Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
325/09.0TRPRT.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
TRANSFERÊNCIA TEMPORÁRIA DA PESSOA PROCURADA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Nos termos da al. g) do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 65/2003, é motivo de recusa facultativa da execução do mandado de detenção europeu (MDE) quando «a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa».

II - O requerido, sendo português e estando a residir em Portugal, poderia beneficiar do disposto nesta norma, relativamente ao MDE para cumprimento de um remanescente de 9 anos de prisão aplicada num Tribunal francês, mas poder-se-ia contrapor, como alguns fazem, que a sentença condenatória ainda não foi sujeita ao processo de revisão em Portugal.

III - Não é assim pois, como se disse no Ac. do STJ de 23-11-2006, proc. 4352/06-5: «O MDE (…) é um instrumento específico que substituiu integralmente o processo de extradição dentro da União Europeia. A Lei nº 65/2003, que o introduziu no nosso ordenamento jurídico, não prevê nenhum processo de revisão da sentença estrangeira, pois tal seria absolutamente contraditório com a razão de ser e função do MDE. O Título IV da Lei nº 144/99, de 31-8, não tem aplicação ao MDE, pois constitui a “lei geral” de cooperação judiciária penal, ao passo que a Lei nº 65/2003 constitui “lei especial”. Mas a que “lei portuguesa” se refere a parte final da al. g) do nº 1 da Lei nº 65/2003? Obviamente à lei de execução das penas ou medidas de segurança! Ou seja, o Estado da execução deve aceitar a condenação nos seus precisos termos, mas tem o direito de executar a pena ou a medida de segurança de acordo com a lei nacional. É uma reserva de soberania quanto à execução. É isso e apenas isso que estabelece a parte final do preceito».

IV - A decisão recorrida, porém, apresenta um outro óbice que, alegadamente, impossibilitaria o cumprimento daquela pena em Portugal, que é a circunstância de o requerido, para além do MDE para cumprimento de pena, ter contra si um outro MDE emitido pelo Tribunal de Grande Instance de Bobigny a fim de se submeter a procedimento criminal pelos factos que terá praticado em 16.01.2009.

V - Esse não é, também, um verdadeiro obstáculo, pois o art.º 6º da Lei n.º 65/2003, permite a transferência temporária e audição da pessoa procurada na pendência do processo de execução do mandado de detenção europeu, as vezes que sejam necessárias, para que o extraditando seja julgado, pelo crime que o espera, na Grande Instance de Bobigny, cumprindo depois em Portugal – em caso de condenação - a pena aí aplicada.

VI - Para além da verificação dos requisitos formais do motivo de recusa facultativa de execução do MDE, a que se reporta o art.º 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003, há que reconhecer que, no caso em apreço, tal se justifica também por prementes razões de saúde do requerido, isto é, por razões humanitárias.

VII - Em suma, é de decidir o seguinte:
a) Recusar a entrega do requerido pelo mandado de detenção europeu emitido pelo Tribunal de Aplicação dos Castigos de Metz para cumprimento do remanescente da pena aplicada (MDE com a referência n.º 200600146511), mas garantir que o Estado português se compromete a fazer cumprir essa pena em Portugal;
b) Ordenar que o cumprimento dessa pena se faça nas Varas Criminais do Porto, onde este processo será distribuído e onde se providenciará pela obtenção urgente dos elementos necessários para tal fim, sem necessidade de prévia revisão da sentença estrangeira;
c) Permitir a transferência temporária e audição do requerido em França, as vezes que sejam necessárias e com condições acordadas previamente entre as autoridades judiciárias francesas e portuguesas, para que o extraditando seja julgado pelo crime a que alude o mandado de detenção europeu com a referência n.º B09033221102, emitido pela Grande Instance de Bobigny, cumprindo depois em Portugal – em caso de condenação - a pena aí aplicada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Por Acórdão de 21 de Outubro de 2009, o Tribunal da Relação do Porto determinou a execução definitiva dos dois mandados de detenção europeus emitidos contra o arguido A, ordenando-se o seu cumprimento em dez dias, com entrega após trânsito em julgado, às autoridades francesas, primeiro, ao Tribunal de Aplicação dos Castigos de Metz para cumprimento do remanescente da pena aplicada (MDE com a referência n.º ...) e, após esse cumprimento, ao Tribunal de Grand Instance de Bobigny para procedimento criminal (MDE com a referência n.º ....).
Efectivamente, em cumprimento de um Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido no dia 22/07/2009 pelo Juiz de Instrução junto do Tribunal de Grande Instância de Bobigny, França, foi o cidadão português A detido no dia 15 de Setembro do corrente ano, no Porto. Apresentado o detido no Tribunal da Relação, foi submetido a interrogatório e foi-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
No dia 21 do mesmo mês deu entrada naquele tribunal o Mandado de Detenção Europeu constante de fls. 39 e seguintes dos presentes autos, contra o mesmo requerido, mandado este remetido directamente pelo Procurador da República junto do Tribunal de Grande Instância de Metz, França, pois em 20/01/2009, o Senhor Juiz da Aplicação dos Castigos de Metz, França, havia emitido um mandado de captura contra o requerido, mandado este para efeitos de cumprimento da pena remanescente de 9 anos de detenção criminal.

Face ao recebimento deste novo Mandado de Detenção Europeu, o M.º P.º junto da Relação do Porto requereu a ampliação do pedido de entrega, pedindo a audição urgente do requerido sobre os novos factos constantes deste segundo MDE, o que foi efectuado.

Pelo referido acórdão, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, «...determinar a execução definitiva dos dois mandados de detenção europeus contra o arguido A…».

2. Desse Acórdão recorre agora o requerido para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, retira as seguintes conclusões:
1ª- Da leitura do art.º 13° da L 65/03 resulta que a execução do MDE só terá lugar se o Estado Membro de Emissão assegurar a aplicação das garantias previstas nas suas 3 (três) alíneas.
2ª- Ora, a confirmação de tais garantias não pode resultar de actos tácitos, mas sim de previsão expressa, no MDE, aquando da sua emissão.
3ª- Não podendo bastar ao Estado de Execução que o sistema jurídico interno do Estado de Emissão as preveja.
4ª- Tem o Estado de Execução que vai decidir da entrega de uma pessoa, com rigor, que saber se essas garantias do ordenamento interno do Estado de Emissão se aplicam à pessoa procurada.
5ª- Nesse sentido não será casual a utilização do verbo "prestar” naquele artigo, exigindo cabalmente a demonstração expressa da verificação das garantias a aplicar á pessoa procurada.
6ª- O que apenas se compreende, no nosso caso, considerando a necessidade de assegurar a manutenção das garantias constitucionais, nomeadamente quando se coloca a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão perpétua, que a CRP recusa e rejeita cabalmente.
7ª- Exigência que deve ser expressa, dado também o texto do Anexo à L 65/03, que no ponto h) do Formulário do MDE aplicável, a apresentar ao Estado de Execução, se consagra claramente o espaço para que o Estado Emissor assinale as garantias que presta.
8ª- Assim, não se bastou nem o texto do lei nem o respectivo Formulário em deixar á consideração do Estado de Execução saber se o Estado de Emissão dispõe de mecanismos na sua ordem interna que assegurem aquelas garantias, exigindo-se que as mesmas constem expressamente do texto do MDE.
9ª- Ora, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, o Estado Emitente não EXPRESSOU qualquer garantia: a fls. 26 e respectiva tradução a fls. 32, verifica-se que em "PRÉCISEZ LES GARANTIES JURIDIQUES°" ("DETALHAR AS GARANTIAS JURÍDICAS"), nada foi inscrito, tendo o espaço destinado a tal detalhe sido deixado em branco;
10ª- Ou a fls. 29 e respectiva tradução a fls. 35, onde a identificação das garantias a PRESTAR não se encontra sequer assinalada;
11ª -O mesmo acontecendo, ao invés do que menciona o Acórdão ora recorrido, a fls. 42 e 45, cujos respectivos pontos d) e h) foram omitidos das respectivas traduções a fls. 48 e 49 respectivamente.
12ª- Assim, não se encontram devidamente prestadas as garantias aplicáveis in casu, previstas no artigo 13° da referida L 65/03,
13ª- Motivo pelo qual a Execução dos presentes MDE não poderá ter lugar, devendo o Acórdão recorrido ser substituído por outro em conformidade.
14ª- Ainda que assim não se entenda, e, sem prescindir.
15ª- O Detido é Cidadão Português, foi detido em solo Português e reside em Portugal, com os seus familiares, sofrendo ainda de uma situação de saúde muito débil, face aos vários problemas que lhe foram diagnosticados e que têm vindo a deteriorar a sua condição física.
16ª- Factores que consubstanciam motivo de recusa facultativa de Execução do MDE previsto pela al. g) do art. 12º da L 65/03, e que o Tribunal a quo entende não se verificar, por entender que se desconhece "completamente o teor da sentença condenatória a executar...".
17ª- Porém, entende o Recorrente, tal desconhecimento não pode aproveitar ao Tribunal para se eximir à responsabilidade de considerar o mesmo através dos requisitos de que lei o faz depender e é certo que a Lei não faz depender a sua aplicação do conhecimento da pena que foi aplicada anteriormente;
18ª- Assim, o motivo de recusa facultativa de Execução do MDE baseia-se na nacionalidade, no local da detenção e na garantia de poder o Estado Português, in casu, substituir-se na aplicação da pena de prisão já aplicada.
19ª- Não em qualquer outro, pelo que a não aplicação deste motivo de recusa não pode decorrer do desconhecimento do quantum da pena mas sim e APENAS da não verificação de qualquer daqueles requisitos.
20ª- Pelo que o Acórdão recorrido apresenta uma notória contradição entre a fundamentação e a decisão final,
21ª- Por outro lado, e tal como veicula o Ac. STJ de 10/09/09 no P. 134/09.6YREVR, in www.dgsi.pt, compete ao Estado de Execução aferir da possibilidade de decidir pela aplicação do motivo de recusa facultativo, cabendo-lhe estabelecer os critérios que permitem a integração da norma.
22ª- O que deverá acontecer na unidade do sistema nacional e, em suma, o Tribunal "deveria verificar se perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades de execução da pena, se justificaria a recusa de execução do mandado [...] Não se tendo pronunciado sobre tais pressupostos, o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja a existência de causa de recusa facultativa de execução”.
23ª- Aliás, refere aquele Acórdão do STJ que se vem citando: "a competência para decidir se está verificada uma causa de recusa de execução pertence ao tribunal, uma vez que o regime do MDE está inteiramente jurisdicionalizado, não estando prevista qualquer intervenção ou competência prévia…o Tribunal é o órgão do Estado...competente para determinar a execução da pena em Portugal como condição de recusa facultativa de execução”.
24ª- No mesmo sentido o Ac. STJ de 23/11 /06 na P. 06P4352, o Ac. STJ de 27/04/06 no P. 06P1429, o Ac. STJ de 15/06/06 no P. 06P782, todos in www.dgsi.pt, ou o Ac. STJ de 22/03/07 no P. 1043/07, in Base de Dados Jurídicos da JURISDATA, que refere "na oposição à Execução do MDE, n Quadro da recusa facultativa e sendo alegados factos que possam integrar uma dessas causas de recusa, deve o Tribunal da Relação pronunciar-se sobre os mesmos, ..., sob pena de omissão de pronúncia.".
25ª- Motivo pelo qual, com estes fundamentos, caberia ao Tribunal a quo verificar se se justificaria a recusa de Execução do MDE por se encontrarem vantagens no cumprimento da pena em Portugal, nomeadamente pelo devido enquadramento da situação, e das suas condições de vida, o que não aconteceu.
26ª- Ora, tendo em atenção o que vem de dizer-se, sempre deveria ter-se atendido à condição física do ora Recorrente que sofre de uma hemiparesia direita sequelar por AVC e carcinoma prostático com várias debilidades daqui decorrentes, como elevado PSA, metatização difusa óssea e ureterohodronefrose esquerda e metastização cerebral frontal.
27ª- Patologias sujeitas e submetidas a tratamentos urgentes, que se traduzem actualmente numa situação grave, irreversível e terminal da saúde do ora Recorrente.
28ª- Desta forma o Acórdão recorrido enferma de Nulidade -art. 379º n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal - devendo ser substituído por Acórdão que se pronuncie sobre o cumprimento da pena de prisão remanescente em que o recorrente foi condenado, em Território Português.
29ª- Ainda que assim se não entenda e sem prescindir,
30ª- Prescreve o n.º 4 do art. 29° da L 65/03 que "a entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios par considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada”.
31ª- Ora, resulta dos autos, que o ora Recorrente padece de patologias que debilitaram de forma definitiva a sua condição física, estando sujeito a um permanente acompanhamento e à realização permanente de diagnósticos e tratamentos, encontrando-se em período de tratamento e convalescença,
32ª- Junto da sua família mais próxima de quem recebe visitas e conforto diário, imprescindíveis para a sua recuperação.
33ª- Ora, a Execução dos MDE e a consequente entrega às autoridades judiciárias francesas, para além de forçarem o ora Recorrente ao abandono pessoal, e provocarem a ausência de qualquer conforto humano,
34ª- Permite perceber que a deslocação exigida, a ausência dos tratamentos a que actualmente está sujeito, ainda que momentânea, e o tempo de espera para a realização dos mesmos, poderão resultar em lesões irreversíveis na sua já débil condição física e inviabilizar a sua recuperação.
35ª- Pelo que parece demonstrado que existem "motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vido ou a saúde da pessoa procurado”.
36ª- Desta forma, deveria também o Tribunal a quo ter-se pronunciado sobre a presente questão, o que, a não o ter feito, constitui omissão de pronúncia sobe matéria que deveria conhecer e logo, a nulidade do Acórdão recorrido, especialmente por ter o Recorrente requerido a lis. 288 a realização de Perícias Médicas e de Personalidade.
37ª- De facto, a não admissão das mesmas, porquanto caberia ao Tribunal a quo aferir de forma séria da aplicação daquele mecanismo da suspensão temporária da entrega, e salvaguarda humanitária previsto no n.º 4 do art. 29° da L 65/03, de forma a com ela não onerar a condição física do Recorrente, constitui a ausência de obtenção de elementos que permitem a correcta avaliação da situação daquele e da possibilidade de a Execução do MDE não vir a agravar a sua condição física.
38ª- Tendo deixado de se pronunciar sobre a referida questão que lhe foi colocada e que, dada a jurisdicionalização do presente tipo de Procedimento, é da sua responsabilidade,
39ª- Cabendo-lhe também, como órgão de Soberania, zelar pelo cabal cumprimento dos Direitos, Liberdades e Garantias previstos no CRP, nomeadamente pelo direito previsto no art. 26° daquele Texto Fundamental que refere que "a integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
40ª- Ora, a ausência de elementos rapazes de elucidar o Tribunal o quo sobe os perigos para a condição física do Recorrente da Execução imediata do MDE não deveria restringir a sua actuação no sentido de os obter, por meio de assegurar a defesa daquele Direita Constitucional de um cidadão seu.
41ª- Desta forma, e ainda que se não entenda diferentemente quanto a decisão de Execução do MDE, também nesta medida deverá ser corrigido e substituído o Acórdão Recorrido e admitida a SUSPENSÃO TEMPORÁRIA daquela EXECUÇÃO, por consubstanciar a mesma um risco muito sério para a estabilidade da condição física do ora Recorrente, traduzindo-se esta correcção e substituição na defesa de princípios constitucionalmente consagrados, e na concretização da defesa de valores humanitários assumidos pela nossa lei Fundamental.
42ª- Violou, pois, a decisão recorrida, o art. 26° da Constituição da República Portuguesa e os artigos 12°, 13° e 29° da lei 65/03 de 23 de Agosto.
Termos em que, nestes termos e nos mais de Direito cujo douto suprimento de V. Exas. se REQUER,
Julgado o presente RECURSO procedente por provado, deve o Acórdão Recorrido ser revogado e substituído por outro que, nos termos legais:
A) Consagre a Não Execução dos MDE por ausência da concretização das Garantias a prestar nos termos do art. 13° da L 65103 e
B) Consagre o Mecanismo de Recusa Facultativa de Execução dos MDE, nos termos do art. 12°, n.º 1 al. g) daquele diploma ou
Subsidiariamente, se assim não se entender:
C) Consagre o mecanismo de Protecção Humanitária previsto no n.º 5 do art. 29° da L 65/03, suspendendo-se temporariamente a Execução dos MDE.

3. O M.º P.º respondeu ao recurso e concluiu:
a) não enferma a decisão recorrida das nulidades arguidas de omissão de pronúncia;
b) encontra-se devidamente prestada a garantia de não aplicação de prisão perpétua pelo Tribunal de Grand Instance de Bobigny, nada obstando a que o tribunal determinasse a execução do mandado para procedimento criminal, como o fez.
c) face à impossibilidade de recusa da execução do MDE para procedimento criminal e nada mais havendo que leve a considerar-se verificada a causa de recusa facultativa de execução do MDE para cumprimento de pena, e
d) não se encontrando ainda comprovado que a entrega imediata do recorrente colocará manifestamente em perigo a sua vida ou a sua saúde, não se pode concluir pela existência de motivos humanitários graves que determinem a suspensão temporária da sua entrega, ao abrigo do art. 29.° n.º 4 da Lei n.º 65/03
e) muito bem andou o tribunal ao determinar a execução definitiva dos dois MDE, determinando a entrega do recorrente às autoridades francesas.


4. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir.

As questões principais a decidir são as seguintes:
1ª- As autoridades francesas prestaram as garantias a que se reporta o art.º 13.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto?
2ª- Ocorre causa de recusa facultativa da execução dos mandados e a esse respeito há nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia?
3ª- Existem motivos humanitários graves que determinam a suspensão temporária da entrega do requerido?

FACTOS ASSENTES

Dos autos resultam assentes os seguintes factos:

1. O Mandado de Detenção Europeu com a referência n.º ... emitido em 07.07.2009 pelo Juiz de Instrução junto do Tribunal de Grande Instância de Bobigny visa a sujeição do requerido a julgamento por factos ocorridos em 16.01.2009.

2. Da descrição sumária dos factos referida no MDE consta que, na data supra aludida, o requerido interpelou B, companheiro da sua ex-esposa, ao qual apontou uma arma de punho, disparando na sua direcção, sem contudo o atingir.

3. Os factos descritos integram, de acordo com a lei francesa, o crime de tentativa de assassinato p. e p. nos art.ºs. 121/5, 221-3, 221-8, 221-9, 221-11 do Cód. Penal francês, infracção passível de ser punida com pena de prisão perpétua;

4. O sistema jurídico francês prevê a revisão de pena - a pedido do condenado ou, o mais tardar, decorridos 20 anos - ou a aplicação de medidas de clemência, com vista à não execução daquela pena.

5. O Mandado de Detenção Europeu com a referência n.º ... emitido em 20.01.2009 pelo Juiz de Aplicação de Castigos de Metz, visa o cumprimento da pena de 9 (nove) anos de detenção criminal, correspondente ao remanescente da pena de quinze anos de detenção criminal aplicada ao requerido A em 24 de Maio de 2006, pelo Tribunal de Júri de Paris.

6. Da descrição sumária dos factos referida no MDE consta que no dia 10 de Novembro de 2003, o requerido disparou três balas de calibre 6,35 mm sobre a sua ex-companheira, C, atingindo-a numa zona vital, não tendo porém causado a morte da vítima.

7. Os factos descritos em 6. integram, segundo a lei francesa, um crime de tentativa de homicídio p. e p. nos art.ºs 121-4, 121-5, 221-1, 221-3, 2218, 221-9, 221-9-1 e 221-11 do Código Penal.

8. Foi concedido ao requerido o benefício da suspensão do castigo por razões medicais, a contar do dia 03 de Março de 2008, com a obrigação de fixar domicílio em D.

9. Após a prática dos factos descritos sob o ponto 2., o requerido não mais voltou para D.

10. O requerido tem nacionalidade portuguesa (Bilhete de Identidade n.º 01212902 0, emitido em 10.08.2000), foi detido pela Polícia Judiciária pelas 18 horas do dia 15.09.2009, junto ao serviço de Oncologia do Hospital de S. João desta cidade do Porto e tem residência habitual na Av. E.

11. O requerido tem 70 anos de idade, sofre de hemiparesia direita sequelar há 10 anos por acidente vascular cerebral, com diagnóstico de carcinoma prostático desde 1999, tendo sido sujeito a radioterapia prostática e bloqueio hormonal total e ressecção transuretral desobstrutíva em 2006; o carcinoma prostático encontra-se em fuga hormonal desde 2008, apresentando o requerido neste momento Psa elevado (254), metastização difusa óssea e ureterohidronefrose esquerda e estenose da uretra bulbar.

12. O requerido iniciou no dia 01.10.2009 quimioterapia, estando agendados novos tratamentos no Hospital de Dia do Hospital de S. João do Porto a cada 21 dias.


GARANTIAS A PRESTAR PELO ESTADO DA EMISSÃO DOS MANDADOS

O mandado de detenção europeu (MDE) é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (art.º 1.º, n.º 1, do Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto). O mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho (n.º 2).
Trata-se de um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros suprimindo o recurso à extradição, pelo que os seus procedimentos são expeditos e com prazos reduzidos, embora com total salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa.
A lei prevê causas de recusa obrigatória de execução do mandado (art.º 11.º) e outras que são de recusa facultativa (art.º 12.º).
Ora, a pessoa procurada foi ouvida no Tribunal da Relação do Porto, nos termos do art.º 18.º, da Lei n.º 65/2003, de 23-8, tendo declarado não consentir na entrega e não renunciar à regra da especialidade.
Tempestivamente, apresentou oposição aos dois mandados remetidos pelas autoridades francesas e, corridos os termos legais, a Relação decidiu a entrega do requerido, nos termos já referidos no relatório, contra a qual este último reagiu agora pelo recurso para o STJ.

O primeiro ponto de discordância do recorrente respeita à circunstância de, alegadamente, o Estado francês não ter prestado as garantias referidas no art.º 13.º da Lei nº 65/2003, argumento esse que o acórdão recorrido não aceitou como válido.
Ora, importa notar que contra o recorrente foram emitidos dois MDE:
1º- O Mandado de Detenção Europeu com a referência n.º ... emitido em 20.01.2009 pelo Juiz de Aplicação de Castigos de Metz, que visa o cumprimento da pena de 9 (nove) anos de detenção criminal, correspondente ao remanescente da pena de quinze anos de detenção criminal aplicada ao requerido A em 24 de Maio de 2006, pelo Tribunal de Júri de Paris, pela prática de um crime de tentativa de homicídio.
2º- O Mandado de Detenção Europeu com a referência n.º ... emitido em 07.07.2009 pelo Juiz de Instrução junto do Tribunal de Grande Instância de Bobigny, que visa a sujeição do requerido a julgamento por factos ocorridos em 16.01.2009, factos que integram, de acordo com a lei francesa, o crime de tentativa de assassinato p. e p. nos art.ºs 121/5, 221-3, 221-8, 221-9, 221-11 do Código Penal Francês, infracção passível de ser punida com pena de prisão perpétua.

Neste ponto das suas alegações, o recorrente reporta-se, indistintamente, aos dois mandados, mas há que fazer distinção, para se perceber o que está efectivamente em discussão.
É que o referido art.º 13.º, nas suas três alíneas, prevê quais as garantias a prestar pelo Estado membro de emissão em determinados casos especiais, casos que nesta situação concreta não se verificam quanto à primeira dessas alíneas [MDE para execução de pena aplicada em processo de ausente] e quanto à última [garantias pedidas pelo Estado membro da execução ao Estado membro da emissão, de devolução do requerido, após cumprir a pena ou a medida de segurança], pelo que a questão só se põe quanto à alínea b).
Nesta diz-se que «Quando a infracção que motiva a emissão do mandado de detenção europeu for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com carácter perpétuo, só será proferida decisão de entrega se estiver prevista no sistema jurídico do Estado membro de emissão uma revisão da pena aplicada, a pedido ou o mais tardar no prazo de 20 anos, ou a aplicação das medidas de clemência a que a pessoa procurada tenha direito nos termos do direito ou da prática do Estado membro de emissão, com vista a que tal pena ou medida não seja executada».
Ora, esta garantia prevista na alínea b) do art.º 13.º só deve ser prestada nos casos em que o MDE tem por finalidade o procedimento criminal no Estado membro da emissão, pois se a pena ou a medida de segurança já aí estão aplicadas, de duas uma, ou foi aplicada uma pena de prisão ou medida de segurança com carácter perpétuo, caso em que a execução tem de ser recusada, por não ser permitida pela nossa ordem constitucional (art.º 33.º, n.º 4, da CRP), ou não o foi e, então, a questão nem se coloca.
Daqui se retira que, no caso dos autos, só temos de averiguar se o MDE com a referência n.º ... contém aquela garantia prevista na alínea b) do art.º 13.º, pois o MDE com a referência n.º .... visa o cumprimento de uma pena já aplicada e esta não tem carácter perpétuo.


Essa a razão pela qual o tribunal recorrido só se pronunciou sobre se a garantia estava inscrita no MDE n.º ..., nos termos que a seguir se transcrevem:
«No mandado de detenção europeu (original) apresentado pelo Estado Francês, emitido pelo Juiz de Grande Instance de Bobigny e que visa a sujeição do arguido a procedimento criminal por crime de tentativa de homicídio ocorrido em 16.01.2009 mostra-se prestada a garantia formal de que o sistema jurídico francês prevê a revisão da pena de prisão com carácter perpétuo aplicada – a pedido ou, o mais tardar, decorridos 20 anos -, bem como a aplicação de medidas de clemência) com vista a que tal pena não venha, na prática, a ser executada (cfr. MDE, a fls. 45).
Garantia essa que não é dada apenas pelas autoridades judiciárias - contrariamente ao alegado pelo arguido - mas que resulta também, expressamente, do disposto no art.º 729.º do Código de Processo Penal francês, em que se estipula que, decorrido um período de prova, que, para os condenados em prisão perpétua, é de 15 anos, pode ser-lhe concedida liberdade condicional.
Ou seja, em conformidade com o direito interno francês e que é também a sua prática nacional em matéria de execução das penas, as autoridades francesas promovem todos os benefícios de execução que puderem ser concedidos a favor das pessoas condenadas em penas de prisão perpétua, nomeadamente, a possibilidade de concessão de liberdade condicional quando estiverem cumpridos 15 anos de prisão nos termos do art. 729.º do Código de Processo Penal francês. Aliás, tal como informa ainda L... S... P... (1), mesmo no âmbito da execução prática do sistema de extradição, em quase todos os Estados da União Europeia nunca ninguém alguma vez cumpriu, por inteiro, a pena de prisão perpétua. Acresce que o requerido sempre poderá, ainda, beneficiar duma comutação de pena, "medida de clemência cuja competência está reservada em exclusivo ao Presidente da República e que consiste em substituir uma pena de prisão perpétua por uma pena de prisão de duração limitada, o que permite ao condenado beneficiar de reduções da pena e de perdões previstos pelo sistema jurídico francês, conforme resulta da garantia prestada a fls. 45 destes autos.
Por outro lado, dos estudos elaborados pela Direcção da Administração Penitenciária do Ministério da justiça Francês resulta que a grande maioria dos condenados a pena de prisão perpétua beneficia da comutação da pena, sendo relativamente reduzido o tempo de encarceramento depois da concessão de tal medida de clemência.
Poder-se-á, pois, afirmar que a prática do Estado Francês é a da concessão da liberdade condicional, sendo grande a possibilidade de a pessoa entregue em execução de um mandado de detenção europeu poder vir a usufruir da comutação da pena.
Razão por que se entende, assim, que face ao disposto no art.º 13° alínea b) da Lei no 65/2003, de 23 de Agosto, se deve ter como suficiente a garantia de que a pena de prisão perpétua que, eventualmente, venha a ser aplicada ao arguido não será executada.»


Pela leitura do MDE com a referência n.º B09033221102, no original a fls. 24-30 e tradução a fls. 31-36, verifica-se que nele está prestada expressamente a garantia de que o sistema jurídico francês prevê a revisão da pena de prisão com carácter perpétuo que venha a ser aplicada – a pedido ou, o mais tardar, decorridos 20 anos - bem como a aplicação de medidas de clemência, com vista a que tal pena não venha, na prática, a ser executada.
Assim é, com efeito, como se vê pela tradução a fls. 35:
«h)[083] a infracção a que se refere este mandado é passível de uma pena de prisão perpétua:
O sistema jurídico do Estado membro emissor prevê uma revisão da pena – a pedido da pessoa ou passados 20 anos – com o objectivo de não cumprimento da pena ou medida
e/ou
o sistema jurídico francês aplica medidas de clemência previstas pela lei para o não cumprimento da pena»

Deste modo, a garantia foi prestada nos termos legais e improcede esta primeira alegação do recorrente.

RECUSA FACULTATIVA

Nos termos da al. g) do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 65/2003, é motivo de recusa facultativa da execução do MDE quando «a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa».

Os pressupostos de aplicação podem enumerar-se assim:

a) A pessoa procurada encontrar-se em território nacional;
b) Tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal;
c) Ter sido o MDE emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança;
d) Comprometer-se o estado Português a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.
Daqui se vê que quanto ao MDE com a referência n.º ... a invocada causa de recusa facultativa não pode proceder, pois tal MDE destina-se a finalidades relativas ao procedimento criminal, enquanto que a citada al. g) só se reporta aos MDE para execução de uma pena já aplicada.

Por isso, há que verificar se procede o motivo de recusa facultativa quanto ao MDE com a referência n.º ... emitido em 20.01.2009 pelo Juiz de Aplicação de Castigos de Metz, que visa o cumprimento da pena de 9 (nove) anos de detenção criminal, correspondente ao remanescente da pena de quinze anos de detenção criminal aplicada ao requerido.

A verificação das três primeiras condições não é questionada pelo acórdão recorrido. Mas este considerou não verificado o motivo de recusa facultativa da execução com os seguintes fundamentos:

«A propósito desta causa de recusa facultativa, não é pacífico o entendimento dos Tribunais superiores. Enquanto o Supremo Tribunal de Justiça vem sustentando que a adopção do regime do MDE envolve a consideração de uma modificação radical na verificação dos requisitos de que depende a execução das sentenças penais estrangeiras em Portugal, chegando mesmo a considerar que a decisão pela qual o tribunal português recusa a execução do MDE, com este fundamento, deve simultaneamente ordenar o cumprimento da pena aplicada no processo estrangeiro pelo tribunal nacional para o efeito competente (2), a Relação de Coimbra (3)sustenta que só após a revisão e confirmação da sentença confirmatória estrangeira é passível ao Estado Português comprometer-se a executar a pena ou medida de segurança ali imposta, o que quer dizer que, não havendo a revisão e confirmação, não poderá haver recusa de execução do mandado de detenção europeu, acrescentando que é ao condenado que cabe a iniciativa de, com base na Convenção Relativa á Transferência de Pessoas Condenadas, requerer a revisão e confirmação dessa sentença estrangeira.

Como refere o Sr. Proc. da República L... S... P... (4) "Terá o legislador conduzido o aplicador do direito a um verdadeiro beco sem saída já que, neste caso, não pode recusar a execução do MDE sem oferecer um compromisso de execução da sentença condenatória e, simultaneamente não pode assumir esse compromisso porque está dependente de a sentença ser sujeita a um processo de revisão e confirmação?"

Analisadas as posições em confronto, concordamos com a sugestão deste autor, quando conclui que "restará à autoridade judiciária portuguesa, enquanto autoridade judiciária de execução, depois de constatar estarem reunidos todos os outros requisitos de que depende o exercício deste motivo de recusa facultativo, averiguar da existência de uma séria probabilidade de vir a ser obtida a revisão e confirmação da sentença estrangeira subjacente à emissão do MDE (utilizando para o efeito os meios que entender adequados e que o art.º 16.º n.º 3 da Lei n.º 65/2003 lhe proporciona). Exercida essa faculdade, incumbirá de seguida ao Ministério Público, enquanto órgão garante da legalidade, de forma oficiosa e obrigatória, o despoletar deste procedimento nos termos do arte 236 do CPP, com vista a honrar o compromisso assumido por aquela em nome do Estado Português".

No caso sub-judice, não obstante se verificarem reunidos os requisitos formais a que alude a al. g) do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 65/2003, desconhece-se completamente o teor da sentença condenatória a executar, bem como as condições em que terá sido concedida, e posteriormente revogada, a liberdade condicional ao arguido, bem como o tempo que, em concreto, lhe falta cumprir.

Por outro lado, a circunstância de se determinar a sua entrega às autoridades francesas ao abrigo do MDE emitido pelo Tribunal de Grande Instance de Bobigny a fim de o mesmo se submeter a procedimento criminal pelos factos que terá praticado em 16.01.2009, obsta, pelo menos por ora, à possibilidade de cumprimento daquela pena em Portugal.

Pelo exposto, entende-se não se verificar, em concreto, motivo de recusa facultativa de execução do MDE emitido pelo Juiz de Aplicação dos Castigos de Metz.»

Como se vê, não há nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto às existência da causa de recusa facultativa de execução do mandado destinado a executar uma pena já aplicada.

Mas, poderá o Estado português comprometer-se a executar, de acordo com a lei portuguesa, a pena aplicada ao requerido em França, a que se reporta o MDE com a referência n.º ... emitido em 20.01.2009 pelo Juiz de Aplicação de Castigos de Metz?

O argumento de que a sentença do tribunal francês não é, desde já, exequível, pois a referência à “lei portuguesa”, constante da parte final da citada al. g), significa a necessidade de sujeição da sentença exequenda ao processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, previsto no art. 234º do CPP, não pode proceder.

Como bem se disse no Ac. do STJ de 23-11-2006, proc. 4352/06-5 (relatado pelo Cons. Maia Costa):

«Não é essa, porém, seguramente a única, nem certamente a melhor, interpretação da lei. Na verdade, como se viu atrás, o MDE é um instrumento especial de cooperação judiciária, restrito ao espaço da União Europeia e assente no princípio do reconhecimento mútuo. A revisão da sentença estrangeira, como o processo de extradição, baseiam-se, ao invés, precisamente na ideia de “suspeição” ou, no mínimo, de dúvida em relação ao pedido, precisamente porque proveniente de Estado relativamente ao qual não vigora o princípio do reconhecimento mútuo, e daí a necessidade de rever e confirmar a sentença estrangeira ou de avaliar com rigor o pedido de extradição.

O MDE, insiste-se, é um instrumento específico que substituiu integralmente o processo de extradição dentro da União Europeia. A Lei nº 65/2003, que o introduziu no nosso ordenamento jurídico, não prevê nenhum processo de revisão da sentença estrangeira, pois tal seria absolutamente contraditório com a razão de ser e função do MDE. O Título IV da Lei nº 144/99, de 31-8, não tem aplicação ao MDE, pois constitui a “lei geral” de cooperação judiciária penal, ao passo que a Lei nº 65/2003 constitui “lei especial”.

Mas a que “lei portuguesa” se refere a parte final da al. g) do nº 1 da Lei nº 65/2003? Obviamente à lei de execução das penas ou medidas de segurança! Ou seja, o Estado da execução deve aceitar a condenação nos seus precisos termos, mas tem o direito de executar a pena ou a medida de segurança de acordo com a lei nacional. É uma reserva de soberania quanto à execução. É isso e apenas isso que estabelece a parte final do preceito.

Parece envolver alguma perplexidade para o recorrente o facto de o “compromisso” a que se refere o citado preceito vir a ser assumido pelo próprio Tribunal da Relação. Mas isso não pode suscitar qualquer dúvida, atenta a judicialização do procedimento a que atrás se aludiu. O Tribunal da Relação, enquanto órgão de soberania, é o órgão do Estado Português a que a lei defere a competência para comprometer (ou não) o Estado na execução da sentença em Portugal.

Aliás, a “proposta” do recorrente conduziria a um verdadeiro impasse na cooperação comunitária. Propõe ele, de facto, que se mantenha a recusa de execução do MDE, “sem prejuízo de a sentença penal francesa, oportunamente, vir a ser executada em Portugal, de acordo com a lei portuguesa”, ou seja, depois de revista e confirmada. Daí resultaria uma situação de indefinição quanto ao cumprimento do MDE e da pena. No caso de a sentença não ser revista e confirmada, o MDE seria deferido? Manter-se-ia a recusa? Com que fundamento? Mesmo no caso de “oportuna” revisão, não constituiria o arrastamento da situação e consequente incerteza para o tribunal do Estado-Membro emissor do MDE um elemento de perturbação de uma cooperação judiciária fundada no princípio do reconhecimento mútuo?

O MDE, insiste-se mais uma vez, foi criado como instrumento expedito e simplificado de cooperação penal entre Estados que confiam entre si. Esse carácter simplificado e expedito, próprio de uma cooperação que procura a eficácia sob pena de falhar os seus próprios objectivos, repudia a criação de incertezas e impasses quanto ao desenrolar do processo. A recusa do MDE, nos termos da citada al. g), só pode legitimar-se na vontade clara e prontamente expressa do Estado Português em, ele próprio, promover a execução da pena (ou medida de segurança). Se o tribunal português recusa a execução do MDE tem de imediatamente ordenar o cumprimento da pena pelo tribunal competente para o efeito. Foi o que fez o Tribunal recorrido.

A recusa facultativa, como já decidiu este STJ (Ac. de 17-03-2005, rec. 1135/05-5, relator Cons. Pereira Madeira), «não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de, decerto, assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente».

Dir-se-á, tal como o faz a decisão recorrida, que se desconhece completamente o teor da sentença condenatória a executar, bem como as condições em que terá sido concedida, e posteriormente revogada, a liberdade condicional ao arguido, bem como o tempo que, em concreto, lhe falta cumprir.

Mas isso não é completamente exacto e não há um verdadeiro óbice para a imediata execução da pena em Portugal, de acordo com a lei portuguesa de execução.

Na verdade, sabe-se que o requerido tem de cumprir um remanescente de 9 anos de prisão, após ter sido revogada a liberdade condicional de que beneficiava, por pena de 15 anos de prisão aplicada em França. Tanto basta para que possa iniciar desde já, em Portugal, o cumprimento dessa pena remanescente, pois com os meios expeditos de comunicação que hoje existem, será possível ao tribunal a quem competir a execução obter, atempadamente, todos os elementos necessários para uma completa e exaustiva avaliação, tal como certidão das sentenças francesas de condenação e revogação da liberdade condicional – sem necessidade de revisão face à lei portuguesa, como se explicou – e todos os elementos para liquidação de pena, esta, em todo o caso, fixada no remanescente de 9 anos de prisão.

A decisão recorrida, porém, apresenta um outro óbice que, alegadamente, impossibilitaria o cumprimento daquela pena em Portugal, que é a circunstância de também se determinar a entrega do requerido às autoridades francesas ao abrigo do MDE emitido pelo Tribunal de Grande Instance de Bobigny a fim de o mesmo se submeter a procedimento criminal pelos factos que terá praticado em 16.01.2009.

Esse não é, também, um verdadeiro obstáculo, pois há uma norma no regime jurídico do mandado de detenção europeu, relativa à transferência temporária, que permite solucionar o problema. Na verdade, o art.º 6º da Lei n.º 65/2003, permite a transferência temporária e audição da pessoa procurada na pendência do processo de execução do mandado de detenção europeu, as vezes que sejam necessárias, para que o extraditando seja julgado, pelo crime que o espera, na Grande Instance de Bobigny, cumprindo depois em Portugal – em caso de condenação - a pena aí aplicada.

Para além da verificação dos requisitos formais do motivo de recusa facultativa de execução do MDE, a que se reporta o art.º 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003, há que reconhecer que, no caso em apreço, tal se justifica também por prementes razões de saúde do requerido.

Na verdade, está provado que o requerido tem 70 anos de idade, sofre de hemiparesia direita sequelar há 10 anos por acidente vascular cerebral, com diagnóstico de carcinoma prostático desde 1999, tendo sido sujeito a radioterapia prostática e bloqueio hormonal total e ressecção transuretral desobstrutíva em 2006; o carcinoma prostático encontra-se em fuga hormonal desde 2008, apresentando o requerido neste momento Psa elevado (254), metastização difusa óssea e ureterohidronefrose esquerda e estenose da uretra bulbar. O requerido iniciou no dia 01.10.2009 quimioterapia, estando agendados novos tratamentos no Hospital de Dia do Hospital de S. João do Porto a cada 21 dias.

Não faria muito sentido que, podendo o Estado português, através dos Tribunais, garantir ao Estado francês que o mesmo irá cumprir em Portugal o remanescente da pena a que foi condenado no Tribunal de Aplicação de Castigos de Metz, fosse afinal entregue para esse fim à Justiça francesa, quando o mesmo está a realizar tratamentos regulares intensivos, para cura de uma doença grave, num Hospital português que já tem a sua história clínica e que melhor poderá seguir o seu caso. Há, pois, uma razão humanitária que favorece a escolha por esta opção.

Dada a solução encontrada, perde qualquer interesse prático verificar se ocorrem motivos que pudessem determinar a suspensão temporária da entrega do requerido.

Termos em que o recurso procede parcialmente.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente:
a) Recusar a entrega do requerido A pelo mandado de detenção europeu emitido pelo Tribunal de Aplicação dos Castigos de Metz para cumprimento do remanescente da pena aplicada (MDE com a referência n.º ...), mas garantir que o Estado português se compromete a fazer cumprir essa pena remanescente em Portugal;
b) Ordenar que o cumprimento dessa pena se faça nas Varas Criminais do Porto, onde este processo será distribuído e onde se providenciará pela obtenção urgente dos elementos necessários para tal fim;
c) Permitir a transferência temporária e audição do requerido em França, as vezes que sejam necessárias e com condições acordadas previamente entre as autoridades judiciárias francesas e portuguesas, para que o extraditando seja julgado pelo crime a que alude o mandado de detenção europeu com a referência n.º ...., emitido pela Grande Instance de Bobigny, cumprindo depois em Portugal – em caso de condenação - a pena aí aplicada.
Fixa-se em 5 UC a taxa de justiça a cargo do recorrente.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Novembro de 2009

Santos Carvalho (Relator)
Rodrigues da Costa
____________________________________________________
(1) In Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 533, em anotação ao arco 330.
(2) Ac. do STJ de 27.04.2006, disponível em www.stj.pt sob o n.º 06P1429; cfr. no mesmo sentido, o Ac. desta Relação do Porto de 16.09.2009, proferido Pelo Sr. Desemb. Melo Lima, disponível no site www.dgsi.pt.
(3) Cfr. Acórdão de 07.02.2007, in CJ, Ano XXXII, Tomo I, pág. 54.
(4) In Revista do CEJ, 2° Semestre 2007, no 7, pág. 280.