Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
57/21.0T8PST.L1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
FORO ADMINISTRATIVO
FORO COMUM
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Nos termos da al. h) do n.º 1, do art. 4.º. do ETAF actual, a competência dos tribunais administrativos para apreciarem acções em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas só é possível se lhes for aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o que implica uma interpretação conjugada com o art. 1.º, n.º 5, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007 de 31-12.

II - Numa acção de responsabilidade civil extracontratual por danos provocados à autora (terceira lesada) no âmbito da execução de uma empreitada de obra pública, em que são demandados o empreiteiro e a dona da obra (concessionária), ambas sociedades anónimas, nada sendo alegado quanto à entidade adjudicante, nomeadamente qualquer imputação (por acção ou omissão) quanto ao facto ilícito, é competente para dela conhecer a jurisdição comum.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO


1.1.- A Autora - EEM- EMPRESA DE ELECTRICIDADE DA MADEIRA, SA com sede no Funchal, instaurou na Comarca do Funchal ( Juízo de Competência Genérica ...) acção declarativa, com forma de processo comum, contra as Rés:

A..., SA, com sede no ...

F..., S.A., com sede no ...

Alegou, em resumo:

No dia 14 de Abril de 2020, pelas 17H40, no sítio das ..., freguesia e concelho ..., nas proximidades do Parque Fotovoltaico do ... – PV2, uma máquina escavadora que ali se encontrava a operar ao serviço e sob a direcção da Ré F..., S.A., na realização de trabalhos no âmbito da empreitada, designada por “Remodelação e ampliação dos sistemas de abastecimento e de drenagem do ... – Fase 1- 2.º Procedimento”, adjudicada pela Ré A..., SA, danificou o cabo de escoamento de energia eléctrica que interliga aquela infraestrutura de produção de energia solar, propriedade da sociedade E..., S.A. e o Posto de Transformação do Campo ..., pertencente à Autora.

A partir desse momento e até à conclusão da reparação da mencionada avaria – o que aconteceu em 18 de Abril de 2020, a energia eléctrica produzida no Parque Fotovoltaico do ... – PV2 deixou de ser injectada na rede de distribuição da EEM, através do já identificado posto de transformação.

Em resultado da conduta referida, a Autora sofreu os prejuízos patrimoniais, fundamentando a sua pretensão na responsabilidade civil extracontratual ( arts.483, 562, 566 do Código Civil).

Pediu a condenação das Rés a pagar-lhe solidariamente a quantia de € 11.852,25, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

1.2. A Ré F..., S.A., contestou e arguiu a excepção da incompetência material do Tribunal cível.

Alegou, em síntese, que tendo Autora sustentado o seu pedido na «existência de um contrato de empreitada de obras públicas celebrado pela Ré F..., S.A. enquanto adjudicatária da mesma e pela Ré A..., SA enquanto Entidade Adjudicante», é com base nesse pedido, bem como na causa de pedir que lhe serve de base, «que há que aquilatar da competência material do presente tribunal cível onde a A. instaurou a presente ação».

Ora, segundo a petição inicial da A., a actividade lesiva da propriedade daquela, ocorreu quando a Ré F..., S.A. cumpria um contrato de empreitada de obras públicas adjudicada pela Ré A..., SA.

Como o referido Contrato de Empreitada foi celebrado ao abrigo do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, a competência para conhecer da acção cai na previsão das alíneas a) e h), do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.

Concluiu pela procedência da excepção da incompetência material do tribunal cível.

1.3. A Autora respondeu, dizendo que não se trata de responsabilizar a sociedade empreiteira por violação dos seus deveres contratuais para com o órgão público adjudicante, nem o apuramento das relações contratuais – execução da empreitada em conformidade com as cláusulas contratuais, mas somente de uma actividade que afecta directamente um terceiro e cuja avaliação para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil é regulada por normas de direito privado e não por normas, princípios e critérios de direito público.


1.4. No decurso do prazo da contestação, a Autora desistiu do pedido formulado contra a R. A..., S.A., desistência essa que foi homologada por  sentença de 13 de Julho de 2021.


1.5. No despacho saneador, foi proferida decisão que julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal e, por conseguinte, absolveu a Ré da instância.

Argumentou-se, em resumo quetendo a autora formulado um pedido de condenação solidária de ambas as rés, com fundamento em responsabilidade extracontratual, a pagarem-lhe determinada quantia na decorrência da execução de um contrato celebrado entre aquelas no âmbito da gestão e do interesse público em que estava investida a 1. Ré, os Tribunais Administrativos e Fiscais são competentes para conhecer da acção, ainda que a 2. ré não seja pessoa colectiva de direito público”.

Com fundamento no 4., n. 1, alínea h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e art.10 nº9 do CPTA ( «Podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares”) julgou competente a jurisdição administrativa.


1.6. Inconformada, a Autora recorreu de apelação, e a Relação de Lisboa, por acórdão de 17/3/2022, decidiu

“Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o presente recurso procedente e, por consequência, revogando o despacho recorrido, julgar improcedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal, sendo o Tribunal de Competência Genérica de Porto Santo materialmente competente para conhecer do caso em apreço, devendo os autos prosseguir os seus termos, até final”.

O tópico essencial da argumentação é o seguinte:

“A presente acção destina-se a obter uma indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual. A Ré encontrava-se a executar uma obra quando ocorreu o facto lesivo dos direitos da Autora. Ora, o facto dessa obra estar a ser realizada no âmbito de um contrato de empreitada de obras públicas, no contexto descrito, é perfeitamente irrelevante. Essa circunstância em nada afecta a relação jurídica estabelecida entre Autora, terceira lesada e a Ré, empreiteira. Ambas são entidades privadas e à relação jurídica em apreço aplicam-se exclusivamente as normas de direito privado. São inaplicáveis à questão em apreço, por conseguinte, as normas do art.4º a) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( ETAF )”.


1.7. A Ré F..., S.A. recorreu de revista, com as seguintes conclusões:

1) Para efeito  de determinação da competência do Tribunal, é irrelevante o facto de a Autora EEM, na pendência do processo, ter vindo a desistir do pedido formulado quanto à Ré A..., SA, pois, como consta dos autos, a Autora EEM formulou na sua petição inicial um pedido de condenação solidária da A..., SA e da F..., S.A., com fundamento em responsabilidade extracontratual, a pagarem-lhe determinada quantia pelos danos alegadamente causados no âmbito e por força da execução de um Contrato de Empreitada de Obras Públicas celebrado entre aquelas, no âmbito da gestão e do interesse público em que estava investida a A..., SA;

2) Ora, nos termos do disposto no Art.º 7.º do Decreto Legislativo Regional n.º 17/2014/M de 16/12/2014, a A..., SA é uma empresa de capitais exclusivamente públicos que “tem por objeto a exploração e a gestão do sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região ..., bem como a conceção e construção das infraestruturas e equipamentos necessários à sua plena implementação, concedidas em regime de serviço público e de exclusividade”.

3) Nesse sentido, nos termos do referido diploma e das bases da concessão que constituem o seu anexo, foi celebrado em 30/12/2014 o “Contrato de Concessão da Exploração e Gestão do Sistema Multimunicipal de Águas e de resíduos da Região ... em Regime de Serviço Público e de exclusividade entre a Região Autónoma da Madeira e a A..., SA”, com a duração de 30 (trinta) anos, em regime de serviço público e de exclusividade.

4) No âmbito da gestão e do interesse público em que estava investida, a A..., SA celebrou com a F..., S.A. o Contrato de Empreitada de Obras Públicas denominado «Remodelação e ampliação dos sistemas de abastecimento e de drenagem do ... – Fase 1 – 2º Procedimento.

5) Sendo que, com a presente acção, pretendia a Autora EEM a condenação solidária das Rés A..., SA e F..., S.A. na reparação de danos alegadamente causados por aquelas no âmbito e por força da execução da referida obra pública de «Remodelação e ampliação dos sistemas de abastecimento e de drenagem do ... – Fase 1 – 2º Procedimento».

6) Ou seja, e contrariamente ao referido no douto Acórdão recorrido, os contornos da presente ação são em tudo análogos àqueles que conduziram às decisões constantes dos acórdãos citados na decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, designadamente os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04/06/2020, proferido no âmbito do processo n.º 4778/18.7T8BRG.G1  e de 31/10/2018, proferido no âmbito do processo n. 123/17.7T8MLG-A.G1.

7) Assim, dispõe o Art.º 4.º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que têm por objeto questões relativas a: “a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; (…) f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; (…) h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”.

8) Acrescentando-se no n.º 2 do referido dispositivo que “Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”

9) Dispõe o Art.º 1.º n.º 1 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que: “A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.”, e nos termos do seu n.º 5 “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”.

10) E, ainda, nos termos do artigo 10.º, n.º 9 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos “podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com particulares”.

11) Ora, como vimos, no caso em análise, segundo alega a Autora EEM na sua petição inicial, esta terá sofrido danos causados no âmbito e por força da execução do Contrato de Empreitada de Obras Públicas de «Remodelação e ampliação dos sistemas de abastecimento e de drenagem do ... – Fase 1 – 2º Procedimento», celebrado entre a F..., S.A. e a A..., SA, empresa de capitais exclusivamente públicos concessionária do sistema de águas e de resíduos da Região ..., no âmbito da gestão e do interesse público em que esta estava investida, requerendo a condenação de ambas no pagamento solidário da indemnização que lhe entende ser devida.

12) Temos, pois, que o caso, como vem configurado na petição inicial, integra matéria de responsabilidade extracontratual por acto ilícito, responsabilidade essa que cai na previsão da alínea h) do n.º 1, do Art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

13) De facto, está em causa um Contrato de Empreitada celebrado com a A..., SA, regido pelo Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, é dizer, estamos perante um Contrato com natureza administrativa, razão pela qual os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para julgar e decidir sobre o pedido deduzido pela Autora.

14) Ora, no presente caso, a Autora EEM alega a existência de danos causados pela empreiteira F..., S.A. contratada pela A..., SA, empresa de capitais exclusivamente públicos, concessionária do sistema de águas e de resíduos da Região ..., no âmbito e por força da execução de um Contrato de Empreitada de Obras Públicas de «Remodelação e ampliação dos sistemas de abastecimento e de drenagem do ... –Fase 1 – 2º Procedimento», celebrado no âmbito da gestão e do interesse público em que aquela estava investida, razão pela qual a Autora EEM requereu a condenação solidária da A..., SA e da F..., S.A..

15) Temos, pois, que a competência em razão da matéria para conhecer do presente litígio pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais (vide, a propósito, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos do Supremo Tribunal Administrativo de 05/05/2010, processo n.º 06/10, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/02/2007, processo n.º 07B238, disponíveis em www.dgsi.pt);

16) Aliás, em boa verdade se diga, que o próprio Acórdão recorrido autoriza esta conclusão, ao fundamentar a sua decisão no entendimento erróneo de que a relação jurídica em análise se desenvolve unicamente entre duas entidades privadas – a Autora EEM e a Ré F..., S.A., pois, se o douto Acórdão considerasse o caso, como vem configurado na petição inicial, teria concluído pela competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais;

17) Ora, a infração das regras de competência em razão da matéria, nos termos do disposto no Art.º 96.º, alínea a) do Código de Processo Civil, determina a incompetência absoluta do tribunal, pelo que bem andou o Tribunal de 1ª Instância ao decidir nos termos que constam do Despacho Saneador/Sentença revogado pelo Acórdão de que recorre;

18) Decidindo, como decidiu, o douto Acórdão recorrido fez uma incorreta aplicação do direito, designadamente do preceituado nos Art.ºs 211.º n.º 1 e 212.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, e bem assim dos Art.ºs 38.º n.ºs 1 e 2 e 40 n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, dos Art.ºs 64.º e 96.º alínea a) do Código de Processo Civil e dos Art.ºs 4.º n.º 1 alínea h) e n.º 2 e 5.º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que confirme integralmente o Despacho Saneador/Sentença proferido pelo Mmo. Juiz do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Competência Genérica ....


1.9. A Autora contra-alegou, concluindo:

a) Com a presente acção, a A. EEM – Empresa de Electricidade da Madeira, S.A. pretende exigir à R. F..., S.A. indemnização fundada em responsabilidade civil extracontratual por danos sofridos em virtude de execução de uma obra.

b) O facto dessa obra estar a ser executada no âmbito de um contrato de empreitada de obras públicas, no contexto descrito, em nada afecta a relação jurídica entre a A., na qualidade de terceira lesada e a R. empreiteira.

c) A. e R. são entidades privadas e à relação jurídica controvertida aplicam-se exclusivamente normas de direito privado.

d) A competência do Tribunal afere-se genericamente de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como se encontra configurada pelo autor e a mesma fixa-se no momento em que a acção é proposta, conforme resulta do disposto nos artºs. 38º da L.O.S.J. e 5º, nº. 1 do ETAF.

e) A competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais, diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, no mesmo plano, não existindo entre elas uma relação de supra-ordenação, baseada a definição desta competência na matéria da causa, ou seja, baseada no seu objecto, encarado sob o ponto de vista qualitativo, de natureza substancial, sendo o tribunal regra o da comarca.

f) Para efeitos de apreciação/avaliação de um certo acto ou facto causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das categorias gestão privada/gestão pública importa saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.

g) A A..., SA, constituída pelo Decreto-Legislativo Regional nº. 7/2009/M, de 12 de Março, rege-se pelo referido diploma, pelos Estatutos e pelo regime jurídico aplicável ao Sector Empresarial da Região Autónoma da Madeira, pelo Código das Sociedades Comercias e demais legislação aplicável.

h) O Decreto Legislativo Regional nº. 13/2010, de 5 de Agosto, que estabelecia o regime jurídico do sector empresarial da Região Autónoma da Madeira, em vigor à data em que foi instaurada a acção no que tange ao Direito aplicável, dispunha no artº. 7º que as empresas públicas regionais regem-se pelo respectivo diploma, pelos seus diplomas de criação, pelos respectivos estatutos e ainda pelas normas aplicáveis às sociedades comerciais.

i) No que concerne à competência material dos tribunais, para efeitos de determinação da competência para julgamento dos litígios, incluindo recursos contenciosos respeitante a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade referidos nos artºs. 16º e 20º, nº. 1 do diploma a que alude a conclusão precedente, equiparava as empresas públicas regionais a entidades administrativas, estabelecendo o nº. 2 do preceito por último referido, que nos demais litígios, seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.

j) O caso das empreitadas de obras públicas não integra nenhum dos Poderes de autoridade elencados nas diversas alíneas do artº. 16º, nº. 1 do diploma em referência.

l) O Decreto-Legislativo Regional nº. 15/2021/M, de 30 de Junho, que revogou o Decreto Legislativo Regional nº. 13/2010, de 15 de Agosto, em termos de direito aplicável, manteve as linhas mestras definidas pelo seu antecessor.

m) As empresas públicas societárias são pessoas colectivas privadas, mesmo quando sejam sociedades de capitais exclusivamente públicos, com a sua organização e funcionamento regidos basicamente pelo direito privado.

n) À questão “sub judice” são inaplicáveis as normas do artº. 4º, alíneas a) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

o) O douto acórdão recorrido fez uma correcta aplicação do direito, maxime dos artºs. 211º, nº. 1 e 212º, nº. 3 da Constituição da República Portuguesa, 38º, nºs. 1 e 2 e nº. 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº. 62/2013, de 26 de Agosto); 64º do Cód. Proc. Civ., 7º, 20º, nº. 1 do Decreto Legislativo Regional nº. 13/2010, de 5 de Agosto; 7º do Decreto Legislativo Regional nº. 17/2014/M, de 16 de Dezembro de 2014.



II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Delimitação do objecto do recurso

A questão submetida a revista consiste em saber qual a jurisdição competente para a acção de responsabilidade civil extracontratual por danos provocados à Autora (terceira lesada) no âmbito da execução de uma empreitada de obra pública, em que são demandados o empreiteiro ( 2ª Ré) e a dona da obra ( 1ª Ré).

Se é competente a jurisdição administrativa ( tese da sentença e da revistante) ou a jurisdição comum ( tese do acórdão recorrido e da revistada).

2.2. – O mérito do recurso

A competência, enquanto medida de jurisdição de cada tribunal que o legitima a conhecer de determinado litígio, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura.

Por outro lado, a competência fixa-se no momento da propositura da acção , sendo irrelevante as modificações de facto (art.38 nº1 da Lei nº 62/2013 de 26/8) significando que não releva, para o efeito, a desistência do pedido em relação à 1ª Ré.


A Autora demandou  a A..., SA (1. ré), e F..., S.A. (2. ré), alegando na petição inicial que  entre as rés foi celebrado contrato de empreitada denominado «Remodelação e ampliação dos sistemas de abastecimento e de drenagem do ... – Fase 1 – 2º Procedimento» e que, no âmbito da execução do mesmo contrato, «uma máquina escavadora que ali se encontrava a operar ao serviço e sob a direcção» da 2. ré, «danificou o cabo de escoamento de energia eléctrica que interliga aquela infraestrutura de produção de energia solar, propriedade da sociedade E..., S.A. e o Posto de Transformação do Campo ..., pertencente à A.», e que em consequência teve danos patrimoniais.

É pois com base na responsabilidade civil extracontratual ( art.483 e  segs. CC)  que a Autora reclama a indemnização.

A Constituição prevê a existência de várias categorias de tribunais, nomeadamente, os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais ( art.209 ), referindo o art. 211 nº1 CRP que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, e o art. 212 nº3 CRP que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Nos termos dos arts.64 do CPC e 40 da LOSJ ( Lei nº 62/2013 de 26/8) “ são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, significando que a competência dos tribunais judiciais é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.

Por conseguinte, a competência dos tribunais judiciais é analisada por critérios de atribuição positiva e de competência residual e as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais, sendo que na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização que permite reservar para certas categorias de tribunais o conhecimento de determinadas causas, atendendo à especificidade das matérias.


O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( ETAF) foi  aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19/2 ( com as alterações das Leis nº 4-A/2003 de 19/2, e Lei nº 107-D/2003 de 31/12, DL n nº214-g/2015 de 2/10, e a Lei nº 114/2019 de 12/9).

Importa salientar que o DL n.º214-g/2015 de 2/10, para além de proceder a uma renumeração das diversas alíneas do art. 4.º, n.º 1 ETAF (a alínea i) passou a alínea h)), alterou o teor da antiga alínea i), pois, na anterior redação, consignava-se “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados” enquanto que, agora, se refere “responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos”.

Dispõe o art.1º nº1 do ETAF - “ Os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

O art.4 nº1 alínea h) prescreve - “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”.

E o art. 4º nº 2 – “Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.


Verifica-se que a alínea h) do nº1 do art.4º do ETAF não é de aplicação imediata, visto ser necessário saber quais as normas que implicam substantivamente o regime da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

A Lei nº 67/2007 de 31/12 aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, e o art.1º nº5 estatui o seguinte:

 “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Daqui resulta que relativamente às pessoas coletivas de direito privado só se aplica o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, quanto a acções ou omissões praticadas “no exercício de prerrogativas de poder público” ou que sejam “regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

A este propósito escreve CARLOS CADILHA que “ a norma que, no plano do direito substantivo dá concretização prática à regra da competência definida no artigo 4 nº1 alínea i) do ETAF é a da actual nº5 do artigo 1º do RRCEE e esta disposição limita-se a estender o âmbito de aplicação do regime da responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito público às pessoas coletctivas de direito privado por acções ou omissões  que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam  reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”. Realça, no entanto, que “ a submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da Administração ( Com a consequente sujeição ao contencioso  administrativo), terá, portanto, de ser aferida casuisticamente em função da natureza jurídica  dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta” ”( Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pág. 54 e 55).

Sendo assim, para a determinação da competência, impõe-se a conjugação do art.4 nº1 h) do ETAF com o art.1º nº5 da Lei nº 67/2007.

E no art. 1° n° 5 da Lei 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa: (i) exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade, (ii) actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Com a Reforma do Contencioso Administrativo pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regerem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

Esta alteração é enfatizada na exposição de motivos na Proposta de Lei nº93/VIII do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (cf. Diário da Assembleia da República, II série-A, nº 76, 18.7.2001, pág. 47 e seguintes):

“A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; já em relação às pessoas colectivas de direito privado, ainda que detidas pelo Estado ou por outras entidades públicas, como a sua actividade se rege fundamentalmente pelo direito privado, entendeu-se dever manter a dicotomia tradicional e apenas submeter à jurisdição administrativa os litígios aos quais, de acordo com a lei substantiva, seja aplicável o regime da responsabilidade das pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa”.

A jurisprudência do STJ e do Tribunal de Conflitos é no sentido da atribuição da competência à jurisdição comum, por se entender que à luz da alínea h), do nº.1, do art. 4º. do ETAF a competência dos tribunais administrativos para apreciarem acções em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas só é possível se lhes for aplicável “o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” ( cf., por ex., Acs. Tr. Conflitos de 17/5/2007 (proc. 05/07) de 20/6/2007 (proc.03/07), de 20/1/2010 ( proc 025/09), os Acs. STJ de 28/10/2008 (proc.08A3034), de 10/4/2008 (proc.08B845), de 13/3/2008 (proc.08A391), disponíveis em www dgsi.pt).

Coloca-se a questão de saber qual a jurisdição competente para a acção de responsabilidade civil extracontratual por danos provocados à Autora ( terceira lesada ) no âmbito da execução de uma empreitada de obra pública, em que são demandados o empreiteiro e a dona da obra.

As Rés são pessoas colectivas de direito privado, sociedades anónimas.  Contudo, a Ré A..., SA é uma empresa de capitais exclusivamente públicos que tem por objeto a exploração e a gestão do sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região ..., bem como a concepção e construção das infraestruturas e equipamentos necessários à sua plena implementação, concedidas em regime de serviço público e de exclusividade.

O Decreto Legislativo Regional nº7/2009 /M de 12/3 ( DR 1ª série de 12/3) criou a sociedade Ré, concessionária , sendo que nos termos do art.4 nº2 “ A sociedade reger-se-á pelo presente diploma, pelos seus Estatutos, que obedecerão, no essencial, à minuta constante do anexo i, pelo regime jurídico aplicável ao sector empresarial da Região Autónoma da Madeira, pelo Código das Sociedades Comerciais e demais legislação que lhe seja aplicável”

O regime jurídico do sector empresarial da Região Autónoma da Madeira é regulado Decreto Legislativo Regional nº 13/2010/M de 5/8 ( DR 1ª Série de 5/8/2010), estabelecendo no tocante à competência material dos tribunais, no art.20 o seguinte

“1. Para efeitos de determinação da competência para julgamento dos litígios, incluindo recursos de contenciosos, respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o art.16, serão as empresas públicas regionais equiparadas a entidades administrativas.

2. Nos restantes litígios seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.”

Este Decreto, vigente à data do contrato de concessão, veio a ser revogado pelo Decreto Legislativo Regional nº 15/2021/M de 30/6, que manteve o mesmo regime (arts. 21 e 22).

Tal como a acção se apresenta estruturada, não é aqui aplicável o regime jurídico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art.1º RRCEE), pela simples razão de que não obstante a Ré A..., SA ser uma empresa concessionária e entidade adjudicante,  a actuação da Ré empreiteira causadora de danos a terceiro ( a Autora) não tem directamente a ver com o contrato de concessão ou com o incumprimento do contrato de empreitada.  Ou seja, o facto gerador do dano não foi produzido no uso de poderes de autoridade ou de função administrativa.

Muito embora a A..., SA seja concessionária das águas e resíduos, não está em causa litígio respeitante esse contrato ou ao contrato de empreitada de obra pública, pelo que não tem aplicação o nº1 do art.20 do Decreto Legislativo Regional 13/2010/M, pois a actuação lesiva, danos provocados a terceiro na execução da empreitada, não emerge da prática de qualquer acto administrativo, de qualquer relação administrativa.

Dito de outro modo, para efeitos de determinação da competência, as empresas públicas regionais, como a A..., SA, são equiparadas a entidades administrativas se a causa de pedir emergir de actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade (como no contrato de concessão ), o que não é a situação alegada.

A causa de pedir da presente acção arranca de um acto ilícito praticado pela Ré empreiteira causador de danos aquando dos trabalhos de execução da empreitada.

Neste sentido, o Tribunal de Conflitos, por acórdão de 17/5/2007 ( proc nº 5/07) ,decidiu:

“Os trabalhos executados pelo empreiteiro a coberto de um contrato de empreitada de obras públicas obedecem às regras técnicas aplicáveis a qualquer contrato dessa natureza, público ou privado, não se assumindo como actos de gestão pública, não se integrando, por isso, nas relações jurídicas a que alude o art.º 1, n.º 1, do ETAF”.

Na vigência do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2/3, estando em causa um pedido indemnizatório por prejuízos resultantes de um contrato de empreitada de obras públicas, deduzido por terceiro lesado entendia-se ser de aplicar o disposto no Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas (REOP), designadamente os arts. 36º a 38º,.

A jurisprudência  consolidou-se no sentido de que o regime jurídico empreitadas de obras públicas ( DL n.º 59/99) não contém qualquer princípio geral de responsabilização do dono da obra pela indemnização dos prejuízos provocados pelo empreiteiro ou subempreiteiro no âmbito da execução do contrato, visto o que existe é, em primeira linha, a responsabilização geral do empreiteiro ou do subempreiteiro, limitando-se a responsabilidade do dono da obra aos prejuízos provocados por aqueles nas situações em que os vícios da obra resultaram de ordens ou instruções transmitidas pelo fiscal nomeado pelo dono da obra, ou que hajam obtido a sua concordância expressa, ou daquelas outras situações em que tenha havido erros de concepção do projecto imputáveis ao dono da obra ( cf., por ex., 1/7/1993 ( proc nº 031595), de 20/12/2000, de 13/10/2005 ( proc . n.º 0643/05, disponíveis em www dgsi.pt)

Além disso, os comportamentos lesivos de terceiros, ocorridos durante a execução de uma empreitada de obras públicas, não são automaticamente qualificados como deficiente exercício das funções administrativas ( cf. Ac STA, de 16/5/01, proc n.º 47.082,em www dgsi.pt).

Como se justificou no Ac STA de 20/12/2000 (Proc. n.º 046388), em www dgsi.pt ) “em regra, é sobre o empreiteiro que recai a obrigação de indemnizar os danos a que este houver dado causa na execução da obra (…)” mas “(…)pode admitir-se o dever de indemnizar do dono da obra no domínio da responsabilidade extracontratual, (…) se o autor tivesse carreado à petição da acção factos que, oportunamente provados, autorizassem concluir que os danos ocorridos ficaram a dever-se a desajustada e inoperante fiscalização pelo dono da obra, ou a ordens ou instruções escritas transmitidas pelo respectivo fiscal”.

Note-se que entre o dono da obra e o empreiteiro não existe uma qualquer relação de “comissão” a impor o regime do art.500 CC.

Como decidiu o Ac STA de 22/5/2003 ( proc nº 01901/02), em www dgsi.pt - Não existe no regime jurídico do DL 405/93, de 10.12, diploma que regulava o contrato de empreitada de obras públicas então em vigor, (como não existia no anterior, o DL 235/86, 18.8, nem existe no subsequente, o DL 59/99, de 2.4.) um princípio geral de responsabilização do dono da obra decorrente dos prejuízos provocados pelo empreiteiro no âmbito da execução do contrato. O que existe, em qualquer dos casos, é, em primeira linha, a responsabilização geral do empreiteiro, cingindo-se a responsabilidade do dono da obra aos prejuízos provocados naqueles casos em que os vícios da obra resultaram de ordens ou instruções transmitidas pelo fiscal por aquele nomeado, ou que hajam obtido a sua concordância expressa, e também daqueles outros em que tenha havido erros de concepção do projecto imputáveis ao dono da obra.

O DL nº 59/99 foi revogado pelo DL nº 18/2008 de 29/1 que aprovou o Código da Contratação Pública e dos arts.61 e 378 nº2 resulta que cabe exclusivamente ao empreiteiro a responsabilidade por quaisquer erros de e omissões quando a concepção do projecto for por si apresentado. E responderá o dono da obra se o erro de concepção/ construção for seu.

O art.372 nº2 CCP dispõe que – “ Quando o empreiteiro tenha a obrigação de elaborar o projeto de execução, é o mesmo responsável pelos trabalhos complementares que tenham por finalidade o suprimento dos respetivos erros e omissões, exceto quando estes sejam induzidos pelos elementos elaborados ou disponibilizados pelo dono da obra”.

Ora bem, mesmo que se convoquem os arts.303, 304, 305, 378 do CCP, a verdade é que nada foi alegado quanto à violação dos deveres de fiscalização e execução por parte da A..., SA, e muito menos que o facto lesivo tivesse sido determinado por ela.

Por outro lado, o nº 2 do art. 4.º do ETAF, confere competência à jurisdição administrativa para julgar litígios nos quais “devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade (…)”, pelo que o autor tem o ónus de alegar factos concretos que traduzam a existência de um vínculo ou relação jurídica de solidariedade que apenas tem por fonte a lei ou a vontade das partes (art.513 CC).

Sucede que o Autor não alegou qualquer vinculo de solidariedade, limitando-se a peticionar a condenação solidária de ambas as Rés (posteriormente desistiu do pedido quanto à 1ª Ré).

E como se decidiu no Ac STJ de 11/2/2021 ( proc nº 34279/15), em www dgsi.pt “Alegar, como faz o autor que a obrigação entre os réus é solidária constitui uma conclusão ou objectivo jurídico, insuficiente por si só, para fixar, a montante, a competência dos tribunais administrativos, pelo que, tal como entendeu a Relação, deve o litígio contra os réus privados, incluindo o aqui recorrente, ser resolvido pelos tribunais judiciais, por ser a ordem jurisdicional residualmente competente (cfr. art. 64.º do CPC)”.


2.3. – Síntese conclusiva

1. Nos termos da alínea h) do nº.1, do art. 4º. do ETAF actual, a competência dos tribunais administrativos para apreciarem acções em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas só é possível se lhes for aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o que implica uma interpretação conjugada com o art.1º nº5 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007 de 31/12

2. Numa acção de responsabilidade civil extracontratual por danos provocados à Autora (terceira lesada) no âmbito da execução de uma empreitada de obra pública, em que são demandados o empreiteiro e a dona da obra (concessionária), ambas sociedades anónimas, nada sendo alegado quanto à entidade adjudicante, nomeadamente qualquer imputação ( por acção ou omissão) quanto ao facto ilícito, é competente para dela conhecer a jurisdição comum.



III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar a recorrente nas custas.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça,


Os Juízes Conselheiros

Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Manuel Aguiar Pereira