Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1432
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: CASO JULGADO
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ20030603001432
Data do Acordão: 06/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4035/02
Data: 11/12/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - O direito de retenção tem, em princípio, duas funções, a de coerção e a de garantia: por um lado, possibilita ao seu titular que não entregue a coisa retida a quem a ela tem direito, enquanto este não cumprir uma obrigação que tem para com ele; por outro, permite-lhe, em caso de venda do bem em execução, ser pago pelo seu valor com preferência a qualquer outro credor do mesmo devedor que não disponha de privilégio imobiliário sobre ela.
II - Transitada em julgado sentença que declare existente o direito de retenção, é ela eficaz contra os demais credores do mesmo devedor, mesmo que disponham de garantia real, sendo-lhes oponível aquele direito.
III - Pode ser objecto do direito de retenção um andar, prometido vender, de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal.
IV - O art.º 869º do Cód. Proc. Civil consagra uma mera faculdade estabelecida em benefício do credor que não disponha de título executivo, a que este pode dispensar-se de recorrer sem que daí resulte deixar de poder reclamar o seu crédito nos termos do art.º 871º do mesmo Código, apenas ficando privado de aproveitar os benefícios concedidos naquele art.º 869º.
V - A al. f) do n.º 1 do art.º 755º do Cód. Civil enferma de inconstitucionalidade material quando interpretada no sentido de que o direito de retenção consagrado naquela alínea prevalece em relação a credor titular de garantia hipotecária registada anteriormente à consagração legal daquele direito operada pelo Dec. - Lei n.º 236/80, de 18/7.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 17 de Janeiro de 1992, A veio à execução ordinária para pagamento de quantia certa em que é exequente a B - C, e executada D, reclamar o pagamento do seu crédito pelo produto da venda do prédio penhorado, invocando ser credor da executada pela quantia de 1.000.000$00, conforme, por escritura de 22 de Abril de 1983, aquela confessou ser-lhe devedora, por empréstimo pelo prazo de um ano, prorrogável, com o juro anual de 15%, sendo que para garantia desse empréstimo e juros, que à data da reclamação, contados desde 21 de Abril de 1984, ascendiam a 1.310.137$00, a executada constituíra hipoteca a favor dele reclamante sobre o seu aludido prédio.
A exequente impugnou esse crédito, dizendo desconhecer se realmente existia e se, a ter existido, ainda não teria sido pago, acrescentando que o montante máximo garantido pela hipoteca, susceptível de ser reclamado para o efeito de ser verificado e graduado, era apenas de 1.450.000$00, abrangendo o capital e juros de três anos.
Em resposta, o reclamante reduziu o valor reclamado para 1.450.000$00 (1.000.000$00 de capital e 450.000$00 de juros).
Após uma audiência preparatória em que não se chegou a conciliação, foi proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções nem nulidades secundárias e que conheceu desde logo do pedido, julgando verificado o crédito reclamado e graduando-o em primeiro lugar, ou seja, a seguir às custas precípuas e antes do crédito exequendo.
Apelou a exequente, argumentando que o seu crédito se encontrava garantido por hipotecas com registo anterior ao da hipoteca constituída a favor do reclamante, pelo que o crédito exequendo é que devia ser graduado à frente do reclamado, tendo a Relação proferido em 7/12/93 acórdão que concedeu provimento ao recurso com base em prioridade de registo e, revogando a sentença ali recorrida, graduou o crédito exequendo à frente do crédito reclamado, ressalvada a precipuidade das custas.
Em 29/3/2000, porém, vieram E e marido, F, deduzir reclamação de créditos ao abrigo do disposto no art.º 871º do Cód. Proc. Civil, invocando ter a reclamante celebrado em 19/8/80 (supõe-se que seja 19/10/80, como consta da sentença abaixo indicada, mas a divergência é, como se verá, irrelevante) com a executada um contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma que viria a ser constituída pelo 1º andar direito de um prédio urbano que identificam, contrato esse que foi incumprido pela executada, que em consequência, em acção contra ela proposta pelos ora reclamantes, foi condenada a pagar-lhes a quantia de 5.127.988$00 acrescida de juros legais de mora desde 3 de Novembro de 1987, a título de indemnização pelo incumprimento, por sentença que também reconheceu os mesmos reclamantes como titulares do direito de retenção sobre o andar prometido vender.
Na sequência dessa sentença, os mesmos reclamantes instauraram execução contra a também aqui executada para cobrança de 11.188.848$00 (capital e juros vencidos), e juros vincendos, ali tendo sido penhorado o prédio urbano em que o aludido andar se integra, prédio esse sobre o qual já recaía a penhora registada anteriormente respeitante aos presentes autos.
Por isso aquela outra execução foi sustada, vindo os respectivos exequentes apresentar a presente reclamação do seu crédito sobre a mesma executada, somando já os juros vencidos 8.247.912$00, para além de 1.410.548$00 de juros devidos nos termos do n.º 4 do art.º 829º-A do Cód. Civil, e pretendendo igualmente o pagamento dos demais juros de mora e compulsórios vincendos e das custas de parte da acção declarativa e da execução que instauraram.
E, face ao invocado direito de retenção, pretendem que o seu crédito seja graduado em primeiro lugar.
A Caixa Económica impugnou esse crédito reclamado, sustentando que a sentença que reconheceu aos reclamantes direito de retenção não lhe é oponível e que o que a reclamante pretendeu comprar foi o 1º andar direito de um prédio urbano e não uma fracção autónoma de um prédio urbano constituído em propriedade horizontal, 1º andar aquele que é, como tal, inalienável, e portanto impenhorável, por o prédio ainda não estar constituído no regime da propriedade horizontal, sendo por isso que a reclamante requereu e registou a penhora do imóvel e não a do 1º andar direito;
e, sendo o andar impenhorável, não há direito de retenção.
Isto para além de que a reclamante não apresentou a reclamação dentro do prazo dos éditos, - sendo que a 2ª publicação do anúncio citando credores desconhecidos foi efectuada em 16/12/91 -, pelo que não pode reclamar créditos ao abrigo de um eventual direito de retenção, devendo o seu crédito ser graduado no lugar que lhe competir em atenção à data do registo da penhora respectiva.
Entretanto, em 24/10/00, a fls. 104, foi proferido despacho que suspendeu a presente instância em atenção à suspensão dos autos principais devido à existência de processo de falência contra a executada.
Em 23/3/01, porém, veio o reclamante A requerer que os autos prosseguissem os termos normais por ter sido decretada a interrupção da instância no processo da falência por despacho de 31/1/96, o aludido processo de falência ter sido arquivado em 20/9/99, e, tendo decorrido mais de dois anos desde a interrupção, a instância ter ficado deserta, independentemente de qualquer decisão judicial, sendo a deserção causa de extinção da instância.
Por isso foi depois proferida sentença que considerou verificado o crédito ora reclamado mas que o graduou em último lugar, por entender que só beneficiava da penhora na medida em que o direito de retenção era inoponível à exequente e ao reclamante originário, pelo facto de estes não terem tido intervenção na acção que sustenta a execução sustada e por os seus créditos serem afectados por aquele direito.
Apelaram os reclamantes E e marido, tendo a exequente interposto também recurso, mas subordinado, da parte da sentença que julgara improcedente a sua impugnação quanto à impossibilidade de existência de direito de retenção sobre andar de imóvel não constituído em propriedade horizontal e quanto à impossibilidade de reclamar, ao abrigo do art.º 871º do Cód. Proc. Civil, créditos com fundamento em direito de retenção e não na penhora efectuada no processo sustado.
A Relação proferiu acórdão que concedeu provimento ao recurso independente, dos reclamantes E e marido, alterando a sentença apelada na parte em que procedeu à graduação dos créditos e graduando em primeiro lugar o crédito daqueles reclamantes, e que decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso subordinado por a Caixa Económica não ter ficado vencida.
É deste acórdão que vem interposta a presente revista, pela Caixa Económica C, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - A sentença que reconheceu aos apelantes o direito de retenção é, nessa parte, inoponível à recorrente, dado o manifesto prejuízo jurídico que tal sentença lhe causa;
2ª - A al. f) do n.º 1 do art.º 755º do Cód. Civil, na actual redacção, é materialmente inconstitucional, quando invocada por credor titular de garantia hipotecária registada em data anterior à promessa de transmissão acompanhada da tradição da coisa imóvel a que respeita o contrato prometido (por) violar os preceitos constitucionais contidos nos art.ºs 2º, 20º, n.º 1, e 165º, al. b), da C.R.P.;
3ª - Um andar de prédio urbano não constituído no regime de propriedade horizontal é inalienável; sendo inalienável, é impenhorável; sendo impenhorável, não pode ser objecto do direito de retenção;
4ª - Decidindo contrariamente, a sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 821º e 822º, al. a), do Cód. Proc. Civil, e na al. d) do art.º 756º do Cód. Civil;
5ª - Precludido o prazo para reclamar créditos ao abrigo do disposto nos art.ºs 864º, al. d), e 869º, do Cód. Proc. Civil, não é possível invocar direito de retenção, pelo viés da reclamação ao abrigo do art.º 871º do C.P.C.;
6ª - Com tal procedimento estar-se-ia a defraudar o disposto no art.º 869º do C.P.C. e a afastar, por grosseira habilidade, a intervenção da exequente na acção destinada a obter título exequível;
7ª - Os reclamantes nomearam à penhora a totalidade do imóvel e não o andar que prometeram comprar; não tendo direito de retenção sobre o imóvel, não pode ser-lhes reconhecida prioridade no pagamento sobre o produto da venda do imóvel;
8ª - O seu crédito deve, pois, ser graduado de acordo com a penhora, quer quanto ao montante, quer quanto ao lugar que lhe compete;
9ª - Decidindo de outro modo, a sentença recorrida violou o disposto no art.º 869º do C.P.C.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido, graduando-se em primeiro lugar o crédito dela recorrente.
Em contra alegações, os reclamantes E e marido pugnaram pela confirmação daquele acórdão.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os seguintes:
1º - A reclamou a quantia de 1.000.000$00 e correspondentes juros, gozando a seu favor de hipoteca registada em 28/3/83 sobre o prédio 2782, com o montante máximo garantido de 1.450.000$00;
2º - O crédito da exequente está garantido por hipotecas sobre o dito prédio, registadas em 22/4/80 e 29/12/80, até aos montantes de 11.909.250$00 e 7.110.000$00, respectivamente, encontrando-se igualmente registada penhora a seu favor em 6/11/91;
3º - A favor dos reclamantes está registada penhora em 19/6/96, tendo a respectiva execução sido sustada ao abrigo do disposto no art.º 871º do Cód. Proc. Civil por existir penhora anterior à realizada naquela e tendo a notificação sido enviada em 8/3/2000 (quarta-feira);
4º - A dita execução foi instaurada com base em sentença proferida em 15/7/94 e transitada em julgado em 3/10/94 (fls. 82 a 85) em acção proposta pelos reclamantes contra a agora executada e na qual esta foi condenada a pagar-lhes 5.127.988$99 e juros desde 3/11/87, e a reconhecer-lhes o direito de retenção sobre o andar objecto do contrato promessa, constando da certidão da sentença respectiva, junta pelos reclamantes aqui recorridos, que tal contrato foi celebrado em 19/10/80 e que o andar foi entregue pela promitente vendedora (D - Imóvel) à promitente compradora (a ora reclamante E) em 15/1/82;
5º - O prédio n.º 2782 foi penhorado a favor da exequente e o registo data de 6/11/91;
6º - Nos autos principais foram citados os credores da executada, tendo sido publicados os respectivos anúncios em 15 e 16 de Dezembro de 1991.
As questões a decidir são as que se encontram suscitadas nas conclusões das alegações da recorrente (art.ºs 661º, n.º 2, 684º, n.º 3, e 690, n.º 4, do Cód. Proc. Civil), todas elas respeitando à existência e oponibilidade à ora recorrente do direito de retenção invocado pelos reclamantes E e marido.
Em face do disposto no art.º 755º, n.º 1, al. f), do Cód. Civil, na redacção dada pelo Dec. - Lei n.º 379/86, de 11/11, goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º; trata-se do mesmo direito, agora generalizado a todos os contratos de promessa em que haja tradição da coisa, que era já consagrado na redacção anterior (dada pelo Dec. - Lei n.º 236/80, de 18/7), do n.º 3 daquele art.º 442º para os contratos de promessa referidos no art.º 410º, n.º 3, do Cód. Civil, este também na redacção do mesmo diploma de 1980 - com exclusão na dita al. f), por ser desnecessária, da expressão "nos termos gerais", contida no mesmo n.º 3 do art.º 442º na redacção do Dec. - Lei n.º 236/80 -, redacção esta última alterada por aquele Dec. - Lei de 1986.
Estipula o art.º 754º do mesmo Código que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Por aqui se vê que o direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele. Constitui, por outro lado, um direito real de garantia das obrigações, conferindo ao seu titular preferência para ser pago pelo valor do bem retido antes dos demais credores do seu devedor que não beneficiem de privilégio imobiliário (art.º 751º do Cód. Civil), como resulta do disposto no n.º 1 do art.º 759º desse Código, que no seu n.º 2 fixa mesmo a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
Tem, assim, o direito de retenção, em princípio, dois objectivos: por um lado, possibilita ao seu titular que não entregue a coisa a quem a ela tem direito enquanto este não cumprir uma obrigação que tem para com aquele; por outro, permite-lhe, em caso de venda do bem em execução, ser pago pelo seu valor com preferência a qualquer outro credor do mesmo devedor que não disponha de privilégio imobiliário sobre ela. Ou seja: tem uma dupla função, a de coerção e a de garantia.
Transitada em julgado, como se referiu, a sentença proferida na acção declarativa instaurada pelos reclamantes E e marido contra a executada, é manifesto que produz todos os seus efeitos entre eles no respeitante àquele primeiro objectivo. Ou seja, não têm os ditos reclamantes obrigação de entregar o andar retido à executada, caso esta pretenda a sua entrega, enquanto esta não satisfizer a prestação que lhes foi condenada a pagar.
Já quanto ao mencionado segundo objectivo desse direito, só poderá ser efectivamente alcançado se a sentença puder produzir efeitos em relação a terceiros, que são os credores do mesmo devedor, isto é, se por força da sentença proferida estes tenham de ficar convencidos da existência do invocado direito de retenção na titularidade dos reclamantes ora recorridos.
E, na hipótese dos autos, entende-se, com o acórdão recorrido, que na verdade a sentença proferida na acção instaurada pelos reclamantes E e marido contra a D - Imóvel produz efeitos contra os demais credores desta, convencendo-os da existência daquele direito de retenção na titularidade dos ditos reclamantes, porque, como tem sido maioritariamente entendido, a sentença se impõe aos terceiros juridicamente indiferentes, que são todos aqueles a quem, não tendo tido intervenção no processo respectivo, a sentença não causa qualquer prejuízo jurídico por deixar intacta a consistência jurídica do seu direito, mesmo que sejam economicamente interessados por a mesma sentença lhes poder causar prejuízo económico por afectar a solvabilidade do seu devedor, só não se impondo aos terceiros juridicamente interessados, isto é, àqueles a quem a sentença cause um prejuízo jurídico, invalidando a existência ou reduzindo o conteúdo jurídico do seu direito e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática ou económica (Manuel Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", 1963, págs. 288 e segs.; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª ed., págs. 726 e segs.).
Têm, pois, aqueles terceiros não juridicamente afectados pela sentença de a acatar, bem como a correspondente definição judicial da relação que estivera em litígio entre as partes, sendo precisamente o caso dos credores relativamente às sentenças proferidas nos pleitos em que seja parte o seu devedor o exemplo apresentado por Manuel Andrade (obra e local citado).
E é esta a hipótese presente: a recorrente em nada vê afectado juridicamente o seu direito de crédito sobre a executada, nem a consistência jurídica das garantias hipotecárias de que beneficia, apenas podendo, quando muito, ficar economicamente prejudicada se a solvabilidade da executada for, por via da sentença em causa, reduzida a ponto de os bens da D - Imóvel não terem valor suficiente para pagamento do crédito da B.
Por outro lado, não deixou de ser dada à exequente oportunidade de impugnar o crédito reclamado pelos ora recorridos E e marido, o que ela oportunamente fez; como, porém, o crédito dos reclamantes se encontrava reconhecido por sentença, a impugnação, face ao disposto no art.º 866º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil (quer na versão revista, quer na anterior), só podia basear-se nalgum dos fundamentos mencionados nos art.ºs 813º ou 814º do mesmo diploma, na parte em que fossem aplicáveis, restrição esta que tem sido geralmente entendida, como bem esclarece o acórdão recorrido, no sentido de remeter para os fundamentos, dos mencionados naqueles dois artigos, que forem aplicáveis, e não no de fazer depender a sua aplicabilidade da qualidade da pessoa que impugne os créditos reclamados, ou seja, do facto de ser ou não alguma das partes do processo em que a sentença foi proferida. Os fundamentos invocados na impugnação da exequente, porém, não se enquadram em qualquer das hipóteses contempladas nas diversas alíneas desses dispositivos, pelo que não podiam conduzir a solução diferente da de obrigação de aceitação, por ela, do decidido na aludida sentença.
Daí que não possa a recorrente deixar de a acatar, impondo-se-lhe o reconhecimento da existência do direito de retenção dos reclamantes, embora, perante as demais questões suscitadas, haja ainda que averiguar se tal direito deve ou não ser considerado para fins de graduação dos créditos ora em causa.
Sustenta ela, além disso, que, sendo o andar retido inalienável por não constituir uma fracção autónoma, não é penhorável, não podendo em consequência ser objecto de direito de retenção, tendo sido violado o disposto nos art.ºs 821º e 822º, al. a), do Cód. Proc. Civil, e 756º, al. c), do Cód. Civil.
Este último dispositivo, com efeito, determina que não há direito de retenção relativamente a coisas impenhoráveis. E o dito art.º 822º começa logo por dizer que as coisas inalienáveis não podem ser penhoradas. Como o andar em causa não integrava uma fracção autónoma, não podia ser alienado, nem penhorado, nem, consequentemente, no entender da ora recorrente, objecto do direito de retenção.
Não é, porém, assim.
Por um lado, o andar detido pelos reclamantes só não poderá ser alienado isoladamente, pois isoladamente só o poderá ser quando o imóvel penhorado for constituído em regime de propriedade horizontal. Até então, constitui parte desse imóvel, só com ele, na totalidade, podendo ser alienado. Mas daí resulta precisamente que pode ser alienado, embora não separadamente da parte restante do imóvel em que se integra. Por isso, também podia ser penhorado, de forma integrada no mesmo imóvel, como foi. Nessas condições, não obsta a lei a que possa ser, mesmo isoladamente, objecto de direito de retenção, criando até o mecanismo necessário para resolver o problema eventualmente suscitado pelo facto da sua integração no todo constitutivo do imóvel e pelo facto de o direito de retenção só abranger o aludido andar. É que, sendo os bens vendidos em execução transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, que portanto caducam, os direitos de terceiro que assim caducarem transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens (art.º 824º do Cód. Civil). Ora, como a sentença que reconheceu o direito de retenção o restringe, expressamente, ao andar prometido vender à reclamante, - não podendo em consequência alargar-se tal direito à parte restante do imóvel, que esta nem sequer detinha não podendo por isso recusar qualquer entrega dessa parte restante -, haveria que considerar que o direito dos reclamantes sobre o andar se transferira apenas para o valor deste, que obviamente teria de ser calculado para o efeito de apenas por ele ser efectuado o respectivo pagamento.
De todo o modo, não pode deixar de ser tido em conta que o direito de retenção, mesmo que não pudesse, eventualmente, ser reconhecido na hipótese dos autos, o certo é que já o foi, por sentença transitada em julgado, que, pelos motivos acima expostos, se impõe à aqui exequente.
Acresce que, sendo o direito de retenção reconhecido pelo dito art.º 755º, n.º 1, al. f), exactamente o mesmo que era reconhecido na anterior redacção do art.º 442º, n.º 3, citado, sempre haverá que observar o decidido no Assento do S.T.J. de 12/3/96, que se encontra publicado, além de outros locais, na CJ - Acs. do S.T.J., 1996, 1º - 31 e no B.M.J. 455-53, segundo o qual, "nos termos do n.º 3 do art.º 442º do Cód. Civil, na redacção introduzida pelo Dec. - Lei n.º 236/80, de 18/7, tendo havido tradição de fracção de prédio urbano, o promitente comprador goza do direito da sua retenção, mesmo que o edifício ainda não esteja submetido ao regime de propriedade horizontal".
Também a este respeito não pode, pois, ser reconhecida razão à recorrente.
No entender desta, não podia também ser invocado o direito de retenção por via da reclamação ao abrigo do disposto no art.º 871º do Cód. Proc. Civil, por se encontrar precludido o prazo para reclamar créditos nos termos dos art.ºs 864º, al. d), e 869ª, do mesmo diploma.
Também aqui não lhe assiste razão.
Desde logo, porque a reclamação de créditos nos termos do disposto nos art.ºs 864º e 865º do Cód. Proc. Civil teria de ter por base um título exequível; e, à data do termo do prazo dos éditos e anúncios publicados em Dezembro de 1991, ainda os reclamantes E e marido não dispunham de tal título, visto que a sentença proferida na acção por eles instaurada contra a D - Imóvel data de 15/7/94.
Por outro lado, o art.º 869º, referido, consagra uma mera faculdade, estabelecida em benefício, não do exequente, mas do credor que não disponha de título executivo, a que este pode recorrer se o entender, sem que a sua não utilização constitua violação que o impeça de recorrer ao disposto no art.º 871º. Simplesmente, não fazendo apresentação no momento oportuno do requerimento indicado no n.º 1 daquele art.º 869º, não pode o credor sem título exequível aproveitar os benefícios no mesmo artigo concedidos, ou seja, conseguir que a graduação dos créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção, por ele, da sentença exequível, exercer no processo os mesmos direitos do credor cuja reclamação tenha sido admitida, ou dispor de legitimidade para, na acção respectiva, provocar a intervenção principal do exequente e dos credores interessados ou accioná-los juntamente com o executado, só podendo por isso provocar o exercício do contraditório destes já em fase de impugnação da reclamação que venha a deduzir.
Por outro lado ainda, o disposto no citado art.º 871º não impede ao reclamante a invocação de direitos de garantia de que beneficie distintos da penhora: a referência a esta tem reflexos de ordem meramente processual, com vista a, em ordem à observância de um princípio de economia processual, determinar o prosseguimento de apenas uma das execuções, estabelecendo desde logo o critério pelo qual se deverá decidir a que prossegue e a que fica sustada.
Nada obstava, pois, processualmente, à reclamação de créditos apresentada pelos reclamantes E e marido pela forma que o fizeram, na altura em que o fizeram e invocando o direito de retenção de que dispunham.
Quanto, porém, e finalmente, à questão da inconstitucionalidade suscitada pela recorrente, entende-se que lhe assiste, parcialmente, razão.
Para a recorrente, a al. f) do n.º 1 do art.º 755º do Cód. Civil enferma de inconstitucionalidade material por ser atentatória do disposto nos art.ºs 2º, 20º, n.º 1, e 165º, al. b), da Constituição, quando interpretada no sentido de o direito de retenção naquela alínea consagrado prevalecer em relação a credor titular de garantia hipotecária registada anteriormente à promessa de transmissão acompanhada da tradição da coisa imóvel a que respeita o contrato prometido, na medida em que vai contra os princípios da proporcionalidade, protecção de confiança, e segurança do comércio jurídico.
Ora, não pode deixar de se ter em conta que o regime do direito de retenção se encontra consagrado, no que ao contrato promessa de compra e venda respeita, como se deixou dito, já desde Julho de 1980, conforme o disposto no art.º 442º, n.º 3, do Cód. Civil, na redacção então entrada em vigor, nos mesmos moldes em que viria a permanecer consagrado por aquela alínea f). Sendo assim, a prevalecer sobre hipotecas registadas anteriormente à sua consagração legal, iria afectar gravemente os direitos de terceiros, credores hipotecários, que só se tornaram credores do proprietário do imóvel entretanto retido por estarem convictos da inexistência de perigo de uma tal prevalência a acrescer às demais garantias eventualmente existentes, e com a qual não tinham que contar. Donde que se considere inadmissível fazer prevalecer o direito de retenção do promitente comprador com tradição da coisa sobre hipotecas registadas anteriormente àquela consagração.
Este entendimento é reforçado pela orientação que, para casos semelhantes, vem sendo seguida por recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, que já julgou inconstitucionais, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, consignado no art.º 2º da Constituição, as normas constantes do art.º 2º do Dec. - Lei n.º 512/76, de 3/7, do art.º 11º do Dec. - Lei n.º 103/80, de 9/5, e do art.º 104º do Cód. do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quando interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca nos termos do art.º 751º do Cód. Civil (Acórdãos n.º 160/2000, de 22/3/2000, n.º 354/2000, de 5/7/2000, e n.º 109/2001, de 5/3/2001, publicados respectivamente nos DR’s de 10/10/2000, de 7/11/2000, e de 24/4/2002, II Série), inconstitucionalidade essa entretanto declarada com força obrigatória geral pelos Ac.’s do T.C. n.ºs 362/2002 e 363/2002, de 17/9/02, publicados no DR - I Série-A, de 16/10/02.
Como se lê no referido Acórdão do Tribunal Constitucional de 22/3/2000, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar.
E, interrogando-se ele ainda sobre que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, pondera-se no mesmo Acórdão de 22/3/00 que "o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e a circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário".
Trata-se de uma argumentação que assenta como uma luva na hipótese dos presentes autos, em que o direito de retenção não está sujeito a registo, e em que a recorrente, apesar de ter registado as suas hipotecas (uma delas antes da consagração legal daquele direito na titularidade de promitentes compradores que obtivessem a tradição da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda), se vê confrontada com uma realidade que frustra a fiabilidade que o registo e a ausência de consagração legal do direito de retenção em causa naturalmente lhe mereciam, e que também por isso se justifica que não lhe possa ser oposta quanto àquela primeira hipoteca.
No mesmo sentido aponta o ensinamento de Menezes Cordeiro ("Estudos de Direito Civil", 1º - 89, e Col. Jur., Ano XII - 1987, 2º, págs. 5 a 18), segundo o qual a al. f) do n.º 1 do art.º 755º, na parte em que se reporta às hipotecas (portanto, na parte de que resulta a extensão do regime de prevalência da retenção sobre a hipoteca a todos os contratos de promessa), funciona perante as hipotecas constituídas após 18 de Julho de 1980, no tocante às ligadas a promessas previstas no art.º 410º, n.º 3, como é o caso dos autos. Não pode já ser aplicado, da mesma forma que o não podia o Dec. - Lei n.º 236/80, às hipotecas constituídas antes dessa data, enfermando de inconstitucionalidade por violação do disposto no art.º 62º, n.º 1, da Constituição, uma interpretação no sentido contrário, visto a hipoteca ser um direito patrimonial privado genericamente garantido e tutelado por aquele preceito constitucional, não podendo em consequência ser atingido pelo legislador ordinário sem a atribuição de uma justa indemnização, coisa que aqueles Decs. - Lei não fazem.
Entende-se, pois, enfermar o art.º 755º, n.º 1, al. f), do Cód. Civil, de inconstitucionalidade material se e quando interpretado no sentido de originar que o direito de retenção nele consagrado prevaleça sobre as hipotecas constituídas antes de 18/7/80, por violação, dos ditos art.ºs 2º e 62º, n.º 1, o que impede a sua aplicação com tal interpretação, nos termos do art.º 204º, todos da Constituição da República.
Na hipótese dos autos, tendo a tradição da coisa tido lugar apenas em Janeiro de 1982, o direito de retenção não se constituiu antes dessa data. Mas, por outro lado, o Dec. - Lei n.º 236/80, que atribuiu o direito de retenção ao promitente comprador, no caso de incumprimento pelo promitente vendedor, pelo crédito resultante desse incumprimento se tivesse havido tradição da coisa, data, como se disse, de 18/7/80, o que implica que antes dessa data não tinham os credores hipotecários motivo para preverem a eventualidade de constituição do direito de retenção sobre a coisa abrangida pela hipoteca, nem, em consequência, para se precaverem contra essa eventualidade, por exemplo exigindo do seu devedor outra garantia ou impondo-lhe a não entrega do bem ao promitente comprador. Mas já o tinham para o período posterior a essa data, tanto mais que, sendo a mutuária uma empresa que se dedicava à construção de imóveis e tratando-se como se tratava de um prédio em construção com vários andares, era de prever a qualquer cidadão médio que tais andares se destinavam a ser vendidos mediante contratos antecedidos, como é normal, por contratos de promessa, que bem podiam, como muitas vezes sucede, ser acompanhados ou seguidos pela tradição da coisa.
Ora, quanto ao reclamante A, cujo crédito e posição na graduação aliás não vêm postas em causa, a hipoteca que o beneficia data de 28/3/83, sendo assim posterior à instituição do direito de retenção do promitente comprador que obtivesse a tradição da coisa, pelo que tinha ele de contar com a possibilidade de existência de algum direito de retenção em relação a algum andar prometido vender pela sua devedora, a executada. Portanto, não fere qualquer sentimento de justiça nem qualquer princípio constitucional o reconhecimento de que o direito de retenção dos demais reclamantes prevalece sobre a hipoteca que garante o crédito do citado A.
Já quanto à recorrente, beneficia ela de duas hipotecas: uma registada em 22/4/80, a outra registada em 29/12/80.
No respeitante a esta última, como já então se encontrava em vigor a redacção do n.º 3 do citado art.º 442º que criou o direito de retenção do promitente comprador que obtivesse a tradição da coisa, já tinha a ora recorrente de contar com a eventualidade de constituição desse direito na titularidade de algum promitente comprador que viesse a obter tal tradição, com as consequências fixadas no art.º 759º, n.º 2, mencionado, ou seja, com a prevalência do direito de retenção sobre essa hipoteca apesar de anteriormente registada.
Mas, no respeitante à primeira hipoteca, como foi constituída anteriormente à instituição pela lei do direito de retenção do promitente comprador com tradição, já a ora recorrente não tinha qualquer motivo para contar com a existência dessa garantia prevalente à sua, pelo que, face aos princípios acima enunciados, tal direito de retenção, quanto ao crédito garantido por essa hipoteca, não opera, o que implica que, nessa parte, apenas lhe pode ser oposta a penhora posterior efectuada na execução sustada, o que lhe confere o direito de ser paga, por esse crédito, antes dos reclamantes (art.º 686º, n.º 1, do Cód. Civil).
É nessa medida que se lhe reconhece razão.

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento parcial à revista, alterando-se o acórdão recorrido no sentido de graduar os créditos reclamados pela seguinte forma:
Em primeiro lugar, o crédito da ora recorrente garantido pela hipoteca registada em 22/4/80;
Em segundo lugar, mas apenas pelo valor, - a determinar com recurso à permilagem provável ou a qualquer outro meio legal de avaliação -, correspondente ao andar retido pelos reclamantes E e marido, o crédito destes;
Em terceiro lugar, o crédito da ora recorrente garantido pela hipoteca registada em 29/12/80;
Em quarto lugar, o crédito do reclamante A até ao montante de 1.450.000$00;
Em quinto lugar, o crédito da ora recorrente na parte em que exceda os montantes máximos garantidos pelas hipotecas que a beneficiam (respectivamente 11.909.250$00 e 7.110.000$00);
Em sexto lugar, o crédito dos reclamantes E e marido na parte em que porventura exceda o valor do andar por eles retido.
Custas por recorrente e recorridos, na proporção de metade por aquela e metade por estes.

Notifique o M. P. para os fins, - se assim o entender -, do disposto no art.º 280º, n.º 1, al. a), da Constituição.

Lisboa, 3 de Junho de 2003
Silva Salazar
Ponce de Leão
Afonso Correia