Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283/05.0TBCHV.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CONTA
CONTA BANCÁRIA
DESCOBERTO BANCÁRIO
RELAÇÃO CONTRATUAL DE FACTO
JUROS DE MORA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :

1. O contrato de abertura de conta é um negócio jurídico que marca o início de uma relação bancária complexa entre o banqueiro e o cliente e traça o quadro básico do relacionamento entre tais entidades.
Podendo considerar-se como um contrato a se: próprio, com características irredutíveis e uma função autónoma.
2. O contrato de depósito e a conta, esta em si mesma considerada, com natureza jurídica, são realidades diferentes, que mantêm a sua individualidade.
3. O descoberto em conta é uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito, que ocorre, tipicamente, quando se verifiquem dificuldades acidentais de tesouraria para cuja solução o banco consente ou tolera um saldo negativo na conta do cliente.
4. Se a conta ficar a descoberto e o banco pagar para além dos limites do seu saldo positivo, ele torna-se credor do depositante, financiando-o.
Ficando-se perante um novo contrato emergente de um acto que o banco praticou, no qual – e regido que é pelas regras típicas do mútuo – se mudam os termos da relação obrigacional: quem é credor é o próprio banco que financiou o depositante.
5. Ainda que se não esteja perante um acordo bilateral expresso de vontades, no que respeita ao dito financiamento, estamos perante relações contratuais de facto, assentes em puras actuações de facto: as relações entre o banco e o cliente resultam de um comportamento típico de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, ficando tal relação sujeita ao regime do contrato de mútuo.
6. O descoberto em conta, em si mesmo, tem relevância jurídica conferindo ao banco o direito à restituição da quantia adiantada ao cliente e a este a obrigação de a restituir.
7. Desconhecendo-se qual a data do vencimento do descoberto em conta, por factos alegados e provados a tal propósito não haver nos autos, os juros de mora são devidos depois da interpelação judicial, ou seja, da citação.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



O BANCO AA, S. A., veio intentar acção declarativa, com processo ordinário, contra BB, CC , DD e EE, pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de € 349.158,53 acrescida dos respectivos juros de mora até efectivo e integral pagamento, devendo tais juros ser calculados à taxa legal em vigor, sendo que os juros vencidos até ao momento, ascendem a €. 66.881,00, bem como o respectivo imposto de selo sobre os juros, calculado à taxa de 4%, o qual, nesta data ascende a € 4.942,55 e, ainda o que for devido sobre os juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Alega, para tanto, e em suma:
No exercício da sua actividade bancária, aceitou, a pedido dos réus, e em nome destes, a abertura de uma conta de depósitos à ordem, à qual foi atribuído o nº 00000/0000/0000, na qual eram lançados a crédito todos os depósitos efectuados e a débito os pagamentos através dela processados.
Desde o dia 23 de Abril de 1999 que tal conta apresenta um saldo devedor no montante peticionado, de € 349 158,53, saldo a descoberto esse que não foi pago.
Os juros de mora até à data da propositura da acção ascendem a € 66 881,00.
Devendo os mesmos ser pagos, à taxa legal, até à integral liquidação do devido.
Bem como imposto de selo.

Citados os réus, vieram contestar, alegando, também em síntese:
A quantia agora pedida foi emprestada pelo Banco ao Grupo Desportivo de Chaves, em meados de 1998.
Os réus são parte ilegítima na acção, por o contrato em questão não lhes dizer respeito.
De qualquer forma, sempre o contrato de mútuo ora em causa seria nulo por falta de forma.
Os juros sempre foram pagos até Junho de 2002.

Replicou o A., mantendo a sua versão dos factos.

Foi elaborado o despacho saneador, que julgou as partes legítimas e relegou o conhecimento da nulidade invocada para decisão final. Foi organizada a base instrutória.

Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto da base instrutória pela forma que do despacho de fls 533 a 535 consta.

Foi proferida a sentença, a qual, julgando a acção procedente, condenou os réus a pagarem ao autor a quantia de € 349.158,53, acrescida de juros calculados às taxas comerciais sucessivamente em vigor até integral e efectivo pagamento, bem como no pagamento da quantia de 4.942,55 € relativa ao imposto de selo à taxa de 4% sobre os juros já vencidos e à que se vencer até integral pagamento.

Inconformados, vieram os réus, sem êxito, interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto, onde, por acórdão de fls 665 a 683, foi confirmada a sentença apelada.

De novo irresignados, vieram os réus pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo, na sua alegação, após convite do relator, formulado as seguintes conclusões:
1ª - De facto é verdade que o recurso da matéria de facto não é propriamente um segundo julgamento sobre essa matéria, mas também não deverá deixar de ser considerado como tal, na medida em que a matéria de facto devesse ter sido alterada.
2ª - Foi para isso que foi criado o recurso sobre a matéria de facto, ou seja para criar uma 2ª instância de reapreciação de prova, e não para nada se alterar.
3ª - Não é só o erro manifesto que deve ser tomado em conta, mas sim tudo quanto seja suficiente para alterar a matéria de facto.
4ª - Não colhe o argumento de que é o Tribunal de 1ª Instância que tem a testemunha à sua frente e que por isso só a 1ª Instância se pode aperceber das hesitações, dos "rubores" das variações de voz, da rapidez das respostas, etc, conforme se diz no douto acórdão, porque não há rubores ou falta de rubores, nem variações ou falta delas que valham ao sentido objectivo das declarações;
5ª – E, assim como o Tribunal da Relação tinha de se pronunciar sobre a invocada falta de forma do contrato de mútuo que diz existir e não o fez.
6ª - Pelo que há, claramente, denegação de Justiça e abstenção de julgar aquilo que devia ser julgado por parte do Tribunal da Relação do Porto.
7ª - Havendo assim ofensa de uma disposição expressa da lei que exigia para o contrato de mútuo a forma escrita desde que o valor fosse superior a 500.000$00, ao tempo;
8ª - E é com esta atitude que se apreciam as provas nomeadamente dando importância que não devia ter ao depoimento do Director Regional da A., que por acaso é parte interessada, até porque foi ele quem autorizou o empréstimo e como tal tem de manter a sua posição perante a sua entidade empregadora, em contrapartida com o depoimento das outras testemunhas referidas pelos RR. Recorrentes no recurso;
9ª - Onde é que retirou o Tribunal da Relação do Porto, a certeza de que a testemunha FF estava a dizer a verdade e a testemunha Sr. GG não? Onde ficou o princípio da imediação?
10ª- A justificação da testemunha GG, é esclarecedora quanto ao facto de ter, se calhar convenientemente, desaparecido o contrato de conta corrente, que contêm o pacto de preenchimento, e extraviou-se no Banco.
11ª- A Autora, nunca juntou qualquer prova de que os Recorrentes deram ordens de transferência ou tenham usado cheques desta conta para fazer quaisquer pagamentos.
12ª- Mas isso passou ao de leve e não lhe foi dada qualquer importância quando era isto que haveria de ter sido esclarecido.
13ª- Afinal se a Autora tinha a livrança em seu poder porque razão é que veio propor uma acção declarativa.
14ª- Tendo tal título na mão deveria era ter interposto acção executiva de imediato.
15ª- Aliás tal livrança nem sequer se destinava a tal fim, conforme foi alegado pelos Recorrentes.
16ª- Pelo que a matéria de facto deveria ter sido alterada da forma requerida pelos Recorrentes.
17ª- Foi violado o art. 653°, nº 2 do CPC, não tendo a alteração pretendida pelos Recorrentes posto em causa o disposto no art. 655° do CPC quanto à livre apreciação da prova.
18ª- Não existindo o tal contrato de conta corrente como contrato escrito, o mesmo não pode ser considerado e como tal as regras a aplicar serão as de um contrato de mútuo.
19ª- Contrato esse que é nulo por falta de forma conforme alegado nos termos do disposto no art. 1143° do CC, falta de forma essa que tem como consequência que os Recorrentes apenas tivessem de pagar o capital.
20ª- É esta a consequência da aplicação das regras da nulidade do negócio previstas nos arts 286° e ss do CC, mais especificamente o art° 289°, n° 1 do CC que manifestamente foram pela douta sentença e pelo acórdão da Relação do Porto violadas.
21ª- Faltando a escritura pública, o contrato de mútuo é nulo por falta de forma, art° 1143° do CC.
22ª- Também estipula o art° 1145°, que em caso de dúvida o mútuo será oneroso.
23ª- Ora não estando estipulados os juros por escrito, por não haver nem contrato de mútuo válido, nem contrato de conta corrente, que não existe ou se existe não existe nos autos, nem sequer se poderia ter pedido o próprio capital a título de mútuo ou de "empréstimo";
24ª- Porque mesmo que o tivessem acordado em benefício dos recorrentes, esse empréstimo era nulo e de nenhum efeito;
25ª- E sendo nulo e de nenhum efeito não pode ter como consequência a declaração de que os apelantes devem algum montante ao apelado.
26ª- Quando muito devolvê-lo-iam a título de enriquecimento sem causa; 27ª- Mesmo que se considere que existe contrato de mútuo válido, o que por mera hipótese académica se aceita, apenas seriam devidos juros desde a data da propositura da acção.
28ª- Ora não foi isso que a douta sentença e o acórdão da Relação do Porto fizeram já que consideraram serem devidos os juros desde a data do vencimento unilateral da quantia mutuada, e que à data da propositura da acção eram já de 66.881.00.
29ª- Nos termos do disposto no art. 310°, al. d) prescrevem no prazo de 5 anos: d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades.
30ª- Pelo que nunca teria o direito a juros anteriores ao ano 2000;
31ª- Não podia a Autora ter resolvido o contrato porque lhe falta um elemento essencial, não estando especificada qualquer data para o vencimento dos juros não podia a Autora, ter resolvido o contrato sem que antes tivesse notificado os Recorrentes nos termos do disposto no art. 1148°, nº 2 do CC., o que não consta dos autos que tivesse feito, pelo que a resolução, que permitiria à Autora demandar os Recorrentes, é também nula, porque nem sequer foi alegada, pelo que não podia ser provada.
32ª- Fez-se assim uma má e errada aplicação da lei e da subsunção dos factos dados como provados à lei aplicável.
33ª- O que torna nula a douta sentença e o acórdão da Relação do Porto que para ela remete na sua íntegra.
34ª- Desta forma foram violados os arts 659° e 668°, n° 1, b), c) e d) do CPC e ainda os artigos do Código Civil acima referidos.
35ª- Desta forma deve ser revogado o douto acórdão e considerado nulo o contrato de mútuo com todas as suas consequências, nomeadamente a absolvição dos RR.,
36ª- Caso assim não se considere, pelo menos que eventuais juros sejam contados apenas desde a data da citação.

Contra-alegou o autor recorrido, pugnando pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

Vem dado como PROVADO:

1) A Autora, no exercício da sua actividade bancária aceitou, a pedido dos Réus, em seu nome próprio, a abertura de uma conta de depósito à ordem na agência do Autor, em Chaves, à qual viria a ser atribuído o nº 000000/000000 – respostas aos quesitos 1.º e 2.º;

2) Na conta referida em 1) eram lançados a crédito todos os depósitos nela efectuados e a débito todos os pagamentos através dela processados – resposta ao quesito 3.º;

3) Desde o dia 23/04/1999, a conta em causa apresenta um saldo devedor no montante de 349.158,53€ proveniente da diferença entre os lançamentos devidamente efectuados a débito e a crédito na referida conta – respostas aos quesitos 4.º e 5.º.
São, como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC (1), bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelos recorrentes nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.
E, assim, lidas as ainda extensas “conclusões”, dela se poderão, ao que se julga, retirar as seguintes questões:
1ª – A do não conhecimento pela Relação, pela forma devida, da impugnação da decisão da matéria de facto:
2ª – A da aplicação integral das regras do mútuo ao contrato em apreço;
3ª – A da nulidade do contrato por falta de forma;
4ª – A do não vencimento dos juros antes da propositura da acção (ou da citação)(2)., sempre estando prescritos os anteriores ao ano 2000.
Comecemos pela primeira: pela discordância dos recorrentes quanto à forma como a Relação decidiu a impugnação da matéria de facto:
Inconformados com a decisão proferida na 1ª instância, vieram os réus, então pela pena de outro mandatário, interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, impugnando, alem do mais, a decisão proferida sobre a matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 690.º-A, pedindo, para tal, a reapreciação da prova gravada. Sustentando que deveria ter sido dada resposta negativa ao quesito 1.º e que os restantes deveriam também merecer respostas negativas enquanto se reportassem aos recorrentes como tendo agido em nome próprio.
O Tribunal da Relação, estribando-se na fundamentação do despacho decisório de 1ª instância e também na prova gravada incluída nas cassetes juntas e na prova documental dos autos, não vislumbrou os apontados erros de julgamento por banda do senhor juiz a quo de 1ª instância, entendendo que a decisão impugnada está absolutamente apoiada na prova produzida, pelo que decidiu mantê-la.
Mas os RR continuam inconformados e daí esta sua revista.
Ora, havendo eventual violação da lei, constitui matéria de direito a tarefa do Supremo averiguar se, a Relação, ao fixar os factos, seguiu as mais adequadas regras do direito processual.
Discorda a recorrida, pugnando pela manutenção do acórdão da Relação, já que, em seu entender, o Tribunal de 1ª instância valorou correctamente as provas, inexistindo motivo para modificar a decisão de facto.
Que dizer?
Tendo havido gravação da prova em audiência, como in casu sucedeu, pode, no regime vigente, o recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, desde que se mostrem cumpridos os ónus impostos pelo art. 690.º-A.
Devendo, assim, a Relação decidir sobre a matéria de facto impugnada, reapreciando, para o efeito, as provas em que a mesma assentou, sem prejuí­zo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento á decisão - art. 712.º, nºs 1, al. a) e 2.
De facto, o DL 39/95, de 15 de Fevereiro, veio consagrar (3) na área do processo civil, a possibilidade da documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, assim se permitindo um duplo grau de jurisdição quanto á matéria de facto.

Coincidindo, em princípio (4), tal reapreciação da prova pela Relação em amplitude com a da 1ª instância (5)/ (6)

Pelo que, impugnada que seja a decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto e havendo gravação da prova, tem a Relação (7), tendo em atenção o conteúdo das alegações dos recorrente e dos recorridos, que reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, reapreciando-a, quer ouvindo a gravação dos depoimentos a respeito produzidos, quer lendo-os, se transcritos estiverem. Sem prejuízo, como já dito, de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de factos impugnados – art. 712º, nº 2.
Impondo-se, assim, à Relação declarar se os pontos de facto impugnados foram bem ou mal julgados, mantendo ou alterando tal decisão em conformidade (8).

Assim tendo procedido, afinal, a Relação, mantendo o que julgou adequado manter, por os elementos de prova produzidos nos autos assim, e quanto a ela, também o imporem.
Sem que aqui se possa sindicar tal julgamento.

Pois, como é bem sabido, este Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue adequado – art. 729.º, nº 1.

Não podendo a decisão proferida pelo tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, ser, por seu turno, alterada, salvo o caso excepcional previsto no art. 722.º, nº 2, ou seja, a não ser que exista disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
O que in casu se não verifica.

Não se vendo ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova, sendo certo que, face ao disposto no art. 364.º do CC, quando a lei exigir como forma da declaração negocial documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por qualquer outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Nem se vislumbrando ofensa de disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova, como sucede, por exemplo, no art. 371.º do mesmo CC.

Incumbindo, assim, às instâncias apurar a factualidade relevante, cabendo a última palavra na definição da respectiva matéria fáctica para a solução do litígio, à Relação.

Pelo que, respeitando, embora, o inconformismo dos recorrentes, há que manter o decidido pela Relação.

Tudo isto sem embargo de se reconhecer que a garantia do duplo grau de jurisdição “nunca poderá envolver pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente” (9) .

Tal como, aliás, in casu sucedeu.

Devendo a reapreciação da prova na Relação, de acordo com o regime legal em vigor, e, sem por isso, em si mesmo, se subverter o princípio da livre apreciação das provas estabelecido no art. 655.º, nº 1 (10)., ponderar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, poderão ter entrado elementos que, em princípio, no sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente prestados não podem ser importados para a gravação, não podendo ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador (11) /(12)

O que cremos, de qualquer modo, que também terá sucedido.

Sem qualquer ofensa, dados os amplos poderes da Relação, do princípio da livre apreciação das provas.

Sem qualquer ofensa, portanto, do estabelecido nos arts 396.º do CC e 655.º.
Passemos à segunda e terceira questões: a da aplicação integral das regras do mútuo ao contrato em apreço e a da nulidade do contrato por falta de forma.

Como é sabido, cada uma das partes suporta, em resultado do princípio dispositivo, um ónus de afirmação (alegação) – art. 264.º.

Não bastando, porém, por força do princípio da substanciação, a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, sendo antes necessário a indicação especificada dos factos constitutivos desse direito (13).
Competindo-lhe articular factos essenciais e concretos que se insiram na previsão da norma ou normas jurídicas que acolham o arrogado e invocado direito.

Ficando sempre salva ao Tribunal a possibilidade de qualificar juridicamente a situação que lhe é posta à sua consideração, de forma diferente da que pela parte foi feita, embora alicerçado em factos articulados – art. 664.º.

O banco autor gizou a sua acção de forma bem singela:
No exercício da sua actividade bancária, e a pedido dos réus, aceitou a abertura de uma conta de depósitos à ordem, em nome dos mesmos, na qual eram lançados a crédito os depósitos nela efectuados e a débito os pagamentos através dela processados.
Em 23 de Abril de 1999, tal conta apresentava um saldo a descoberto no montante do pedido, proveniente da diferença entre os lançamentos efectuados a crédito e a débito.
Tal montante não lhe foi pago pelos réus.

A factualidade em causa foi dada como provada.

Restando, assim, ver qual o seu enquadramento jurídico.

Ora, a qualificação dos negócios jurídicos feita pelas partes, não sendo decisiva, já que o juiz, como atrás dissemos, nesse âmbito, desde que respeite a matéria a respeito alegada e provada, actua livremente, releva enquanto um dos elementos a ter em conta na fixação do respectivo conteúdo, ou seja, na sua qualificação jurídica feita pelo julgador (14).

O contrato de abertura de conta é um negócio jurídico que marca o início de uma relação bancária complexa entre o banqueiro e o cliente e traça o quadro básico de relacionamento entre tais entidades (15).

Podendo considerar-se o mesmo como um contrato a se: próprio, com características irredutíveis e uma função autónoma. Devendo ser tomado como um negócio materialmente bancário por excelência (16).

Sendo o contrato de depósito e a conta, esta, em si mesma, com natureza jurídica, realidades diferentes, que mantêm a sua individualidade (17).

Efectuando-se a contabilização da conta bancária em regime de conta-corrente – assim sucedendo desde Antiguidade - que no séc. XIX passou a revestir a forma de contrato, a qual permite relevar, num simples quadro de “deve” e “haver” as operações efectuadas entre as partes, ou, juridicamente falando, os créditos e débitos recíprocos do banco e do cliente. Permitindo a mesma regularizar por compensações sucessivas os créditos recíprocos que vão sendo contabilizados, de modo que apenas um saldo restará exigível pela parte que, a final, se revelar credora. Sendo certo que hoje em dia, a melhor doutrina – com destaque para Menezes Cordeiro – concebe a conta-corrente como um elemento necessário do contrato de abertura de conta bancária (18).

Cremos, assim, com arrimo na que julgamos ser melhor doutrina, bem como em jurisprudência deste Supremo, que há problemas concretos suscitados no âmbito da relação jurídico-bancária que se fundam no próprio contrato de abertura de conta (19).

Bem podendo o Banco autor, sem mais, invocar como causa de pedir o aludido contrato de abertura de conta. Que aqui comprovou.

Mas o banco, para ser pago do montante que alega pelos réus em dívida, invoca também o descoberto bancário da conta que aqueles na sua agência abriram.

Ora, o descoberto em conta é também uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito que ocorre, tipicamente, quando se verifiquem dificuldades acidentais de tesouraria para cuja solução o banco consente ou tolera um saldo negativo na conta do cliente.
Podendo, também, tal crédito ser concedido no quadro de uma especifica relação contratual, em especial a de abertura de crédito. Como pode, frequentemente, a situação de descoberto estar prevista em cláusulas do próprio contrato de abertura de conta (20).
Residindo, porém, como causa mais frequente do descoberto na tolerância do banco em adiantar certa importância, colmatando, assim, a insuficiência do saldo. Sendo um acto da sua iniciativa, embora baseado no pressuposto de que o cliente antes lho solicitara, ou na presunção, quer do posterior consentimento do cliente, quer da defesa dos interesses deste (21).

Sendo o descoberto em conta, sem acordo prévio ou resultante de uma concessão de crédito por acordo e instruções do depositante, uma das formas possíveis em que se traduz a concessão de crédito (22).

Não nos devendo olvidar que o direito bancário privado está dominado por um princípio de simplicidade e pelo facto da desformalização, que se traduz em os actos bancários surgirem sem especiais formalidades (23).

E, assim, se a conta ficar a descoberto e se o Banco pagar para além dos limites do seu saldo positivo, ele torna-se credor dos depositantes, financiando-os.
Havendo, então, um novo contrato emergente de um acto que o Banco fez e que não era obrigado a fazer: pagou para além dos limites da sua obrigação.
Neste novo contrato – regido também pelas normas-tipo do mútuo – mudam-se os termos da relação obrigacional: quem é credor é o próprio Banco que financiou o(s) depositante (s) (24).

Provado o descoberto, tal como alegado foi pelo banco autor, cumpre saber se os réus, por via disso, ficam obrigados a restituir o que daquele, e para alem do saldo positivo da sua conta bancária, dispuseram.

Podendo-se, a respeito, pois com tal se concorda inteiramente, transcrever o seguinte excerto do acórdão deste STJ de 16/3/2000 (25):
“O descoberto em conta é a operação pela qual o Banco consente que o seu cliente saque para além do saldo existente na conta de que é titular.
A maior parte dos descobertos em conta não configura uma operação formalmente negociada; o cliente ordena a disponibilização de quantias superiores ao saldo (ordenando que entregue a si ou a quem ele indicar) não tendo o direito de o fazer por falta de depósito; o Banco, sem a tal ser obrigado, satisfaz as ordens do cliente, porque confia na sua solvabilidade.
O descoberto em conta terá relevância jurídica, ou seja, confere ao Banco o direito à restituição da quantia adiantada e ao cliente a obrigação de o restituir?
A resposta terá de ser necessariamente afirmativa com base nos ensinamentos de ANTUNES VARELA; para além da doutrina tradicional que considera como elemento essencial do contrato o acordo bilateral dos contraentes, traduzido no enlace psicológico de duas (ou mais) declarações de vontade das partes, HAUPT aponta algumas categorias de situações jurídicas, a cuja disciplina seria aplicável o regime dos contratos, sem que haja na sua base um acordo de declarações de vontade dos contraentes. Trata-se de relações contratuais de facto, não nascidas de negócio jurídico, assentes em puras actuações de facto. Uma das categorias apontadas por HAUPT seria - segundo informa A. VARELA - "os casos... em que as relações entre as partes assentam sobre actos materiais reveladores da vontade de negociar, mas que não se reconduzem aos moldes tradicionais do mútuo consenso: caso da utilização dos transportes públicos, dos meios públicos de comunicação, das máquinas automáticas, dos parques de estacionamento remunerado, em que não há nenhuma declaração de vontade do utente e, todavia, se não duvida da subordinação de situação criada pelo seu comportamento ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
A. VARELA ensina que esta categoria de casos não necessita de regulamentação autónoma e na medida em que muitos desses casos não são abrangidos no artigo 234.º do Código Civil, mas também cabem no conceito amplo de declaração negocial expressa ou tácita aceite na nossa lei - artigo 217.º, nº 1(26)
O descoberto em conta apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto: as relações entre o Banco e o cliente resultam de um comportamento típico de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, antes numa proposta tácita de ordem de levantamento por parte do cliente, de sorte que essa operação ficará sujeita ao regime do contrato de mútuo, dado a sua natureza ser semelhante à do contrato de depósito bancário, a que se aplica, conforme doutrina correcta, as disposições relativas ao contrato de mútuo (27).

Por tudo isto, face à factualidade apurada se conclui que os réus se encontram na obrigação de restituir a quantia peticionada, integrante do saldo devedor da referida conta bancária ou seja do descoberto em conta.

Não havendo qualquer nulidade do contrato por falta de forma, tendo a dívida dos autores, mau grado a aplicação devida das regras do mútuo à situação em apreço, resultado directamente do próprio descoberto, documentado na conta respectiva.
Agora a questão dos juros (quarta): a de os mesmos não serem devidos antes da propositura da acção (ou da citação), sempre estando prescritos os anteriores ao ano 2000.

O acórdão recorrido, adoptando por inteiro a sentença de 1ª instância, que, no tocante á decisão de direito, transcreve, entendeu serem devidos juros de mora desde o dia 23/4/99.

Sustentam os recorrentes nenhuns juros serem devidos por o mútuo em causa ser nulo por falta de forma.
E, de qualquer forma sempre os mesmos apenas seriam devidos desde a data de propositura da acção (ou da citação).
Sempre estando prescritos os juros para alem de cinco anos (art. 310º, al. d) do CC.
Tendo a acção dado entrada em 2005, mais concretamente em 8/3/2005, adiantamos nós (28).

Vejamos:
Desde já se dizendo que os réus, ora recorrentes, não invocaram a prescrição na sua contestação.
Só agora o tendo feito.

Ora, a prescrição não importa ipso jure a extinção do direito. Precisando de ser invocada por aquele a quem aproveita (art. 303.º do CC) (29).
Só agora o tendo feito, neste recurso, vieram aqui os recorrentes suscitar questão nova.
Mas este Tribunal não pode conhecer questões – a não ser que sejam de conhecimento oficioso, o que aqui não sucede – que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que este não cuidou nem tinha de cuidar.
Tal questão não pode, pois, ser agora apreciada, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuar a função dos recursos que se destinam a reapreciar questões e não decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição.

São, assim, devidos juros face à mora dos réus, como se diz no acórdão recorrido.

Mas, desconhecendo-se qual a data do seu vencimento, pois, mais pormenores do contrato de abertura de conta não estão alegados, nem, naturalmente, provados, como desconhecidos são os do descoberto em conta, não se podendo concluir, com segurança se a obrigação tem prazo certo, entende-se aqui que os réus entraram em mora só depois da interpelação judicial, ou seja, da sua citação – arts 805.º, nº 1, 481.º e 267.º, nº 2 (30).
Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se conceder parcial revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou os réus ao pagamento de juros de mora desde 23/4/99, sendo estes apenas devidos desde a data em que os últimos RR foram citados (2/5/2005). No mais se mantendo o decidido.
Custas por recorrentes e recorrido, na proporção dos respectivos decaimentos.

Lisboa, 07 de Outubro de 2010

Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Bettencourt de Faria
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(1) - Sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa
(2) - Incompreensivelmente, os réus ora pedem a contagem de eventuais juros desde a data da propositura da acção (conclusão 27ª) ou da sua citação (conclusão 36ª
(3) - As Relações, constitucionalmente consideradas como tribunais de 2ª instância (art. 210.º, nº 4 da CRP), conhecem tanto de questões de facto como de direito, mas, antes da publicação deste diploma, tendo em conta o princípio da oralidade plena, o julgamento da matéria de facto era praticamente imodificável. O que era alvo de severas críticas por banda de muitos processualistas e demais juristas, já que no fundo, sem mais apelo, a decisão da matéria de facto era definitivamente julgada na 1ª instância. Tal sistema veio, então, com o aludido DL 39/95, a ser substituído pelo da oralidade mitigada, preconizado por Franz Klein, assim se permitindo um amplo recurso sobre a matéria de facto. Possibilidade essa que veio a ser reforçada pela Reforma de 95/96. E, assim, com o dever de motivação das decisões – a fundamentação da convicção do julgador - expresso no art. 653º, nº 2, constitucionalmente consagrado no art. 205º, nº 1 da CRP, e assegurada que está a documentação da prova, criadas estão as condições para o julgamento eficaz do segundo grau de jurisdição em matéria de facto – cfr., a propósito e para maiores desenvolvimentos, Ac. do STJ de 19/3/2009 (Santos Bernardino), Pº 08B3745.
(4) - Cfr. a propósito, Ac. do STJ de 13/5/04 (Bettencourt de Faria), Pº 04B4647.
(5) - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, p. 228.
(6) - Pelo que não deve a Relação escudar-se na violação do princípio da livre apreciação das provas, já que o mesmo também a ela, como instância, se lhe aplica.
(7) - Pressupondo-se, naturalmente, que estejam preenchidos os ónus exigidos pelo citado art. 690º-A.
(8) - Cfr. demais jurisprudência citada no referido Ac. deste STJ de 19/3/2009.
(9) - Preâmbulo do citado DL 39/75.
(10) - O princípio da livre apreciação da prova, como já dito, também pertence à Relação, como tribunal de instância que é, conferindo-lhe, como tal, e nos termos do mencionado art. 712.º, o pleno poder de alterar a matéria de facto antes decidida pelo tribunal de 1ª instância, fixando, a final, a matéria de facto necessária à boa decisão da causa.
(11) - Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol.., p. 257, citando, a propósito, Eurico Lopes Cardoso, Bol. 80, pags 220 e 221.
(12) -Sendo certo que alguns desses sinais poderão ainda ser detectados na gravação efectuada, como acontecerá com as pausas ocorridas no discurso da testemunha, com as indecisões, imprecisões e contradições na respectiva narração. Bem podendo também tais circunstâncias, mesmo que não apreensíveis na audição dos depoimentos gravados, pelo menos no essencial e quando decisivas, constarem na motivação da decisão de facto como elemento importante para a convicção do julgador – art. 653.º, nº 2. Permitindo tal motivação, se bem operada, que a Relação se aperceba, no essencial, da motivação de índole subjectiva que levou a 1ª instância a formar a sua convicção em determinado sentido, perante aquela prova concreta – Ac. do STJ de 1/7/2008 (Moreira Alves), revista 198/08-1.
(13) - A. Reis, CPC Anotado, vol. II, p. 356, M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 297 e A. Varela, Manual de Processo Civil, p. 692.
(14) - Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, p. 65.
(15) - Compreendendo-se que a consideração da pessoa do outro contraente seja determinante de decisão de contratar, sendo a abertura de conta concluída intuitu personae – Alberto Luís, Direito Bancário, p. 65.
(16) - Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, p. 457 a 465.
(17) - Fernando Conceição Nunes, Depósito e Conta, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. II, Direito Bancário, p. 79.
(18) - Simões Patrício, Direito Bancário Privado, p. 148 e ss.
(19) - Simões Patrício, ob. cit., p. 142 e ss e Acs do STJ de 3/2/2000 e de 16/3/2000, in Bols 494, p. 294 e 495, p. 329, respectivamente
(20) - Não sendo, in casu, qualquer uma destas duas últimas situações pelo autor sequer alegadas.
(21) - Simões Patrício, ob. cit., p. 316 e seg. e Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 541.
(22) - Ac. do STJ de 2/2/93 (Ramiro Vidigal), CJ S., T. 1, p. 121.
(23) - Ac. do STJ de 11/3/99 (Fernandes Magalhães), Pº JSTJ00036129, in www.dgsi.pt, aqui estando publicados os demais arestos citados sem outra referência.
(24) - Ac. do STJ de 25/11/2003 (Noronha do Nascimento), Pº 04B1465.
(25) - Miranda Gusmão, Pº 99B1221.
(26) - DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL, volume I, 9ª edição, páginas 231/236.
(27) - Acs do STJ, de 15 de Novembro de 1995, in Bol.451, pág. 440 e de 9 de Fevereiro de 1995; CJ S, ano III, T. 1, p. 75.
(28) - Carimbo aposto na p. i.
(29) - P.Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. I, 275.
(30) - Lopes Cardoso, Notas ao CPC, vol. III, p. 29 e Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2.º, p. 259.