Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO PINTO OLIVEIRA | ||
Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO ERRO DE JULGAMENTO OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO BOA FÉ ABUSO DO DIREITO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 02/04/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | INDEFERIDA A RECLAMÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | A autêntica contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, distingue-se do erro de julgamento — a contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. — RELATÓRIO
1. Em 10 de Dezembro de 2020, foi proferido acórdão no processo em epígrafe, cujo dispositivo foi o seguinte:
Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença do Tribunal de 1.ª instância na parte em que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na petição inicial. Custas pela Recorrida EE.
2. Os sucessores da Recorrida EE, CC e DD, apresentaram requerimento em que invocam “a verificação de uma nulidade geral e… a nulidade do próprio acórdão proferido”.
3. Fundamentam a sua reclamação nos seguintes termos: A – Da verificação de uma nulidade geral: 1.º Vieram os Recorrentes interpor recurso para este Venerando Supremo Tribunal de Justiça invocando a violação pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 342.º do Código Civil ou o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no intuito de alterar a matéria de facto fixada pelo segundo; a violação deste último do artigo 334.º do Código Civil por existência de uma situação de abuso de direito da Autora primitiva, na modalidade de proibição do tu quoque; e, por último, igual entendimento, agora por verificação de uma situação de abuso de direito na modalidade de proibição de venire contra factum proprium; 2.º Das três questões suscitadas soçobraram as primeiras duas merecendo o acolhimento de Vossas Excelências a última, ou seja, a verificação de um situação de abuso de direito da Autora primitiva, na modalidade de proibição de venire contra factum proprium; 3.º Consequentemente, foi revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra e repristinada a decisão do Tribunal de 1.ª instância na parte em que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na Petição Inicial; 4.º Ora, salvo o devido respeito, que maior não pode ser, tal decisão de Vossas Excelências encontra-se ferida de nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil; Senão vejamos, 5.º O Tribunal de 1.ª instância deu especificamente por não provado que “Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois do restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento” – vide ponto 31. da factualidade não provada quer pelo Tribunal de 1.ª instância quer pelo Tribunal da Relação de Coimbra; 6.º Refira-se que tal sucedeu porquanto a Ré expressamente o admitiu perante a Magistrada Judicial presente naquele Tribunal em sede de declarações de parte, havendo, inclusivamente, pugnado pela alteração do “projecto de loteamento” ao invés do “regime de propriedade horizontal” porquanto bem sabia que agia na ilegalidade, em violação deste último – vide facto provado n.º 24, in fine; 7.º Assim, não obstante a factualidade provada sob os n.ºs 4, 5, 7, 8, 9, 21, 29, 30, 31, 32, 40, 41, 42 e 48 haver sido doutamente entendida por Vossas Excelências como bastante para sustentar uma situação objectiva de confiança dos Réus, tal manifestamente não sucedia, conforme dado por não provado no sobredito ponto 31. dos factos não provados; 8.º De igual modo, pese embora a factualidade provada nos pontos 29, 33, 34, 38, 41, 42, 43 e 44 seja passível, em abstracto, de admitir que a inércia da Autora primitiva seria susceptível de criar um situação de confiança nos Réus, conforme Vossas Excelências, fundamentadamente, decidiram, o certo é que, conforme resulta, cristalinamente, do facto não provado sob o n.º 31 - em momento processual algum impugnado - tal não sucedeu; 9.º Na verdade, nem, sequer, o Tribunal de 1.ª instância havia sufragado o douto entendimento ora explanado por Vossas Excelências nesta matéria, exactamente em virtude do vertido naquele ponto 31 da factualidade não provada; 10.º Com efeito, discorrida a douta sentença do Tribunal de 1.ª instância verifica-se o entendimento de que “pretender a demolição das obras cuja realização levou a Autora a satisfazer-se com o arquivamento da queixa que tinha apresentado”, junto da Provedoria de Justiça, as quais teriam conduzido a que estivessem “observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade” configuraria uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium; 11.º Já a pretensão de que a actividade de restauração fosse cessada não colheu junto daquele Tribunal de 1.ª instância por se entender verificada uma situação de abuso de direito, agora na modalidade de tu quoque, entendimento esse afastado quer pelo Tribunal da Relação de Coimbra quer por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça; 12.º Por sua vez, o Tribunal da Relação de Coimbra discordou do Tribunal de 1.ª instância, desde logo, por entender não configurar factum proprium da Autora um arquivamento da Provedoria de Justiça, em momento algum reconhecendo a verificação de uma situação objectiva de confiança dos Réus, porquanto inexistente, conforme decorre do ponto 31 da factualidade não provada; 13.º Ora, ao assentar o douto raciocínio deste Venerando Tribunal naquele sufragado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não se discordou do entendimento de que a actuação da Provedoria de Justiça fosse alheia à Autora e, enquanto tal, insusceptível de conduzir a uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium; 14.º Entendeu-se, isso sim, que a factualidade assente nos pontos nºs 4, 5, 7, 8 e 9, 21, 29, 30, 31, 32, 40, 41, 42 e 48 e 29, 33, 34, 38, 41, 42, 43 e 44, respectivamente, permitiria inferir uma situação objectiva de confiança dos Réus, justificada e imputável, exclusivamente, ao comportamento omissivo da Autora, a qual se manteve na inércia, o que configurou decisão inovadora relativamante àquelas das duas instâncias anteriores, alterando materialmente o disposto no artigo 31 dos factos não provados, considerando, ao invés, tal factualidade provada; 15.º Com efeito e sempre salvo o devido respeito, atendendo a que a existência ou não de confiança dos Réus configura um facto, assim como a sua imputabilidade à conduta (inércia) da Autora primitiva, factos esses dados especificamente por não provados no caso concreto, ao inferirem Vossas Excelências que os mesmos ocorreram, alteraram, materialmente, a matéria de facto assente, consensualmente, pela 1.ª e 2.ª instâncias; 16.º Sucede que, nos termos do disposto nos artigos 674.º, n.º 3, e 682., n.º 2, do Código de Processo Civil, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, não podendo ser alterada, formal ou materialmente, a decisão proferida pelo Tribunal recorrido; 17.º Assim, ao alterarem Vossas Excelências, se bem que apenas material e não formalmente, o disposto no ponto 31. da factualidade não provada, considerando, agora, não só que havia sido criada confiança nos Réus mas também que tal se ficava a dever à inércia da Autora ao longo de oito anos, assentando a, aliás, douta decisão proferida nessa nova factualidade inferida, violaram o disposto nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, ambos do C.P.C., ferindo, consequentemente, a decisão proferida de nulidade, nos termos do preceituado no artigo 195.º, n.º 1, do C.P.C.; 18.º Sendo evidente que a irregularidade cometida é manifestamente susceptível de influir na decisão da causa na medida em que efectivamente influiu, alterando o seu desfecho para decisão oposta à anterior; 19.º Devendo, consequentemente, ser declarada a verificação da sobredita nulidade processual e, consequentemente, determinada a anulação do douto acórdão proferido por este Venerando Tribunal e todo o processado subsequente, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 2, do C.P.C.; Sem prescindir, B – Da nulidade do douto acórdão proferido: 20.º Por questão de economia processual, dá-se por integralmente reproduzido, para os devidos e legais efeitos, tudo o acima vertido; 21.º O, aliás, douto acordão proferido por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, em sede do qual foi considerada a verificação de uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, assenta na convicção de que perante a factualidade provada (pontos nºs 4, 5, 7, 8 e 9, 21, 29, 30, 31, 32, 40, 41, 42 e 48 e 29, 33, 34, 38, 41, 42, 43 e 44) ficou demonstrada a confiança justificada dos Réus de que poderiam exercer a actividade de restauração na fracção em apreço, em violação do disposto no regime de propriedade horizontal, alicerçada na inércia da Autora que lhes permitiu acreditar que face ao tempo decorrido não seria requerido o seu encerramento; 22.º O certo é que, conforme melhor consta do ponto 31 da factualidade não provada foi dado por não provado que “Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois do restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento”; 23.º Ou seja, resulta da factualidade definitivamente assente em segunda instância e não impugnada por parte alguma que, sem prejuízo da factualidade provada acima referida, no caso particular sub judice, não só inexistia qualquer situação objectiva de confiança dos Réus como a mesma nunca poderia fundamentar-se no comportamento omissivo da Autora; 24.º Atento o vindo de expor, salvo o devido respeito, que é muito, a decisão ora proferida por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça encontra-se em flagrante contradição com a sua fundamentação de facto, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C., na medida em que a factualidade não provada dela também é parte integrante; 25.º Pelo que deverá, sempre e em todo o caso, ser declarado nulo, em conferência, nos termos conjugados do aludido normativo com os artigos 685.º e 666.º, n.ºs 1 e 2, ambos do C.P.C. o douto acórdão proferido, o que se requer a Vossas Excelências; 26.º Devendo, subsequentemente, ser substituído por douta decisão que considere também não verificada uma situação de abuso de direito da Autora, na modalidade de venire contra factum proprium, e, consequentemente, mantenha, ipsis verbis a douta decisão recorrida do Tribunal da Relação de Coimbra, julgando o recurso interposto pelos Réus totalmente improcedente; 27.º E nem se diga em contrário que, por aparentemente se encontrarem preenchidos os requisitos da proibição do desequilíbrio no exercício jurídico, tal não poderá suceder; 28.º Na justa medida em que estamos perante uma expectativa legítima da Autora, a qual desde a aquisição da sua fracção autónoma acreditava que na fracção dos Réus não viria a ser instalado um restaurante (ponto 65 dos factos provados), o que apenas poderia suceder em violação do regime de propriedade horizontal (ponto 3 dos factos provados), com utilização abusiva das partes comuns do prédio (pontos 4, 5, 6, 7, 8, 10, 13 e 64 dos factos provados), causando-lhe intranquilidade e angústia (ponto 16 dos factos provados); 29.º Não sendo igualmente despicienda a desvalorização imobiliária da fracção da Autora inerente ao funcionamento no ... do seu prédio da actividade de restauração, como é do conhecimento público e comum, o que, per se, configuraria motivo bastante para sufragar entendimento diverso. Nestes termos e nos melhores de Direito, requerem a Vossas Excelências se dignem, em conferência: a) declarar a verificação da sobredita nulidade processual e, consequentemente, determinar a anulação do douto acórdão proferido por este Venerando Tribunal e todo o processado subsequente, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 2, do C.P.C.; Assim não sendo entendido, b) declarar nulo o douto acórdão proferido por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, por contradição insanável entre a fundamentação de facto e a decisão de Direito proferida, nos termos conjugados dos artigos 685.º, 666.º, n.ºs 1 e 2, e 615.º, n.º 1, alínea c), todos do C.P.C.; Sempre e em todo o caso substituindo o, aliás, douto acórdão anteriormente proferido por douta decisão que considere também não verificada uma situação de abuso de direito da Autora, na modalidade de venire contra factum proprium, e, consequentemente, mantenha, ipsis verbis a douta decisão recorrida do Tribunal da Relação de Coimbra, julgando o recurso interposto pelos Réus totalmente improcedente.
4. Os Recorrentes AA e BB responderam à reclamação.
5. Fundamentaram a sua resposta nos seguintes termos: 1.º Notificados do acórdão prolatado a 12.12.2020, os sucessores da Recorrida, CC e DD, vieram arguir a nulidade deste, ao abrigo do disposto no art.º. 195º n.º 1 in fine e no art.º 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil (CPC) sustentando, em resumo, que Vossas Excelências alteraram materialmente a matéria da factualidade não provada no ponto 31, ferindo consequentemente a decisão proferida de nulidade. 2.º Devendo ser declarada a verificação da sobredita nulidade processual e, consequentemente determinada a anulação do douto acórdão proferido por estre Venerando Tribunal e todo o processado subsequente nos termos previstos no art.º 195º n.º 2 do C.P.C. 3.º Consideração essa, que na verdade é demonstrativa que os Recorridos tão só pretendem que este Venerando Tribunal, sindique a decisão proferida, com a qual não se conformaram, por dela discordarem. 4.º Tal é abusivo, mais não pretendendo os Recorridos, do que, por este meio, que a decisão lhes passe a ser definitivamente favorável. 5.º Fazendo tábua rasa de toda a fundamentação e raciocínio lógico plasmado no douto acórdão. 6.º Devendo relembrar aos Recorridos o que alegaram em sede de resposta ao recurso para o STJ quando referiram que “o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, prevista no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, não concede às partes o direito de recorrer de todas e quaisquer decisões que lhe sejam desfavoráveis, em sede de primeira instância, ou até, dos tribunais superiores, sem qualquer limite sob pena de os processos serem eternos”. 7.º É caso para dizer, faça o que eu digo, não o que eu faço… Salvo o devido respeito, 8.º Devemos dar exemplos pelas nossas atitudes e pelo que fazemos. Quem tem atitudes que não merecem servir de exemplos, não é digno de dar conselhos 9.º Com efeito, os Recorridos não satisfeitos com o acórdão proferido, vêm apresentar a sua discordância, por entenderem que este, está ferido de nulidade nos termos do disposto no artigo 195º n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil. 10.º Para tanto alegam que, o Tribunal de 1ª instância deu como não provado que “passados oito anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois do restaurante estar a funcionar, a Autora não ira querer o seu encerramento”.- Ponto 31 da factualidade não provada. 11.º Contudo, e contrariamente ao ora alegado pelos Recorridos, estes, nunca mencionaram ou se socorreram da resposta dada ao quesito agora em questão, quer para fundamentar a sua pretensão no recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Coimbra, quer na resposta apresentada ao recurso a este Venerando Tribunal, quando estava ao seu alcance fazê-lo, demonstrando assim, que este não era relevante ou decisivo para a decisão a proferir. 12.º Vindo agora em desespero de causa, utilizar esse argumento, para colocar em crise a decisão proferida, quando a construção da sentença/acórdão não foi viciosa, pois os elementos invocados pelos julgadores conduziram logicamente ao resultado expresso na decisão, e não a resultado oposto. 13.º Com efeito, a nulidade da decisão judicial, por contradição entre os fatos e a decisão plasmada no art.º 615º n.º 1 al. c) do CPC, verifica-se tão só, quando os respetivos fundamentos estejam em oposição com a decisão. 14.º Trata-se da deficiência, em que o silogismo em que se analisa a decisão, contém fundamentos que levam logicamente a um juízo em determinado sentido, mas em que a decisão efetivamente adotada é a de sentido oposto (vide Ac. STJ de 04.02.2014), o que de todo, não sucedeu. Ademais, 15.º Do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um ato não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um ato que é imposto por essa tramitação. 16.º Isto demonstra, que a nulidade processual se refere ao ato como trâmite, e não ao ato como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O ato até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual. 17.º Em suma, a nulidade processual tem a ver com o ato como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do ato praticado pelo tribunal ou pela parte. 18.º Devendo a arguição dessa nulidade processual ter lugar na própria instância em que é cometida e no 19.º Por sua vez, as nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes atos do tribunal, quando tais decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter, nos termos do vertido nos artigos 615º, 666º, n.º 1 e 685º do Código de Processo Civil. 20.º O que não ocorreu no acórdão proferido, pelo que não assiste razão à pretensão dos Recorridos. 21.º A mera discordância dos Recorridos/Reclamantes em relação ao decidido não constitui fundamento para invocação da previsão da al.c) n.º 1 do art.º 615 do CPC, tanto mais que a estrutura do discurso apresenta coerência entre o juízo e as premissas que a ele conduziram, encontrando-se o decidido devidamente ancorado na factualidade provada. De referir que, 22.º As causas de nulidade da decisão elencadas no art.º 615º do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o erro de julgamento, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo, motivo pelo qual a sua arguição não deve ser acolhida quando se sustente na mera discordância em relação ao decidido, como o pretendem os Recorridos. Sem prescindir que, 23.º A oposição entre o fundamento e a decisão que determina a nulidade da decisão art.º 615º, n.º 1, al.c) do CPC, consubstancia um vício real de raciocínio do julgador que se traduz no fato de a fundamentação, isto é, as premissas do silogismo judiciário se mostrar incongruente com a decisão (conclusão) que dela deve logicamente decorrer. 24.º A consideração de que, os fatos provados sob os n.ºs 4,5,7 ,8 e 9, são suficientes para sustentar que havia uma situação objetiva de confiança e os fatos provados sob os n.ºs 21,29,30,31,32,40,41,42 e 48 são suficientes para sustentar que a situação de confiança era justificada, mostra-se coerente com a decisão de conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença do Tribunal de 1ª instância em que julgou a ação totalmente improcedente e em consequência absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na petição inicial, pelo que, não se configura a pretendida nulidade do acórdão ora reclamado. 25.º Na verdade, o requisito de que a situação de confiança seja imputável àquele em que se confia, deve-se ter por preenchida sempre que a situação (objetiva) de confiança seja conscientemente causada por uma pessoa. Ou porque lhe deu início, através, de uma ação ou de uma omissão, ou porque deixou que continuasse. Ora uma situação objetiva de confiança deve ter-se por conscientemente causada por uma pessoa quando ela sabe ou deve saber que a causou. 26.º Como referem os julgadores na sua fundamentação -causar confiança é “imputável” quando a pessoa que a causa sabe ou deve saber que outra pessoa vai confiar. Acrescente-se ainda que, 27.º A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão. 28. Não se verifica a referida nulidade se os requerentes invocam a incorreta valoração da matéria de fato que, na sua ótica, consistiu em desprezar-se o efeito que, na decisão, haveria de ser conferido a determinados pontos da decisão proferida sobre a matéria de fato. 29.º Com efeito, no sistema processual civil português, tendo por base critérios de racionalidade e de lógica, vigora o princípio da livre apreciação da prova mitigado, pois, nos termos do disposto no art. 607.º, n.º 5, 2.ª parte do CPC, a livre convicção do julgador está limitada pelos factos para cuja prova a lei exige formalidades especiais, pelos factos que só podem ser provados por documentos e ainda pelos factos que estejam plenamente provados. 30º Não estando o STJ sujeito às alegações das partes em matéria de direito nem à fundamentação das decisões das instâncias nesse domínio, é lhe permitido extrair as consequências jurídicas, (mormente no que toca a interposição da ação judicial pela Autora ao atuar com abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”) da factualidade apurada. 31.º Sem olvidar que, o abuso do direito é um instituto puramente objetivo, não dependendo de culpa do agente, nem de qualquer específico elemento subjetivo. Neste sentido, como afirmou o STJ, em Ac. de 18.03.2010, rel. Serra Baptista e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª ed., pp. 536 e 563 e ss., não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa- fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objetivamente, se excedam tais limites. 32.º Saliente-se também que o abuso do direito é constatado pelo juiz, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado, sendo, nesse sentido, de conhecimento oficioso. Como afirma o STJ, em Ac. de 11.12.2012, Proc.º n.º 116/07.2TBMCN.P1.S1- 6ª, in www.dgsi.pt: (…) O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objeto de apreciação e decisão, ainda que não invocado.” 33.º Com efeito, uma vez que nos termos do art. 5.º, n.º 3 do CPC, iura novit curia ou la cour sait le droit, está de há muito firmado na jurisprudência do STJ que o abuso de direito é de conhecimento oficioso por ser princípio de interesse e ordem pública - cfr., neste sentido, CALVÃO DA SILVA, in RLJ, n.º 132, p. 272 e Ac. STJ, de 25.11.99, CJSTJ, VII, 3.º, p. 124 – sendo suficiente para impor o conhecimento ex officio do abuso de direito que essa questão se mostre suscitada em termos de facto, com a descrição dos comportamentos abusivos, mesmo se assim não qualificada pelas partes, com atribuição do nomen juris adequado à situação. 34.º Tendo assim, a Autora como conclui este Venerando Tribunal, atuado, com abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” ao interpor a presente Acão judicial. Pelo que, 35.º Não padece de nulidade o acórdão reclamado que conheceu de todas as questões que devia conhecer, resolvendo-as, ainda que a descontento dos recorrentes/reclamantes. Termos em que, pelas razões invocadas deve ser desatendida a arguição de nulidade do acórdão invocada pelos Recorridos, mantendo-se o acórdão que concedeu provimento ao recurso e revogou o acórdão recorrido, repristinando a sentença do Tribunal da 1ª instância na parte em que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na petição inicial.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
6. Em primeiro lugar, os Recorridos, agora Reclamantes, CC e DD, sucessores habilitados de EE invocam uma nulidade geral resultante da violação dos arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
7. O art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil determina que
O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova
8. O art. 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil completa-o, ao esclarecer que “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.
9. Ora o acórdão proferido em 10 de Dezembro de 2020 em nada alterou a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto.
10. Em particular, não alterou a decisão de dar como não provado o facto n.º 31: “Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois de o restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento”.
11. Em consequência, não se verifica a nulidade geral invocada.
12. Em segundo lugar, os Recorridos, agora Reclamantes, CC e DD invocam uma nulidade específica do acórdão recorrido, resultante da contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.
13. O art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, aplicável por remissão dos arts. 666.º e 685.º, determina que a contradição entre os fundamentos e a decisão é causa de nulidade do acórdão recorrido.
14. O acórdão impugnado sustentou que havia uma situação objectiva de confiança e que a situação objectiva de confiança era imputável à Recorrida EE.
39. Os factos provados sob os n.ºs 4, 5, 7, 8 e 9 são suficientes para se sustentar que havia uma situação objectiva de confiança e os factos provados sob os n.ºs 21, 29, 30, 31, 32, 40, 41, 42 e 48 são suficientes para se sustentar que a situação de confiança era justificada. I. — Os Réus, agora Recorrentes foram informados de que “o uso pretendido para a fracção em causa — restauração e bebidas — se enquadra no sector mais genérico do comércio, tendo apenas um regime de licenciamento próprio, que visa acautelar determinados interesses públicos nos domínios da funcionalidade, segurança e salubridade” (factos provados sob os n.ºs 21 e 30). II. — “À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção, que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar” (facto provado sob o n.º 48). III. — Informados de que o uso específico de restauração enquadrava no uso genérico do comércio, desenvolveram as diligências e fizeram, “à vista de condóminos” (facto provado sob o n.º 28), as obras necessárias para que o restaurante fosse licenciado (factos provados sob os n.ºs 28, 31 e 32), sem que fossem suscitadas reservas sobre a licitude da afectação da fracção ao uso específico em causa (cf. factos provados sob os n.ºs 29, 40 e 41). 40. O problema está sobretudo em averiguar se a situação (objectiva) de confiança justificada dos Réus, agora Recorrentes, será imputável à Autora, agora Recorrida. 41. Ora “o requisito de que a situação de confiança seja imputável àquele em que se confia deve ter-se por preenchido sempre que a situação (objectiva) de confiança seja conscientemente causada por uma pessoa. Ou porque lhe deu início, através de uma acção ou de uma omissão, ou porque deixou que continuasse. Ora, uma situação (objectiva) de confiança deve ter-se por conscientemente causada por uma pessoa quando ela sabe (ou deve saber) que a causou” [1]. “Causar confiança é 'imputável' quando a pessoa que a causa sabe ou deve saber que outra pessoa vai confiar” [2]. 42. O acórdão recorrido considera que a situação de confiança não é imputável à Autora, agora Recorrida, pelas razões seguintes: “… resulta do facto provado 37. que a queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se ter considerado que a queixosa ‘se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade’, […] porque foi essa a comunicação da autarquia nesse sentido. O que é coisa diferente, não tendo o pendor significativo que a decisão recorrida lhe quis dar. Ademais tal entidade é órgão meramente consultivo e sem força decisória. Depois, a A. nunca manifestou, ao longo do tempo, aquiescência a essa realidade, da abertura e funcionamento do restaurante, o que faz todo o sentido pois ela aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos RR não viesse a ser instalado um restaurante (facto provado 65.). Na realidade, a A. por diversas vezes reclamou contra os RR e participou a situação a entidades fiscalizadoras (CM ..., ASAE e ao M. da Saúde), e à Provedoria de Justiça, o assunto foi colocado em assembleia de Condóminos, com consulta de advogado e posteriormente em nova assembleia a A. propôs à votação a apresentação de uma acção judicial para encerramento da actividade de restaurante (factos 17., 36., 39., 40., 43. e 57.) Ora, este conjunto de factos demonstra que inexistiu ‘factum proprium’ da A., que incutisse confiança nos RR, e por isso não se verifica qualquer conduta contraditória por parte daquela”. 43. O facto dado como provado sob o n.º 65 — “A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante” — deve relativizar-se, atendendo a que não há um dever geral de correspondência às expectativas alheias [3]. 44. Com a relativização do facto dado como provado sob o n.º 65, deve averiguar-se se a Autora, agora Recorrida, deixou que continuasse a situação objectiva de confiança dos Réus, agora Recorrentes. 45. Os factos provados sob os n.ºs 17, 36, 37, 40, 43 e 57 devem confrontar-se com os factos dados como provados sob os n.ºs 29, 33, 34, 38, 41, 42, 43 e 44. 46. Ou seja: ainda que os factos dados como provados sob o n.º 17 e 57 digam que, “directa e indirectamente, a Autora tentou alertar os Réus, participando esta situação a entidades fiscalizadoras”; ainda que o facto dado como provado sob o n.º 36 diga que “[a] Autora apresentou queixa junto da Provedoria de Justiça”; ainda que o facto dado como provado sob o n.º 40 diga que, em 2011, foi deliberado em assembleia de condóminos consultar um advogado “para questionar se o licenciamento da fracção …- … …. permitia a abertura de um restaurante/café”; ainda que o facto provado sob o n.º 43 dig[a] que, em 2016, foi proposta em assembleia de condóminios uma deliberação no sentido de se propor uma acção judicial para encerramento do restaurantes dos Réus, agora Recorrentes, deverá chamar-se a atenção para que: I. — os factos dados como provados sob os n.ºs 33, 37 e 44 dizem-nos que as queixas às autoridades fiscalizadoras foram sistematicamente arquivadas; II. — o facto dado como provado sob o n.º 38 diz-nos que a Autora, agora Recorrida, aceitou o arquivamento da queixa junto da Provedoria de Justiça; III. — o facto dado como provado sob o n.º 29 diz-nos que a Autora, agora Recorrida, nunca reclamou das obras realizadas pelos Réus, agora Recorrentes, o facto dado como provado sob o n.º 40 diz-nos que só dois ou três anos depois da realização das obras foi deliberado consultar um advogado para “questionar se o licenciamento da fracção …- … … permitia a abertura de um restaurante/café” e os factos dados como provados sob os n.ºs 41 e 42 dizem-nos que a consulta a um advogado teve como consequência o esclarecimento de que, “face ao tempo decorrido, à data três anos sobre a abertura do restaurante, sem nada terem solicitado em sentido contrário, este comportamento podia consubstanciar uma aceitação tácita da abertura do restaurante”; IV. — o facto dado como provado sob o n.º 43 diz-nos que só quatro anos depois do esclarecimento descrito sob os n.ºs 41 e 42 a Autora propôs à votação “apresentar uma acção judicial contra os proprietários da fracção …, correspondente ao … …, com vista ao encerramento da actividade de restaurante”, e que a proposta foi rejeitada. 47. Finalmente, deverá chamar-se a atenção para que todas as queixas às entidades fiscalizadoras descritas sob os n.ºs 17, 36, 37, 38 e 57 se relacionavam com a segurança e com a salubridade, e que os factos dados como provados sob os n.ºs 34 e 44 são do seguinte teor: 34. Não existe no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores, vapores, barulhos, trânsito ou movimentações de veículos afectos ao restaurante que possam perturbar o sossego e bem-estar, de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, nem tão pouco fumos ou gases oriundos do sistema de extração de fumos da fracção dos Réus (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, estudo de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018). 44. Da vistoria efectuada à fracção dos Réus em 20.06.2014 pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de ... foi verificado que o estabelecimento de restauração “….” cumpria as exigências de salubridade e saúde pública. 48. Em consequência, deverá concluir-se que a Autora, agora Recorrida, deixou que continuasse a situação objectiva de confiança dos Réus, agora Recorrentes; que há uma conduta contraditória da Autora, agora Recorrida, e que há uma necessidade ético-jurídica de prevenir ou de reprimir a conduta contraditória, “designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigência de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo” [4].
15. Os Recorridos, agora Reclamantes, alegam que a fundamentação deduzida está em contradição com o facto dado como não provado sob o n.º 31: “Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois de o restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento”.
16. O Supremo Tribunal de Justiça tem chamado constantemente a atenção para que deve distinguir-se a autêntica contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, e o erro de julgamento — a contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão [5] e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal.
17. Como se diz, p. ex., no acórdão do STJ de 17 de Novembro de 2020 — processo n.º 6471/17.9T8BRG.G1.S1 —, “quando, embora indevidamente, o julgador entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, está-se perante o erro de julgamento e não perante oposição entre os fundamentos e a decisão geradora de nulidade”.
18. Ora, ao contrário do que alegam os Recorridos, agora Reclamantes, os requisitos de que haja uma situação de confiança, de que a situação de confiança seja justificada e de que a situação de confiança seja imputável àquele em quem se confia não correspondem a questões de facto: quando se exige uma situação de confiança, está a exigir-se “uma situação… conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado e de indagação que ao caso, caibam, ignore estar a lesar posições alheias” [6] e, quando se exige que a situação de confiança seja justificada, está a exigir-se que a situação resulte de “elementos objectivos, capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível” [7]. Em consequência, a confiança necessária para que os Recorrentes, agora Reclamados, fossem dignos protecção pelo art. 334.º do Código Civil era uma confiança em que as suas posições jurídicas eram legítimas — conformes ao sistema, no sentido de não lesarem ilegítima ou ilicitamente posições alheias.
19. Os factos dados como provados eram suficientes para que se sustentasse que os Recorrentes, agora Reclamados, tinham uma confiança justificada em que a sua posição jurídica fosse legítima — e a confiança justificada dos Recorrentes era imputável à Recorrida EE, cujas queixas se relacionaram sempre com questões de salubridade e de segurança e foram sistematicamente indeferidas, conformando-se a Recorrida com o seu indeferimento.
20. O facto dado como não provado sob o n.º 31 não contradiz em nada a conclusão de que os Réus / Recorrentes, tivessem uma situação objectiva de confiança e em que a situação objectiva de confiança fosse imputável à Autora / Recorrida: ainda que não estivesse provado que confiassem em que a Autora fosse requerer o encerramento, podiam dar-se como certo, como seguro, que confiavam e que confiavam justificadamente em que qualquer requerimento fosse indeferido.
21. Entre as razões por que confiavam, e confiavam justificadamente, em que qualquer requerimento no sentido do encerramento do restaurante estava o comportamento da Autora — ao aceitar a decisão da Provedoria de Justiça e ao conformar-se com a deliberação da Assembleia de Condóminos no sentido de não propor nenhuma acção contra os Réus para encerramento do seu restaurante.
22. Em consequência, não há nenhuma contradição entre a decisão e a fundamentação de facto.
23. Finalmente, deverá dizer-se que o acórdão proferido em 10 de Dezembro de 2020 contém a seguinte passagem: “O raciocínio desenvolvido só poderá ser reforçado pela circunstâncias de estarem preenchidos os requisitos da proibição do desequilíbrio no exercício jurídico [8] — a Autora, agora Recorrida, pretende actuar ou exercer o direito sem tirar daí nenhuma vantagem, para causar aos Réus, agora Recorrentes, uma desvantagem (dano ou prejuízo) ou, em todo o caso, para tirar daí uma vantagem mínima e causar aos Réus, agora Recorrentes, uma desvantagem máxima, de todo em todo desequilibrada, desproporcionada ou excessiva [9]”.
24. Os Recorridos, agora Reclamantes, não põem em causa que haja abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio no exercício jurídico — logo, não põem em causa que a decisão seja em definitivo coerente com a sua fundamentação, de facto e de direito.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação e confirma-se o despacho reclamado. Custas pelos Reclamantes CC e DD, sucessores habilitados de EE.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2021 Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator) José Maria Ferreira Lopes Manuel Pires Capelo Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo. ______ [1] Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, cit., pág. 178. |