Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3272/04.8TBAVR.C2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: CASO JULGADO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CUMPRIMENTO
RECUSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DE NEGÓCIO
RESTITUIÇÃO
SINAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário : I - O caso julgado forma-se, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre as razões que determinaram o juiz a atingir as soluções que deu às várias questões que teve de resolver para chegar à conclusão final, a menos que se tenha de recorrer à respectiva parte motivatória para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo, em virtude de a fundamentação da sentença ou do acórdão constituir um pressuposto lógico e necessário da decisão.
II - O devedor falta, culposamente, ao cumprimento da prestação debitória quando a sua realização se torna incontrolável, por vontade daquele, como acontece quando comunica ao credor, de forma categórica e inequívoca, a intenção de recusar o seu cumprimento, como acontece se, no decurso da leitura de escritura pública relativa ao contrato-prometido, em que toda a documentação necessária para o efeito se mostrava completa, afirma, contrariamente à verdade dos factos, por si bem conhecida, que o valor era inferior àquele pelo qual os compradores pretendiam fazer constar da mesma, que não aceita assinar pelo preço declarado por estes e constante da liquidação do IMT.
III - Neste caso de incumprimento definitivo culposo, torna-se desnecessário, sendo, portanto, inútil a fixação de um prazo suplementar razoável para cumprimento do contrato-prometido, em sede de interpelação admonitória, conferindo aos autores, promitentes-compradores, o direito à resolução do contrato-promessa, com a consequente obrigação de restituir o sinal em dobro.
IV - A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, condiciona a condenação, por litigância de má fé, revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da prática de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa, como acontece quando a ré é uma sociedade em que a responsabilidade pela multa em que foi condenada só pode recair sobre o seu representante, que não foi ouvido nos autos.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


AA e esposa, BB, residentes na Rua V… G…, nº …, …, em Aveiro, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra CC – Construções, Compra e Venda de Imóveis. Lda, com sede na Rua C… S… P…, nº …, …, em Aveiro, pedindo que, na sua procedência, se declare que assiste aos autores o direito à resolução do contrato-promessa, por incumprimento definitivo da ré, se condene a mesma à restituição, em dobro, das quantias recebidas, a título de sinal e seu reforço, e no reembolso da quantia de €1.307,95, dispendida com o pagamento do IMT e despesas notariais, alegando, para tanto, e, em síntese, que celebraram com a ré um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, pelo preço negociado de 24.250.000$00, que se encontra, totalmente, pago, desde 30 de Setembro de 2002, sendo certo que a escritura pública designada para o dia 24 de Maio de 2004 não se realizou, porquanto a ré declarou, no momento da sua celebração, que não aceitava assiná-la pelo preço declarado pelo comprador, porque entendia que o mesmo era inferior e que jamais assinaria a escritura por preço superior a 16.500.000$00.
Na contestação, a ré invoca a ausência de incumprimento da sua parte, e que, por ter havido tradição da coisa, os autores passaram apenas a ter direito ao valor dela ou, em alternativa, a recorrer à execução específica, pelo que, não tendo optado por nenhuma dessas vias, a acção terá que improceder.
Na réplica, os autores alegam que pagaram a totalidade do preço, com excepção da importância de 750.000$00, que era o valor de um crédito que tinham sobre a ré, por comissão num outro negócio, pedindo a condenação desta, como litigante de má fé, no pagamento de uma indemnização, de valor não inferior a €7.500,00, e multa, a fixar pelo Tribunal, porquanto contestou apenas com intuído de entorpecer a acção da justiça e de criar dificuldades à concretização dos seus direitos.
A ré contestou o pedido de condenação como litigante de má fé.
Conhecendo sob a forma de saneador-sentença, julgou-se verificada a excepção da ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, e, em consequência, absolveu-se a ré da instância.
O Tribunal da Relação, na sequência do recurso interposto pelos autores, determinou o prosseguimento da acção, com a selecção dos factos relevantes, tendo considerado, na parte destinada à fundamentação jurídica, que “os factos alegados na petição inicial, designadamente, nos artigos 18º e 21º são controvertidos e prendem-se com a definição do preço acordado, e se daí resultar a versão dos autores bem pode concluir-se pela recusa definitiva de cumprimento por parte da ré…”.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente por provada e, em consequência, declarou resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o autor e a ré, e subsequentes aditamentos em causa nos autos, por incumprimento definitivo desta, que condenou a restituir aos autores a quantia entregue, no valor de €120.958,49, acrescida de €24.939.89.
Desta sentença, os autores e a ré interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação dos autores e, parcialmente, procedente a apelação dos réus e, em consequência, confirmou a decisão recorrida, condenando, porém, os autores e a ré, cada qual, na multa equivalente a dez UC´s, por litigância de má fé.
Do acórdão da Relação de Coimbra, a ré interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outro que conclua que a ré se encontra apenas em mora e que não litigou de má fé, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – O Tribunal da Relação procedeu à alteração da matéria de facto entendendo que a resposta ao quesito 5o deveria ser "não provado" e que na resposta aos quesitos 6o e 7o deveria ser acrescentada a expressão "escrita", (por ter havido negociações verbais entre as partes tendo em vista a venda do imóvel em causa nos autos).
2ª - Tendo alterado a matéria de facto o Tribunal da Relação não poderia ter concluído ser a interpelação admonitória para cumprir um acto inútil.
3ª - E não poderia por duas razões:
1. Porque já havia sido proferido nos autos um acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra que havia dito que se ficasse provada a matéria dos artigos 18° e 21° da petição inicial (artigos 5o, 6o e 7º da base instrutória) poderia ser equacionado o incumprimento definitivo. Ora, não tendo tal matéria resultado provada nos termos invocados, por respeito ao caso julgado, não poderia a decisão proferida violar o anteriormente decidido.
2. Só houve uma marcação de escritura e, após tal marcação, em que compareceram ambas as partes e a escritura não foi assinada por desentendimento momentâneo, continuaram negociações tendo em vista a venda do imóvel. Tal facto conjugado com a circunstância de a ré fazer, reiteradamente, desde a propositura da acção a afirmação de que fará a escritura nos termos pretendidos pelos autores leva, necessariamente, à conclusão de que a ré não entrou em incumprimento definitivo mas, apenas quando muito, em mora.
4ª - A ré foi mal condenada como litigante de má fé: a partir das declarações do autor marido constantes da acta de 14.01.2008, é possível verificar que o preço do imóvel não é coincidente com o preço a pagar e que este engloba outros valores para além do preço do imóvel.
5ª - O douto acórdão de que se recorre violou o disposto no artigo 808°, n°1 do Código Civil e, bem assim, o disposto no artigo 456° do Código de Processo Civil.
Nas suas contra-alegações, os autores concluem no sentido de que deve negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão proferida em primeira instância.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. Por documento escrito, designado como "contrato-promessa de compra e venda", celebrado em 20 de Maio de 1999, a sociedade ré prometeu vender e o autor marido prometeu adquirir, pelo valor global de 24.250.000$00, o seguinte imóvel: Fracção autónoma, tipo "T3 Duplex", 2o andar, designada pela letra "I", com a área bruta de 191,75 m2, com lugar de
garagem e arrumo, do prédio a ser construído no lote de terreno, destinado à construção urbana, sito na Estrada Nacional 235, freguesia de S. Bernardo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n° 01287/140898 e inscrito na matriz urbana sob os artigos 01347 e 00142.
2. Na cláusula terceira de tal contrato, consignou-se que: Como sinal e princípio de pagamento os primeiros outorgantes recebem do segundo outorgante a quantia de 3.000.000$00, que lhes dará plena quitação.
Na cláusula quarta de tal contrato, consignou-se que: "A título do reforço de sinal, os primeiros outorgantes recebem do segundo outorgante a quantia de 2.000.000$00, a serem entregues até 31 de Junho de 1999".
"A restante quantia em dívida no montante de 19.250.000$00 será paga aos primeiros outorgantes pelo segundo outorgante ou alguém por si indicado, no acto da escritura pública de compra e venda." (cláusula 5a).
Tal fracção encontra-se descrita na matriz urbana, da freguesia de São Bernardo, sob o art. 2008-1., e está descrita na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n.°01464, de onde consta que é constituída por "Habitação no 2o andar frente e 3o andar (sótão) intercomunicáveis, com entrada pela letra B; - o 2o andar com 102,5 m2 e o 3o andar com 37,60 m2 - Tipo T-3 em duplex e ainda na cave um arrumo com 2,10m2 identificada com a respectiva letra" - B).
3. À fracção em referência corresponde o alvará de licença de utilização n.°177, emitido pela entidade administrativa competente, em 8 de Maio de 2001 - C).
4. Em 30 de Setembro de 2002, foi celebrado um aditamento ao contrato, referido em A), onde autor e ré estabelecem regras relativas à cessão da posição contratual e marcação da escritura pública do contrato prometido - D).
Como pressupostos da celebração de tal aditamento, as partes consignaram: "Estabelecem os outorgantes que o promitente-comprador adquiriu a fracção autónoma identificada na 2a Cláusula da promessa, com o objectivo de ceder a sua posição em tal contrato a terceiro.
Reconhecem também ambos os outorgantes que não tendo havido ainda a possibilidade da cessão da referida posição, devido a contingências e recessão do mercado imobiliário, se torna necessário o pagamento do preço estabelecido à promitente vendedora, considerando que a fracção a transaccionar se encontra pronta a habitar e munida da respectiva licença de habitabilidade."
Aí se declara que, nessa data, "a primeira outorgante (ora ré) recebeu do segundo (ora autor) a quantia de 67.337,72 € (sessenta e sete mil trezentos e trinta e três euros e setenta e dois cêntimos), titulados pelos cheques n°s 5838643383, do Atlântico/Aveiro, no valor de 32.421.87 €, e 9299245769, do Montepio Geral, no valor de 34.915.85 €, ambos datados de 27/09/02, relativa ao resto do preço em divida, de que dá plena quitação, pelo que se encontra integralmente cumprido o estabelecido no contrato-promessa no que se refere ao pagamento do preço" - E).
5. Quanto ao prazo, as partes estabeleceram o seguinte: "A escritura do contrato prometido será celebrada no prazo de seis meses a contar de hoje incumbindo ao segundo outorgante ou a quem este transmita a posição contratual a realização das «demarches» para a outorga daquele acto público, avisando a primeira outorgante, por qualquer meio em direito permitido, com uma antecedência de cinco dias.
Este prazo poderá ser prorrogado por igual período se nisso tiver interesse o segundo outorgante, mas, neste caso, assumirá todos os encargos e impostos relativos à fracção em causa, designadamente, contribuição autárquica e condomínio:
A partir desta data o segundo outorgante fica investido na posse e fruição da fracção autónoma, objecto do presente contrato, podendo praticar todos os actos inerentes ao de efectivo proprietário."
Em meados de Janeiro de 2004, os segundos outorgantes, ora autores, encetaram diligências com vista à outorga do contrato prometido - F).
6. O autor avisou a ré da intenção de celebrar a escritura de compra e venda, pelo que, em 14 de Janeiro de 2004, os autores procederam ao pagamento do Imposto Municipal sobre as Transacções Onerosas de Imóveis, tendo indicado o preço de compra de €120959,00 e pago de imposto o montante de €1.147,95 - G).
7. Reunidos os elementos necessários à celebração da escritura, concretamente a Certidão Judicial, a Certidão Registral, o comprovativo do pagamento do IMT e a Licença de Utilização, os autores procederam à marcação da referida escritura de compra e venda, para o dia 24 de Maio de 2004, no 1o Cartório Notarial da cidade de Aveiro - H).
8. Deste facto tendo dado conhecimento à ré, através de comunicação do advogado signatário da petição inicial - I).
9. Nesse dia, 24 de Maio de 2004, compareceram, perante o Notário Público, os autores e o representante legal da ré, L… C… F…, com poderes para o acto - J).
10. Porém, quando o Notário procedia à leitura da respectiva escritura, na parte em que, expressamente, se referia o preço, o gerente da ré interrompeu o acto para declarar que não aceitava assinar pelo preço declarado pelo comprador e constante da liquidação do IMT, invocando que o valor era inferior àquele - L).
11. Nestas circunstâncias, os autores tiveram de pagar pelo acto não concretizado a quantia de € 140,00 - M).
12. Tendo solicitado a certificação dos factos ocorridos, no 1o Cartório Notarial de Aveiro, naquele dia, com o que os autores despenderam a quantia de €20,00 - N).
13. Os autores enviaram à ré as cartas juntas, a folhas 252 e 254, não obtendo resposta escrita - 6o e 7o.
Na carta de folhas 252, enviada pelo ora mandatário dos autores à gerência da ré, datada de 3 de Junho de 2004, refere-se, entre o mais, que "tendo em consideração o facto de, no dia 24/05/04, haverem recusado subscrever a escritura pública, recebi instruções dos meus constituintes para propor acção judicial, em conformidade com o disposto no art° 830° do Código Civil, aliás faculdade prevista no contrato promessa celebrado.
Apesar dessa instrução e porque a decisão judicial no sentido da execução especifica não oferece dúvidas quanto ao seu desfecho, venho, por este meio, solicitar de V. Exas uma confirmação sobre a v/ posição.
Para o efeito, fico a aguardar, pelo prazo de 10 dias, o que entendam dever comunicar-me".
Na outra missiva, igualmente, enviada pelo ora mandatário dos autores à gerência da ré, datada de 24 de Junho de 2004, refere-se, entre o mais, que: "na ausência de qualquer resposta ao meu fax de 03/06/04 e porque essa gerência não se dispõe a subscrever a escritura pública do contrato prometido, acabo de receber instruções definitivas para a propositura da acção, com vista à execução específica da prestação.
Assim e com vista a conceder uma última oportunidade, aguardo por cinco dias o que entendam dever comunicar-me. Findo esse prazo apresentarei a juízo a respectiva acção, por próximo dia 01 de Julho de 2004".
14. A ré entregou aos autores as chaves da fracção, em 30 de Setembro de 2002 - 8o.
15. No dia da escritura, os autores pretenderam fazer constar da escritura o preço de 24.250.000$00 - 12°.
16. Por acórdão da Relação de Coimbra, proferido neste processo, a 28 de Novembro de 2006, transitado em julgado, foi revogada a decisão proferida no saneador/sentença, que tinha julgado inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir, com fundamento em que havia falta de alegação de qualquer factualidade que fundasse o incumprimento contratual, por parte da ré, e ordenado o prosseguimento dos autos, para a selecção dos factos relevantes e decisão sobre a admissibilidade da reconvenção.
17. Tal decisão assentou no entendimento de que os factos alegados na petição, em 18° e 21°, são suficientes para fundamentar a pretensão dos autores de que a ré teve uma recusa inequívoca em cumprir o contrato. Dos fundamentos do acórdão, consta que "estes factos são controvertidos e prendem-se com a definição do preço acordado. Se daí resultar a versão dos autores, bem pode concluir-se pela recusa definitiva de cumprimento por parte da Ré, ou incumprimento definitivo, no entendimento de alguma jurisprudência".
18. Em conformidade com o negociado, o preço da aludida fracção foi de 24250000$00, por conta do qual se encontram, integralmente, pagos, pelos autores, 23500000$00, desde 30 de Setembro de 2002.


Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão do caso julgado.
II – A questão da litigância de má fé.

I. DO CASO JULGADO

Entende a ré que tendo o Tribunal da Relação alterado a matéria de facto fixada, não poderia ter concluído que a interpelação admonitória para cumprir era um acto inútil, por já se ter formado caso julgado com o, anteriormente, decidido, segundo o qual só poderia ser equacionado o incumprimento definitivo se ficasse provada a matéria dos artigos 5o, 6o e 7º da base instrutória, o que não aconteceu.
Efectivamente, perguntando-se, nos pontos 5º, 6º e 7º da base instrutória, respectivamente “Mas dizendo [o gerente da ré] que jamais assinaria a escritura de compra e venda por valor superior a 16500 contos?” [5º], “Os autores, durante o mês de Junho de 2004, ainda tentaram demover o gerente da ré no sentido da outorga da escritura, o que fizeram por intermédio do seu advogado, que lhe enviou fax em 3 e 24 de Junho?” [6º] e “Mas nem sequer obtiveram qualquer resposta?” [7º], o Tribunal de 1ª instância respondeu ao ponto nº 5 “provado apenas o que consta da alínea L)”, enquanto que o Tribunal da Relação, em sede de reapreciação da matéria de facto, respondeu “não provado”, e aos pontos 6º e 7º, a 1ª instância respondeu “provado apenas que os autores enviaram à ré as cartas juntas a fls. 252 e 254, não obtendo resposta”, tendo a Relação acrescentado o qualificativo de “escrita”, quanto a esta última resposta conjunta.
Assim sendo, ficou demonstrado, tão-só, que “quando o Notário procedia à leitura da respectiva escritura, na parte que expressamente se referia o preço, o gerente da ré interrompeu o acto para declarar que não aceitava assinar pelo preço declarado pelo comprador e constante da liquidação do IMT, invocando que o valor era inferior àquele”, mas já não que aquele tenha dito “que jamais assinaria a escritura de compra e venda por valor superior a 16500 contos” e ainda que “os autores enviaram à ré as cartas juntas a fls. 252 e 254, não obtendo resposta escrita”.
Contudo, embora se não haja provado que o gerente da ré tenha afirmado “que jamais assinaria a escritura de compra e venda por valor superior a 16500 contos”, o que é facto é que se demonstrou que “quando o Notário procedia à leitura da respectiva escritura, o gerente da ré interrompeu o acto para declarar que não aceitava assinar pelo preço declarado pelo comprador e constante da liquidação do IMT”, o que não deixa de significar uma recusa terminante e peremptória da celebração da escritura publica, assente num fundamento objectivo, que se traduziu na discordância quanto ao valor do preço expresso na mesma, independentemente do cenário temporal durante o qual se prolongaria essa sua negação em realizar a competente escritura.
Porém, esta declaração do gerente da ré teve a virtualidade de não permitir a conclusão da escritura, originando custos notariais para os autores, independentemente da «profissão de fé» daquele quanto à sua futura realização.
Por seu turno, tendo-se provado que os autores não obtiveram resposta escrita da ré quanto às cartas que lhe enviaram, na sequência da recusa da celebração da escritura pública, tal não significa, naturalmente, que se tenha demonstrado a existência de qualquer outro tipo de resposta.
Porém, um outro eventual tipo de resposta que a ré tivesse dado aos autores, aliás, não demonstrada, traduzir-se-ia numa circunstância, marginal e despicienda, porquanto o que releva, tendo-se provado que os autores, através do seu Advogado, enviaram à ré as cartas juntas, a folhas 252 e 254, em que aquele refere ter recebido instruções dos seus constituintes para propor acção judicial no sentido da execução especifica e que ficava a aguardar uma resposta, no decurso de um prazo final inultrapassável, antes da propositura da acção, é que os autores se quiseram certificar, de modo inequívoco, sobre a efectiva indisponibilidade da ré para celebrar a escritura.
Não colhe, assim, a tese sustentada pela ré da existência de um mero desentendimento momentâneo entre as partes com a subsequente continuação de negociações, tendo em vista a venda do imóvel, nem, muito menos, que, reiteradamente, desde a propositura da acção, a ré tenha vindo a afirmar que celebraria a escritura, nos termos pretendidos pelos autores, de modo a alicerçar a conclusão de que não incorreu em incumprimento definitivo mas, apenas, quando muito, em mora.
Efectivamente, trata-se de factualidade que a ré não demonstrou, como lhe competia, nos termos do disposto pelo artigo 342º, nº 2, do Código Civil (CC), e, nem sequer, aliás, alegou, no lugar próprio destinado para o efeito, e que era a contestação, mas, apenas, em sede de alegações de recurso.
Apesar de a Relação, na sequência de recurso de agravo interposto pelos autores, ter determinado o prosseguimento da acção, com a selecção dos factos relevantes, e considerado, na parte destinada à fundamentação jurídica, que “os factos alegados na petição inicial, designadamente, nos artigos 18º e 21º são controvertidos e prendem-se com a definição do preço acordado, e se daí resultar a versão dos autores bem pode concluir-se pela recusa definitiva de cumprimento por parte da ré…”, tal não significa que, a não se demonstrar a alegação dos autores, o que só veio a acontecer quanto ao artigo 18º da petição inicial, a que correspondeu o ponto nº 5 da base instrutória, não fosse possível concluir, em sede de apreciação do mérito da causa, pela verificação do incumprimento definitivo da obrigação de celebrar o contrato prometido, por parte da ré.
Efectivamente, o caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre a respectiva motivação, sobre as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar aquela conclusão final.
E, assim, só não será, quando se tenha de recorrer à parte motivatória da sentença para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo (1), quando a fundamentação daquela constitui um pressuposto lógico e necessário da decisão (2).
Ora, a consideração a que no recurso de agravo se procedeu, ao decidir no sentido do prosseguimento da acção, com a selecção dos factos relevantes, de que, caso se viesse a demonstrar uma determinada alegação dos autores, tal poderia conduzir à conclusão da recusa definitiva de cumprimento, por parte da ré, não constitui um pressuposto lógico e necessário daquela decisão que obrigasse o julgador do conhecimento do mérito a ficar condicionado na sua actividade de subsunção da matéria de facto à norma jurídica, quer quanto à estatuição, quer quanto às consequências dessa subsunção.
Assim sendo, não ocorre a excepção do caso julgado invocada pela ré.


Retornando á matéria de facto que ficou consagrada, importa reter, no essencial, que a ré prometeu vender ao autor e este, por seu turno, prometeu adquirir aquela, pelo valor global de 24.250.000$00, uma fracção autónoma, tendo recebido, como sinal e princípio de pagamento e respectivo reforço, a quantia 5.000.000$00, devendo a restante importância em dívida, no montante de 19.250.000$00, ser paga à ré, no acto da escritura pública de compra e venda, não obstante esta ter recebido, posteriormente, do autor a quantia de 67.337,72€, relativa ao resto do preço em divida, ficando, então, acordado que a celebração da escritura do contrato prometido seria realizada, no prazo de seis meses, sendo o autor, desde logo, investido na posse e fruição da fracção autónoma, cujas chaves recebeu.
No dia designado para a realização da escritura, quando o Notário procedia à sua leitura, o gerente da ré afirmou que não aceitava assinar pelo preço declarado pelo comprador e constante da liquidação do IMT, invocando que o valor era inferior aquele que os autores pretendiam fazer constar, ou seja, 24.250.000$00, tal como tinham indicado quando procederam ao pagamento do Imposto Municipal sobre as Transacções Onerosas de Imóveis.
O negócio jurídico celebrado pelas partes consiste num contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, com sinal passado, e tradição da coisa, contemplado pelo artigo 410º, do CC, de que resulta, como prestação devida, a emissão de uma declaração negocial destinada a celebrar o contrato prometido (3), que se consubstancia na outorga de uma escritura pública, que é uma formalidade «ad substantiam», como tal essencial à respectiva validade, atento o preceituado pelos artigos 875º, do CC, e 89º, a), do Código do Notariado.
O lesado com a não celebração do contrato prometido dispõe de duas vias no sentido de ver ultrapassada a situação de impasse verificada, consistindo uma na execução específica do contrato-promessa, que pressupõe a simples mora, e a outra na resolução deste mesmo contrato, que pressupõe o seu não cumprimento definitivo.
O não cumprimento da obrigação vem a ser a situação objectiva que consiste na falta de realização da prestação debitória, com a consequente insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de onde a omissão procede (4).
E as modalidades de não cumprimento das obrigações, quanto ao efeito ou resultado produzido, consistem na falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, na mora e no cumprimento defeituoso ou imperfeito.
Ora, o devedor falta, culposamente, ao cumprimento da prestação debitória, não só quando a mesma se torna inviável, como, também, quando a sua realização se demonstra incontrolável, por vontade daquele, como acontece quando comunica ao credor, de forma categórica e inequívoca, a intenção de a não cumprir, revelando com a sua conduta uma intenção firme e definitiva no sentido de recusar o cumprimento da obrigação, contratualmente, assumida, através de uma manifestação de vontade que resulta de declaração expressa, ou de actos concludentes, numa situação factual que integra o não cumprimento definitivo (5).
Efectivamente, tendo a ré, no decurso da leitura da escritura pública relativa ao contrato prometido, em que toda a documentação necessária para o efeito se mostrava completa, afirmado que não aceitava assinar o documento pelo preço declarado pelo comprador e constante da liquidação do IMT, invocando, contrariamente à verdade dos factos, por si bem conhecida, que esse valor era inferior aquele que os autores pretendiam fazer constar da mesma, incorre na situação de incumprimento culposo (6).
Neste caso, torna-se desnecessário, sendo, portanto, inútil a fixação de um prazo suplementar razoável para cumprimento do contrato prometido, em sede de interpelação admonitória, quando é certo que o comportamento do devedor exprime, em termos categóricos, a vontade de não cumprir, a sua recusa antecipada ao cumprimento, dele se podendo inferir, desde logo, o incumprimento definitivo do contrato (7).
Deste modo, não tendo a ré, na qualidade de promitente vendedora, feito prova de qualquer facto que afaste a presunção de culpa que para si resulta do disposto no artigo 799º, nº 1, do CC, há que concluir que a prestação debitória não foi cumprida, por causa que lhe é imputável.
Estipula o artigo 442º, nº 2, do CC, que “se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago”.
Assim sendo, a conduta assumida pela ré determinou o incumprimento do contrato prometido, por causa que lhe é imputável, conferindo aos autores, promitentes compradores, o direito à resolução do contrato-promessa, com a consequente obrigação de aquela restituir o sinal em dobro.
Nestes termos, confirmando-se o acórdão do Tribunal da Relação, neste particular, condenam-se, igualmente, os autores a restituir à ré a fracção autónoma prometida vender, conferindo-se, porém, aqueles o direito de retenção da mesma, cedida em tradição ao promitente comprador, pelo crédito resultante do incumprimento culposo do promitente vendedor.

II. DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ

Defende ainda a ré que foi mal condenada como litigante de má fé, porquanto é possível verificar, a partir das declarações do autor marido, constantes da acta de 14 de Janeiro de 2008, que o preço do imóvel não é coincidente com o preço a pagar e que este engloba outros valores, para além do preço do imóvel.
Diz-se litigante de má fé, segundo o disposto pelo artigo 456º, nº 2, do CPC, quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [a)], tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa [b)], tiver praticado omissão grave do dever de cooperação [c)] ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [d)].
A má fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 266º, nº 1, 266º-A e 456º, nº 2, c), todos do CPC, impõem às partes, ou seja, prende-se com a infracção de normas de natureza processual que, em regra, como, aliás, acontece, no caso em apreço, não contendem com o mérito da causa.
Estipula, também, o artigo 456º, nº 3, do CPC, que “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”.
O acórdão recorrido foi proferido sobre decisão da 1ª instância que determinara a absolvição da ré do pedido de condenação como litigante de má-fé, tendo o Tribunal da Relação, em sede de recurso de apelação, condenado a ré, em multa equivalente a 10 UC’s, como litigante de má fé.
Facultando o normativo legal do já citado artigo 456º, nº 3, do CPC, sempre o recurso, em um grau de jurisdição, da decisão que condene como litigante de má fé, independentemente do valor da causa e da sucumbência, assegurando, nesta sede, o integral respeito pela existência de um segundo grau de jurisdição (8), esse preceito legal não é aplicável, nos casos de absolvição do pedido, restringindo-o às hipóteses de condenação, como interessa ao caso decidendo, por ser, precisamente, para estas últimas que a razão de ser da norma mais justificou o alargamento dos graus de jurisdição.
Desenvolvendo o raciocínio subjacente à aludida condenação em litigância de má fé, o acórdão recorrido considerou que a ré “afirmou que o apartamento foi prometido vender por 18500,00€ e que apenas por força de outros negócios ficou a constar diverso valor no contrato, tendo sido o próprio gerente daquela quem desmentiu esta versão, em julgamento, pelo que dúvidas não restam de que alegou factos que sabia serem falsos”, entendendo, assim, que a conduta processual que a ré assumiu na lide se encontra incursa no comando da alínea b), do nº 2, do artigo 456º, do CPC.
Por isso, tudo está em saber se a ré, no articulado da contestação-reconvenção, alterou, com dolo ou negligência grave, a verdade dos factos, ou seja, se litigou com má-fé.
A este propósito, importa reter que todos os pontos da base instrutória que retratam a versão da ré, ou seja, os pontos nºs 9º, 11º, 13º e 14º, correspondentes aos artigos 31º, {33º e 34º}, 36º e 37º da contestação, respectivamente, conheceram resposta negativa, no caso do ponto 11º [Situação (que no contrato promessa ficasse a constar o preço de 24250000$00) a que a ré nunca se opôs, desde que a escritura fosse realizada pelo preço de 18500000$00?”] ou remissiva, sem nada acrescentar ao perguntado, na hipótese dos pontos 9º [provado apenas o que consta do contrato referido em A)], 13º e 14º [provado apenas o que consta da alínea L)].
Efectivamente, não ficaram demonstrados os seguintes factos alegados pela ré, ou seja, “A mesma fracção foi vendida pela ré aos autores pelo preço total de 18500000$00?” [9º], “Situação (que no contrato promessa ficasse a constar o preço de 24250000$00) a que a ré nunca se opôs, desde que a escritura fosse realizada pelo preço de 18500000$00?” [11º], “Em vez do preço da venda do imóvel (18500000$00)?” [13º] e “Foi esta a única razão pela qual o legal representante da ré não assinou a escritura?” [14º], sendo certo que, ao invés, se provou que a ré prometeu vender ao autor e este, por seu turno, prometeu adquirir aquela, pelo valor global de 24.250.000$00, a fracção autónoma em apreço.
No intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 456º, nº 2, do CPC, saído da revisão de 1995, alargou o conceito de má-fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má-fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, pelo que a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave.
Com efeito, a má-fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 456º, do CPC, diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que se reporta a alínea b), do nº 2, do artigo 456º, do CPC, ou seja, da má-fé substancial indirecta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”(9).
A ré não tem obrigação de confessar, nem pode ser condenada pelo exercício do seu direito de defesa, excepto quando o mesmo se desenvolve, de forma desleal e sem verdade, porquanto não goza do direito de afirmar uma versão contrária à realidade por si sabida.
Justifica-se, portanto, a condenação da ré como litigante de má-fé, por ter alterado a verdade dos factos, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não devia, razoavelmente, ignorar, determinante de responsabilidade processual subjectiva, com base no estipulado pelo artigo 456º, nºs 1 e 2, a) e b), do CPC.
Porém, sendo a ré uma sociedade, a responsabilidade pela multa em que foi condenada pelo acórdão recorrido só poderia recair sobre o seu representante, em relação ao qual não foi observado o princípio do contraditório, com assento no artigo 3º, nºs 1, 2 e 3, do CPC, com vista a, eventualmente, demonstrar que não se encontrava de má-fé na causa, nos termos do disposto pelo artigo 458º, do mesmo diploma legal, e nunca sobre a própria ré (10).
Efectivamente, o regime instituído com as apontadas normas do artigo 456º, nºs 1 e 2, do CPC, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa, por litigância de má fé, não pressupor a prévia audição do interessado, em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação, ofende o princípio constitucional fundamental do acesso aos Tribunais, que tem implícita a proibição da indefesa, de modo a evitar que o mesmo seja confrontado com uma decisão condenatória, cujos fundamentos, de facto e de direito, não teve oportunidade de contraditar, em homenagem ao princípio da igualdade das partes, bem explicitado no artigo 3º, nºs 2 e 3, do CPC (11).
A prévia audição dos interessados condiciona a condenação, por litigância de má fé, revelando-se, assim, indispensável ao exercício do princípio do contraditório, que se encontra ao serviço do princípio da igualdade das partes, segundo o qual cada uma destas é chamada a deduzir as suas razões, de facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras (12), condição «sine qua non» do cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões que constituam uma verdadeira surpresa, em violação do estipulado no artigo 18º, da Constituição Política da República.
Ora, tendo-se omitido a indispensável audição prévia do representante legal da ré, cometeu-se a nulidade a que se reporta o artigo 201º, nº 1, do CPC, com reflexos na decisão da causa, face à preterição do direito de defesa da imputação, por parte daquele, o que importa a anulação do acórdão recorrida, mas, tão-só, na parte em que a ré foi condenada como litigante de má fé, baixando os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, com vista à sua reforma, neste particular.
Porém, face a tudo o que acaba de ser exposto, e reformada a parte da decisão em causa, a ré e o seu legal representante saberão, por certo, compreender o texto deste acórdão, em toda a sua extensão.
Procedem, pois, apenas, em parte, embora com base em fundamentos, totalmente, distintos, as conclusões constantes das alegações da ré.

CONCLUSÕES:

I - O caso julgado forma-se, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre as razões que determinaram o juiz a atingir as soluções que deu às várias questões que teve de resolver para chegar à conclusão final, a menos que se tenha de recorrer à respectiva parte motivatória para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo, em virtude de a fundamentação da sentença ou do acórdão constituir um pressuposto lógico e necessário da decisão.
II - O devedor falta, culposamente, ao cumprimento da prestação debitória quando a sua realização se torna incontrolável, por vontade daquele, como acontece quando comunica ao credor, de forma categórica e inequívoca, a intenção de recusar o seu cumprimento, como acontece se, no decurso da leitura de escritura pública relativa ao contrato prometido, em que toda a documentação necessária para o efeito se mostrava completa, afirma, contrariamente à verdade dos factos, por si bem conhecida, que o valor era inferior aquele pelo qual os compradores pretendiam fazer constar da mesma, que não aceita assinar pelo preço declarado por estes e constante da liquidação do IMT.
III - Neste caso de incumprimento definitivo culposo, torna-se desnecessário, sendo, portanto, inútil a fixação de um prazo suplementar razoável para cumprimento do contrato prometido, em sede de interpelação admonitória, conferindo aos autores, promitentes compradores, o direito à resolução do contrato-promessa, com a consequente obrigação de restituir o sinal em dobro.
IV - A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, condiciona a condenação, por litigância de má fé, revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da pratica de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa, como acontece quando a ré é uma sociedade, em que a responsabilidade pela multa em que foi condenada só pode recair sobre o seu representante, que não foi ouvido nos autos.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder, parcialmente, a revista, e, em consequência, condenam, igualmente, os autores a restituir à ré a fracção autónoma, tipo "T3 Duplex", 2o andar, designada pela letra "I", com a área bruta de 191,75 m2, com lugar de garagem e arrumo, do prédio a ser construído no lote de terreno, destinado à construção urbana, sito na Estrada Nacional 235, freguesia de S. Bernardo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n°01287/140898, e inscrito na matriz urbana, sob os artigos 01347 e 00142, conferindo, porém, aqueles o direito de retenção sobre a mesma fracção autónoma prometida vender, cedida em tradição para o promitente comprador, pelo crédito resultante do incumprimento culposo do promitente vendedor, e anulam o acórdão recorrido, na parte em que condenou a ré como litigante de má fé, no pagamento da multa correspondente a dez unidades de conta, ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, com vista à sua reforma, neste particular, nos termos definidos, mantendo, quanto a tudo o mais, o acórdão recorrido.


Custas pela ré e pelos autores, na proporção de ¾ e de ¼, respectivamente.


Notifique.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2010
Hélder Roque (Relator)
Sebastião Povoas
Moreira Alves

____________________________________
(1) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição, revista e actualizada por Herculano Esteves, Coimbra Editora, 1976, 317.
(2) Remédio Marques, Acção de Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, 452.
(3) Almeida Costa, Contrato-Promessa, Uma Síntese do Regime Vigente, 7ª edição, revista e actualizada, 2001, 11 e 12.
(4) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 59.
(5) STJ, de 26-5-1998, CJ (STJ), Ano VI (1998), T2, 100; STJ, de 21-5-1998, BMJ nº 477, 460; STJ, de 7-1-1993, CJ (STJ), Ano I (1993), T1, 15.
(6) STJ, de 9-1-1997, BMJ nº 463, 544, que decidiu um caso em que “não é possível realizar a escritura de venda de um imóvel por falta de anuência do cônjuge do promitente vendedor”; STJ, de 26-1-1994, CJ (STJ), Ano II (1994), T1, 63, que decidiu um caso em que “o promitente vendedor não responde aos apelos do promitente-comprador para celebrar a escritura apesar de já ter pronta toda a documentação necessária”.
(7) STJ, de 29-6-2006, Pº nº 06B1991, www.dgsi.pt; STJ, de 7-3-1991, BMJ nº 405, 456.
(8) Preâmbulo do DL nº 180/96, de 25 de Setembro, de onde o citado normativo é oriundo.
(9) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição, revista e actualizada por Herculano Esteves, Coimbra Editora, 1976, 355 a 358; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 258 e ss.
(10) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 271 a 273; STJ, de 16-5-2000, CJ (STJ), Ano VIII, T2, 64; e de 24-9-1996, Sumários de Acórdãos do STJ, nº 3, 1996, 20 e 21.
(11) TC, Acº nº 440/94, DR, II série, nº 202, de 1 de Setembro de 1994; Acº nº 103/95, DR, II série, nº 138, de 17 de Junho de 1995; e Acº nº 357/98, de 12 de Maio de 1998, in http://www.tribunalconstitucional.pt
(12) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição, revista e actualizada por Herculano Esteves, Coimbra Editora, 1976, 377.