Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA MÁ FÉ VENDA DE IMÓVEL PARA PAGAR A CREDOR PAR CONDITIO CREDITORUM PODERES DA RELAÇÃO EM MATÉRIA DE FACTO | ||
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Data do Acordão: | 01/26/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES / IMPUGNAÇÃO PAULIANA. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 610.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.ºS 1 E 4, 674.º, N.º3. | ||
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Sumário : | I. Não cabe recurso de revista do acórdão da Relação na parte em que alterou a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação (art. 662º, nº 4, do CPC). II. A procedência da acção de impugnação pauliana relativamente a um contrato de compra e venda de imóvel exige a demonstração da má fé tanto do alienante como do adquirente. III. Não se verifica a má fé se, para além de não se provar que os contraentes agiram com o intuito de prejudicar o credor impugnante, se provou ainda que o produto da venda do imóvel foi aplicado pelo vendedor no pagamento da dívida hipotecária que havia contraído. IV. Fora do âmbito do regime da insolvência, não existe qualquer obrigação do devedor de tratar os credores comuns de acordo com o princípio par conditio creditorum. | ||
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Decisão Texto Integral: | I - AA e marido BB
intentaram a presente acção declarativa sob a forma comum contra CC e mulher DD e EE e mulher FF, pedindo a declaração da ineficácia (impugnação pauliana) em relação aos AA. da compra e venda de um imóvel outorgado por escritura pública, devendo ser ordenado a restituição do mesmo imóvel aos 1ºs RR. para que os AA. possam satisfazer o seu crédito à custa desse bem. Alegaram que o A. e o 1º R. eram os únicos sócios de uma sociedade comercial por quotas, com uma quota para cada um de 50% no capital social, no valor de € 25.000,00. Por dificuldades económicas, mercê de uma conjuntura negativa na área da construção, a sociedade celebrou três contratos com a Caixa Geral GG. E como caução do integral pagamento de todas as responsabilidades foram aceites duas livranças em branco, as quais foram avalizadas pelos AA. e pelos 1ºs RR. a favor do Banco mutuante. A referida sociedade celebrou ainda com o com o Banco HH, SA, um acordo escrito denominado “Conta Gestão de Tesouraria”, destinado a satisfazer as necessidades de tesouraria, tendo sido concedida uma abertura de crédito. A sociedade não cumpriu as suas obrigações perante as duas instituições de crédito, tendo sido os AA. que negociaram as dívidas com o HH e com a Caixa Geral GG, liquidando, respectivamente os montantes de € 20.300,00 e de € 62.509,29 e subsequentemente obtiveram a condenação dos 1ºs RR. no pagamento da quantia de € 41.404,64, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação até pagamento. Os 1ºs RR. venderam aos 2ºs RR. um imóvel de que eram proprietários, com o objectivo comum de prejudicarem os AA., impedindo-os de cobrar o seu crédito. Os 1ºs RR. contestaram e alegaram que o preço do imóvel serviu para que liquidassem a hipoteca que estava inscrita sobre o mesmo. Negaram ainda que houvesse o intuito de prejudicar os AA. Os 2ºs RR. também contestaram e alegaram ainda que desconheciam a existência do crédito dos Autores. Foi realizada a audiência de julgamento e proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando a ineficácia em relação aos AA. do acto de compra e venda outorgado por escritura pública no dia 31-3-09, devendo ainda ser ordenado aos 2º RR. a restituição do mesmo imóvel de modo a que os AA. se possam pagar à custa desse bem. Os RR. apelaram da sentença e a Relação, depois de modificar a decisão da matéria de facto, julgou a acção improcedente. Os AA. interpuseram recurso de revista na qual se insurgem contra a modificação da decisão da matéria de facto e alegam que se verificam os pressupostos da impugnação pauliana, com destaque para o nexo de causalidade entre o acto impugnado e a decadência da garantia patrimonial e para a má fé dos vendedores e dos compradores. Não houve contra-alegações. Cumpre decidir. III – Questão prévia: 1. Os recorrentes alegam que a Relação, ao apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto, introduziu alterações relativamente ao que fora consignado na sentença da 1ª instância, pretendendo que este Supremo Tribunal revogue, nesta parte, do acórdão recorrido. Trata-se de uma alegação sem qualquer consistência e que menos se compreende em face do acórdão recorrido que se revela exemplar não apenas quanto ao modo como foi decidida a pretendida anulação do julgamento, como ainda quanto ao modo como foi apreciada e motivada a impugnação da decisão da matéria de facto. 2. Foi anteriormente proferido despacho de aperfeiçoamento do ora relator com o seguinte teor: “Existem limitações em sede de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à decisão da matéria de facto, sendo fulcral a percepção e aplicação do que consta do art. 674º, nº 3, em conjugação com o que se dispõe no art. 662º, nº 4, do CPC. A ampliação dos poderes da Relação no que concerne à reapreciação da decisão da matéria de facto que foi consagrada na Reforma de 1995/96, reforçada na Reforma de 2007 e confirmada com a Reforma de 2013, foi o corolário de um longo processo – impulsionado essencialmente pela advocacia – no sentido de implantar no terreno um efectivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto. Na medida em que era exigido – e foi conseguido – o registo das audiências de julgamento, com a gravação dos depoimentos testemunhais, não parece legítimo que, agora, perante decisões que desembocam na alteração da matéria de facto provada e não provada, sejam subscritas alegações que procuram retirar à 2ª instância a capacidade – anteriormente reclamada - de modificar a decisão da matéria de facto quando esta envolva a reapreciação de meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação e, por isso, fora do âmbito de aplicação nº 3 do art. 674º do CPC. Ora, as concretas alegações também incorrem nesse vício e atribuem a este Supremo tribunal o poder de sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova em que se baseou para alterar a decisão da matéria de facto, como se à Relação não coubesse modificar tal decisão em face da convicção criada a partir da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação. Parece evidente que a este Supremo Tribunal não cabe reapreciar os depoimentos testemunhais, nem interferir nas regras de experiência que foram tidas em consideração pelas instâncias, nem modificar a decisão da matéria de facto que esteja relacionada com meios de prova sujeitos à libre apreciação”. 3. Apesar do precedente convite ao aperfeiçoamento das alegações, os recorrentes insistem – agora com menor energia – em que houve errada apreciação da matéria de facto pela Relação, tanto no segmento em que modificou os factos que foram considerados provados pela 1ª instância, como no segmento em que integrou na decisão da matéria de facto factos que haviam sido considerados não provados. Num modelo em que se pretendeu atribuir ao Tribunal da Relação um papel fundamental na correcção de erros de julgamento a partir da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação, como ocorre com os depoimentos gravados ou documentos sem força probatória plena, não se compreende que se pretenda esvaziar essa possibilidade através da intervenção do Supremo em matéria que sai claramente da sua esfera de competência, como claramente o determina o art. 662º, nº 4, do CPC, e como decorre também do art. 674º, nº 3. Se é verdade que foi essa alteração que determinou a inversão do resultado, é precisamente esse efeito que se procura quando as partes deduzem a impugnação da decisão da matéria de facto, agindo a Relação na esfera da sua estrita competência como tribunal de instância que também delimita a matéria de facto provada e não provada. 4. Houve uma batalha decisiva no sentido de conseguir que o quadro normativo que vinha do CPC de 1939 e que se mantivera no CPC de 1961 assegurasse um efectivo segundo grau de jurisdição na matéria de facto. A inversão do modelo existente ocorreu com a Reforma do processo de 1995/96, que consagrou a atenuação do princípio da oralidade pura e admitiu a possibilidade de serem gravadas as audiências de julgamento, com vista a assegurar a posterior reapreciação pela Relação dos meios de prova sujeitos a livre apreciação. Nem sempre essa alteração de paradigma foi bem compreendida pelos agentes judiciários. De um lado, as falhas verificaram-se (e continuam ainda a verificar-se) ao nível da motivação da impugnação da decisão da matéria de facto, com alegações genéricas e sem concretização dos alegados erros de julgamento ou apreciação crítica dos meios de prova. Do outro lado, da parte das Relações, a reacção traduziu-se numa certa resistência à assunção dos novos poderes que resultavam da lei, sob o pretexto de que não estavam reunidas as condições para a reapreciação dos meios de prova gravados. Agora que, decorridos 20 anos, tudo se vai encaminhando para uma mais correcta compreensão daqueles ónus e destes deveres, muito por força da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça em sucessivos arestos, com reflexos no aperfeiçoamento do modo como é cumprido o ónus de alegação e de motivação e no modo como é acolhida a possibilidade de proceder à reapreciação dos meios de prova, começam a surgir reacções que procuram retirar à Relação a possibilidade de alterar a decisão da matéria de facto, regressando ao modelo que vigorava em 1995. É preciso que nos entendamos definitivamente para que não subsistam equívocos. Ou bem que se assume que a decisão da matéria de facto é matéria que deve ser reservada à 1ª instância, servindo a Relação apenas para corrigir erros de direito, como ocorria no modelo original do CPC de 1961; ou que se aceita que a Relação é também um tribunal de instância, com um papel central na delimitação dos factos provados e não provados, devendo ter a possibilidade de corrigir a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação dos meios de prova sujeitos à livre apreciação. É este foi modelo instituído em 1995/96, reafirmado em 2007 e confirmado e reforçado em 2013, ao qual devem obediência tanto os recorrentes como os tribunais. A bondade das medidas legislativas não se afere unicamente pelas vantagens que se obtêm aquando a sua aplicação, sendo avaliada em função das soluções abstractas e em cuja previsão devem integrar-se as concretas situações. Se acaso os recorrentes (ou o respectivo mandatário judicial) têm alguma objecção quanto ao referido modelo ora vigente, não será certamente pela via do recurso de revista que a devem veicular, já que também este Supremo Tribunal de Justiça, como os demais Tribunais, está limitado na sua actuação pela aplicação da lei. Ora, no caso concreto, a Relação, quando alterou a decisão da matéria de facto, agiu ao abrigo do art. 662º, nº 1, do CPC, aplicando o princípio da livre apreciação dos meios de prova em que assentou a decisão recorrida. Ademais, não é notada nem foi alegada pelos recorrentes a violação de qualquer outra norma de direito adjectivo ou de direito probatório material que imponha actuação ou solução diversa. Nesta medida, o acórdão da Relação, na parte em que alterou a decisão da matéria de facto, não admite impugnação através do recurso de revista que, por isso, nessa parte se rejeita. III - Factos provados: 1. O A. marido e o 1º R. marido, até ao dia 30-7-08, eram os únicos sócios de II - Materiais de Construção, Lda, com sede na R. da …, nº …, …, Vila Nova de Gaia, sendo que cada um dos dois sócios detinha uma quota de 50% no capital social, sendo este no montante de € 25.000,00 e o objecto social era o comércio a retalho de material de bricolage, equipamento sanitário, ladrilhos e materiais similares. 2. Em meados do ano de 2006, II, Ldª, atravessou problemas económicos, mercê de uma conjuntura negativa na área da construção e para tentar suprir esta dificuldade de tesouraria, celebrou 3 contratos com a Caixa Económica-GG, nomeadamente os contratos nºs 151…- 2, nº 151….-4 e nº 151….-6, do qual faziam parte 3 livranças. 3. Em relação aos dois primeiros contratos, como caução do integral pagamento de todas as responsabilidades decorrentes dos mesmos, foram aceites e avalizadas respectivamente duas livranças em branco, emitidas pela sociedade e avalizadas pelos AA. e 1ºs RR. a favor do banco mutuante. 4. A II, Ldª, celebrou também com o HH, S.A., um acordo escrito denominado “Conta Gestão de Tesouraria”, destinado a satisfazer as necessidades de tesouraria, tendo sido concedida uma abertura de crédito. 5. A II, Ldª, não conseguiu cumprir com as suas obrigações perante estas duas instituições de crédito e mercê do incumprimento, a Caixa Económica-GG começou a enviar para a sede da empresa e para o domicílio dos AA., na qualidade de avalistas, cartas no sentido de solicitarem a regularização extrajudicial da situação contratual, pretendendo desta forma recuperar os créditos devidos pelo incumprimento. 6. Da agência de … do Banco HH, SA, os AA., a partir de Janeiro de 2008 e até finais de Junho de 2008, foram interpelados telefonicamente várias vezes a fim de obterem o pagamento, sob pena de cobrança coerciva, de modo que os AA., conhecedores das consequências que os respectivos processos judiciais teriam sobre o seu património, negociaram as dívidas com o Banif e com a Caixa Económica-GG. 7. Depois de terem sido por diversas vezes interpelados para pagar e para evitarem a instauração das competentes acções judiciais, os AA. liquidaram os valores totais em dívida perante estas duas instituições bancárias, e liquidaram ao HH, no dia 2-7-08, o montante de € 20.300,00, e em 30-10-08 à Caixa Económica-GG a quantia de € 62.509,29. 8. Por escrituras públicas de cessão de quota celebradas a 30-7-08 e 26-8-08, o A. e o 1º R. cederam as respectivas quotas da II, Ldª, a terceiros (docs. fls. 289 a 290, vº, e 299 a 301), constando das escrituras referidas que “a cessão é feita com todos os correspondentes direitos e obrigações a ela inerentes”. 9. Aquando a celebração das escrituras referidas em 8., os 1ºs RR. sabiam das dívidas referidas em 7. 10. A 17-4-09, os AA. intentaram a acção declarativa sob a forma ordinária, contra os 1ºs RR., que obteve o nº 2146/09.0TBVFR, que correu os seus termos no extinto 3º Juízo Cível do Trib. Jud. de Stª Maria da Feira, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 41.404,64, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, tendo sido proferida sentença, nos termos da qual foi julgada totalmente procedente a acção e condenou os 1ºs RR. no pagamento da quantia global de € 41.404,64, com juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação até pagamento. Os 1ºs RR. interpuseram recurso desta decisão, sendo proferido acórdão da Relação do Porto que julgou improcedente a apelação e confirmou na íntegra a sentença recorrida, com trânsito em julgado a 17-1-14. 11. Os 1ºs RR. são primos dos 2ºs RR. e outorgaram contrato-promessa de compra do prédio urbano, sito na R. das …, nº …, da freguesia de Canedo, concelho de Stª Maria da Feira, o qual registaram provisoriamente em 28-1-09, registo que veio a converter-se em definitivo, com a outorgada da escritura referida em 12. 12. Por escritura pública epigrafada “Compra e Venda Mútuo com Hipoteca” outorgada no dia 31-3-09 no Cart. Not. de JJ, os 1ºs RR. declararam que, pelo preço de € 80.000,00, vendiam aos 2ºs RR., o prédio urbano composto por edifício de cave e rés de chão, com garagem, sito no Lugar …, freguesia de …, concelho de Stª Maria da Feira, descrito na 2ª CRP de Santa Maria da Feira sob o nº 28…, inscrito na matriz sob o artº 28…. 13. O prédio descrito em 11. e 12. foi construído pelos avós da 1ª e 2ª RR. 14. Os 1ºs RR. não dispunham de disponibilidade financeira para pagar as dívidas que haviam acumulado, tendo privilegiado o pagamento de parte dessas dívidas a outros credores que não os AA., designadamente o BANCO KK que detinha uma hipoteca sobre o imóvel que habitavam, e liquidaram a hipoteca que incidia sobre o prédio a favor do Banco BANCO KK. 15. Aquando da escritura em 12., os 2ºs RR. solicitaram um crédito à habitação ao BANCO KK, SA, no montante de € 80.000,00, para aquisição do dito imóvel, consignando-se que tal imóvel se destinaria a sua habitação própria e permanente. 16. Após o negócio referido em 12., os 1ºs RR. continuaram a habitar no prédio, mas são os 2ºs RR. que, a suas expensas, pagam as prestações do crédito referido em 22. e que pagam os respectivos impostos, o seguro obrigatório, a luz e água e limpam e zelam pela conservação do mesmo, procedem às necessárias reparações e administram o prédio aí descrito, ininterruptamente, sem oposição de ninguém até à data da instauração da presente acção. 17. Ao comprarem o prédio descrito em 12. pretendiam os 2ºs RR. designadamente evitar a aquisição por terceiros de um imóvel ao qual têm ligação afectiva. 18. Antes da escritura referida em 12., os 2ºs RR. não possuíam habitação própria e continuam a habitar o imóvel sito na R. de …, nº …, …, na freguesia de Canedo, concelho de Stª Maria da Feira. 19. Por sentença datada de 3-5-13, proferida no âmbito do processo especial de insolvência nº 2644/13.1 TBVNF, que correu os seus termos no extinto no 3º Juízo Cível do Trib. Jud. de Vila Nova de Gaia, os 1ºs RR. foram declarados insolventes. 20. Os 1ºs RR. venderam aos 2ºs RR. um veículo automóvel W Polo e uma scooter, continuando a 1ª R. a utilizá-los. IV – Quanto à matéria de direito: 1. A pretensão que os AA. veicularam através deste recurso de revista no que concerne á integração jurídica dos factos apurados ficou irremediavelmente comprometida com a modificação da decisão da matéria de facto operada na Relação. Vejamos as alterações que foram introduzidas. relativamente ao que fora estabelecido na sentença da 1ª instância: a) A 1ª instância considerou “provado” que, “ao celebrarem o negócio os 1ºs e 2ºs RR. agiram com manifesta consciência e vontade de prejudicarem os AA., credores dos 1ºs RR., impedindo-os de cobrar o seu crédito integralmente, sabendo que, agindo como agiram, estes nada receberiam dos 1ºs RR.”. Tal facto, porém, foi considerado “não provado” pela Relação, tendo sido eliminado da sentença que culminara com a procedência da acção. b) A 1ª instância deu como provado que “os 1ºs RR. advertiram sempre os AA. de que nunca iriam liquidar a dívida” e a Relação alterou essa resposta e considerou provado que “os 1ºs RR. não dispunham de disponibilidade financeira para pagar as dívidas que haviam acumulado tendo privilegiado o pagamento de parte dessas dívidas a outros credores que não os autores designadamente o BANCO KK que detinha uma hipoteca sobre o imóvel que habitavam.” c) A 1ª instância considerou “provado” que “ao realizar a escritura de compra e venda os 1ºs RR. pretenderam, unicamente, evitar serem proprietários de qualquer bem que pudesse satisfazer o montante em débito aos AA.”, mas a Relação considerou tal facto “não provado”. d) A 1ª instância considerou “não provado” que “os 2ºs RR., a suas expensas, pagam as prestações do crédito” (ao Banco que concedeu o empréstimo hipotecário), mas a Relação considerou tal facto “provado”. e) A 1ª instância considerou também “não provado” que “os 1ºs RR. liquidaram a hipoteca que incidia sobre o prédio, a favor do Banco BANCO KK”, facto que a Relação considerou “provado”. f) A 1ª instância considerou “não provado” que, “após o referido em 20. (outorga do contrato de compra e venda do imóvel), os 2ºs RR. administram o prédio aí descrito, ininterruptamente, sem oposição de ninguém até à data da instauração da presente acção”, mas a Relação inverteu o resultado e considerou “provado” tal facto. g) Finalmente a 1ª instância considerou “provado” que, “ao comprarem o prédio … pretendiam os 2ºs RR. evitar a aquisição por terceiros de um imóvel ao qual tem ligação afectiva”, redacção que foi modificada pela Relação, considerando provado que “ao comprarem o prédio descrito em 20) pretendiam os 2ºs RR. designadamente evitar a aquisição por terceiros de um imóvel ao qual têm ligação afectiva.” 2. Está em causa na presente acção a venda de um imóvel que os 1ºs RR. outorgaram aos 2ºs RR., com recurso a crédito hipotecário conferido pelo BANCO KK, demandando os AA. a impugnação pauliana desse acto tendo em vista assegurar a garantia patrimonial do seu crédito perante os 1ºs RR. vendedores. Nos termos do art. 610º do CC, a procedência da acção dependia da conjugação de factos reveladores dos seguintes requisitos legais: a) Anterioridade do crédito dos AA. ou, sendo o acto posterior, ter sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do credor; b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade; c) Verificação da má fé tanto dos alienantes como dos adquirentes, consistindo a mesma na consciência do prejuízo que o acto causou ao credor. Tais requisitos foram considerados verificados pela sentença da 1ª instância, com base nos factos que na mesma foram considerados provados. Porém, como se disse, a Relação modificou a decisão da matéria de facto em pontos que se revelaram decisivos, o que se reflectiu na modificação do resultado, sendo julgada improcedente a acção. 3. Não se discute no caso a anterioridade do crédito invocado pelos AA. Apesar de a sentença condenatória dos 1ºs RR. apenas ter transitado em julgado em 17-1-14, nela se reconheceu a existência de um direito de crédito que estava relacionado com garantias de avales que o 1º A. e o 1º R. haviam prestado no âmbito de financiamentos à sociedade de que ambos eram sócios. Tendo o 1º A. satisfeito a sua responsabilidade (solidária) como co-avalista em 2-7-08 e 30-10-08, nessas ocasiões constituiu-se a seu favor o direito de regresso relativamente ao 1º R. co-avalista, independentemente da ausência de uma sentença que o condenasse no seu pagamento (cfr. para o efeito a solução que foi uniformizada pelo AcUJ nº 7/12, nos termos do qual “sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias”). Também não é controvertido o segundo requisito legal, quanto à impossibilidade ou agravamento dessa impossibilidade de os AA. receberem o seu crédito dos 1ºs RR., na medida em que a alienação do imóvel que era propriedade destes e que integrava a garantia patrimonial geral perante os seus credores, determinou senão a impossibilidade absoluta, ao menos o agravamento da impossibilidade de os AA. reaverem o seu crédito, o que acabou por ser confirmado pelo facto de entretanto ter sido declarada a insolvência dos 1ºs RR. 4. Mas, tratando-se de acto oneroso como o é a compra e venda, a lei exige para a procedência da impugnação pauliana que ambas as partes tenham actuado com má fé, ou seja, com a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor. Este Supremo Tribunal está delimitado pela matéria de facto que foi considerada provada e não provada, da qual resultam alguns elementos que, isoladamente considerados, poderiam revelar essa actuação bilateralmente maliciosa. Afinal os RR. são primos uns dos outros e, apesar da compra e venda, o imóvel continuou a ser ocupado pelos 1ºs RR., enquanto os 2ºs RR., embora se tenham responsabilizado pelos respectivos encargos e com os custos do empréstimo, continuem a viver noutro local. Mas estes mesmos factos, analisados noutro contexto, acabam por fazer ceder aquela conclusão, já que se provou que se trata de uma casa familiar e que havia o objectivo dos outorgantes de evitar que a mesma fosse alienada a terceiros estranhos à família. Por um lado, não se provou (de acordo com a posição assumida pela Relação e que se mostra definitiva) que, “ao celebrarem o negócio os 1ºs e 2ºs RR. agiram, com manifesta consciência e vontade de prejudicarem os AA., credores dos 1ºs RR., impedindo-os de cobrar o seu crédito integralmente, sabendo que, agindo como agiram, estes, nada receberiam dos 1ºs RR.”. Acresce que outros elementos contrariam a alegada má fé de uns e de outros. Com efeito, o valor obtido com a venda do imóvel serviu para pagar a outros credores dos 1ºs RR., maxime o BANCO KK que beneficiava de garantia hipotecária sobre imóvel em causa, não existindo norma alguma que impeça os devedores de agirem desta forma, ainda que afectando a garantia patrimonial de que, em abstracto, poderiam gozar os demais credores sem garantia real. A má fé que, sendo bilateralmente exigida, sempre faltaria na perspectiva dos 2ºs RR. adquirentes que se limitaram – mais uma vez, de acordo com a matéria de facto – a adquirir um bem a um familiar, com recurso ao crédito, para evitar a sua transmissão a estranhos, o que, constituindo um motivo legítimo, impede a conclusão que seria necessária para que a acção procedesse. Nem o facto de os 1ºs RR. continuarem a habitar o imóvel contraria essa conclusão, sendo esse um uso igualmente legítimo que está à disposição do proprietário, que é livre de lhe atribuir o destino que mais lhe convenha, sem exclusão sequer da cedência gratuita aos vendedores. 5. No quadro da insolvência – que na presente acção não pode ser ponderado – existem limitações quanto à liberdade de actuação do devedor, privilegiando-se o tratamento paritário dos credores a partir do princípio par conditio creditorum. Em tal contexto, admite-se que o administrador de insolvência possa accionar a resolução ou a impugnação de actos de que tenha resultado o benefício injustificado de alguns credores em função de outros. Mas na presente acção estamos fora desse contexto normativo, sendo o litígio unicamente regido pelas regras gerais sobre a impugnação pauliana e sobre as garantias gerais das obrigações. Por outro lado, ao titular do direito de propriedade é lícita a alienação dos seus bens sem limitações, a não ser que haja motivos para declarar a sua ineficácia mediante o accionamento da impugnação pauliana Assim confinados, nada impede que o devedor utilize seu património satisfação de alguns créditos em detrimento de outros, não havendo norma alguma que assegure a credores sem garantia real que sejam colocados a par dos demais credores comuns. Como decorre da matéria de facto, o valor da venda do imóvel serviu para pagar ao credor hipotecário BANCO KK (que sempre teria tratamento preferencial em caso de venda em processo executivo ou em processo de insolvência) e a outros credores, não sendo viável concluir pela verificação da má-fé. Inexistem, pois, elementos que determinem a revogação do acórdão recorrido que, assim, se confirma in totum. IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido. Custas a cargo dos AA. Notifique. Lisboa, 26-1-17 Abrantes Geraldes (Relator) Tomé Gomes Maria da Graça Trigo |