrital de Setúbal, como auxiliar de acção médica, auferindo o montante mensal ilíquido de PTE 77.100$00; após o acidente, esteve de baixa médica durante um mês e meio, seguido de outros períodos; o sucedido tem afectado o rendimento de trabalho da A., perdendo a capacidade de concentração, alegria e disposição para a execução das tarefas que lhe são cometidas; procura a A. constantemente o isolamento, evitando o diálogo com companheiros e companheiras de trabalho.
19. O falecido J. era pessoa de belíssimo trato social, afável e alegre; estava sempre bem disposto e por todos era tido como um bom amigo e companheiro e sempre disponível a ajudar quem dele precisasse; era por todos tido como um homem exemplar, socialmente ou profissionalmente; os amigos ou até os conhecidos estavam dispostos a ajudar ou a colaborar com ele na execução de qualquer tarefa; a alegria, boa disposição e a forma optimista de encarar a vida contagiava amigos e conhecidos; a sua morte causou um profundo desgosto, dor e vazio em todos os seus amigos e conhecidos.
20. O falecido J. era beneficiário da Segurança Social com o nº 121897310.
21. A entidade patronal tinha a sua responsabilidade civil, emergente de acidente de trabalho, transferida para a companhia de seguros AXA; decorreu seus termos no Tribunal de Trabalho de Setúbal o proc. nº 61/01-AT em que ficou assente a indemnização, por acidente de trabalho, da responsabilidade a assumir pela referida seguradora; por sentença homologatória de acordo celebrado, foi atribuída à ora A., a título de pensão anual vitalícia, pela AXA Portugal, a quantia de PTE 308.700$00 com efeitos a partir de 16-12-00, até perfazer à idade da reforma, e a de PTE 411.600$00 após perfazer aquela idade, sendo descontado o montante de PTE 110.250$00, relativo às prestações vencidas e adiantadas pelo ISS, um subsídio por morte no valor de PTE 294.170$00.

III - Decidindo:

1. Recurso de revista interposto pelo R. Fundo de Garantia Automóvel:

1.1. Suscitam-se em tal recurso as seguintes questões:

a) Verificação da inexistência de contrato de seguro que permita assacar ao FGA a responsabilidade pelos danos causados;

b) Reapreciação da conclusão do tribunal recorrido sobre a culpabilidade do condutor do motociclo e possibilidade de infirmar o juízo feito pela Relação assente em parte em presunções judiciais;

c) Reavaliação da decisão no que concerne aos danos não patrimoniais pela morte (dano morte e danos não patrimoniais da viúva A.) que devem ser fixados em € 70.000,00, em vez de € 90.000,00;

d) Reavaliação dos danos patrimoniais futuros, abatendo na quantia global aquilo que a A. viúva recebeu e receberá da Seguradora de acidentes de trabalho, sob pena de enriquecimento sem causa, fixando-se a indemnização em € 47.974,70;
e) Distribuição da responsabilidade na proporção de 50% para cada um dos condutores intervenientes no acidente

1.2. Quanto à questão da inexistência de contrato seguro de responsabilidade civil automóvel do motociclo interveniente no acidente que vitimou o marido da A.:

É pressuposto da responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel, como garante do pagamento de indemnizações decorrentes de acidentes de viação, a prova de que o veículo tripulado pelo condutor responsável não estava coberto por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. Com efeito, trata-se de facto constitutivo do direito a invocar perante o FGA.[1]

Ora, o mencionado facto negativo não figurava nem nos “factos assentes”, nem em qualquer ponto da “base instrutória”. Mas isso não nos deve desviar do essencial que é marcado pela sua alegação no art. 5º da petição inicial, onde efectivamente a A. referiu que o causador do acidente “não beneficiava de seguro válido ou eficaz do seu motociclo”.

Tal alegação foi objecto de uma impugnação genérica por parte do FGA, juntamente com dezenas de outros artigos da petição, nos termos que constam do art. 2º da contestação.

Ora, atenta a referida posição assumida pelo FGA, associada ao facto de constituir um organismo integrado no Instituto de Seguros de Portugal, em especial posição para averiguar da existência ou não do referido contrato de seguro, aquele facto não pode deixar de ser considerado admitido por acordo, nos termos do nº 2 do art. 490º do CPC, uma vez que efectivamente não é objecto de qualquer controvérsia.[2]

Aliás, para além da irrelevância daquela impugnação genérica, o FGA nem sequer impugnou o teor da participação do acidente de viação elaborada pelas entidades policiais e da qual consta expressamente que o motociclo ...-QN, conduzido pelo falecido I., não beneficiava de apólice de seguro (fls. 22).

Por outro lado, foi a inexistência de contrato de seguro que sustentou a demanda do FGA, entidade a que foi atribuída legitimidade passiva.[3]

Neste contexto, apesar de oportunamente não ter sido integrada no leque de factos assentes, nada impedia que aquela alegação fosse inserida como tal na sentença da 1ª instância e, depois, no acórdão recorrido, nos termos dos arts. 659º, nº 3, e 713º, nº 2, do CPC, tanto mais que as peças processuais que integram os factos assentes e os factos controvertidos, sendo de natureza puramente instrumental, não formam caso julgado positivo ou negativo.

Decai, assim, a primeira questão suscitada pelo Fundo de Garantia Automóvel.

2.2. Questiona o recorrente FGA a imputação da responsabilidade pelo acidente feita pelas instâncias, considerando que houve uso errado de presunções judiciais e que tal é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Não tem mais sorte o recorrente nesta segunda questão, agora em face do que explicitamente se dispõe no art. 712º, nº 6, do CPC, em conjugação com a delimitação dos poderes do Supremo Tribunal em sede de apreciação das provas, nos termos que constam do art. 722º, nº 3, do mesmo diploma.

Em regra, a decisão da matéria de facto proferida pela Relação é insindicável (nº 6 do art. 712º), o que bem se compreende, uma vez que a função do Supremo Tribunal de Justiça se circunscreve fundamentalmente à reponderação da resposta jurídica à realidade fáctica assumida pelas instâncias.

É verdade que a lei estabeleceu excepções a tal regra, como resulta do nº 3 do art. 722º. Todavia, a sua leitura não pode se distorcida a tal ponto que se qualifique como erro de direito aquilo que não excede os poderes de livre convicção atribuídos aos tribunais de instância relativamente às provas produzidas e às regras de experiência associadas.

O uso que por parte da Relação foi feito de presunções judiciais na formação da sua convicção acerca dos factos provados e não provados apenas seria de reavaliar se acaso, no desempenho dessa função, tivesse sido ofendida alguma regra jurídica que exigisse determinada espécie de prova ou que estabelecesse o valor de determinado meio de prova (art. 722º, nº 3).

Condensando o que pode considerar-se jurisprudência corrente, deste Supremo Tribunal sobre a matéria, refere-se no Ac. de 14-6-11, CJSTJ, tomo II, pág. 105 (citando outros arestos), que o STJ “não pode sindicar o juízo de facto formulado pela Relação para operar a ilação a que a lei se reporta, salvo se ocorrer a situação prevista na última parte do nº 2 do art. 722º do CPC”, ainda que deva ser considerada matéria de direito, sujeita, por isso, a revista “a admissibilidade ou não das referidas ilações”, designadamente através da “verificação do método discursivo do raciocínio que levou à ilação”. Doutrina que, além de outros, emana igualmente dos Acs. do STJ, de 9-12-04, CJSTJ, tomo III, pág. 144, 8-7-03, CJSTJ, tomo II, pág. 151, e de 23-9-03, CJSTJ, tomo III, pág. 43.

O caso concreto não suscita qualquer questão a este respeito, já que, estando em causa simplesmente apreciar o grau de responsabilidade de determinado condutor na ocorrência de um sinistro, a Relação se limitou a reponderar, dentro do plano definido pelo art. 655º do CPC, meios de prova que, por lei, estavam sujeitos a livre apreciação, em conexão com as regras de experiência.

Para afirmar o juízo sobre a responsabilidade de cada um dos condutores, o Tribunal da Relação reapreciou os depoimentos testemunhais prestados e os elementos documentais existentes nos autos. Extraindo desses meios de prova uma convicção diversa da que fora anteriormente declarada pelo Tribunal de 1ª instância sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente, reflectiu-a nas respostas às questões de facto controvertidas a respeito da causalidade ou da imputabilidade do sinistro, mantendo-se, deste modo, dentro das competências que lhe estavam atribuídas enquanto tribunal de instância com competência, além do mais, para assegurar efectivamente o 2º grau de jurisdição em matéria de facto.

Não existem, assim, motivos para interferir no resultado declarado, tratando-se de matéria que está excluída do âmbito das competências deste Supremo, enquanto tribunal de revista.

1.3. Questiona o recorrente FGA o valor que foi atribuído à A. a título de danos não patrimoniais, entendendo que, em lugar de € 90.000,00 (€ 60.000,00 pelo dano-morte + € 30.000,00 pelos danos não patrimoniais da A.), a compensação global deveria ter sido fixada em € 70.000,00.

A quantificação da compensação correspondente a danos de natureza não patrimonial, como o relacionado com a perda de uma vida humana ou com os reflexos que isso causa também na esfera pessoal dos familiares mais próximos, jamais conseguirá furtar-se à discussão dos resultados, tendo em conta, por um lado, a ausência de parâmetros objectivos e, por outro, as dificuldades em traduzir em elementos de natureza patrimonial aspectos que são exclusivamente de natureza imaterial.

Na ausência de soluções formais que imponham aos tribunais parâmetros dotados de maior objectividade, é natural que se tenham imposto critérios de base jurisprudencial que encontram justificação, além do mais, no facto de a lei ter admitido o recurso à equidade e em razões de igualdade de tratamento. Por isso, sem embargo da evolução dos valores, é natural que a sua adequação e justeza sejam aferidas através dos padrões comummente aceites pelos tribunais e, mais ainda, pelos que quotidianamente ressumam dos arestos proferidos neste Supremo Tribunal.

Os valores atribuídos tanto para o chamado dano-morte (€ 60.000,00) como para os danos morais suportados pela A. viúva (€ 30.000,00) mostram-se ajustados àqueles critérios e devem, por isso, ser confirmados.

1.4. Questiona ainda o FGA o facto de não ter sido feita a dedução nos montantes em que foi condenado dos quantitativos que a A. viúva receberá a título de pensão devida por acidente de trabalho em que também se traduziu o sinistro que vitimou o seu marido.

O acidente dos autos ocorreu em 2001, não encontrando sustentação a referida tese, em face do que dispunham os arts. 21º e 23º do Dec. Lei nº 522/85, de 31-12, que definiam em termos inequívocos o âmbito de responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel.

Invoca o recorrente o disposto no art. 51º do Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, mas parece claro que tal preceito, conquanto agora acolha o entendimento que defende, no sentido da supletividade da responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel relativamente às Seguradoras responsáveis pela reparação de acidentes de trabalho, não é aplicável ao caso sub judice, considerando a data em que ocorreu o sinistro e a consolidação, em tal momento, dos sujeitos a quem poderiam ser exigidas as responsabilidades, ainda que de natureza garantística.

Alude o recorrente FGA a um determinado entendimento no sentido da aplicação imediata da solução que emerge da lei actual. Mas trata-se de argumento sem real valia que se funda na genérica invocação de “Directivas Comunitárias”, sem força para superar as dificuldades colocadas pelo art. 12º do CC no que concerne ao regime de aplicação da lei no tempo.

Também não vem ao caso a invocação das regras do enriquecimento sem causa. Sendo certo que não deve existir sobreposição entre as indemnizações por acidente de viação e as indemnizações ou pensões por acidente de trabalho, a restituição do que eventualmente seja recebido a mais é matéria do exclusivo interesse da Seguradora responsável pelo acidente de trabalho, e não o inverso (art. 17º da Lei nº 98/09, de 4-9 – Lei dos Acidentes de Trabalho).

1.5. A última questão suscitada pelo FGA respeita à redistribuição da responsabilidade na proporção de 50% para cada um dos condutores.

O efeito procurado pelo FGA seria porventura o corolário da afirmação de culpas concorrentes e iguais dos condutores do motociclo e do ciclomotor ou da ausência de culpa de qualquer deles, nos termos do art. 506º do CC.

Todavia, da matéria de facto provada decorre que o embate que vitimou o marido da A. ocorreu na faixa por onde circulava o respectivo veículo, tendo o outro veículo ultrapassado as duas linhas paralelas longitudinais contínuas que separavam as hemi-faixas de rodagem. Por isso, não há dúvidas quanto ao acerto da decisão da Relação que atribuiu a exclusiva responsabilidade ao condutor do motociclo sem seguro.

Conforme jurisprudência corrente deste Supremo (v.g. Ac. de 15-2-07, CJSTJ, tomo I, pág. 72, de 1-2-00, BMJ 494º/281, e de 8-6-99, BMJ 488º/323), na ausência de outra explicação para a ocorrência de um sinistro causador de danos, a responsabilidade pelo seu ressarcimento deve ser imputada, mediante presunção natural, ao condutor que objectivamente tenha violado normas de protecção destinadas a evitar precisamente a ocorrência de eventos da tipologia do que foi causal do acidente.

Assim acontece precisamente com a ultrapassagem, sem razão conhecida, dos limites impostos à circulação automóvel pela existência de duas linhas longitudinais contínuas que separam as duas hemi-faixas de rodagem e que precisamente indicam a cada um dos utentes da via que, por razões de segurança do tráfego em cada uma das hemi-faixas, devem manter-se na hemi-faixa respectiva, sendo vedada a sua ultrapassagem.

1.6. Por conseguinte, improcede na totalidade o recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel.

2. Recurso de revista interposto pela A.:

2.1. Suscitam-se as seguintes questões:

a) Aumento da indemnização por danos patrimoniais futuros para € 224.459,05;

b) Indemnização de € 50.000,00 por danos não patrimoniais da viúva;
c) Juros de mora sobre cada uma das quantias desde a citação, uma vez que não houve actualização.

2.2. Quanto aos danos patrimoniais futuros:

A A. formulou o pedido de indemnização no valor de € 225.000,00. Na sentença da 1ª instância tais danos foram avaliados em € 150.000,00, valor que foi confirmado pela Relação. Considera a A. que tal indemnização não deve ser inferior à inicialmente pedida.

Não vemos razões para introduzir modificações. Sendo problemática a resolução da quantificação de danos patrimoniais futuros, em que os factores de incerteza e de imprevisibilidade são compensados pela ponderação de elementos de natureza probabilística, o valor alcançado pelas instâncias absorve bem esses factores de ponderação, envolvidos ainda em critérios de equidade a que igualmente apela o regime legal vigente.

Outros métodos de quantificação de indemnizações semelhantes poderiam ser, em abstracto, adoptados: desde um modelo rígido, como o que vigora para efeitos de fixação de indemnizações ou de pensões por acidentes de trabalho, até um de natureza indicativa em que, sem embargo de alguma modulação, em face das circunstâncias concretas, se estabelecessem tabelas de valores estruturadas a partir de elementos estatísticos; outro modelo que já se encontra implantado, mas que não abarca o acidente dos autos, aponta para o estabelecimento de tabelas indicativas utilizáveis na fase da regularização de sinistros e a partir das quais as Seguradoras deverão fazer as propostas de resolução dos diferendos.

Atento o quadro legal em vigor, não existem motivos para alterar o valor final que foi encontrado pelas instâncias, o qual integra, de forma razoável, justa e equitativa, os principais factores que devem ser ponderados, quer os de ordem objectiva (v.g. idade e salário anual), quer os de natureza prospectiva (v.g. tempo previsível de vida activa e evolução salarial provável).

2.3. Suscita também a A. recorrente a modificação do valor atribuído a título de compensação pelos danos morais próprios. Em lugar do valor de € 30.000,00, considera ajustado o de € 50.000,00.

A resposta a esta questão pode ser recolhida da que foi dada a semelhante questão, de sentido inverso, suscitada pelo FGA, não havendo motivos para alterar o valor que foi fixado pelas instâncias.

2.4. Finalmente, questiona a A. recorrente a data a partir da qual devem ser contabilizados os juros de mora, defendendo que deve manter-se a solução decretada na sentença de 1ª instância, em vez da adoptada pela Relação que determinou a sua contabilização apenas a partir da data daquela sentença.

Há que reconhecer-lhe inteira razão, porquanto não resulta da sentença da 1ª instância que na fixação da indemnização ou compensação por cada um dos danos tenha sido feita a actualização monetária, de modo que, em tais circunstâncias, se deve aplicar a regra geral de acordo com a qual os juros se devem contabilizar desde a data da citação, seguindo a doutrina fixada por este Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/02, de 27-6.

III - Face ao exposto acorda-se no seguinte:
a) Em julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel;
b) Em julgar parcialmente procedente o recurso de revista interposto pela A., de modo que os juros de mora que incidem sobre os montantes indemnizatórios serão contabilizados à taxa legal, desde a citação.
c) Sem custas no recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel. As custas do recurso interposto pela A. serão suportadas pela A. na proporção de 8/10, estando isento da parte restante o FGA.

Notifique.

Lisboa, 9-2-12

Abrantes Geraldes (Relator)

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva

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[1] Neste sentido cfr. o Ac. do STJ, de 1-7-04,  www.dgsi.pt (ARAÚJO de BARROS) om o qual concordamos, divergindo do Ac. do STJ, de 8-5-03, www.dgsi.pt (FERREIRA de ALMEIDA).
[2] Neste sentido cfr. o Acs. do STJ de 1-7-04, www.dgsi.pt (ARAÚJO de BARROS), e o Ac. do STJ, de 12-5-11, www.dgsi.pt (SÉRGIO POÇAS).
[3] Cfr. o Ac. do STJ, de 5-11-09, www.dgsi.pt (SANTOS BERNARDINO).