Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S530
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Nº do Documento: SJ20080924005304
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : I - A qualificação de uma relação jurídica (como contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviço) constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho, e que se manteve na vigência deste diploma, uma vez que pressupõe um juízo de valoração sobre o facto que lhe deu origem, há-de operar-se à luz do regime anterior, isto é, o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT), anexo ao Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969.
II - A subordinação jurídica, característica basilar do vínculo laboral e elemento diferenciador do contrato de trabalho, implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.
III - A determinação da existência dessa subordinação jurídica e dos seus contornos consegue-se mediante a análise do comportamento das partes e da situação de facto, através de um método de aproximação tipológica, única via a percorrer, na ausência de comportamentos declarativos expressos definidores das condições do exercício da actividade contratada, situação frequente quando se trata de convénios informais.
IV - Os factos reveladores da existência do contrato de trabalho apresentam-se como constitutivos do direito que, com base neles, se pretende fazer valer, pelo que o ónus da prova incumbe a quem os invoca (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
V - Não é de qualificar como de trabalho subordinado a relação jurídica que vigorou entre o autor e a ré, empresa de seguros, durante mais de seis anos, nos termos da qual competia àquele elaborar peritagens de veículos acidentados para a ré, deslocando-se, para o efeito, diariamente às instalações desta, onde, normalmente, permanecia entre as 8.45h e as 10.00h, recebendo a documentação necessária à realização de peritagens e entregando relatórios de peritagens realizadas no dia anterior, sendo pago em função de cada peritagem, mediante quitação em recibos de “honorários de peritagens” ou em “recibos verdes” e não recebendo retribuição de férias, respectivo subsídio e subsídio de Natal, sendo que o autor escolhia o número de dias em que pretendia gozar férias, avisando previamente a ré para que ela não contasse com o seu trabalho.

 

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1. AA instaurou, no Tribunal do Trabalho do Porto, em 25 de Fevereiro de 2005, acção com processo comum, contra “Companhia de Seguros BB, SA”, pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre ambos, desde Março de 1998, declarada a ilicitude do despedimento, de que diz ter sido alvo, e a consequente condenação da Ré na reintegração do Autor ou, caso não venha a optar pela reintegração, no pagamento da indemnização substitutiva, em montante fixado pelo limite máximo legalmente estabelecido, bem como no pagamento das retribuições que deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial, a calcular em execução de sentença; pediu, outrossim, a condenação da Ré a pagar-lhe as quantias correspondentes a retribuições de férias, subsídios de férias e de Natal, que se venceram desde 1998 até 2004, assim como as que se venham a vencer (estas a calcular em execução de sentença), com juros legais desde a citação até integral pagamento, a compensação legal, por violação, nos anos de 1998 a 2004, do direito a férias, e uma indemnização, por danos não patrimoniais, de valor não inferior a € 100.000,00.

Alegou, em resumo, que, em Março de 1998, foi admitido ao serviço da “CC, Companhia de Seguros, SA”, antecessora da Ré, exerceu, sob a direcção e fiscalização desta, as funções correspondentes à categoria de perito de chapa, até 31 de Dezembro de 2004, data em que foi despedido, sem precedência de processo disciplinar e sem justa causa, do que resultaram os danos não patrimoniais invocados; apenas gozava dez dias de férias e nunca lhe foi pago qualquer subsídio de férias ou de Natal.

Na contestação, a Ré, a pugnar pela improcedência da acção, sustentou que a relação que existiu não configurava um contrato de trabalho, mas um contrato de prestação de serviço.

Na 1.ª instância, foi proferida sentença que, qualificando a relação estabelecida entre as partes como contrato de prestação de serviço, julgou a acção improcedente.

Impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto e a solução jurídica do pleito, o Autor apelou, sem sucesso, pois o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso.

2. A fim de ver revogado o acórdão da Relação e condenada a Ré no pedido, interpôs o Autor o presente recurso de revista, cuja alegação rematou com as conclusões assim redigidas:

I - O A., Recorrente, exerceu a sua actividade ao serviço da R.;

II - A presunção do art.º 12.º conjugado com o art.º 112.º ambos do CT, [?] a actividade exercida pelo A. era específica de um contrato de trabalho;

III - Na verdade, não existe[m] dúvidas da actividade exercida pelo A., ao serviço da R..

IV - A R. controlava a assiduidade do A. através do mapa “organigrama”;

V - A R. transmitia as ordens de trabalho ao A. através [?] para este executar a actividade no próprio dia e nos locais.

VI - O A. ora Recorrente era trabalhador dependente porque:

a) Encontrava-se integrado na estrutura organizativa da R.. Integração incluída nos mapas “organigrama” onde descrevia o nome do A. ora Apelante e os demais peritos ditos do quadro;

b) Realizava na sede da R. a actividade em espaço reservado para todos os peritos, onde recebia as ordens, elaborava os relatórios em mod. imposto pela R., atendia os telefonemas dirigidos ao Autor durante o período da manhã das 8H45 às 10H30, para dar informações sobre a actividade desenvolvida ao serviço da Ré;

c) Encontra-se numa situação [de dependência (?)] económica face à R., apesar da R. contornar a forma de retribuição diferente dos peritos do quadro, pagando ao Km, portagens e almoços;

d) Os instrumentos do trabalho eram todos fornecidos pela R., desde os documentos para análise dos danos nos veículos, bem como os mod. onde realizavam os relatórios finais;

e) A prestação de trabalho exercida pelo A. foi executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias.

VII - Além disso, como resulta da matéria de facto, o autor recebia ordens e orientações dos chefes senhor G.... e A...., também indiciador da existência de trabalho subordinado e, sempre que chegasse mais tarde ou fosse ao médico, tinha que comunicar com antecedência a fim de colocar no mapa diário o motivo, uma forma clara de controlo.

VIII - A R. suportava as despesas decorrentes da deslocação que o autor efectuava no desempenho da sua actividade o que faz presumir a existência de um contrato de trabalho, como o pagamento das portagens e almoços, diferente do contrato de prestação de serviços, que engloba todo o trabalho executado.

IX - Na verdade, à R. não interessava um determinado resultado (situação em que, por exemplo, competiria ao autor fazer-se substituir por outrem, sendo as despesas por si suportadas), mas sim a actividade do autor, na medida que este quando faltava, nunca se fazia substituir por outro perito apresentado por si, a fim de este realizar o trabalho ordenado pela Ré.

X - Assim, ponderados tanto os métodos indiciários, como a aplicação dos arts. 10.º e 12.º do Código do Trabalho, conclui-se pela existência de um contrato de trabalho e de subordinação jurídica através dos meios de prova documentais e os depoimentos das testemunhas – e não olvidando que compete ao trabalhador a prova [de] que entre as partes vigorou um contrato de trabalho (art.º 342.º, n.º 1, do CC) –, verifica-se que na sua globalidade conduzem à conclusão de que havia uma relação de subordinação do autor à R., por consequência, a relação jurídica que vigorou entre as partes, é de qualificar como contrato de trabalho.

XI - Nesta sequência, reafirma-se, a factualidade provada, globalmente considerada, permite concluir que o A. era trabalhador subordinado da R.

XII - Tendo em conta todos os factos e ontologicamente o peso significativo, da relação jurídica, ficou provado a existência de subordinação jurídica do A. em relação à R..

XII - Assiste ao A. o direito de ser reconhecido o vínculo contratual, e assim ser reintegrado na estrutura organizatória, retomando assim o seu posto de trabalho.

Contra-alegou a Ré a pugnar pela confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer, a que a partes não responderam, no sentido de ser negada a revista.

Face ao teor das conclusões do recurso, a questão fundamental que vem proposta à apreciação deste Supremo é a de saber se a relação jurídica que vigorou entre as partes deve ser qualificada como contrato de trabalho.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


II

1. O acórdão recorrido, julgando improcedentes as conclusões da apelação relativas à impugnação da matéria de facto, fixou-a nos seguintes termos:

I – Por acordo das partes e por documentos não impugnados

1.º) - A ré nunca pagou ao autor qualquer importância a título de subsídio de férias ou de Natal.

2.º) - Pelo menos até Junho de 2000, o autor dava quitação à ré das importâncias por si recebidas e por ela pagas, relativas a “honorários de peritagens”, com recibos de uma pessoa colectiva com o seu nome, contribuinte fiscal n.º 8000000000.

3.º) - Pelo menos a partir de 31.12.2003, o autor passou a dar quitação à ré das importâncias por si recebidas e por ela pagas, com o modo n.º 337 – vulgo recibo verde.

4.º) - A ré não instaurou ao autor qualquer processo disciplinar.

II – Da discussão da causa

5.º) - Em Março de 1998, o autor iniciou prestação de trabalho à empresa CC, Companhia de Seguros, SA., hoje integrada por fusão na Companhia de Seguros BB, SA.

6.º) - Prestação de trabalho que se manteve, até 31 de Dezembro de 2004.

7.º) - No dia 04.01.2005, quando chegou às instalações da CC, SA., estas estavam encerradas, recusando a ré, até hoje, a prestação de trabalho por parte do autor, do qual prescindiu naquela data.

8.º) - Trabalho que consistia em proceder a peritagem de veículos acidentados, no âmbito da responsabilidade civil e danos próprios.

9.º) - Para tal, o autor dirigia-se diariamente, nos dias úteis da semana, às instalações da ré sitas no Porto, onde recebia a documentação necessária à realização de peritagens a efectuar por si naquele dia, e onde entregava os relatórios de peritagens efectuadas no dia útil anterior, estes em modelo próprio fornecido pela ré.

10.º) - Para o efeito, o autor normalmente chegava às instalações da ré pelas 08.45 horas, abandonando-as, normalmente, cerca das 10.00 horas.

11.º) - Quando necessário, o autor era nomeado pela ré como testemunha em processos judiciais e comparecia em Tribunal para prestar depoimento, quanto a sinistros por si peritados e que tinham tramitação judicial.

12°) - A recolha e entrega dos documentos de serviço referidos em 9.º) acima, era feita pelo autor e por todos os restantes “peritos de sinistros automóvel”, numa sala sita na cave do edifício das instalações da ré, onde se encontrava uma mesa (grande), cadeiras e um armário para o efeito, bem como uma fotocopiadora.

13.º) - O autor, sempre que pretendia gozar um período de férias, avisava com antecedência a ré, normalmente com dois meses, para que esta não contasse com o seu trabalho naquele período.

14.º) - O autor, em cada ano, fixava livremente o número de dias que pretendia gozar de férias, fazendo-o normalmente por um período de 10 (dez) dias.

15.º) - O autor, não entrava no “mapa de férias” do pessoal do quadro (peritos de sinistros automóvel) da ré.

16.º) - Ao fim de cada mês, o autor recebia da ré, pelo trabalho prestado, a quantia de 14,96 euros por cada peritagem de sinistro automóvel realizada, ou 7,48 euros por cada peritagem incompleta, acrescidas de IVA.

17.º) - A ré pagava ainda ao autor, no final de cada mês, uma importância por cada Km percorrido, e reembolsava-o das despesas efectuadas e por si pagas, contra recibos, relativas ao pagamento de portagens e refeições tomadas, estas com um “tecto” de 9,05 euros/refeição.

18.º) - Os peritos de sinistros automóvel e que tinham contrato de trabalho com a ré recebiam desta uma remuneração mensal fixa, independentemente do número de peritagens efectuadas.

19.º) - Instrumentos de trabalho, tais como máquinas fotográficas, canetas, lápis etc., eram propriedade do autor, que as adquiria.

20.º) - O autor, quando em Março de 1998 iniciou a prestação de trabalho à empresa CC, Companhia de Seguros, SA., explorava um stand de automóveis, enquanto a mulher estava ligada ao negócio de têxteis.

Esta decisão não vem impugnada e não se verifica qualquer das situações que autorizam o Supremo a sobre ela exercer censura, pelo que é com base na factualidade descrita que há-de ser resolvida a questão da qualificação do contrato.

2. Sustenta o recorrente que a relação que vigorou entre as partes, desde Março de 1998 até 31 de Dezembro de 2004, deve ser qualificada como contrato de trabalho.

Nesse período, ocorreram alterações no ordenamento jurídico, de que importa salientar a aprovação do Código do Trabalho pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto (Lei Preambular), que revogou os diplomas respeitantes às matérias reguladas no Código, entre os quais, o Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT) – [artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei Preambular].

Daí que, para resolver a questão da qualificação do vínculo estabelecido, haja que atender a que a Lei Preambular fixou, no artigo 3.º, n.º 1, o dia 1 de Dezembro de 2003 para a entrada em vigor do Código e, no artigo 8.º, n.º 1, consignou a regra geral de aplicação no tempo, segundo a qual “ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho [...] celebrados [...] antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.

A relação jurídica em causa foi constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho e, embora se tenha mantido na vigência deste diploma, nenhum facto ocorreu determinante de qualquer mudança na sua configuração.

Porque o Código do Trabalho não se aplica aos efeitos (direitos e obrigações) emergentes de factos totalmente passados, antes do início da sua vigência, a qualificação de tal relação jurídica, que pressupõe um juízo de valoração sobre o facto que lhe deu origem, há-de operar-se à luz do regime anterior, que é o da LCT.

3. A distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço, definidos, respectivamente, no artigo 1152.º do Código Civil – cujo texto foi reproduzido no artigo 1.º da LCT – e no artigo 1154.º do mesmo Código, assenta, como se observou no Acórdão deste Supremo de 23 de Fevereiro de 2005 (Documento n.º SJ200502230022684, em www.dgsi.pt), em dois elementos essenciais: o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado); e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).

Assim, o contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder do empregador de conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou.

Diversamente, no contrato de prestação de serviços, o prestador obriga-se à obtenção de um resultado, que efectiva por si, com autonomia, sem subordinação à direcção da outra parte.

Nem sempre, através do critério do objecto do contrato, surge, com nitidez, a distinção entre as duas figuras, já que, frequentemente, não se consegue determinar se a obrigação assumida foi a de “prestar uma actividade intelectual ou manual”, própria do contrato de trabalho (artigo 1152.º do Código Civil), ou se obrigação consiste em “proporcionar certo resultado do trabalho intelectual ou manual”, própria do contrato de prestação de serviço (artigo 1154.º do Código Civil), pois que todo o trabalho visa a obtenção de um resultado e este não existe sem aquele.

Por isso, em última análise, é o relacionamento entre as partes – a subordinação ou autonomia – que permite atingir aquela distinção.

Tratando-se, em qualquer caso, de um negócio consensual, é fundamental, para determinar a natureza e o conteúdo das relações estabelecidas entre as partes, averiguar qual a vontade por elas revelada, quer quando procederam à qualificação do contrato, quer quando definiram as condições em que se exerceria a actividade – ou seja, quando definiram a estrutura da relação jurídica em causa – e proceder à análise do condicionalismo factual em que, em concreto, se desenvolveu o exercício da actividade no âmbito daquela relação jurídica.

A subordinação jurídica, característica basilar do vínculo laboral e elemento diferenciador do contrato de trabalho, implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.

A cargo da entidade patronal estão os poderes determinativo da função e conformativo da prestação de trabalho, ou seja, o poder de dar um destino concreto à força de trabalho que o trabalhador põe à sua disposição, quer atribuindo uma função geral ao trabalhador na sua organização empresarial, quer determinando-lhe singulares operações executivas, traduzindo-se a supremacia da entidade patronal, ainda, nos poderes regulamentar e disciplinar.

A determinação da existência de subordinação jurídica e dos seus contornos consegue-se mediante a análise do comportamento das partes e da situação de facto, através de um método de aproximação tipológica, única via a percorrer, na ausência de comportamentos declarativos expressos definidores das condições do exercício da actividade contratada, situação frequente quando se trata de convénios informais.

A subordinação “traduz-se na possibilidade de a entidade patronal orientar e dirigir a actividade laboral em si mesma e ou dar instruções ao próprio trabalhador com vista à prossecução dos fins a atingir com a actividade deste, e deduz-se de factos indiciários, todos a apreciar em concreto e na sua interdependência, sendo os mais significativos: a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; o local de trabalho situar-se nas instalações do empregador ou onde ele determinar; existência de controlo do modo da prestação do trabalho; obediência às ordens e sujeição à disciplina imposta pelo empregador; propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador; retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês; exclusividade de prestação do trabalho a uma única entidade” e “pode comportar diversos graus, não sendo incompatível com a verificação de alguma margem de autonomia do trabalhador, quer no que se refere à forma de produção do trabalho, quer à sua orientação, desde que não colida com os fins últimos prosseguidos pelo empregador” – Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21 de Março de 2001 (Processo n.º 3918/00 - 4.ª Secção), sumariado em www.stj.pt, Jurisprudência/Sumários de Acórdãos.

A subordinação apenas exige a mera possibilidade de ordens e direcção e pode até não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho, havendo, muitas vezes, a aparência da autonomia do trabalhador que não recebe ordens directas e sistemáticas da entidade patronal, o que sucede sobretudo em actividades cuja natureza implica a salvaguarda da autonomia técnica e científica do trabalhador.

Esta autonomia técnica ocorre em diversas situações, resultando a sua compatibilidade com a noção de contrato de trabalho do artigo 5.º, n.º 2, 1.ª parte, da LCT.

As dificuldades na formulação do juízo qualificativo, através do critério do relacionamento entre as partes, acentuam-se perante situações que contêm elementos enquadráveis em diferentes figuras contratuais por se situarem em zonas de fronteira entre o contrato de trabalho e outras espécies de contratos, para cuja execução é necessária a prestação da actividade intelectual ou manual de alguém, sobretudo nos casos de maior autonomia técnica, em que é mais difícil clarificar os espaços de auto e heterodeterminação e, assim, descortinar qual o tipo de relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).

Torna-se, assim, necessário, para alcançar a identificação da relação laboral, proceder à análise da conduta dos contraentes na execução do contrato, recolhendo do circunstancialismo que o envolveu indícios que reproduzem elementos do modelo típico do trabalho subordinado ou de outro (v. g. da prestação de serviço), por modo a poder-se concluir, ou não, pela coexistência no caso concreto dos elementos definidores do contrato de trabalho.

Dado que os factos reveladores da existência do contrato de trabalho se apresentam como constitutivos do direito que, com base neles, se pretende fazer valer, o ónus da prova incumbe a quem os invoca, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Postas estas considerações de carácter genérico, coincidentes, no essencial, com as que foram explanadas nas decisões das instâncias, representando, em substância, o fruto do labor doutrinário e jurisprudencial sobre o problema, regressemos ao caso que nos ocupa.

4. Para recusar a tese da existência de contrato de trabalho, consideraram as instâncias que o Autor não fez prova de que prestasse a sua actividade sujeito às ordens, instruções e orientações que, a cada momento, fossem ou pudessem ser dadas pela Ré, observando que, também, não se demonstrou que fosse obrigado a cumprir horário de trabalho imposto pela Ré, em local por ela determinado, sendo que os elementos indiciários, que se provaram, relativos, quer à retribuição, quer à marcação e gozo de férias, quer, ainda, aos instrumentos utilizados, são característicos da execução de um contrato de prestação de serviço.

Em síntese, defende o Autor, invocando a presunção estabelecida no artigo 12.º do Código do Trabalho, que a actividade exercida era específica de um contrato de trabalho e que a apreciação global dos elementos indiciários apontam no mesmo sentido.

A propósito da aplicação no tempo do seu artigo 12.º, que estabelece a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de cinco requisitos, traduzindo uma valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção, concluiu o Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Maio de 2007 (Documento n.º SJ200705020043684, em www.dgsi.pt) que tal preceito, face ao que dispõe o artigo 8.º, n.º 1, da Lei Preambular, só se aplica aos factos novos, ou seja, às relações jurídicas constituídas após o início da vigência do referido corpo de normas.

Acolhendo-se aqui tal conclusão e os respectivos fundamentos, que nos dispensamos de reproduzir, não pode deixar de se considerar afastada, no caso que nos ocupa, a aplicação do referido artigo 12.º, uma vez que, como acima se disse, o relacionamento em causa, se iniciou antes da entrada em vigor do Código, não tendo sido demonstrada, ou alegada, qualquer alteração ao mesmo, de modo a poder considerar-se que, na vigência deste diploma, ocorreram factos novos integradores da presunção consignada naquele preceito.

Vale, por conseguinte, plenamente, a regra do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, segundo a qual ao Autor incumbia a prova dos factos integrantes do conceito de contrato de trabalho.

Alega o recorrente que: a Ré controlava a sua assiduidade, através do mapa “organigrama”; se encontrava em situação de dependência económica face à Ré; os instrumentos de trabalho eram todos fornecidos pela Ré; recebia ordens e orientações dos chefes G.... e A.... e sempre que chegasse mais tarde tinha que comunicar com antecedência, a fim de colocar, no mapa diário, o motivo [conclusões IV, VI, c) e d), e VII da revista].

Nenhum destes factos consta do elenco dos que se provaram, assim como dele não consta a inclusão do Autor nos mapas do quadro de pessoal da Ré [referida na conclusão VI, a)].

Pelo contrário, relativamente aos instrumentos de trabalho, como “máquinas fotográficas, canetas, lápis, etc.” demonstrou-se que eram propriedade do Autor (facto 19.º)

Não tendo sido alegada a violação de qualquer norma de direito material probatório, não pode este Supremo Tribunal, em face do disposto no artigo 729.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mostrando-se, por conseguinte, irrelevante a alusão aos meios de prova documentais e aos depoimentos das testemunhas feitos pelo recorrente para sustentar, por via da invocação daqueles factos, a existência de uma relação de trabalho subordinado.

Atendo-nos aos factos efectivamente provados, não podemos deixar de concluir que eles não permitem afirmar a subordinação do recorrente a ordens ou instruções concretas da Ré, quanto ao modo, tempo e lugar de execução das tarefas objecto do contrato.

Com efeito,

O recebimento diário da documentação necessária à realização de peritagens e a entrega também diária de relatórios de peritagens realizadas no dia anterior (factos n.º 9.º e 12.º), atenta a natureza da actividade prosseguida pela Ré e da profissão do Autor, podem ser encarados como actos de encomenda regular de serviços e apresentação dos resultados da actividade realizada, em regime de autonomia, sendo irrelevante, para afastar este regime, a utilização de um modelo de relatório fornecido pela Ré.

Da deslocação do Autor a instalações da Ré, para aquele efeito, onde, normalmente, permanecia entre as 8.45 e as 10.00 horas (facto 10.º), não decorre a sujeição a um horário de trabalho, imposto pela Ré, antes sugerindo que esse era o tempo necessário à indicação dos serviços concretamente encomendados e à prestação de informações sobre os realizados no dia anterior.

De notar que não consta dos factos provados que, naquele período de uma hora e quinze minutos, o Autor recebia ordens e atendia telefonemas para dar informações sobre a sua actividade.

Por outro lado, tendo o Autor alegado que estava obrigado a permanecer nas instalações da Ré, diariamente, até às 10.00 horas, que tinha isenção de horário e trabalhava mais de 8 horas diárias, a fim de cumprir o trabalho distribuído ao início do dia, tal não se provou, como expressamente consta da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Apontando para a existência de um contrato de prestação de serviço, regista-se a fixação e o pagamento do valor da retribuição, em função de cada peritagem, com IVA, mediante quitação corporizada em recibos de “honorários de peritagens” de uma pessoa colectiva com o nome do Autor, ou em “recibos verdes” (factos 2.º, 3.º e 15.º), em contraste com o que sucedia com os peritos de sinistros que tinham contrato de trabalho com a Ré, que recebiam desta uma remuneração mensal fixa, independentemente do número de peritagens efectuadas (facto 18.º).

O reembolso das despesas realizadas (facto 17.º), não sendo característica típica de uma relação jurídica de trabalho subordinado, pois que, no âmbito da liberdade contratual (artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil) podia ser estipulado em convénio de outra natureza, não tem o relevo que o recorrente pretende, como indício da existência de um contrato de trabalho.

Finalmente, a aceitação, ao longo de mais de seis anos da execução do contrato, por parte do Autor, de uma situação jurídica de que estavam arredados direitos e obrigações próprios de um vínculo de natureza laboral – v.g. retribuições de férias, respectivo subsídio e subsídio de Natal (facto 1.º) –, e a prática de um regime de férias que consistia em o Autor, livremente, escolher o número de dias, avisando a Ré, normalmente com a antecedência de dois meses, para que ela não contasse com o seu trabalho nesses dias, não sendo incluído no “mapa de férias” do pessoal do quadro (factos 13.º a 15.º), contrariam a qualificação do contrato defendida pelo Autor.

Em suma, o quadro factual disponível não permite afirmar que o comportamento das partes se desenvolveu de modo a poder concluir-se pela existência de subordinação jurídica do Autor em relação à Ré, nada apontando no sentido de ele estar sujeito aos deveres de obediência, de assiduidade, de exclusividade, e, pois, ao poder disciplinar, correlacionado com tais exigências, como os colaboradores daquela contratados em regime trabalho subordinado ou integrados na sua estrutura organizativa.

Apreciando globalmente todos os índices revelados pelo desenvolvimento da relação contratual, é de concluir que não se demonstraram factos bastantes para caracterizar a relação em causa como contrato de trabalho.

Deste modo, sufraga-se o juízo das instâncias de improcedência dos pedidos formulados pelo Autor, fundados na existência de uma relação de trabalho subordinado.


III

Em face do exposto, decide-se negar a revista.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 24 de Setembro de 2008.


Vasques Dinis (Relator)
Alves Cardoso
Bravo Serra