Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97/14.6T8ACB-A.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
CONTRATO DE PERMUTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
OPOSIÇÃO À PENHORA
RECURSO DE REVISTA
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / PENHORA DE BENS / OPOSIÇÃO À PENHORA / EMBARGOS DE EXECUTADO / SENTENÇA - RECURSOS.
Doutrina:
- A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo1, 2.ª edição, 2000, 241 e 245.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 721.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 1.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 5.º, N.º 1.
Sumário : I. O abuso do direito, consagrado no art. 334.º do Código Civil, corresponde, sobretudo, a uma manifestação concreta do princípio da boa fé.

II. O comportamento, manifestamente atentatório da boa fé, deve ser repudiado pela ordem jurídica, qualificando como ilegítimo o exercício do direito baseado nesse comportamento e obstando à concretização da respetiva pretensão jurídica.

III. Sem a alegada ofensa à boa fé, não se configura abuso do direito, quando o credor hipotecário executa os imóveis hipotecados, adquiridos depois da constituição da hipoteca, na sequência de permuta anteriormente celebrada.

IV. A oposição à penhora, estando excluída do âmbito do mérito da causa (embargos de executado), não pode ser objeto do recurso de revista, nomeadamente nos termos do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – RELATÓRIO

      AA, mediante embargos de executado, deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa, no valor de € 97 708,51, que a Caixa Geral de Depósitos, S.A., lhe move também no Juízo de Execução da Instância Central de A…., Comarca de Leiria, e também oposição à penhora, alegando que, por permuta com a co - Executada BB, Lda., adquiriu as duas frações penhoradas, configurando a hipoteca a favor da Exequente abuso do direito, para além de lhe assistir ainda o direito de retenção sobre as mesmas frações.

Recebidos os embargos, contestou a Embargada, alegando que o direito de propriedade do Embargante é inoponível à hipoteca constituída a seu favor e que inexiste fundamento para a invocação do direito de retenção, e concluindo pela improcedência da oposição.

Identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 19 de julho de 2016, a sentença, nos termos da qual, julgada procedente a oposição à execução, foi esta declarada extinta contra o Embargante.

Inconformada com esta decisão, a Embargada apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 14 de março de 2017, revogou a sentença e ordenou a continuação da execução contra o Embargante.

Não se conformando também, o Embargante recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) O acórdão está eivado de nulidade, pois os fundamentos estão em oposição com a decisão e conheceu-se de questões de que a Relação não podia tomar conhecimento.

b) No âmbito da impugnação da matéria de facto, a falha apontada importaria a rejeição imediata e improcedência do recurso, mantendo-se a sentença.

c) Resulta da matéria de facto dada como provada que o caso dos autos é de abuso do direito.

d) Quanto ao excesso da penhora, a Relação violou a lei substantiva, mormente o disposto no art. 693.º, n.º 2, do CC.

e) O Tribunal da Relação não atentou ao excesso de juros peticionados contra o Recorrente, que apenas é terceiro Executado, sendo ilegais os juros de mais de três anos.

f) A penhora das duas frações é excessiva e ilegal

Com a revista, o Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão a julgar extinta a execução quanto ao Embargante.

A Embargada não contra-alegou.

Na Relação, foi declarado que inexiste qualquer nulidade no acórdão recorrido.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

No recurso, para além da nulidade do acórdão recorrido, está em discussão o abuso do direito e o excesso da penhora.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Estão provados os seguintes factos:

1. Mediante escritura pública de 22/03/2007, denominada “permuta”, com cópia a fls. 90 e segs., CC, em representação do Embargante, como primeira outorgante, e DD e EE, na qualidade de sócios gerentes de BB – Sociedade de Construções, Lda., como segundos outorgantes, declararam, entre o mais: “a primeira, em nome do seu representado, dá à representada dos segundos o seguinte: prédio urbano composto de terreno para construção urbana, sito em Quinta da C…, lote 5, freguesia de C… da R… (Nossa Senhora de ….), concelho de C… da R…, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho, sob o n.º 2…9, registado a favor dele, representado, pela inscrição G – dois, registada a autorização de loteamento pela inscrição F - 1 do n.º 2…3, a que corresponde o alvará de loteamento n.º 8/97, de 31 de julho, inscrito na matriz sob o artigo 9414, com o valor patrimonial de € 61 937,48, pelo valor de € 190 000,00. Os segundos, em nome da sociedade sua representada, dão em troca ao representado da primeira: a) Bem futuro - Fração autónoma com a letra “C”, destinada a habitação e parqueamento, com letra “C”, pendente da constituição da propriedade horizontal, correspondente ao primeiro andar direito, do prédio urbano, a construir, de acordo com o projeto n.º 596/2006, aprovado em 6 de setembro de 2006, pela Câmara Municipal de C… da R…, pelo valor de € 90 000,00; b) bem futuro - fração autónoma com a letra “D”, destinada a habitação e parqueamento com letra “D”, pendente da constituição da propriedade horizontal, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano, a construir, de acordo com o projeto n.º 596/2006s, aprovado em 6 de setembro de 2006, pela Câmara Municipal de C… da R…, pelo valor de € 100 000,00, no lote de terreno para construção, acima descrito e ora permutado. Os segundos outorgantes, na referida qualidade, ficam obrigados a concluir o edifício no qual se vão integrar as referidas frações autónomas (…), e ainda a outorgar a escritura de constituição da propriedade horizontal, a entregar as mencionadas frações autónomas, completamente prontas e concluídas, e livres de quaisquer ónus ou encargos no prazo máximo de doze meses, após a celebração desta escritura, para cumprimento da obrigação aqui assumida. Que a propriedade do lote transmite-se pelo presente ato, adquirindo-se as frações (…), com a sua construção. Que recebendo bens em valor de igual montante, nada têm mais a receber uns dos outros.”

2. Mediante escritura pública de 19/04/2007, denominada “abertura de crédito com hipoteca e fiança”, com cópia a fls. 8 e segs. da execução, correspondente informaticamente ao n.º PT00….91, a Exequente declarou conceder a BB, Lda., um empréstimo, sob a forma de abertura de crédito, até ao montante de € 600 000,00, para cuja garantia aquela constituía hipoteca voluntária sobre o prédio referido, hipoteca já registada provisoriamente pela inscrição C-1.

3. Mais consta nessa escritura que “a hipoteca é feita por tempo indeterminado, subsistirá enquanto se mantiver qualquer das responsabilidades que assegura, e abrange, além do mais, todas as construções e benfeitorias que existam à data da presente escritura e as que, de futuro, venham a existir no referido imóvel, obrigando-se os segundos outorgantes a requerer e promover os respetivos averbamentos na Conservatória do Registo Predial competente, ou, se o não fizerem, fica a Caixa autorizada a requerê-los, caso em que os correspondentes recibos ficarão a constituir elementos referidos a esta escritura para efeitos de exequibilidade”.

4. Consta na nota de débito de fls. 37 da execução que o capital em dívida, no âmbito da operação referida em 2., é de € 67 882,69, sendo os juros, entre 19/01/2010 e 18/09/2014, de € 29 825,82.

5. Mostra-se inscrita a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio referido a favor de BB, Lda., por permuta com o Embargante.

6. Mostra-se inscrita (Ap. 7 de 3/4/2007) a constituição de hipoteca voluntária sobre o mesmo prédio, a favor da Exequente, para garantia de abertura de crédito, até ao montante máximo de € 902 100,00.

7. Mostra-se inscrita a constituição da propriedade horizontal sobre o mesmo prédio, com as frações “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G” e “H”.

8. Mostram-se inscritos os cancelamentos parciais da hipoteca quanto às frações “H”, “E”, “F”, “G”, “B” e “A”.

9. Mostra-se inscrita (Ap. 2115 de 21/12/2009) a aquisição do direito de propriedade sobre as frações “C” e “D” do prédio referido a favor do Embargante.

10. A Exequente tinha conhecimento da existência e do conteúdo da “permuta” por ocasião da celebração da escritura e registo da hipoteca.

11. Se a Exequente tivesse conhecimento da “permuta”, teria acautelado o expurgo da hipoteca e o ressarcimento por conta da “abertura de crédito”, aumentando o valor a distratar sobre as frações “A”, “B”, “E”, “F”, “G” e “H”, sem contemplar as frações “C” e “D”.

12. O Embargante procedeu ao pagamento da quantia de € 524,52, a título de IMT e imposto de selo em virtude da permuta.

13. O Embargante procedeu ao pagamento da quantia de € 10 331,60, a título de imposto de mais-valias em virtude da permuta.

14. Em 21/12/2009, o Embargante obteve a entrega das chaves das frações “C” e “D”.

15. Consta de fls. 31 e segs., que o Embargante, em 02/08/2012, procedeu ao “arrendamento” da fração “D”.

16. Consta de fls. 37 e segs., que o Embargante, em 25/09/2013, procedeu ao “arrendamento” da fração “C”.

17. Consta do “cálculo de valores de expurgação”, a fls. 204, que a Exequente avaliou a totalidade das frações do prédio com um PVT global de € 1 050 000,00, para um valor de expurgação global de € 660 010,00, cabendo às frações “A”, “B”, “E”, “F”, “G” e “H” um PVT conjunto de € 794 000,00, para um valor de expurgação conjunto de € 499 090,00, e às frações “C” e “D” um PVT conjunto de € 256 000,00, para um valor de expurgação conjunto de € 160 920,00.

18. A fração “C” tem um valor de mercado atual de € 99 000,00.

19. A fração “D” tem um valor de mercado atual de € 110 000,00.

2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da nulidade do acórdão, do abuso do direito e do excesso da penhora.

O Recorrente alega a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC), por oposição entre os fundamentos e a decisão, no âmbito da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Nesta matéria, o acórdão recorrido concluiu, em primeiro lugar, que a Apelante (ora Recorrida) não cumprira o respetivo ónus de alegação, por falta de indicação exata das “passagens da gravação em que se funda o seu recurso”. Apesar disso, concluiu também que a impugnação era improcedente, mantendo inalterada, igualmente por isso, a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância.

Embora a Relação admitisse o fundamento para a rejeição do recurso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por incumprimento do ónus de alegar, acabou, subsidiariamente, por conhecê-lo e julgá-lo improcedente, mantendo a decisão de facto sem qualquer modificação.

Neste contexto, não se observa no acórdão recorrido qualquer vício formal, nomeadamente de oposição entre a sua fundamentação e a decisão, sendo certo ainda que o efeito da rejeição do recurso sobre a matéria de facto é a manutenção desta. Por isso, não obstante a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, é logicamente admissível a procedência da apelação, desde que o direito aplicável o justifique, como foi entendido pela Relação.

Por outro lado, a restante fundamentação, nomeadamente sobre a improcedência do abuso do direito, está em inteira coerência com a decisão de julgar os embargos de executado improcedentes.

Embora o Recorrente aluda ainda à nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, no entanto, não fundamenta em que termos a Relação conheceu de “questões de que não podia tomar conhecimento”.

Nestas circunstâncias, improcede, sem mais, semelhante arguição.

Nestes termos, improcede a arguição de nulidade do acórdão recorrido.

2.3. A sentença, dando relevância à alegação do abuso do direito, julgou os embargos de executado procedentes e declarou extinta a execução contra o Recorrente.

Por sua vez, o acórdão recorrido, excluindo o abuso do direito e a violação do princípio da proporcionalidade na penhora, julgou os embargos de executado improcedentes e determinou o prosseguimento da execução.

O Recorrente, porém, insiste no abuso do direito e ainda no excesso da penhora.

Descrita sinteticamente a controvérsia emergente dos autos, impõe-se, agora, averiguar o direito aplicável aos factos provados.

É incontroverso que o registo da hipoteca sobre os imóveis penhorados a favor da Recorrida é anterior ao registo do direito de propriedade sobre os mesmos imóveis a favor do Recorrente. Na verdade, a hipoteca foi registada a 3 de abril de 2007, enquanto a aquisição do direito de propriedade foi registada a 21 de dezembro de 2009, depois da propriedade horizontal do edifício ter sido registada a 20 de março de 2008.

Antes, em 22 de março de 2007, o Recorrente havia permutado a aquisição dos imóveis, como bens futuros, pelo prédio onde viria a ser erguido o edifício submetido ao regime da propriedade horizontal.

Consta ainda da matéria de facto que a Recorrida tinha conhecimento da existência da “permuta”, nomeadamente na ocasião da celebração da escritura e do registo da hipoteca (n.º 10).

Ficou, igualmente, provado que, se a Recorrida tivesse conhecimento da “permuta”, teria acautelado o expurgo da hipoteca e o ressarcimento por conta da “abertura de crédito” (referida no n.º 2), aumentando o valor a distratar sobre as restantes frações, sem contemplar as frações “C” e “D” (n.º 11), os imóveis penhorados.

Confrontando este circunstancialismo, será possível configurar o abuso do direito, imputado à Recorrida e, assim, paralisar o efeito jurídico resultante da constituição da hipoteca, nos termos do disposto no art. 334.º do Código Civil (CC)?

Esta norma legal, servindo-se da jurisprudência criada contra as práticas abusivas, veio consagrar, normativamente, o instituto do abuso do direito, concebendo-o em termos objetivos, diferentemente do que sucede no âmbito das deliberações sociais abusivas, onde impera uma conceção subjetiva (art. 58.º, n.º 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais).

O regime jurídico do abuso do direito corresponde, sobretudo, a uma manifestação concreta do princípio da boa fé, matriz das relações jurídicas (A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo1, 2.ª edição, 2000, págs. 241 e 245).

Com o exercício da boa fé procura-se alcançar justiça nas relações jurídicas, garantindo a relação de confiança e potenciando a segurança e a paz jurídicas, e excluir do tráfico jurídico comportamentos manifestamente incompatíveis e inadmissíveis com a ordem jurídica. O comportamento, manifestamente atentatório da boa fé, deve ser repudiado pela ordem jurídica, qualificando como ilegítimo o exercício do direito baseado nesse comportamento e obstando à concretização da respetiva pretensão jurídica.

No caso vertente, o Recorrente entende haver manifesta ofensa da boa fé, por no momento da constituição da hipoteca sobre o prédio, onde iria ser construído um edifício submetido a propriedade horizontal, a Recorrida ter conhecimento da permuta, onde, designadamente, se previa o direito de propriedade do Recorrente sobre duas frações do edifício e ter ficado ainda provado que, se a Recorrida tivesse conhecimento da permuta teria acautelado o expurgo da hipoteca e o pagamento, por conta do contrato de abertura de crédito, aumentando o valor a distratar sobre as restantes frações e excluindo as atribuídas ao Recorrente.

A hipoteca a favor da Recorrida, celebrada por escritura pública, foi registada em 3 de abril de 2007, apresentando-se como inteiramente válida.

Como as frações, a atribuir ao Recorrente no edifício a construir, nos termos da permuta celebrada em 22 de março de 2007, constituíam um bem futuro, a hipoteca, quanto ao seu objeto, não podia ser diferente. Consequentemente, não é possível surpreender qualquer violação da boa fé, por parte da Recorrida, nomeadamente no momento da constituição da hipoteca, sendo irrelevante o seu conhecimento quanto à aludida permuta, para além de ser terceiro neste negócio jurídico.

Por outro lado, o direito de propriedade do Recorrente sobre as frações “C” e “D” foi registado posteriormente à hipoteca, sendo-lhe inoponível, mesmo não sendo aquele pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas, como decorre do disposto no art. 721.º do CC. De resto, o direito de propriedade, em relação ao credor hipotecário, como terceiro, só produz efeitos depois da data do respetivo do registo, nos termos do art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial.

Todavia, tendo adquirido efetivamente as frações depois da constituição da hipoteca, o Recorrente dispõe do direito de a expurgar, nomeadamente nos termos previstos no art. 721.º do CC. A proteção dos direitos do credor hipotecário está subjacente a esse regime da expurgação da hipoteca.

Assim, não obstante a aludida permuta, o Recorrente não podia, só por isso, ter a expetativa jurídica de que a Recorrida não viesse a exercer o direito decorrente da hipoteca dos imóveis. A situação normal, não sendo pago o crédito garantido pela hipoteca, seria a execução dos imóveis hipotecados.

Também, nestas circunstâncias, não estão em causa as exigências da boa fé, sendo certo, como se viu, que a hipoteca é inteiramente válida. O credor, com efeito, tem direito a exigir o crédito garantido pela hipoteca e esta não pode deixar de garantir tal crédito, mesmo que o adquirente do bem hipotecado não seja pessoalmente responsável pelo cumprimento da obrigação garantida.   

O Recorrente, para sublinhar o desrespeito da boa fé, invoca ter ficado provado que, se a Recorrida tivesse conhecimento da permuta teria acautelado o expurgo da hipoteca e o ressarcimento, por conta da abertura de crédito, aumentando o valor a distratar sobre as restantes frações, sem contemplar as frações “C” e “D” (n.º 11).

Este facto resulta, em grande parte, da alegação da Recorrida, inserida num contexto algo diferente do emergente da prova (factos n.º s 10 e 11), como decorre dos artigos 18.º a 20.º da contestação aos embargos de executado (fls. 102).

Trata-se, por outro lado, tal como transparece da sua expressão, de facto meramente hipotético, não correspondendo a nenhuma declaração de vontade da Recorrida, e que tenha sido conhecida do Recorrente antes da constituição da hipoteca.

Por isso, tanto pelo seu contexto como pela sua virtualidade, o circunstancialismo invocado no facto sob o n.º 11, ainda que conjugado com o facto descrito sob o n.º 10 não é suscetível de provocar qualquer efeito jurídico, nomeadamente no sentido da ofensa à boa fé.

Acresce ainda que, quando a Recorrida realizou o cálculo de valores de expurgação da hipoteca constante de fls. 204 (facto n.º 17), a 28 de julho de 2008, as frações “C” e “D” ainda não estavam registadas a favor do Recorrente, pois tal apenas ocorreu em 21 de dezembro de 2009.

Deste modo, os factos provados são, manifestamente, insuficientes para tipificar a ofensa à boa fé, por parte da Recorrida, pelo que não pode senão concluir-se pela exclusão do abuso do direito, conferindo legitimidade à pretensão executiva deduzida pela Recorrida.

De resto, desde logo nos embargos de executado, a alegação do abuso do direito surge baseada mais na invocação de meras presunções de facto do que em factos concretos a consubstanciarem a ofensa à boa fé.

Nestes termos, não se verificando o abuso do direito, único fundamento de oposição à execução, os embargos de executado não podiam senão improceder.

2.4. Nas suas alegações, o Recorrente refere-se ainda, no âmbito da oposição à penhora, ao excesso desta, fundamento desatendido no acórdão recorrido.

Esta questão, de natureza meramente adjetiva, sendo autónoma em relação aos embargos de executado, não se inclui na decisão que conheceu do mérito da causa (embargos de executado), não admitindo, por isso, recurso de revista, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 671.º do CPC.

Neste contexto, não é de conhecer desta parte da revista interposta.

2.5. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. O abuso do direito, consagrado no art. 334.º do Código Civil, corresponde, sobretudo, a uma manifestação concreta do princípio da boa fé.

II. O comportamento, manifestamente atentatório da boa fé, deve ser repudiado pela ordem jurídica, qualificando como ilegítimo o exercício do direito baseado nesse comportamento e obstando à concretização da respetiva pretensão jurídica.

III. Sem a alegada ofensa à boa fé, não se configura abuso do direito, quando o credor hipotecário executa os imóveis hipotecados, adquiridos depois da constituição da hipoteca, na sequência de permuta anteriormente celebrada.

IV. A oposição à penhora, estando excluída do âmbito do mérito da causa (embargos de executado), não pode ser objeto do recurso de revista, nomeadamente nos termos do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

2.6. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

2) Condenar o Recorrente (Executado) no pagamento das custas.

Lisboa, 28 de setembro de 2017

Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Sousa Lameira