Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2610/10.9TMPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: DIVÓRCIO
DIVORCIO SEM CONSENTIMENTO
FUNDAMENTOS
VIDA EM COMUM DOS CÔNJUGES
VIDA PRIVADA
CESSAÇÃO
DEVERES CONJUGAIS
SEPARAÇÃO DE FACTO
PRAZO
Data do Acordão: 10/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTS. 690-A E 729.º; CÓDIGO CIVIL: ARTS. 360.º; CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL: ART. 7.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO STJ DE 8-10-2009, REVISTA N.º 839/04.8TBGRD.C1.S1; AC. STJ DE 13-07-2010, REVISTA 122/05.1TBPNC.C1.S1
Sumário :
I - A cláusula geral e objectiva da ruptura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na al. d) do art. 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência.

II - A demonstração da ruptura definitiva – presumida no caso das alíneas a), b) e c) do art. 1781.º do CC ao fim de um ano – implicará a prova da quebra grave dos deveres enunciados no art. 1672.º do CC e da convicção de irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal.

III - No contexto da causa de pedir enunciada na al. d) do art. 1781.º do CC – «quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento» – o tempo ou a duração desses factos releva como elemento de prova da cessação duradoura e irreversível da comunhão conjugal, podendo e devendo ser considerada pelo tribunal ao abrigo do disposto no art. 264.º, n.º 2, do CPC (factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa).

IV - Não obstante a afirmação pelo autor de que tinha deixado o lar conjugal em 29-04-2010 – o que tornaria inviável o pedido se a causa de pedir fosse a separação de facto, posto que a acção foi proposta em Novembro de 2010 –, certo é que o autor alegou, e provou, diversos factos susceptíveis de preencherem a previsão da al. d) do art. 1781.º do CC, sendo igualmente certo que aquando do julgamento da matéria de facto ocorrido em 11-06-2012 esses mesmos factos, reveladores da cessação da vida privada e social em comum, se mantinham.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em 9 de Novembro de 2010, AA instaurou uma acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB. Como fundamento, alegou “ruptura do casal (…) patente e definitiva”, invocando o disposto na al. d) do nº 1 do artigo 1781º do Código Civil (“São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges: d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento”).

A ré contestou, impugnando diversos factos alegados pelo autor e sustentando não existir “ruptura definitiva, irremediável e sem solução”, concluindo no sentido da improcedência da acção.

O autor replicou.

A acção foi julgada improcedente, pela sentença de fls. 93. Em síntese, o tribunal entendeu não estar preenchido, à data da propositura da acção, o requisito da existência de “separação de facto por um ano consecutivo” (al. a) do artigo 1781º do Código Civil); e, no que toca à hipótese prevista na respectiva alínea d) “Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento”, pronunciou-se nos seguintes termos:

“A Lei 61/2008, de 31.10, acolheu neste preceito legal, a concepção do divórcio constatação. Importa pois analisar se determinada factualidade, traduz ruptura definitiva no casamento.

Vejamos: Um dos deveres conjugais enunciados no artigo 1672º do Código Civil, é o dever de coabitação.

O dever de coabitação compreende a obrigação dos cônjuges viverem em comum, sob o mesmo tecto e o chamado débito conjugal (…).

Em concreto, dissemos já, ter ficado provado que em Abril de 2010, o autor abandonou o lar conjugal e deixou de pernoitar em casa e de dormir com a ré, não mantendo ambos qualquer contacto íntimo.

Perante a não coabitação dos cônjuges, verificada há cinco meses, considerando a data da propositura da acção, é possível concluir que se verifica uma situação de ruptura do casamento?

Entendemos que não, face à exiguidade desse lapso de tempo que não permite concluir ser tal ruptura definitiva, mesmo inexistindo da parte do autor o propósito de reatar a vida em comum com a ré.

Entender de outra forma, seria permitir que não se provando a separação de facto por um ano consecutivo, se pudesse considerar uma separação «mais curta» no tempo, como fundamento de divórcio.

Entendemos não ter sido esse, o propósito do legislador na transcrita al. d) do artigo 1781, al. d) do CC".

Mas a sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 124, que, distinguindo os casos das alíneas a) e d) do artigo 1781º do Código Civil, considerou que os factos provados permitem concluir no sentido de se verificar uma “ruptura definitiva do casamento, nas suas várias vertentes”.

2. A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

“A – Decidiu o Tribunal da Relação do Porto que no caso dos autos a avaliação dos factos provados permite concluir que o “A. e a R não coabitam, não fazem vida em comum, em qualquer dos segmentos que define o casamento, reiterando a infracção aos deveres que o devem pautar, concretamente de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.”

B – Da matéria de facto provada não resulta retratada uma determinada situação objectiva em que os factos, pela sua gravidade ou reiteração, mostrem a ruptura definitiva do casamento, salvo a separação de facto ocorrida em Abril de 2010.

C – Em rigor a partir do momento que um dos cônjuges decide abandonar o lar conjugal – todos os segmentos que definem o casamento fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, são ofendidos.

D – O Autor deixou de pernoitar em casa e de dormir com a Ré, assim como, deixou de fazer refeições com a mesma e de fazer qualquer vida em comum, necessariamente a partir da data em que abandonou o lar conjugal.

E – Assim, os factos provados, mais não são do que a consequência natural do abandono do lar conjugal por parte do Autor em Abril de 2010.

F – Partilhamos da decisão da douta sentença proferida pela Exmª Sr.ª Juiz do Tribunal de Primeira Instância, que refere que a não coabitação dos cônjuges por um período de cinco meses não permite concluir pela ruptura definitiva do casamento.

G – Outro entendimento, seria permitir que provada a separação de facto por um qualquer período mínimo, o divórcio teria de ser decretado, pois a separação dos cônjuges implica a natural rotura dos princípios basilares do casamento (como o dever coabitação, de assistência, de cooperação, fidelidade, etc.).

H – Tal entendimento desvirtuaria o propósito do legislador quando determinou o período mínimo de um ano consecutivo para a separação de facto.

I – Existindo apenas factos decorrentes do acto da separação de facto e não existindo outros factos graves e demonstrativos do carácter definitivo da ruptura do casamento, não pode o divórcio ser decretado.

Nestes termos e nos mais que doutamente V. Exas suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando o acórdão recorrido e substituída por outra que julgue a acção improcedente, não decretando o divórcio entre o Autor e a Ré.”

O autor contra-alegou, recordando que “A acção não foi intentada com base na separação de facto por mais de um ano, mas precisamente em factos que mostram a ruptura definitiva do casamento” e defendendo a manutenção do que foi decidido na Relação.

O recurso foi admitido como revista, com efeito devolutivo, que se corrige para suspensivo (nº 1 do artigo 723º do Código Civil).

3. Vem provado o seguinte:

1. O Autor e a ré contraíram matrimónio em 18.06.1995, tendo o casamento sido celebrado sem convenção antenupcial;

2. CC nasceu a ...0….19.. e DD nasceu a …….20…, sendo ambos filhos das aqui partes;

3. A ré afastou-se da religião católica;

4. O autor não levava com ele os filhos a visitar os avós paternos;

5. A ré dedicava horas à prática religiosa, numa igreja local para onde se deslocava;

6. O casal deixou de fazer qualquer vida em comum;

7. O autor e a ré não tomam as refeições juntos;

8. O autor e a ré não saem juntos, não fazem qualquer vida social em comum e vai sempre cada um para seu lado para visitar amigos ou familiares;

9. Em Abril de 2010, o autor abandonou o lar conjugal e deixou de pernoitar em casa e de dormir com a ré;

10. O autor e a ré não mantêm qualquer contacto íntimo;

11. O autor não mais quer voltar nem reatar a vida em comum com a ré;

12. A ré mudou a sua orientação religiosa há mais de dez anos;

13. O autor viu-se confrontado com uma situação de desemprego;

14. O autor passa tempos livres a conviver com os seus filhos.

4. A questão que está em causa neste recurso é a de saber se os factos provados permitem ter como preenchida a cláusula geral e objectiva da “ruptura definitiva do casamento”, prevista na al. d) do citado artigo 1781º do Código Civil, e para a qual se não exige qualquer duração mínima – como sucede com as causas (igualmente objectivas, como se sabe) constantes das demais alíneas, que impõem um ano de permanência.

Pretendeu-se com esta cláusula, nas palavras da Exposição de Motivos que acompanhou o Projecto de Lei nº 509/X apresentado à Assembleia da República, e do qual veio a resultar a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro (Altera o regime jurídico do divórcio), disponível em www.parlamento.pt, dar cabal expressão ao «sistema do “divórcio ruptura”», que «pretende reconhecer os casos em que os vínculos matrimoniais se perderam independentemente da causa desse fracasso, não [havendo] razão para não admitir a relevância de outros indicadores fidedignos da falência do casamento», para além dos que exemplificativamente constam do artigo 1781º: separação de facto, alteração das faculdades mentais e ausência de um dos cônjuges. «Por isso, acrescent[ou]-se uma cláusula geral que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo. O exemplo típico é a violência doméstica – que pode demonstrar imediatamente a inexistência da comunhão de vida própria de um casamento».

Encontra-se aqui o critério escolhido pelo legislador para determinar se determinados factos podem fundamentar a procedência do pedido de divórcio apresentado por um dos cônjuges contra o outro: hão-de revelar uma inexistência da comunhão de vida própria de um casamento, e de forma definitiva. Reconhece-se, assim, como observa Rita Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidade Parentais, Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, Coimbra, 2009, pág. 25, “alguma flexibilidade na actividade decisória do tribunal”, na avaliação da relevância dos factos provados.

Ora, do ponto de vista da lei, essa comunhão de vida encontra-se fundamentalmente traduzida na lista dos efeitos do casamento quanto às pessoas e bens dos cônjuges, maxime na enunciação que o artigo 1672º do Código Civil faz dos respectivos deveres: dever de respeito, de fidelidade, de coabitação, e de cooperação. Não se inclui o dever de assistência, que, como se sabe, se mantém, por princípio, mesmo em caso de separação de facto (artigo 1675º do Código Civil).

A demonstração da ruptura definitiva – presumida nos casos das alíneas a), b) e c) ao fim de um ano – implicará, naturalmente, a prova da quebra grave desses deveres, e da convicção da irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal.

Entende-se que essa irreversibilidade há-de ter em conta predominantemente as circunstâncias concretas dos cônjuges, sem naturalmente descurar exigências decorrentes, por exemplo, da dignidade humana e da igualdade entre ambos.

5. Contrariamente ao que afirma a recorrente, não se tem como exacta a conclusão de que os factos provados não revelem uma situação de ruptura irreversível do casamento; nem tão pouco o entendimento de que a procedência da acção de divórcio equivaleria a decretá-lo com fundamento em separação de facto por um período inferior a um ano, desvirtuando “o propósito do legislador quando determinou o período mínimo de um ano consecutivo para a separação de facto” (concl. G).

Na verdade, a 1ª Instância analisou o pedido de divórcio fundamentalmente na perspectiva de que a causa de pedir alegada teria sido a separação de facto; mas o pedido não pode ser visto desse ângulo. Mesmo quando ponderou se seria possível “concluir pela verificação de qualquer outro dos fundamentos de divórcio previstos no artigo 1781º do Código Civil”, considerando em especial a sua al. d), teve como decisiva a “exiguidade” do “lapso de tempo” da separação de facto anterior à propositura da acção, concluindo que era essa exiguidade que “não permit[ia] concluir ser tal ruptura definitiva, inexistindo da parte do autor o propósito de reatar a vida em comum com a ré”.

O pedido de divórcio baseou-se apenas nesta al. d) do artigo 1781º do Código Civil e, para tanto, o autor alegou diversos factos que considerou preencherem a respectiva previsão; afirmou, aliás, que tinha deixado o lar conjugal em 29 de Abril de 2010, o que tornaria desde logo inviável o pedido, se a causa de pedir fosse a separação de facto.

Entende-se, todavia, que está suficientemente demonstrada a cessação irreversível da comunhão conjugal, tal como se decidiu no acórdão recorrido: os factos referidos nos pontos 6, 7, 8, 9, 10 e 11 são suficientes para assim se concluir.

Acresce, mas acresce decisivamente, que a presente acção foi proposta em Novembro de 2010, mas que o julgamento da matéria de facto tem a data de 11 de Junho de 2012 (cfr. fls. 89 e segs.); e que dos seus termos, lida a respectiva fundamentação, resulta que os factos reveladores da cessação da vida privada e social em comum se mantinham nessa altura (portanto, cerca de um ano e meio depois de proposta a acção).

Não se trata, repete-se, de uma situação em que o decurso do prazo de um ano desempenhe a função de facto constitutivo do direito que o autor pretende exercer nesta acção, o direito ao divórcio; no contexto da causa de pedir enunciada na al. d) do artigo 1781º, o tempo ou a duração desses factos releva como elemento de prova da cessação duradoura e irreversível da comunhão conjugal, podendo e devendo ser considerada pelo tribunal ao abrigo do disposto na parte final do nº 2 do artigo 264º do Código Civil (“factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa”).

Esta observação não significa que este Supremo Tribunal esteja a apreciar matéria de facto, em infracção dos seus poderes de cognição; apenas pretende explicar que a sentença desconsiderou o sentido do julgamento de facto em que assentou. Ora, da conjugação entre o nº 2 do artigo 264º e o nº 1 do artigo 663º do Código de Processo Civil decorre que esse sentido deveria ter sido tomado em conta, de forma a que a sentença correspondesse à situação de facto que lhe era contemporânea, sem, para tanto, infringir qualquer regra sobre a matéria de facto de que lhe é lícito conhecer.

6. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.

 

Lisboa 3 de Outubro de 2013

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego