Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA REGISTO PREDIAL PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE INCOMPATIBILIDADE DIREITO SUBSTANTIVO PRESUNÇÃO IURIS TANTUM FÉ PÚBLICA DESCRIÇÃO PREDIAL | ||
Data do Acordão: | 02/23/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | DR, I SÉRIE, 38, 22.02.2017, P. 1049 - 1057 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA / FUNDAMENTO DO RECURSO. DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / EFEITOS DA POSSE / PRESUNÇÃO DA TITULARIDADE DO DIREITO. | ||
Doutrina: | - ARMINDO SARAIVA MATIAS, Registo Predial: Princípios Estruturantes e Efeitos, Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, p. 31 e ss”. - A. MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 1979 (Reprint Lex), p. 275; - ADRIANO VAZ SERRA, Anotação ao Acórdão do STJ de 12 de Julho de 1963, RLJ ano 97, 1964-1965, n.º 3265, p. 55 e ss., p. - ANTÓNIO QUIRINO DUARTE SOARES, O conceito de terceiros para efeitos de registo predial, Cadernos de Direito Privado n.º 9, 2005, p. 3 e 4; - ANTONIO VENTURA-TRAVESET GONZÁLEZ, Problemas que plantea la doble inmatriculación de fincas y sus posibles soluciones legales, Revista Critica de Derecho Inmobiliario, 1949, Ano XXV, p. 1 e ss.; - ARTUR A. DE CASTRO PEREIRA LOPES CARDOSO, Registo Predial, Sistema, Organização, Técnica, Efeitos, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1943, p. 255; - CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Publicidade e Teoria dos Registos, Almedina, Coimbra, 1966, p. 278; - GERARDO MUÑOZ DE DIOS, Doble Inmatriculación, La Ley 1985, N.º 4, p. 1032 e ss. e p. 1035; - HEINRICH EWALD HÖRSTER, Efeitos do registo, Terceiros, Aquisição “a non domino”, Regesta 1984, p. 122 a 132; - ISABEL PEREIRA MENDES, Código do Registo Predial Anotado e Comentado e Diplomas Conexos, 17.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 175-176; - ISABEL PEREIRA MENDES, O Registo Predial e a Segurança Jurídica nos Negócios Imobiliários, Estudos sobre Registo Predial, Almedina, Coimbra, 2003, p. 5 e ss. e p. 74; - J. A. MOUTEIRA GUERREIRO, Noções de Direito Registral, Predial e Comercial, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 178 e 199 ; , Publicidade e Princípios do Registo, in Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Coimbra, 2010, p. 17 e ss. e p. 40; - J. DE SEABRA LOPES, Direito dos Registos e do Notariado, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 392; - J. GARCIA-MONGE Y MARTIN, El tercero hipotecario ante la doble inmatriculación, Revista de Derecho Privado 1965, p. 873 e ss. e p. 877-878; - JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ, Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário, 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2005, p. 356 e p. 371. - JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A desconformidade do registo predial com a realidade e o efeito atributivo, Cadernos de Direito Privado n.º 31, 2010, p. 3 e ss. e p. 20. ; Direito Civil, Reais, 5.ª Edição, (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 380 e 381; Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, p. 16. - JOSÉ IGNACIO JIMÉNEZ HERNÁNDEZ, Algunas Consideraciones en ... a la Doble Inmatriculación, Libro Homenaje a Jesús López Medel, Centro de Estudios Registrales, Madrid, Tomo I, p. 826 e ss. e p. 832; - JOSÉ LUIS LACRUZ BERDEJO, FRANCISCO DE ASIS SANCHO REBULLIDA, Derecho Inmobiliario Registral, Elementos de Derecho Civil, III bis, Jose Maria Bosch Editor, Barcelona, 1984, p. 11, 12 e 16; - LUIS JAVIER ARRIETA SEVILLA, Fe Pública Registral, Doble Inmatriculación y Usucapión: Comentario a la STSJ Navarra de 30 de Abril de 2008, Revista Juridica de Navarra 2008, p. 183 e ss.; La Doble Inmatriculación Registral, Aranzadi/Thomson Reuters, 2009, Cizur Menor (Navarra), p. 24, 154, 162 e 282; - MANUEL A DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Facto Jurídico em especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra, 1992, p.19 e 20; - MARGARITA HERRERO OVIEDO, Pluralidad de folios registrales para una misma finca: Eliminación de esta disfunción, Libro-Homenaje al Profesor Manuel Amorós Guardiola, Fundación Registral, Colegio de Registradores de la Propriedad y Mercantiles de España, Madrid, 2006, p. 2447 e ss.; - MARIA CLARA PEREIRA DE SOUSA DE SANTIAGO SOTTOMAYOR, Invalidade e Registo, a Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Coimbra, 2010, p. 717-718. - MARIO E. CLEMENTE MEORO, Doble Inmatriculación de Fincas en el Registro de la Propriedad, tirant lo blanch, Valencia, 1997, p. 104; - MÓNICA JARDIM, Código do Registo Predial, Escritos de Direito Notarial e Direito Registal, Almedina, Coimbra, 2015, p. 263 e ss. e p. 282: -HEINRICH HÖRSTER, Zum Erwerb vom Nichtberechtigten im System des Portugiesischen Bürgerlichen Gesetzbuchs, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia, Boletim da Faculdade de Direito, Número Especial, Volume II, Coimbra, 1989, p. 509 a 531; Ignorare legis est lata culpa – Breves considerações a respeito da aplicação do artigo 291.º do Código Civil, Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag, Verlag C. H. Beck, München, 2007, pp. 655 a 683; -J. A. MOUTEIRA GUERREIRO, Publicidade e Princípios do Registo, in Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Coimbra, 2010, p. 17 e ss. e p. 199 -VIDAL RIVERA SABATES, La Atribución del Dominio de una Finca en el Supuesto de Haber Sido esta Doblemente Inmatriculada, Revista de Derecho Privado 2000, p. 527 e 528; | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 688.º, N.º 1. CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1268.º, N.º 2. CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRP): - ARTIGO 7.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 12-01-2012, PROCESSO N.º 74/1999.P1S1. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: - DE 17-03-2011, PROCESSO N.º 74/1999.P1; - DE 28-10-2015, PROCESSO N.º 4290/10.2TBGDM.P1. | ||
Sumário : | Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções; | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Pleno das Secções Cíveis do STJ: Relatório
Em 15/05/2006 AA, Lda intentou contra o Estado português, BB, Lda, CC e DD, acção de condenação, com processo ordinário, pedindo: a) o reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre ambos os prédios rústicos que identifica na petição inicial, afirmando ser a possuidora de forma pública e pacífica da propriedade murada que integra os referidos prédios desde 1998; b) a declaração de que o artigo 1408 urbano do ... constitui uma duplicação do artigo 1002 de ... e que a habitação ali referida se situa totalmente na freguesia de ..., ...; c) a declaração de que a Ré “BB” nunca possuiu o que quer que fosse da propriedade referida e que a descrição predial 620 de ... provém de terrenos anteriormente pertencentes a EE ou FF; d) que fosse reconhecido que da propriedade em causa o mencionado EE apenas foi proprietário da parcela referida no artigo 37 e, consequentemente, caso se entenda que o prédio descrito sob o artigo 620 do ... compreende parte da propriedade em causa e caso se entenda que a Ré “BB” adquiriu essa parcela, se reconheça que da referida parcela o terceiro Réu apenas comprou a parcela do artigo 37; e) que fossem os Réus condenados a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe a posse da Autora sobre a propriedade murada identificada, sob pena de multa, e mantida a Autora na posse da mesma ou subsidiariamente com a exclusão da parcela 37; f) que fosse ordenado o cancelamento do registo efectuado na Conservatória do Registo Predial em 01.03.2012, apresentação 366, sobre a ficha de .... Os Réus contestaram. Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada, tendo os Réus sido absolvidos do pedido. Inconformada a Autora recorreu. O Tribunal da Relação negou provimento à apelação, tendo confimado a sentença apelada. Novamente inconformada a Autora interpôs recurso de revista a 07/03/2014, tendo a revista sido negada pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão proferido a 11/09/2014. AA, Lda, interpôs então, nos termos dos artigos 688.º e seguintes do Código do Processo Civil, recurso para uniformização de jurisprudência quanto à questão jurídica que identifica como sendo a seguinte: “perante o caso de duplicação de descrições prediais e linhas de registo incompatíveis, qual o valor a atribuir o registo derivado do acto mais antigo?” (artigo 10.º do Recurso). Para o efeito invocou uma oposição de julgados entre o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/02/2012, no processo n.º 67/07.0TBCRZ.P1.S1 (doravante designado Acórdão fundamento) e o Acórdão recorrido no âmbito deste processo proferido, como já se referiu, a 11/09/2014. O Ministério Público não respondeu ao Recurso.
O Recurso agora apresentado apresenta as seguintes conclusões: “I. – O acórdão recorrido relativamente à mesma questão fundamental de direito está em oposição com o acórdão do STJ de 23/02/2012, no processo n.º 67/07.0TBCRZ.P1.S1; II. Sendo adoptada a tese do Acórdão fundamento a acção teria de proceder. III. Encontrando-se um prédio duplamente descrito na Conservatória do Registo Predial com inscrições a favor dos AA. e dos RR., verifica-se haver uma concorrência de presunções derivadas do registo, devendo neste caso, prevalecer a que derivar do acto de registo mais antigo, valendo para o efeito a data de apresentação a registo, ou tendo a mesma data o respectivo número de ordem. IV. A resposta à questão da duplicação das descrições prediais e resolução dos registos incompatíveis está nos artigos 6.º n.º 1 e 34.º do Código do Registo Predial. V. Do parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e Notariado Conselho Técnico do Registo Predial [sic] de 16/11/2011, invocado no Acórdão recorrido, colhe-se de fundamental a questão da incompetência dos conservadores do registo predial, ao contrário dos juízes, para, sem intervenção dos interessados ou decisão judicial, procederem à anulação da segunda descrição criada e respectivo trato sucessivo, uma vez constatada a duplicação e a preocupação com a aberração jurídica e negação da essência do sistema registo predial que a duplicação de descrições com traços sucessivos incompatíveis traduz e a que o acórdão recorrido não dá a melhor resposta. VI. O acórdão recorrido, tal como aqueles que o antecedem no mesmo sentido, perante a situação de duplicação de descrições prediais entende implicitamente não haver previsão legal e não integra a lacuna que implicitamente entende existir da forma mais consentânea com o comando do artigo 10.º do Código Civil, pois a regra construída em face daquela entendida imprevisão legal é a da desconsideração dos efeitos de um registo pela superveniência de outro noutra linha de registo anormalmente construída. VII. A norma que o intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, não seria a de atribuição de igual valor a ambos os registos, pois a referida regra põe em causa a essência do sistema do registo predial, ao desconsiderar toda uma linha de registo e todo o trabalho jurídico na sua construção, muitas vezes centenário, pelo simples facto de quase cem anos depois, ter sido aberta uma nova linha duplicada. VIII. Viola assim com o devido respeito, no nosso entendimento, o acórdão recorrido o disposto no artigo 6.º n.º 1 e 34.º do Código do Registo Predial e 10.º do Código Civil. IX. Ao contrário a tese do acórdão fundamento não entende haver lacuna e resolve a questão por aplicação pura, literal e simples do n.º 1 do artigo 6.º do Código do Registo Predial. X. Tem fundamento legal que resulta da expressão clara do artigo 6.º do Código do Registo Predial, plausível, tendo em conta a segurança jurídica que o sistema de registo predial pretende conferir ao atribuir ao primeiro titular o respectivo direito. XI. Dever-se-á contudo ir um pouco mais longe e considerar a antiguidade do trato sucessivo, fazendo prevalecer o trato sucessivo mais antigo e não simplesmente a inscrição de aquisição mais antiga, numa conjugação do disposto no artigo 34.º com o artigo 6.º n.º 1 do Código do Registo Predial. Termos em que deve ser admitido e julgado procedente o presente recurso, fixando-se jurisprudência Uniforme, de acordo com as conclusões e fundamentos propostos ou outros que melhor se entendam, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por outra que julgue procedente a acção”. Defende-se, por conseguinte, a prevalência da linha de trato sucessivo mais antiga sobre a posterior “que deve ser anulada” (artigo 29.º do Recurso), por aplicação dos artigos 6.º n.º 1 e artigo 34.º do Código do Registo Predial. Em conformidade com o disposto no artigo 692.º n.º 1 do Código do Processo Civil o recurso para uniformização de jurisprudência foi aceite, com efeito meramente devolutivo, a 30/04/2015.
Fundamentação O artigo 688.º n.º 1 do CPC permite que as partes interponham recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça profira um Acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido por este mesmo Tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. Tal oposição parece existir efetivamente: No Acórdão fundamento depois de se verificar a existência de uma duplicação das descrições – afirma-se a folha 16 do Acórdão que “em função desta factualidade (…) o prédio aqui em causa encontra-se duplamente descrito na Conservatória do Registo Predial, ou seja, sob o n.º... lavrado inicialmente em 16/11/1994 e sob o número 440 lavrado inicialmente em 29/4/1993” – cuja razão não pôde ser apurada (“não vem apurada a razão desta dupla descrição registral sobre o mesmo prédio”), acabou por decidir-se que “o certo é que se constata uma concorrência de presunções derivadas do registo predial, devendo prevalecer a que derivar do acto de registo mais antigo, valendo para o efeito a data de apresentação a registo ou, tendo a mesma data, o respectivo número de ordem – cfr. art. 1268.º n.º 2 do C. Civil e 6.º n.º 1 do Cód. Reg. Predial”. No caso a presunção derivada do acto de registo mais antigo beneficiava os Réus e não pôde ser ilidida pelos Autores que não lograram provar a existência uma posse anterior. No Acórdão recorrido afirma-se, ao invés, que “independentemente das consequências para efeitos de registo, a verificação de uma dupla descrição sobre o mesmo prédio, constituindo uma negação da própria função de segurança jurídica e fé pública atribuídas ao registo predial, não pode conduzir senão a um conflito de presunções que, enquanto tal se anulam reciprocamente, obrigando cada um dos titulares inscritos a fazer a prova da aquisição originária”. Ainda que nesta caso tenha ficado provado que a duplicação não se deveu a caso fortuito, entendeu-se que em situações de dupla descrição “a fé pública – que se traduz na dupla presunção estabelecida no C. Registo Predial – fica profundamente abalada, porquanto o registo publicita duas presunções de titularidade antagónica que se anulam, retomando a realidade substantiva o seu predomínio”. Trata-se de duas decisões proferidas no âmbito da mesma legislação, sobre a mesma questão de direito – a saber, se havendo uma dupla descrição predial, alguma das pessoas inscritas como titular de direitos sobre o prédio com inscrição lançada em uma das descrições poderá invocar as presunções que decorre do registo (artigo 7.º) contra outra pessoa também inscrita como titular de direitos sobre o mesmo prédio, em outra descrição. A resposta a esta questão era suscetível de ter – como teve efetivamente – um impacto sobre o desfecho das duas causas, justificando-se, pois, a decisão de admissibilidade do presente recurso.
A questão que neste recurso se discute – ou seja, e como já se referiu, o tratamento jurídico das situações de dupla descrição do mesmo prédio e se também nesses casos alguma das pessoas inscritas poderá no confronto de outra igualmente inscrita, mas com inscrição lançada em outra descrição, invocar as presunções decorrentes do registo – é extremamente controversa, tanto na jurisprudência como na doutrina, podendo dizer-se que um dos raros momentos de unanimidade é o que se refere ao carácter gravemente nocivo para o registo (e as suas funções) da existência de duplas descrições do mesmo prédio. “Como é evidente, a duplicação de descrições é um mal”[1] e já foi considerada como “o inimigo público n.º 1 do registo”[2], uma “erva daninha”[3] que urge arrancar e mesmo, nas palavras de um autor espanhol, o “cancro” do registo[4]. Parece, com efeito, poder dizer-se, em relação ao sistema português o que uma autora espanhola afirmou relativamente ao sistema do país vizinho – sistema que, aliás, influenciou o português[5] e que é em muitos aspetos semelhante ao nosso, justificando-se, neste contexto, por conseguinte, uma particular atenção à doutrina espanhola – a dupla descrição representa “uma das maiores patologias do nosso sistema”[6]. Já se verifica uma convergência relativa quanto às causas deste mal: para alguns, trata-se, fundamentalmente, da forma deficiente e primitiva como as descrições são feitas[7], mormente em sistemas sem cadastro (ou em que este não cobre todo o país[8]), para outros, da facilidade com que se admite que alguém venha solicitar a abertura de uma nova descrição[9] e da falta de informatização adequada. Sejam quais forem as causas, compreende-se, sem dificuldade, a seriedade deste mal. O nosso sistema de registo tem uma base real e “assenta na realidade prédio”[10], sendo que “(a) descrição tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios” (n.º 1 do artigo 79.º do Código do Registo Predial). Por conseguinte, “(d)e cada prédio é feita uma descrição distinta” (n.º 2 do artigo 79.º do Código do Registo Predial; veja-se, no entanto o disposto no artigo 81.º). Assim, e como refere JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ, “o ato de registo individualizador do prédio é a descrição” e “no caso do registo predial a conexão de referência é estabelecida de forma relativamente simples: como só há dois assentos, descrição e inscrição, sendo o primeiro a chave de uma organização registal predial de fólio real, como a nossa, a descrição é naturalmente o assento principal e a inscrição o assento secundário”[11]. A resposta dada pelo Código do Registo Predial às duplicações das descrições – aliás, e ao que parece, apenas a algumas, a saber, as duplas descrições totais, porquanto as parciais não parece que sejam abrangidas pelo preceito – no seu artigo 86.º não é, claramente, uma resposta definitiva ao problema: a este propósito observa certeiramente MOUTEIRA GUERREIRO que “quando ocorre uma duplicação há que a remediar logo que possível”[12] e é para isso que existe a mencionada disposição. O preceito limita-se a dispor que “(q)uando se reconheça a duplicação de descrições, reproduzir-se-ão na ficha de uma delas os registos em vigor nas restantes fichas, cujas descrições se consideram inutilizadas” (n.º 1), acrescentando que “(n)as descrições inutilizadas e na subsistente far-se-ão as respetivas anotações com remissões recíprocas”. Relativamente à resposta a dar ao problema da dupla descrição parece-nos poder afirmar-se em Portugal o que um autor espanhol afirma a respeito do país vizinho, a saber, que há “fundamentalmente dois critérios em conflito: um que abstrai das normas e princípios do registo e outro que faz prevalecer a folha cuja descrição foi mais antiga por ter sido a primeira no tempo que procurou a proteção do registo”[13], sem prejuízo de existirem, também, (as quase inevitáveis) teses ecléticas. As teses em confronto são, pois, essencialmente duas: atender aos princípios do registo ou, ao invés, resolver o problema com o apelo apenas às regras do direito substantivo. A primeira tese atende, sobretudo, ao princípio da prioridade no registo (consagrado entre nós no artigo 6.º do Código do Registo Predial), sustentando que só quem tem inscrições lançadas nessa descrição mais antiga é que beneficiará, em rigor, da presunção que consta do artigo 7.º do Código do Registo Predial. Foi essa a tese adotada pelo Acórdão fundamento e tem a seu favor uma parte da doutrina. Neste sentido pronunciou-se, entre nós, ISABEL PEREIRA MENDES, que, tendo afirmado que “se o titular legítimo for diligente a requisitar o respetivo registo nunca se verá envolvido por essas situações propícias à fraude imobiliária, a não ser em casos de duplicação de descrições prediais, cada vez menos frequentes, dado que (…) o princípio da legalidade impõe ao conservador do Registo predial a verificação da identidade do prédio”, conclui dizendo que “(m)as, como é óbvio, se, mesmo assim, a duplicação se verificar, a solução terá que ser buscada através do princípio da prioridade, dando prevalência ao titular do direito legítimo, em primeiro lugar inscrito, sem prejuízo da responsabilidade que eventualmente deve competir ao Estado, por um erro (duplicação) que só ele próprio tem meios para evitar ou eliminar”[14]. A mesma posição é, de resto, defendida por um segmento da doutrina espanhola. Afirma-se, assim, que “aquele que inscreveu um título verdadeiro e válido tem direito em confiar na vigilância que o Estado há-de realizar para sua salvaguarda, mediante a função do conservador, eximindo-o da necessidade de manter uma vigilância praticamente impossível para zelar pela continuidade da sua garantia e impedir a dupla descrição do prédio”[15]. Em suma, quem tem uma inscrição a seu favor lançada na primeira descrição deveria beneficiar dos efeitos do registo e designadamente da fé pública registal, porquanto a segunda descrição nunca deveria ter sido permitida pelo conservador. Diz-se, por vezes, também, em defesa desta tese, que, se em um primeiro momento houve apenas uma descrição, então os titulares com inscrições nela lançadas beneficiaram nesse momento da presunção que resulta do registo, não se compreendendo que uma segunda descrição que deveria ser inválida – porventura nula por violação do traço sucessivo – acabe por destruir os efeitos do registo[16]. A tese oposta, que sustenta que a solução deve ser encontrada com apelo às regras do direito substantivo, sublinha que a dupla descrição mina a própria pedra angular do registo – a identificação do prédio e a exigência de que a cada prédio corresponda uma única descrição – comprometendo, de modo inexorável a função essencial do registo, já que como logo o artigo 1.º do Código do Registo Predial proclama “[o] registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”. A duplicação de descrições de um mesmo prédio (na realidade física ou material) conduz à possível existência de uma aparência jurídica intrinsecamente contraditória. Na sugestiva expressão de um autor, “como se de um castelo de cartas se tratasse desaba a fé pública registal”[17]. Na doutrina nacional importa realçar as palavras de OLIVEIRA ASCENSÂO: “Se do registo constam inscrições paralelas incompatíveis, não pode haver com fundamento em nenhuma delas aquisição pelo registo (…) o próprio registo patenteia a desconformidade. Ninguém pode valer-se da confiança numa inscrição incorreta, quando não está em melhores condições do que aquele que tiver a seu favor uma inscrição verdadeira (…) As posições registais anulam-se, pelo que a realidade substantiva retoma o seu predomínio”[18] Este foi, também, o caminho trilhado, entre nós, pelo Acórdão do STJ de 21 de Abril de 2009 (SEBASTIÃO PÓVOAS) em que se afirmou que “[e]mbora não se coloque uma questão de nulidade de registos, afigura-se-nos que não pode qualquer deles [qualquer dos adquirentes] beneficiar de inscrições lavradas sobre distintas realidades jurídicas, sendo, portanto, aqui inaplicável, o art. 5.º n.º 4 do Código do Registo Predial e entendendo-se ser caso de ineficácia dos registos para esses efeitos (…) Arredadas ficam, em consequência as normas registrais, para prevalecerem as de direito substantivo”, acrescentando-se que “[n]o caso de duplicação de inscrições imputável à Conservatória do Registo Predial, e reportando-se cada uma das escrituras de compra e venda a diferentes identificações registrais, tratou-se de negociar prédios tabularmente distintos, embora fisicamente o mesmo, já que o objeto do registo inclui a realidade material do prédio sobre que recai a inscrição, traduzida na descrição predial (art. 68.º CRP)” e “[s]ob pena de se frustrarem os princípios estruturantes do registo predial, como a publicidade e segurança estática e dinâmica, e se ambos os compradores cumpriram os deveres registrais fazendo inscrever provisoriamente as aquisições a recaírem em diferentes inscrições, nenhum deles deve beneficiar da eficácia dos registos, deixando de valer a regra do n.º 4 do artigo 5.º do Código do Registo Predial para prevalecerem as normas do direito substantivo relativas à venda de coisa alheia”. No mesmo sentido pronunciou-se, posteriormente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/01/2012, processo 74/1999.P1S1 (SERRA BAPTISTA) em cujo sumário se pode ler, designadamente, que: “face à duplicação dos registos prediais sobre o mesmo prédio, não valem, desde logo, quer as regras da eficácia do registo em relação a terceiros (art. 5.ª do Código do Registo Predial), quer as de presunção da titularidade do direito (artigo 2.º do mesmo diploma legal). Ficando, com tal duplicação, inutilizada a função publicitária do registo, sob pena de se frustrarem os princípios estruturantes do registo predial, como a publicidade e a segurança estática e dinâmica também dele derivada, não pode qualquer dos titulares do registo predial sobre o mesmo prédio beneficiar de inscrições lavradas sobre distintas realidades jurídicas, mas que, a final, se reportam a uma única. Devendo, então, prevalecer, não as normas registais, mas as de direito substantivo”. Este mesmo entendimento foi adotado pelo Acórdão recorrido. Também na jurisprudência das Relações se encontram decisões no sentido de resolver o problema da duplicação de descrições prediais com apelo apenas às regras de direito substantivo. Sirvam de exemplo dois Acórdãos da Relação do Porto, o Acórdão de 17/03/2011, Processo 74/1999.P1 (de que foi Relator o então Juiz Desembargador e hoje Conselheiro PINTO DE ALMEIDA) e o recente Acórdão de 28/10/2015, Processo 4290/10.2TBGDM.P1 (JUDITE PIRES). No sumário do primeiro pode ler-se que “havendo duplicação de registos do mesmo prédio, com inscrições a favor de autor e réu, não pode ser invocada, em benefício de qualquer deles, a presunção daí derivada, nos termos do art. 7.º do Código do Registo Predial, nem valem as regras da eficácia do registo em relação a terceiros decorrentes do artigo 5.º do mesmo Código, pelo que devem prevalecer as normas de direito substantivo” e no sumário do segundo afirma-se que “a fé publicada associada ao registo exige que este esteja em conformidade com a situação jurídica substantiva do prédio, permitindo a terceiros, através dele, tomar dela conhecimento”, pelo que “existindo duplicação de registos prediais [e inscrições matriciais] sobre a mesma realidade física – o mesmo prédio – não valem quer as regras da eficácia do registo em relação a terceiros, quer as da presunção da titularidade do direito, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial. Nessa situação, nenhum dos titulares do registo pode beneficiar da presunção que este confere”. Expostas sucintamente as duas teses em confronto – e tendo já sido sublinhado que quer uma, quer outra, encontraram arrimo, tanto na doutrina, como na jurisprudência – bem espelhadas no Acórdão recorrido e no Acórdão fundamento – necessário se torna decidir. Entendemos que a opção não pode deixar de ter em conta a teleologia do registo predial. Este, como já sublinhámos, e resulta do artigo 1.º do Código do Registo Predial, tem como finalidade essencial “dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”. Na verdade, “os registos existem para dar publicidade”[19]. Afigura-se, por conseguinte, que a finalidade principal do registo é a segurança do tráfego e só de maneira reflexa e secundária a segurança dos direitos. Como entre nós afirmou JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ: “os registos públicos estão instituídos para dar a conhecer. Logo, a sua existência justifica-se na necessidade de proteger a confiança de terceiros, isto é, do público em geral, o que é claramente sinónimo de interesse público. Só por reflexo é que os registos públicos protegem (ainda e também) a pessoa a quem diz respeito o facto registável”[20]. Com efeito, a finalidade primária da publicidade registal parece consistir na proteção do tráfego e na agilização e facilitação das transações imobiliárias “ao suprir com a garantia dada pela consulta de um registo público, as complexas indagações sobre a titularidade dos direitos que, de outro modo, seria necessário levar a cabo”[21]. Destarte, se um sistema de registo predial supõe um compromisso e um equilíbrio entre a segurança do tráfego e a segurança dos direitos, é necessário reconhecer que a segurança do tráfego e a segurança dos direitos são aqui, até certo ponto, “conceitos contrapostos”[22]. Por outras palavras, quem consulte o registo predial e encontre descrito o prédio que, por hipótese, pretende comprar, e nessa descrição encontre inscrito como proprietário quem nas negociações que, porventura, já iniciou assumiu o papel de potencial vendedor não tem o ónus de consultar todo o registo para verificar se existe ou não uma duplicação da descrição. Deve poder confiar na aparência criada por este sistema público de registo. E isto é exato, tanto para quem encontre uma das descrições, como para quem se fie na outra descrição do que é, no fim de contas, um mesmo prédio. Se nas duas (ou mais…) descrições do mesmo prédio tiverem sido lançadas inscrições em nome de diferentes titulares, então tanto um, como o outro (ou outros), gozam da presunção consagrada no artigo 7.º do Código do Registo Predial – “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” – pelo que tais presunções, contraditórias entre si, se destroem ou anulam mutuamente[23]. Importa, no entanto, ter presente que para uma parte da doutrina portuguesa a afirmação de que em uma situação de duplicação da descrição do mesmo prédio há várias presunções de sentido oposto, que se destroem mutuamente, não seria exata. Atente-se no exemplo proposto por HEINRICH EWALD HÖRSTER: “Suponhamos que o mesmo prédio se encontra registado a favor de dois proprietários diferentes, sendo um deles o verdadeiro proprietário enquanto o outro nunca o foi. Se ambos os proprietários registados o venderem a compradores diferentes, estes não são terceiros entre si visto não terem adquirido do mesmo transmitente. Apenas aquele comprador adquiriu a propriedade do prédio vendido a quem o foi transmitido pelo verdadeiro proprietário. O outro adquirente fica sem qualquer proteção, uma vez que – tratando-se de uma invalidade material do registo – não pode apoiar-se nas presunções do artigo 8.º do CRP [atual artigo 7.º], nem pode invocar a inoponibilidade do artigo 7.º [atual artigo 5.º]. De resto, qualquer outro resultado seria incompreensível. Quando o facto jurídico subjacente ao registo não confere direitos, não será o registo que os dá”[24]. Para o autor, por força da sua natureza puramente declaratória o registo só produziria uma aparência jurídica a favor de quem fosse o verdadeiro titular do direito[25] e seria “pressuposto da proteção conferida pelo registo que os direitos nele inscritos alguma vez tivessem existido verdadeiramente”[26]. De acordo com esta perspetiva, o registo predial português não garante a quem o consulta que o prédio pertence a quem nele aparece inscrito como proprietário, mas estabelece apenas a presunção iuris tantum de que caso seja essa pessoa o proprietário ela ainda não alienou ou onerou o bem[27]. Também MARIA CLARA SOTTOMAYOR adota uma orientação similar. Afirma a autora, com efeito, que: “Nos casos de falsidade do registo, em que, por exemplo, B obteve um registo falso, sem que tenha celebrado qualquer negócio jurídico com o verdadeiro proprietário (A) e transmitiu a C, que confiou na aparência e registou a sua aquisição, a protecção imediata do terceiro representa uma expropriação do verdadeiro titular, à responsabilidade de quem não pode ser imputada a perda do seu direito, pois nestas situações pode ser impossível ou muito difícil ter conhecimento do registo falso (…) Não basta a mera actuação com base num registo incorrecto (…) Tal permitiria, no nosso sistema, que se verificassem autênticas expropriações do verdadeiro proprietário, sem o concurso deste, e por mero erro dos serviços registrais. O princípio da fé pública do registo tem necessariamente, nos sistemas de registo declarativo, um âmbito de aplicação mais limitado, e não representa um caso de tutela da aparência registal”[28]. Também para esta autora só se pode genuinamente afirmar a existência de presunções registais em relação a direitos que efetivamente existem no plano substantivo[29]. Esta posição doutrinal insere-se, de resto, em uma linha de pensamento adotada, no passado, por alguns dos mais ilustres civilistas portugueses: sirvam de exemplo os nomes de VAZ SERRA[30] e de MANUEL DE ANDRADE[31]. É certo que podemos classificar todos os registos em dois grupos: “os que se limitam a garantir que quem aparece como dono do prédio (ou titular do direito real limitado) não alienou a sua titularidade e os que asseveram que o titular do prédio segundo os livros é o verdadeiro titular”[32]. O primeiro modelo corresponde, como é sabido, ao modelo francês e no passado terá sido possível questionar se não corresponderia melhor ao nosso registo. Hoje, no entanto, e face ao artigo 7.º do Código do Registo Predial não parece possível sustentar que o nosso registo predial seja ainda do modelo francês. Bem ao invés o artigo 7.º contém hoje, para alguma doutrina, uma dupla presunção, ao presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito e isto “nos precisos termos em que o registo o define”: uma presunção de verdade e uma presunção de exatidão[33]. Ora esta presunção – ou presunções – não pode(m) depender, quanto a nós, da validade substantiva dos negócios que aparecem inscritos em um trato sucessivo. Se o registo visa essencialmente dar publicidade à situação jurídica dos prédios, criando uma aparência em que terceiros podem confiar, as presunções que resultam do registo não podem depender na sua existência de circunstâncias a que os terceiros, normalmente, não têm qualquer acesso. Os terceiros não terão, com efeito, normalmente, conhecimento (ou sequer possibilidade de saber) se em algum momento da cadeia de transações que se exprime no trato sucessivo houve ou não um negócio nulo e não lhes é exigível uma tal indagação para que beneficiem da presunção, aliás ilidível, que resulta do registo, de acordo com o artigo 7.º. Em suma, e como ensina MENEZES CORDEIRO, a presunção começa por operar, mesmo que haja invalidades, tanto registais, como substantivas[34]. E, em bom rigor, reconhecer a existência desta presunção, mesmo que a descrição duplicada e as inscrições nela lançadas não correspondam a um direito efetivamente existente no plano substantivo, não é atribuir um efeito constitutivo ao registo. Com efeito ao reconhecer-se que a aparência criada pelo registo, nos casos de duplicação de descrições do mesmo prédio com diferentes titulares inscritos, é intrinsecamente contraditória, com a consequência de que se deve procurar resolver a situação como se não existisse registo, não se deixa desprotegido o verdadeiro proprietário. Este terá que provar a existência da propriedade, mas poderá, também, em certas hipóteses, beneficiar de outras presunções, como a que resulta da posse. É legítima a preocupação em evitar que o registo se converta em instrumento para a “expropriação” do verdadeiro proprietário, mas a remissão para a aplicação das regras e princípios do direito substantivo não representa tal perigo. Os argumentos aduzidos pelos defensores da tese oposta não se afiguram convincentes. O princípio da prioridade no registo, consagrado no artigo 6.º do Código do Registo Predial parece referir-se às inscrições que forem lançadas na mesma descrição do prédio, pressupondo, por conseguinte, que foi respeitada a pedra angular do registo, a existência de uma descrição para cada prédio (n.º 2 do artigo 79.º do Código do Registo Predial) suscetível de o identificar. É “no seguimento da descrição do prédio [que] são lançadas as inscrições ou as correspondentes cotas de referência” (n.º 3 do artigo 79.º) e “as inscrições só podem ser lavradas com referência a descrições genéricas ou subordinadas” (n.º 2 do artigo 91.º). Assim a prioridade a que se atende no artigo 6.º é a prioridade das inscrições no mesmo registo, mas não a prioridade das descrições, não constituindo a prioridade na data da descrição critério adequado para resolver os problemas resultantes da duplicação das descrições [35]. Por outras palavras, o critério da prioridade do registo não é critério para resolver casos patológicos como o presente em que o registo proclama simultaneamente que um prédio é, por hipótese, propriedade exclusiva e ao mesmo tempo de A e de B. A inexatidão do registo é aqui de tal magnitude[36] que impede o funcionamento normal das regras e princípios próprios do direito registal. E também não o seria o critério defendido no recurso da antiguidade do trato sucessivo. Em primeiro lugar não está afastada a possibilidade de ser um dos titulares que consta do trato sucessivo mais antigo quem criou a duplicação da descrição para nesta nova descrição ser registada uma alienação, “reservando” a primeira descrição a uma outra transmissão operada por hipótese para um testa-de-ferro. Em suma, “o facto de que uma inscrição seja mais antiga que a outra não implica necessariamente que a primeira seja o reflexo no registo da verdade extra registal e que a segunda represente sempre a fraude ou o erro constitutivos da dupla descrição”[37]. Mas e sobretudo porque, como já foi referido, a proteção de quem confiou na aparência do registo não pode depender de factos cujo conhecimento lhe era extremamente difícil, quando não praticamente impossível, como a existência de uma outra descrição do mesmo prédio, com um trato sucessivo porventura anterior… Aliás, se a solução resultasse, como se afirma no recurso, da aplicação simples e literal do artigo 6.º e do princípio da prioridade no registo então mal se compreenderia a solução provisória e cautelosa do n.º 1 do artigo 86.º do Código do Registo Predial. Muito embora no recurso se tente apresentar esta solução como uma mera divisão de competências entre o conservador e o juiz, a verdade é que se a solução destes casos de dupla descrição fosse para o legislador a nulidade da segunda descrição e a inutilização pura e simples do trato sucessivo nela contido então não só não se vislumbra por que é que o conservador não tem legitimidade para fazer essa simples operação de comparação das datas e das respetivas antiguidades, mas, bem ao invés, a lei manda que na ficha de uma delas se reproduzam os registos em vigor nas restantes fichas. Como já dissemos, a dupla descrição do mesmo prédio mina a pedra angular do registo e compromete inelutavelmente a função da descrição, criando uma aparência contraditória em que o registo profere simultaneamente uma afirmação e o seu contrário (podendo resultar das inscrições, por exemplo, que A é proprietário pleno do prédio, mas que B também o é no mesmo período). Perante uma falha de tal magnitude, a melhor solução foi a encontrada pelo Acórdão recorrido: as duas presunções de sentido oposto destroem-se mutuamente[38], sem que se trate aqui, em rigor, de qualquer preenchimento de uma lacuna. Importará, no entanto, fazer aqui uma ressalva. Apesar da importância concedida à aparência criada pelo registo importa reconhecer, no entanto, que também aqui a tutela concedida a quem confia nessa aparência deve restringir-se aos terceiros de boa fé. Nas palavras de CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA “não existe autêntico conflito entre a boa fé e a tranquilidade ou segurança de terceiros, já que só parece ser merecedor de protecção este valor quando se apoia numa aparência dada pelo registo” e “essa aparência não é compatível com o conhecimento efectivo dos factos”[39]. Aliás e ainda que a propósito de um outro problema – o de terceiros para efeitos de registo – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Uniformização de Jurisprudência de 18 de Maio de 1999 atendeu à boa fé, ao definir que “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”. Pode, pois, afirmar-se que também neste contexto se adotou a perspetiva de que “o princípio da boa fé constitui uma reserva moral do sistema jurídico”[40]. Transpondo para o plano da dupla descrição estas considerações deverá reconhecer-se uma exceção à regra da destruição recíproca das presunções resultantes do registo, no caso de dupla descrição predial, quando quem invoque a presunção resultante de uma das inscrições prove que o outro titular inscrito em outra descrição agiu de má fé. Importará, no entanto, não apenas provar a má fé – porque como recentemente escreveu QUIRINO SOARES[41], deve entender-se que a boa fé se presume – mas ser aqui particularmente exigente quanto ao conteúdo da má fé que deverá corresponder a um comportamento fraudulento. Com efeito, e desde logo, como já foi mencionado, quem consulta o registo e encontra uma ficha e a descrição de um prédio estará para este efeito de boa fé se ignorar a existência de outra descrição. Mas mesmo que conheça a existência de outra descrição (ou por já ter sido aplicado o artigo 86.º se aperceba na mesma descrição da existência de dois tratos sucessivos paralelos) pode não ter meio de determinar qual das descrições corresponde à realidade extra tabular. Afigura-se, pois, que só estará de má fé quem seja responsável pela criação fraudulenta da situação de duplicação das descrições ou quem tenha, pelo menos, conhecimento dessa fraude. Decisão: Acorda-se no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em: - Uniformizar jurisprudência nos seguintes termos: Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções; - Confirmar o Acórdão recorrido; Custas pelo Recorrente.
Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Fevereiro de 2016 - Júlio Gomes (Relator) - Manso Raínho - Maria da Graça Trigo - Sebastião Póvoas - Alves Velho - Pires da Rosa - Bettencourt de Faria - Salreta Pereira - João Bernardo - João Camilo - Paulo Sá - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Oliveira Vasconcelos - Fonseca Ramos - Ernesto Calejo - Helder Roque - Salazar Casanova - Lopes do Rego - Orlando Afonso - Távora Victor - Gregório da Silva Jesus - Fernandes do Vale - Fernando Bento - Martins de Sousa - Gabriel Catarino - João Trindade - Tavares de Paiva - Silva Gonçalves - Abrantes Geraldes - Ana Paula Boularot - Maria Clara Sottomayor - Pinto de Almeida - Fernanda Isabel Pereira - Tomé Gomes - António Henriques Gaspar (Presidente) ----------------------
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