Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P1856
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: BRISA
LEI INTERPRETATIVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200809090018561
Data do Acordão: 09/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: DEFERIDA PARCIALMENTE A RECLAMAÇÃO
Sumário :


I - Perante o art. 12.º da Lei n.º 24/2007 de 18-07 é hoje claro que, em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária.

II - Esta norma tem o carácter de interpretativa pelo que deve ter aplicação imediata.

III - Entendemos ser impróprio falar-se que a Lei introduziu a responsabilidade objectiva para a concessionária. Não o fez, apesar de se considerar, face ao nosso entendimento, ter-se tornado mais difícil, mas não impossível, o afastamento da presunção de incumprimento que impende sobre si.

IV - A Concessionária só afastará essa presunção, se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I- Relatório:
1-1- No Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, Z..., Companhia de Seguros S.A., com sede na Rua Barata Salgueiro, ..., 1200, Lisboa, propõe a presente acção com processo ordinário contra B..., Auto Estradas de Portugal, S.A., com sede na Quinta da Aguilha, Edifício B..., 2785-599, São Domingos de Rana, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de 15.035,85 €, bem como dos juros, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Fundamenta este pedido, em síntese, alegando que no exercício da sua actividade de seguradora, celebrou com a empresa que identifica um contrato de seguros para cobertura da circulação rodoviária do veículo ligeiro de passageiros que indica. Sucede que no dia e hora referenciados, circulando a viatura por uma auto-estrada concessionada à R., em virtude do atravessamento da via por um canídeo, o veículo sofreu um acidente de que resultaram danos indicados que ela, seguradora, pagou à sua segurada. O animal entrou na via devido ao facto de a R. não ter vedado a auto-estrada no local de forma eficaz e apta a impedir a entrada aí de canídeos. A R. não cumpriu as suas obrigações de concessionária da auto-estrada, designadamente a que a obriga a manter a via vedada em toda a sua extensão.
A R. contestou negando qualquer responsabilidade pelo acidente e impugnando, por desconhecer, o montante do dano alegado pela A..
Termina pedindo a improcedência da acção.
Pediu a intervenção da Companhia de Seguros F..., S.A. (com o fundamento de ter celebrado com ela um contrato de seguro de responsabilidade civil decorrente da concessão da auto-estrada onde ocorreu o acidente em questão) e da M..., Seguros Gerais S.A..
Por despacho judicial (de fls. 107 a 109) foi deferida a intervenção da Seguradora F..., mas indeferida a intervenção da M..., Seguros Gerais S.A.
Citada aquela Seguradora, a mesma contestou, reafirmando, de essencial, a posição assumida pela R. B....
Igualmente pede a improcedência da acção.
O processo seguiu os seus regulares termos com a elaboração do despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se procedeu à audiência de discussão e julgamento, se respondeu à matéria de facto controvertida e se proferiu a sentença.
Nesta julgou-se improcedente a acção, absolvendo-se a R. do pedido.
Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí, por acórdão de 29-1-2008, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida11 No acórdão, dada a confirmação da sentença de 1ª instância, considerou-se prejudicada a apreciação do agravo da apelada, de harmonia com o art. 710º nº 1 in fine do C.P.Civil, interposto do despacho judicial de fls. 261 que admitiu a substituição de testemunhas..
1-2- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Na douta sentença de 1ª instância, foi reconhecida a existência do dano sofrido pela Autora, e também do nexo causal entre o facto e o dano, mas o pagamento da indemnização ficou dependente da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, no caso das relações da B... com os simples utentes da Auto-Estrada.
2ª - A tese em causa é discriminatória. De facto, se o veículo que sofreu o dano fosse do Estado, com quem a B... celebrou o contrato de concessão, já tinha direito a ser indemnizado. Não pode ser!
3ª- Por outro lado, impõe um ónus excessivo ao comum utilizador de Auto-Estradas com portagens. O utente da auto-estrada, ainda que terceiro em relação ao contrato de concessão, não tem de provar todos os requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito. Verifica-se, no caso concreto, uma inversão do ónus da prova.
4ª- No douto acórdão recorrido já foi admitida, sem reservas, a referida inversão do ónus da prova mas foi entendido que a “B...” elidiu a presunção que sobre si impende, pelo facto da rede de vedação ter a altura de 1,10 metros e se encontrar em perfeito estado de conservação.
5ª- Não se pode concordar com tal conclusão.
6ª- Nos casos de auto-estrada com portagem, existe um contrato inominado de utilização da via celebrada entre o utente que paga a taxa de utilização e a concessionária que tem a obrigação de fornecer ao utente um serviço com toda a segurança. A B... tem de assegurar ao utente uma utilização da via com plena segurança.
7ª- Por força de contrato a B... é obrigada a garantir permanentemente a segurança da circulação rodoviária da A1 (Dec-Lei nº 294/97).
8ª- A R. “B...” deverá ser sempre condenada, quer se considere que estamos perante um contrato inominado de utilização quer se considere que os diplomas de concessão de exploração à B... consagram a responsabilidade aquiliana desta perante o utente.
9ª- Na realidade, nos acidentes com animais (ou com outros objectos) em auto-­estradas quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança.
10ª- O utente, pelo contrário, depara-se com uma dificuldade congénita em recolher meios ou elementos de prova: ele percorre mais ou menos conjunturalmente a AE, não pode permanecer no seu interior para além de certos limites horários, não tem (a não ser muito excepcionalmente) equipamentos técnicas de recolha de prova.
11ª- A concessionária assume, através do contrato de concessão, o dever de garantir permanentemente a segurança da circulação rodoviária na AE; daí que deva usar meios tecnológicos idóneos a tal desiderato que, com frequência, servirão também de meios de prova da sua diligência.
12ª- No diploma de 1991 que regulava a concessão conferida à B... pela exploração da A1 (D.L. nº 315/91 de 20/8), esse dever de segurança já nos aparece concretizado em diversos itens nomeadamente (no que agora importa) no dever de realização de um determinado leque de obras acessórias (cfr. bases XXIII nºs. 8 e 11 e XXIX). Mas no diploma seguinte (D.L. nº 294/97 de24/10) tal dever aparece­-nos reforçado num conjunto mais especificado de deveres de cuidado e de obras acessórias que aprofundam em intensidade a segurança que cabe à B... garantir.
13ª- Assim, não só se impõe à concessionária a vedação total das passagens superiores em casos que ocorrem frequentemente (base XXII, n°5) como se prevê a monitorização do tráfego, detecção de acidentes e sistema de alerta ao utente através de equipamento técnico adequado (base XXXVI). O que aqui se consagra não é um modelo que serve tão só para reforçar a segurança da circulação em AE; é também algo que obviamente serve de meio de prova à concessionária porque quem monitoriza, detecta e alerta o utente fica simultaneamente com a comprovação do que realizou através do sistema tecnológico que domina e detém, como aliás expressamente se prevê na base XVIII, nº 6 quanto a certas infracções.
14ª- A maior facilidade de prova neste tipo de acidente cabe à B.... Deve ser ela, pois, a acarretar com o ónus da prova, atentos os princípios acima enunciados.
15ª- A B... deverá ser sempre responsabilizada quer se siga a via da responsabilidade contratual, quer a da extra-contratual.
16ª- Caso a responsabilidade seja contratual por estarmos perante um contrato inominado de utilização, cabendo à B... provar a ausência de culpa por força da presunção constante do art. 799º; caso a responsabilidade seja extra-contratual a situação é similar porquanto a base XXXIX, n°.2, do D.L. n°315/91 consagra uma presunção de culpa (mantida nos mesmos termos pelo diploma de 1997) na sequência, aliás, da filosofia já constante de normas que regulam a responsabilidade aquiliana por omissão (arts. 486º e 491º
17ª- A utilização das AE por utentes que para tanto pagam uma taxa de portagem proporcional à dimensão da utilização e do serviço que lhes é prestado, configura um contrato inominado de utilização nos termos exactos em que ele é definido no Acórdão de 22/6/04 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Afonso Correia).
18ª- Trata-se de um contrato bilateral, oneroso, em que à prestação de utilização de uma via com segurança e comodidade reforçadas (e onde é possível atingir patamares de velocidade e de ganho de tempo impensáveis em estradas normais) corresponde, da parte do utente, o pagamento de um preço variável em função da extensão quilométrica da utilização.
19ª- Por conseguinte, nas AE com portagem estamos perante contrato inominado, mediante o qual o utente utiliza a via com segurança pagando determinado preço e a concessionária assegura um conjunto de deveres que vão desde a assistência ao utilizador até à comodidade e à segurança permanente na circulação.
20ª- O incumprimento deste contrato rege-se pelas normas gerais da lei civil quanto à matéria, daí que - verificado o incumprimento de uma das partes - o contraente fiel possa exigir o cumprimento em espécie ou em sucedâneo presumindo-se a culpa do faltoso nos termos do art. 799º do Código Civil.
21ª- Por força do contrato referido a R. era obrigada a garantir permanentemente a segurança da circulação rodoviária na A1 e o trânsito de veículos com toda a comodidade. Não foi o que sucedeu no presente caso.
22ª- O aparecimento repentino de um cão na faixa de rodagem coloca em risco obviamente essa segurança tanto assim que (por isso mesmo) é expressamente proibida a circulação de animais nas AE (art. 69º do Código da Estrada em vigor à data do acidente; que corresponde ao art. 72º do Código Estrada actualmente em vigor); dir-se-á mesmo que o aparecimento daquele animal é a negação da segurança viária que cabe a R. tem que proporcionar aos utentes da via.
23ª- O incumprimento objectivo daquele contrato faz presumir, nos termos já referidos, a culpa da Ré; daí que, para a ilidir, devesse esta mostrar que lhe era de todo impossível evitar a presença do cão na via e que só um facto inelutável e que ela não conseguiu controlar, provocou aquele evento.
24ª- A B... não provou que lhe era de todo impossível evitar a presença do cão na via, vale isto por dizer que a R. não ilidiu a presunção de culpa que sobre ela recaía.
25ª- De facto, a B... apenas provou, de forma genérica, que tinha patrulhado a área, como faz todos os dias e que a rede de vedação tinha a altura de 10 metros e se encontrava em perfeito estado de conservação.
26ª- Torna-se manifesto, no caso concreto que o patrulhamento da via de duas em duas horas e uma rede de protecção com 1,10 metros de altura não são de per si suficiente para impedir o aparecimento de um cão de grande porte na A1. Não são, como, efectivamente, não foram suficientes para evitar o aparecimento do referido cão.
27ª- Esta é, pois, a grande divergência da A. em relação às decisões das instâncias.
28ª- O mesmo não se diria caso a rede de protecção tivesse 2,00 metros de altura pois, nesse caso, já seria razoável presumir ou concluir que um cão não a conseguiria transpor. Com uma rede de 1,10 metros de altura, qualquer cão pode dar um saltinho e, em segundos, temos um acidente grave.
29ª- As medidas tomadas pela Ré (patrulhamento regular e colocação de uma rede com 1, 10 metros de altura) não são, nem foram, suficientes para evitar o aparecimento de um cão de grande porte na via.

30ª- Entender, como foi entendido pelas instâncias, que tais medidas são suficientes e afastam a presunção de culpa, é permitir, objectivamente, que acidentes deste tipo se voltem a repetir sendo, aliás, do conhecimento geral que se têm repetido.

31ª- Daí que se imponha a condenação da R.. Esta sabe, e não pode ignorar que a colocação de urna rede com 2, 00 metros de altura à volta da AE já consegue evitar a entrada de um cão de grande porte na via de circulação automóvel. É certo que tal medida traz custos. Mas também se podem evitar a perda de vidas humanas.

32ª- Ainda que se visse nos acidentes de viação em AE provocados por animais um caso de eventual responsabilidade extracontratual da concessionária, parece-nos também manifesto que a base XXXVI, n°2. do diploma de 1997 (que mantém literalmente a redacção normativa anterior) consagram uma inversão do ónus da prova presumindo a culpa da concessionária. E a B... não ilidiu tal presunção.

33ª- De facto, a B... é obrigada a assegurar permanentemente em boas condições de segurança....a circulação nas auto-estradas, excepto em caso de força maior devidamente verificado.

34ª- Sobre a B... recai a obrigação permanente de garantir a segurança rodoviária nas AE que lhe são concessionadas, responsabilizando-se pelos danos sofridos por utentes (condutores e não condutores -, como se infere da base LIII do diploma de 1991) em virtude de qualquer quebra danosa de segurança só lhe sendo possível eximir-se de responsabilidade se se comprovar que a quebra de segurança adveio de caso de força maior.

35ª- No caso dos autos, o aparecimento do cão no meio da AE corresponde a uma grosseira violação da segurança do tráfego, não só porque é suposto que nenhum animal circule numa via rápida como também porque esta permite velocidades superiores às de uma estrada normal.

36ª- A previsibilidade do evento está, por conseguinte, fora do panorama do utente: daí que a quebra de segurança seja de imputar à Ré.

37ª- Caberia a esta provar que a presença do cão não se deveu a falta obrigacional sua; para tanto deveria provar que o cão surtiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na AE intencional ou neg1igentemente por alguém

38ª- Essa prova incumbia à Ré. O simples patrulhamento no local, de duas em duas horas, não impediu, nem é apto a impedir este tipo de eventos. Nem, tão pouco, uma rede de protecção com 1,10 de altura, como é manifesto.

39ª- A concessionária só ficará justificada pela sua falha em caso de força maior devidamente verificado ou seja, devidamente comprovado por ela própria já que só ela está interessada em prová-lo.

40ª- Caso de força maior será não apenas aquele que obedece aos parâmetros exemplificativos desta norma mas também um auto de terceiro que a concessionária não pode condicionar, inverter ou impedir.

41ª - Por isso, qualquer animal abandonado por alguém numa AE, qualquer apedrejamento executado de fora ou no interior da própria via ou outro acto similar da autoria de terceiros enquadrará o caso de força maior se tiver sido “devidamente verificado”. Não o foi, no caso concreto dos autos.

42ª- A repartição do ónus da prova deverá ser feita do modo seguinte: à A. cabe demonstrar a existência objectiva do facto ilícito (que acarreta consigo a presunção de culpa do agente), dos danos e do nexo de causalidade adequada entre o facto e os danos; à R. cabe comprovar a existência de um caso de força maior devidamente verificado, que exclui a sua culpa e a irresponsabilize.

43ª- A norma que protege interesses alheios e que se viola é precisamente a do nº 2 da referida base XXXIX do diploma de concessão de 1991; e a ilicitude objectiva que emerge dessa violação acarreta a culpabilidade no acto praticado.

44ª- Também aqui a violação objectiva de disposição legal que tutela interesses alheios faz presumir a culpa do agente infractor é a ele, pois, que cabe provar a sua própria ausência de culpa para ser irresponsabilizado.

45ª- O cão apareceu na A1 sem se saber como veio e de onde veio, o que equivale a dizer que a Ré B... não ilidiu a presunção devendo sofrer os efeitos do incumprimento desse ónus

46ª- A douta decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos arts. 342° nº 1, 483°, 486°, 487° nº 2 , 491°, 493° e 570° e 799° do Código Civil, 659° nºs 2 e 3 e 660° nº 2 do Código de Processo Civil e as referidas Bases dos Dec.Lei n°315/91 de 20/8 e Dec-Lei nº 294/97 de 24/10.

A parte contrária contra-alegou, sustentando a negação da revista. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3, ex vi do disposto no art. 726º do C.P.Civil).
Nesta conformidade serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Ónus da prova do cumprimento das obrigações.
- Presunção de culpa e sua elisão.
2-2- Vem provada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1- No dia 27 de Janeiro de 2000, pelas 10h e 15 m. o veículo de matrícula ...-...- ML, propriedade de “S... - Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.” conduzido por AA, seguia pela auto-estrada do Norte, sentido Norte-Sul, ao Km. 270, circulando à sua frente um veiculo ligeiro.

2- No local, a auto-estrada dispõe de duas filas de trânsito, atento o sentido Norte-Sul, de uma berma à direita e do lado oposto dispõe de um separador central composto por uma guia metálica.

3 - Os veículos acima referidos circulavam a uma velocidade de, pelo menos, 100 km hora, pela hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha.

4 - Um cão vindo da berma direita penetrou na faixa de rodagem e procedeu ao seu atravessamento a correr, iniciando a travessia à frente do veículo que precedia o ML

5- O veículo que precedia o ML travou.

6- O condutor do ML, certificando-se previamente que nenhum veículo circulava nessa hemi-faixa, desviou-se para a hemi-faixa da esquerda.

7- O cão conseguiu fugir ao impacto com o veículo que precedia o ML e avançou para a hemi-faixa esquerda, onde já circulava o ML, interpondo-se à frente deste a uma distância inferior a 10 metros

8- O condutor do ML tentou travar, mas embateu com a parte frontal do veículo no cão.

9- Um ou dois segundos após o embate no cão, o veículo ML foi embatido na parte traseira pelo veículo de matrícula ...-...-FF, o que provocou a projecção do ML a cerca de 40/50 metros, de encontro aos “rails” do separador central, onde chocou com a sua parte frontal; depois disso rodopiou e acabou por se imobilizar na hemi-faixa esquerda da via, mais de dez metros para além do local onde chocou com os “rails”

10- O veículo FF circulava atrás do ML a urna distância inferior a 20 metros, seguia carregado com mercadorias de peso superior a cinco toneladas e não travou

11- O local do embate configura uma curva à esquerda com visibilidade superior a 50 metros.

12- O condutor do ML conduzia sob as ordens, instruções, conhecimento e consentimento de “S... - Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.”

13- O veículo FF era conduzido por BB sob as ordens, instruções, comando e com o consentimento de M..., Logística e Transportes de Mercadorias Lda.

14- Em consequência do embate, o ML ficou destruído na parte frontal e traseira, tendo o custo da sua reparação sido orçado, sem desmontagem, em 4.000.000$00.

15- A A. pagou à “S... Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.” a quantia de 3.724.000S00 e recebeu de CC a quantia de 726.000$00 correspondente aos salvados do ML.

16- A A. pagou a quantia de 11.423$00 relativa ao reboque do veículo do local do embate até à oficina e a quantia de 4.995$00 relativo a despesas do foro clínico do condutor do ML.

17- A R. B... procede ao patrulhamento da auto-estrada durante 24 horas por dia.

18- À data do embate, os patrulhamentos da R. B..., passavam no local de 12 a 15 vezes por dia a intervalos regulares; na manhã do acidente, o cão não foi avistado pelo patrulhamento de tal R. em nenhuma das suas passagens.

19- À data do embate, a GNR/BT patrulhava o local e não comunicou à R. “B...” a presença do cão.

20- A R. “B...” verifica periodicamente o estado de conservação das redes de vedação laterais e procede à sua reparação imediatamente após a detecção de algum rompimento.

21- No dia, hora e local do acidente a rede de vedação da auto-estrada encontrava-se em perfeito estado de conservação, não tendo sido detectada na mesma qualquer anomalia que permitisse a entrada de animais.

22- A vedação existente junto ao local do embate tinha a altura de 1,10 metros: a mesma obedece ao modelo aprovado pela (então) JAE.

23- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ... a “S... - Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.” transferiu para a A. a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-..-ML, o qual abrangia, para além do mais, os riscos de choque e colisão sendo, quanto a esta garantia, mediante o pagamento de uma franquia de 2%: tal contrato abrangia ainda o valor de substituição em novo durante os primeiros dois anos.

24- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 87/38299, foi transferida para a interveniente Companhia de Seguros F... Mundial, S.A., a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações devidas a terceiro pela R. “B...” na sua qualidade de concessionaria de exploração da auto-estrada A1, com uma franquia a cargo da segurada de 748,20 euros.
2-3- A questão que debate no presente processo, responsabilidade das concessionárias de auto-estradas por acidentes nelas ocorrido em razão de animais que aí se introduzem, tem sido amplamente debatida na nossa jurisprudência e na doutrina. As decisões proferidas nos tribunais têm sido numerosas e nem sempre coincidentes.
Segundo uns, nas auto-estradas com portagens (o que sucede no caso vertente), existe um contrato inominado de utilização da via, celebrado entre o utente, pagador da taxa de utilização, e a concessionária que fornece o serviço. Ainda na tese contratual, deve inscrever-se a que considera existir um contrato de concessão celebrado entre a concessionária e o Estado, mas sendo beneficiário o utente da auto-estrada. Seria como um contrato a favor de terceiro que tinha por base o contrato de concessão celebrado entre a concessionária (B...) e o Estado, sendo terceiros os utentes das auto-estradas. Mediante este contrato os contratantes atribuem a terceiro um direito subjectivo que este pode autonomamente exercer contra a concessionária. Por fim, a tese da responsabilidade aquiliana, segundo a qual a concessionária responderá perante terceiros se, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (art. 483º nº 1 do C.Civil, diploma de que serão as disposição a referir sem menção de origem). Perante esta tese, o único contrato que existe é o que se estabeleceu entre o Estado e a concessionária (a que é alheio o utente), pelo que a responsabilidade a considerar será a extracontratual.
A adesão a cada uma das teses, designadamente às contratuais ou extracontratual tem evidente relevância prática, visto que, se se considerar que estamos no âmbito da responsabilidade contratual da concessionária, funciona contra ela a presunção de culpa a que alude o art. 799º, pelo que caberá à concessionária a prova de que agiu sem culpa, invertendo, assim, a presunção juris tantum imposta por lei (arts. 342º, 344º nº 1 e 350º). Se pelo contrário nos circunscrevemos na responsabilidade extracontratual, então, nos termos do art. 487º nº 1, é ao lesado que cabe provar a culpa do autor da lesão.
Neste Supremo Tribunal, também as diversas teses foram sendo adoptadas, sublinhando-se que a que defendia a tese da responsabilidade extracontratual se revelou predominante (entre muitos, Acórdãos 20-05-2003 (www.dgsi.pt/jstj.nsf, relator Conselheiro Ponce de Leão e de 12-11-1996 BMJ 461, 411 relator Conselheiro Cardona Ferreira) se bem que ultimamente se tenha esboçado uma tendência de adesão à tese contratualista, designadamente a partir da prolação do Acórdão de 22-06-2004 (www.dgsi.pt/jstj.nsf, relator Conselheiro Afonso Correia), altura a partir da qual o acórdão passou a ser regularmente citado por arestos posteriores.
Igualmente a doutrina se pronunciou sobre a questão debatida, da natureza jurídica da responsabilidade cível das concessionárias de auto-estradas, sustentando uns ocorrer a responsabilidade extracontratual (v.g. os Profs. Meneses Cordeiro - in Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, Estudo do Direito Civil Português, 2004, pág. 56 e Carneiro da Frada in parecer apresentado na Revista deste STJ nº 650/07) e outros a responsabilidade contratual (v.g. Prof. Sinde Monteiro in Revista de Legislação e Jurisprudência anos 131- 41 e segs., 132º 29 e segs. e 133º 27 e segs.).
Entendemos ser desnecessário alongarmo-nos sobre estas teses, visto que foi, entretanto, publicada a Lei 24/2007 de 18/7 que veio estabelecer no seu art. 12º:
1- Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais”.
Quer dizer e para o que aqui interessa, perante esta disposição é hoje claro que em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária. Ou seja, este dispositivo pôs fim à polémica relativa ao ónus da prova, remetendo a discussão sobre a natureza jurídica da responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas para fundamentos meramente teórico/académicos.
Claro que antes discutia-se o ónus da prova da culpa e hoje a lei fala em ónus da prova do cumprimento. Entende-se, porém ser irrelevante esta particularidade, visto que também na responsabilidade contratual, como decorre do disposto no art. 799º nº 1, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua. Resulta desta presunção que ela abrange não só a culpa como também a ilicitude do devedor. Na origem do não cumprimento existe uma conduta ilícita do devedor e que essa conduta é também culposa (vide Prof. Carneiro da Frada in Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra 1994, págs. 92 e segs. referido no dito parecer).
Terá aquela disposição aplicação ao caso vertente?
Como se sabe, nos termos do art. 12º nº 1 as normas, em regra, não têm aplicação retroactiva, razão porque não de deveria aplicar, em princípio, à situação em causa, já que ocorreu antes da entrada em vigor do dito preceito. Todavia as leis interpretativas devem integrar-se na lei interpretada e consequentemente têm aplicação imediata. A lei interpretativa deve considerar-se como remontando à data da lei interpretada. Assim o entende a doutrina dominante, não só nacional, mas também estrangeira (vide a este propósito “Da Aplicação das Leis no Tempo, Emídio Pires da Cruz, Lisboa, 1940). A retroactividade neste âmbito resulta de as leis interpretativas fazerem corpo com a lei interpretada, constituindo uma única lei. Não contêm nenhum princípio novo de direito. Consequentemente, os tribunais aplicando as leis interpretativas, estão, no fundo, a empregar a lei interpretada.
Assim, se se entender a disposição referenciada como uma norma interpretativa a mesma, por ter aplicação imediata (retroactiva), terá aplicação ao caso vertente.
As leis interpretativas podem ser assim definidas pelo legislador. Se o fizer não se levantará qualquer dúvida sobre essa sua natureza. Porém existem outras que, pese embora o legislador não as apode assim, dada a sua índole, terão que ser dessa forma qualificadas.
Quanto ao critério definidor destas leis, têm-se vindo a aceitar depender da existência cumulativa de dois elementos: a) a lei regular um ponto de direito acerca do qual se levantam dúvidas e controvérsias na doutrina e jurisprudência; b) a lei consagrar uma solução que a jurisprudência pudesse tirar do texto da lei anterior, sem intervenção do legislador (vide Emídio Pires da Cruz, obra citada, pág. 246). No mesmo sentido o Prof. Batista Machado (in Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, 1968, págs. 286 e segs.) sustenta que a lei interpretativa, para ser assim considerada, exige-se o seguinte:
1º- Ela intervém para decidir uma questão de direito cuja solução era controvertida ou incerta no domínio da vigência da L.A (lei antiga). Significa isto, antes de tudo, que, para que a LN (lei nova) possa ser interpretativa de sua natureza, é preciso que haja matéria de interpretação. Se a regra de direito era certa na legislação anterior, ou se a prática jurisprudencial lhe havia de há muito atribuído um determinado sentido, que se mantinha constante e pacífico, a LN que venha resolver o respectivo problema jurídico em termos diferentes deve ser considerada uma lei inovadora….
2º- A lei interpretativa, para o ser, há-de consagrar uma solução que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado no domínio da lei anterior. Significa este pressuposto, antes de mais, que se a LN vem na verdade resolver um problema cuja solução constituía até ali matéria de debate, mas a resolve fora dos quadros de controvérsia anteriormente estabelecida, deslocando-o para um terreno novo ou dando-lhe uma solução que o julgador ou o intérprete não estavam autorizados a dar-lhe, ela será indiscutivelmente uma lei inovadora….
Para que a LN possa ser concebida como uma lei interpretativa, será preciso que ela consagre uma forte corrente jurisprudencial ou doutrinal anterior? Não necessariamente…” A LA não tem de consagrar uma corrente doutrinal prevalecente, sendo suficiente a adopção de uma interpretação defendida anteriormente.
Face a estes pressupostos, somos em crer que a referenciada norma é interpretativa, consagrando uma das soluções controvertidas pela doutrina e jurisprudência. Resolveu um problema, cuja solução constituía até ali matéria de debate, dando-lhe uma solução dentro dos quadros de controvérsia anteriormente estabelecida. Não se trata de uma lei inovadora visto que não resolve o conflito em termos diferentes, no sentido de renovar a posição antes assumida pela jurisprudência e doutrina.
Este mesmo entendimento teve o Acórdão deste Supremo Tribunal de 13-11-2007 (www.dgsi.pt/jstj.nsf, relator Conselheiro Sousa Leite).
Como lei interpretativa, a mesma deve ter aplicação imediata e, por conseguinte, deve aplicar-se ao caso vertente.
Assim, face à disposição referenciada, tendo um canídeo entrado na auto-estrada e determinado o acidente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária, isto é, à R. B....
Resulta da Base XXXVI, nº 2 do contrato de concessão (DL 294/97 de 24/10) que “a concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, assegurar permanentemente em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham por si sido construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação, sujeitas ou não ao regime de portagem”.
No que toca a caso de força maior excludente da responsabilidade da concessionária na manutenção das auto-estradas em boas condições de comodidade e segurança, deveremos sublinhar que o conceito de «caso de força maior» não aparece definido naquela Base. Porém, a Base XLVII nº 2 a propósito de isenção de responsabilidade da concessionária em razão da falta, deficiência ou atraso na execução do contrato, o legislador define o «caso de força maior», dizendo que “…se consideram casos de força maior unicamente os que resultem de acontecimentos imprevistos e irresistíveis cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou circunstâncias pessoais da concessionárias, nomeadamente actos de guerra e subversão, epidemias, radiações atómicas, fogo, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem os trabalhos de concessão”.
Em sentido idêntico estabelece o nº 3 do art. 12º da mencionada Lei 24/2007 que são excluídos da responsabilidade da concessionária “os casos de força maior que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Face ao estabelecido nesta Lei, pode-se dizer que hoje é permitido à concessionária a elisão da presunção de incumprimento em todos os casos e não apenas nos casos de força maior.
Para o que aqui interessa, devemo-nos focar, tão só, na presunção de incumprimento das obrigações de segurança com que o nº 1 do referido art. 12º onera a concessionária.
No caso vertente, como se refere no acórdão recorrido sem qualquer polémica, provou-se que o embate e consequente despiste do veículo em causa, resultou do facto de um cão estar a atravessar a auto-estrada.
Provou-se ainda que A R. B... procede ao patrulhamento da auto-estrada durante 24 horas por dia, à data do embate, os patrulhamentos da R. B..., passavam no local de 12 a 15 vezes por dia a intervalos regulares; na manhã do acidente, o cão não foi avistado pelo patrulhamento de tal R. em nenhuma das suas passagens e a GNR/BT que patrulhava o local e não comunicou à R. “B...” a presença do cão. A R. “B...” verifica periodicamente o estado de conservação das redes de vedação laterais e procede à sua reparação imediatamente após a detecção de algum rompimento. No dia, hora e local do acidente a rede de vedação da auto-estrada encontrava-se em perfeito estado de conservação, não tendo sido detectada na mesma qualquer anomalia que permitisse a entrada de animais. A vedação existente junto ao local do embate tinha a altura de 1,10 metros: a mesma obedece ao modelo aprovado pela (então) JAE.
A pergunta que se nos coloca é a de saber se, face a estes factos, a R. logrou elidir a presunção de incumprimento que sobre si impende, provando que actuou com diligência e sem qualquer culpa de sua parte.

Nas instâncias respondeu-se afirmativamente à questão, concluindo-se ter a R. provado que agiu sem culpa, tendo cumprido, dentro do exigível, o seu dever de vigilância que lhe competia.

No recurso a recorrente sustenta que caberia à R. B... provar que a presença do cão não se deveu a falta obrigacional sua. Para tanto deveria provar que o cão surtiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na AE intencional ou negligentemente por alguém. O simples patrulhamento no local, de duas em duas horas, não impediu, nem é apto a impedir este tipo de eventos. Nem, tão pouco, uma rede de protecção com 1,10 de altura, como é manifesto.

Temos para nós que a R. B... provou genericamente ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da via. Mas o certo é que, mesmo assim, o cão se introduziu na auto-estrada, o que nos leva a concluir que, em princípio, existe um incumprimento concreto por parte da R., pois ela mediante o contrato que celebrou com o Estado, comprometera-se, para além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas. E fora de qualquer dúvida, a introdução numa auto-estrada, via por essência de trânsito automóvel rápido, de um cão coloca sérios problemas de segurança rodoviária. Por outro lado, o aparecimento daquele animal na via, nega a obrigação de segurança viária que cabe a R. proporcionar aos utentes da via, correspondendo esse surgimento a uma perigosa violação da segurança do tráfego automóvel. Ou seja, pese embora tenha provado que genericamente cumpriu as suas obrigações decorrentes do contrato de concessão, o certo é que não demonstrou, no caso concreto, a observância desses mesmos deveres.

Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 22-06-2004 já acima referido “o aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem de uma auto-estrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula. Cabe à B... evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade. Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da B... ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direcção efectiva, o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço). Como acima ficou dito, só em «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, na hipótese de inexecução, o dever de reparar os prejuízos causados. Isto significa, no essencial, que não será suficiente (ao devedor, a B...) mostrar que foi diligente ou que não foi diligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento. Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente”.

Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem. Isto é, sempre que há um acidente devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu numa auto-estrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Ou, como se refere no acórdão de 22-6-2004, “terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento”.

Parece-nos ser esta posição a mais equilibrada e justa, já que, de contrário, considerando-se suficiente a prova genérica de que a R. cumpriu as obrigações decorrentes do contrato de concessão, acabaria por se colocar nos ombros do lesado a produção de uma prova que se revelaria de todo difícil, ou até impossível, de fazer.
Nos acidentes com animais (ou com outros objectos) em auto-estradas quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal (ou objectos) é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter, os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança, meios que lhe devem permitir detectar a introdução na via de animais ou de objectos nocivos à circulação automóvel. O utilizador da via depara-se com a óbvia e notória dificuldade natural em recolher meios ou elementos de prova. Não pode, como é notório, permanecer na auto-estrada com vista a determinar a causa da introdução do animal aí, nem sequer tem, normalmente, equipamentos técnicas de recolha de prova.
Respondendo, de forma resumida, às objecções da R. B..., somos em crer que a obrigação que impende sobre si é uma obrigação de resultados, já que existe, por banda da concessionária, a obrigação de promover e concretizar uma boa circulação rodoviária nas auto-estradas. A este propósito convém repetir que a referida Base XXXVI, nº 2 do contrato de concessão (DL 294/97 de 24/10) estipula que a concessionária será obrigada assegurar permanentemente em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas (sublinhado nosso).
De forma muito sintética, diremos que entendemos não ser inconstitucional o art. 12º da Lei 24/2007, não atentando contra a igualdade rodoviária porque, contra o que sustenta a recorrida, as regras estabelecidas para as auto-estradas justifica-se serem diversas das designadas para as estradas comuns. De resto o princípio da igualdade (que tem consagração constitucional no art. 13º da Constituição) diz respeito aos cidadãos e não a empresas.
Por outro lado, a Lei em causa, a nosso ver, não desrespeita qualquer convenção assumida. Como acima já referimos, a presunção de culpa a que alude o art. 799º, já inclui não só a culpa como também a ilicitude do devedor, pelo que não existe qualquer inovação teórica na referida Lei.
Acresce que não vemos que tenha existido, por banda do legislador ordinário, o propósito e atingir selectivamente determinadas categoria de pessoas ou entidades.
Entendemos ser impróprio falar-se que a Lei introduziu a responsabilidade objectiva para a concessionária. Não o fez, apesar de se considerar, face ao nosso entendimento, ter-se tornado mais difícil, mas não impossível, o afastamento da presunção de incumprimento que impende sobre si. De sublinhar ainda que nem sequer se pode dizer que, com a publicação, ficou numa situação de desfavor, visto que com as normas que antes vigoravam, já tinham existido decisões, designadamente o Acórdão deste STJ acima citado de 22-06-2004, que assumiu uma posição semelhante à do presente acórdão (que aplicou o estipulado nessa Lei).
Em síntese:
Perante a posição que assumimos não basta à R., para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, a demonstração genérica de ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da via. Para além do caso de força maior devidamente verificado a poder desonerar das suas obrigações, apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que ela não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações. Só assim estabelecerá “positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento
Quer dizer que o recurso procederá.
III- Decisão:

Por tudo exposto concede-se a revista e, em consequência, julga-se acção procedente, condenando-se, solidariamente, a R. e a Seguradora interveniente, Companhia de Seguros F..., S.A., no pagamento à A. da quantia 15.035,85 €, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal.

Custas na acção e nos recursos pela R..

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Setembro de 2008

Garcia Calejo (Relator)

Mário Mendes

Sebastião Póvoas