Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2476
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
DANOS PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ20070712024761
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1) Os recursos destinam-se a reapreciar as questões julgadas pelo tribunal “a quo”, que não a submeter a decisão do tribunal de recurso questões que aí não tenham sido suscitadas, salvo tratando-se dos cognoscíveis “ex officio” quer de mérito, quer de natureza adjectiva.
2) Se o recorrente se conformou com questões julgadas na 1ª instância e não recorreu – principal ou subordinadamente para a Relação – não pode, em recurso para o STJ, pedir que sejam reapreciadas se inalteradas por não conhecidas na apelação.
3) O dever de assistência aos filhos aos pais idosos e fragilizados – não se confunde com o dever de prestar alimentos aos ascendentes – pode implicar certa coabitação para apoio no dia a dia e , embora possa representar incómodos e sacrifícios, não é indemnizável a titulo de dano não patrimonial próprio dos descendentes.
4) Mas o ascendente assistido deve contribuir, na medida das suas possibilidades, para criar condições que atenuem esses incómodos e para satisfazer despesas, não facilmente contabilizáveis, que a sua presença implica.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou, na Comarca de Viana do Castelo, acção, com processo ordinário, contra “Companhia de Seguros BB, SA”, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 38875,00 euros, acrescida de 600,00 euros mensais, despesas médicas e medicamentosas que venha a suportar ou, em alternativa àquela quantia mensal 50.000,00 euros, tudo a titulo de indemnização por danos sofridos em acidente de viação.

A 1ª instância julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré no pagamento de 33857,00, “por danos morais e patrimoniais” (sendo 20.000,00 euros a titulo de danos morais com juros “desde a data da presente decisão até efectivo pagamento”).

Mais a condenou no pagamento da “renda vitalícia” de 600,00 euros mensais.

Apenas apelou a Ré.

A Relação de Guimarães alterou o julgado condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de 25.807,00 euros (mantendo os 20.000,00 euros a titulo de dano não patrimonial) “acrescida da prestação vitalícia de 250,00 euros mensais, desde a propositura da acção.”

Pede, agora, o Autor, revista para concluir dever:

- ‘Fixar em 600,00 €/mês a indemnização devida ao recorrente pelos danos patrimoniais de natureza continuada que sofreu e vem suportando, em consequência deste acidente, consubstanciados na necessidade permanente do auxilio de uma terceira pessoa;

- Reportar valorizar e contabilizar este dano, desde a data em que se demonstrou ter começado a verificar-se, 10 de Março de 2003 e enquanto o mesmo persistir, como acontece no presente momento;

- Condenar-se a Ré/recorrida no pagamento de todas as despesas médicas, medicamentosas, de internamento hospitalar e outras que este (lesado) tiver de suportar como resultado ou em consequência das lesões sofridas neste acidente, a liquidar em execução de sentença;

- Condenar-se a Ré no pagamento dos juros legais das indemnizações que vierem a ser arbitradas ao recorrente, a partir da citação da Ré para contestar esta acção, ou, se assim se não entender, relativamente aos danos de natureza não patrimonial, condenar-se a Ré/recorrida no pagamento dos juros relativos a essa importância, devidos desde a data da realização da audiência de julgamento até ao seu pagamento

Assim se sintetizam as longas conclusões formuladas.

Foram produzidas contra alegações em defesa do julgado.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

A) Em 28.02.03, pelas 10.30 horas, CC estacionou o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula 00-00-EV, propriedade de Âncora Mar — Mariscos, Lda., junto ao lado esquerdo e topo Sul da Capela das Malheiras, na Rua Gago Coutinho, cidade de Viana do Castelo.

B) Do local onde se encontrava estacionado, o condutor do EV não podia avançar para Norte e, por isso, empreendeu uma manobra de marcha-atrás no sentido Norte – Sul.

C) O autor nasceu a 26.08.1923 – certidão de fis. 23.

D) À data do acidente, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação com o veículo de matrícula 00-00-EV encontrava-se transferida para a ré. Mediante contrato de seguro titulado pela apólice no 02-0000699858.

E) À data do acidente o condutor do veículo de matrícula 00-00.EV conduzia-o de acordo com ordens da sua entidade empregadora ou seja a proprietária do referido veículo e já referida na alínea A.

F) No local do acidente, a rua Gago Coutinho tem uma largura de cerca de 10 metros.

G) E só é permitido trânsito no sentido ascendente (sul — norte), para cargas e descargas.

H) O EV estava estacionado sobre o piso em granito que ladeja a Capela das Malheiras.

I) Quando o autor iniciou a travessia da rua, não se processava qualquer trânsito de veículos em todo a rua.

J) O autor atravessou a rua em diagonal, da direita para a esquerda.

K) O autor acedeu ao piso em granito que ladeia a capela das Malheiras.

L) Quando caminhava já sobre o referido piso em granito, o condutor do EV iniciou a manobra de marcha-atrás.

M) Após ter percorrido uma distância de 3 a 5 m em marcha-atrás, o EV foi embater no autor;

N) O autor foi colhido do seu lado direito pela parte média traseira do EV

O) Se tivesse olhado pelos espelhos retrovisores antes do início da execução da manobra, o condutor do EV teria visto o autor;

P) O condutor do EV só se apercebeu da presença do autor após o embate

Q) Em consequência do acidente, o autor sofreu traumatismo da anca esquerda e do ombro esquerdo, fractura trocantérica do fémur esquerdo e fractura do colo do úmero esquerdo.

R) No Centro Hospitalar do Alto Minho, foi-lhe efectuada redução da fractura do ombro e encavilhamento com cravo Gama, mais imobilização da fractura do ombro com Gerdy.

S) O autor ficou internado até 10.03.03.

T) Naquela data teve alta melhorada com transporte e orientado para a consulta externa.

U) Manteve-se em observação na consulta externa até Maio de 2003.

V) Depois da alta hospitalar de 10.03.03, manteve-se retido no leito, em casa, durante cerca de três meses.

W) Em 02.06.03, a fractura do colo do úmero havia-se consolidado e a fractura do colo do fémur esquerdo estava o consolidar em varo com vareta e cravo exteriorizados.

X) Em 19.06.03 foi operado para lhe ser retirado o material de osteossíntese.

Y) E foi-lhe feita fixação provisória com fio de Kirschen, acentuando-se a posição viciosa face à sua idade.

Z) Em 04.02.04, retirou os fios de Kirschen da anca esquerda.

AA) A partir de Fevereiro de 2004, fez 118 sessões de fisioterapia.

BB) Como sequela do acidente, o autor ficou portador de rigidez moderada do ombro esquerdo

CC) E encurtamento do membro inferior esquerdo em 4,5 cm.

DD) …dores na anca esquerda com limitação da mobilidade da coxa femoral.

EE) Tais lesões e sequelas determinaram-lhe uma incapacidade permanente geral de 40%.

FF) E a necessidade de apoio permanente de uma terceira pessoa.

GG) O autor só consegue locomover-se por curtos espaços, apoiado em duas muletas e com a ajuda de uma terceira pessoa.

HH) Antes do acidente, o autor era saudável e cheio de vitalidade.

II) Vivia sozinho confeccionava as suas próprias refeições, tratava das suas roupas e da limpeza da casa, conduzia um veículo automóvel e passeava.

JJ) A partir de 10.03.03, foi viver para casa de um filho.

KK) A sua nora presta-lhe assistência permanente, confeccionando-lhe as refeições, tratando-lhe das roupas, ministrando-lhe os medicamentos, ajudando-o a locomover-se, a deitar-se e a levantar-se diariamente.

LL) Os factos descritos nos quesitos anteriores causam ao autor sofrimento, revolta e frustração.

MM) O autor paga à sua nora, desde 10.03.03, a quantia de €600,00 mensais.

NN) O autor despendeu € 57,00 na deslocação da sua residência ao hospital no Porto para ser observado.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Âmbito do recurso.
2- Subvenção mensal.
3- Conclusões.

1- Âmbito do recurso.


Tratando-se de lide destinada a efectivar a responsabilidade extra contratual, o recorrente não questiona o evento lesivo, a culpa e o nexo causal mas, e tão-somente, os “quanta” indemnizatórios dos danos sofridos.

Mas, mesmo nesta sede, parece ter esquecido que os recursos são meios destinados a corrigir o menor acerto (“error in judicando” ou “error in procedendo”) da decisão recorrida que não para decidir questões novas, sob pena de se ultrapassar um grau de jurisdição (cf. v.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Fevereiro de 1993 CJ, 1993, 150, de 7 de Janeiro de 1993 – BMJ 423-539 e 9 de Março de 1993 – BMJ -425-438 e de 18 de Maio de 2006 – 06 A1222, desta conferencia, representando, “inter alia” uma jurisprudência uniforme).

E são de considerar questões novas todos as que não forem suscitadas em termos de terem sido apreciadas e decididas pelo juízo “a quo” (salvo se lhe tiverem passado despercebidas, então na comissão da nulidade do artigo 668º nº1 alínea d) do Código de Processo Civil) ou que tenham sido excluídas do âmbito do recurso por delimitação expressa ou por a parte que as poderia ter suscitado não recorrer principal ou subordinadamente.

Ora, o recorrente não impugnou a decisão da 1ª instância onde se fixaram o montante dos danos morais e o “terminus a quo” dos respectivos juros; não questionou as despesas médicas, medicamentosas e hospitalares futuras que aquela decisão não arbitrou, não tendo, por isso, a Relação emitido pronuncia sobre esses pontos, com o que se terá, então, conformado.

Daí que não possa agora vir suscitar tais questões na revista.

O âmbito do recurso fica, assim, limitado ao montante da subvenção vitalícia, não sendo de conhecer os restantes segmentos conclusivos, “maxime” o inicio do vencimento da subvenção vitalícia.

É que a sentença da 1ª instância arbitrou ao recorrente “a renda mensal vitalícia de 600,00 euros, a pagar até ao dia 10 de cada mês, com início em Fevereiro de 2005”.

E mais uma vez o Autor não impugnou esse termo inicial o que, se dele discordava, deveria ter feito em apelação, não havendo decisão sobre esse ponto pelo tribunal “a quo” pelo que integra, também, matéria nova aqui não cognoscível.

2- Subvenção mensal.

A Relação considerou que o montante mensal de 600,00 euros era excessivo e reduziu-o para 250,00 euros.

E considerou que:

“Impor à ré o pagamento do valor entregue pelo autor a seu filho e nora pelos alimentos (em sentido lato) que eles lhe prestam, traduziria um enriquecimento injustificado relativamente ao estritamente necessário a reparar (na medida do possível) as sequelas do acidente.
O autor tem actualmente 83 anos, mas de acordo com o depoimento da própria nora que dele cuida, a única limitação funcional resultante do acidente prende-se com a perna esquerda que, para além do encurtamento de 4,5 cm, ficou limitada nos movimentos da ligação coxo femoral.
Todavia, na avaliação pericial constante de fls. 110 assinala-se que “as sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade da vida geral, mas implicam esforços suplementares.

Tal significa que a dependência de terceiro que o A. revela para a execução de algumas tarefas do seu quotidiano não tem como causa única as sequelas do acidente sofrido.

Por conseguinte, a indemnização a arbitrar para ressarcimento de tal limitação funcional há-de levar em conta tal circunstancialismo, fixando-se num valor constante por elementar pragmatismo, sem embargo de na sua determinação se sopesar a depreciação expectável do seu natural limite de vigência.”

Aceita-se, por sensata e ponderada, a argumentação do aresto recorrido, sendo, outrossim, de atentar que a assistência prestada, no dia a dia pela nora e pelo filho a um pai com 83 anos de idade terá sempre uma componente primeira de solidariedade familiar – exigível de acordo com os padrões que historicamente vêm regendo a vida em sociedade – e que transcende o dever de prestação alimentícia dos descendentes consagrado na alínea c) do nº 1 do artigo 2009 do Código Civil.
Certo que é irrealista conceber uma sociedade movida, apenas, por critérios morais e éticos que prescinda de certa compensação de incómodos e sacrifícios, ainda que sofridos no exercício de um estrito dever da família nuclear, centrípeta.
Só que, o ressarcimento desses incómodos – ainda que admissível face à dogmática do artigo 496º do Código Civil – representaria um dano não patrimonial próprio dos parentes, que não da vítima e não seria perceptível pelo meio aqui em controvérsia.
De outra banda, não foi alegado nem provado que o filho e a nora do lesado tivessem de suportar despesas extraordinárias com o pai (como, por exemplo, em alimentos, medicamentos, etc.) que, aliás tem meios para tal – (note-se que a Relação aceitou que o Recorrente aufere uma pensão de 650,00 euros, da França).
Daí que o montante encontrado – 250,00 euros mensais – traduza o que é razoavelmente equivalente ao que o Autor despenderia com quem o ajudasse no dia a dia e que será de elementar justiça contribuir com essa quantia para o lar de acolhimento, não representando um seu enriquecimento e podendo ressarcir o filho e nora de despesas do dia a dia não facilmente contabilizáveis, propiciando um amortecimento de incómodos que causa, mas deixando os restantes – que sempre teria independentemente do acidente – para “outras contas” a que a recorrida é alheia.


Improcedem, em consequência, as razões do recorrente.

3- Conclusões.

De concluir que:

a) Os recursos destinam-se a reapreciar as questões julgadas pelo tribunal “a quo”, que não a submeter a decisão do tribunal de recurso questões que aí não tenham sido suscitadas, salvo tratando-se dos cognoscíveis “ex officio” quer de mérito, quer de natureza adjectiva.
b) Se o recorrente se conformar com questões julgadas na 1ª instância e não recorrer – principal ou subordinadamente para a Relação – não pode, em recurso para o STJ, pedir que sejam reapreciados se inalteradas por não conhecidas na apelação.
c) O dever de assistência dos filhos aos pais idosos e fragilizados – não se confunde com o dever de prestar alimentos aos ascendentes – pode implicar certa coabitação para apoio no dia a dia e , embora possa representar incómodos e sacrifícios, não é indemnizável a titulo de dano não patrimonial próprio dos descendentes.
d) Mas o ascendente assistido deve contribuir, na medida das suas possibilidades, para criar condições que atenuem esses incómodos e para satisfazer despesas, não facilmente contabilizáveis, que a sua presença implica.


Destarte, acordam negar a revista.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 12 de Julho de 2007

Sebastião Póvoas ( relator)
Moreira Alves
Alves Velho