Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1100/11.7TBPTL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESERVA DE USUFRUTO
COMPRA E VENDA
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
CONEXÃO DE CONTRATOS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - DIREITOS DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE USUFRUTO.
Doutrina:
- Ana Isabel da Costa Afonso, A condição como elemento acidental do negócio jurídico, Ensaio em torno de modalidades especiais de compra e venda, edição policopiada, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola do Porto, 2012, p. 45, 46.
- Carneiro da Frada, «Sobre a interpretação do contrato», in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Volume II, Almedina, Coimbra, pp. 977-979.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Livraria Almedina, 1999, pp. 196-198; Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral,Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 292.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 755.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 446-447.
- Pires de Lima / Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 223.
- Sébastien Pellé, La notion d’interdépendance contractuelle, Contribution à l’étude des ensembles de contrats, 2007, pp. 429-440.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 216.º, N.ºS 1 E 3, 236.º, 334.º, 434.º, N.º 1, 1.ª PARTE, 1439.º, 1441.º, 1445.º, 1446.º, 1450.º, N.º1, 1475.º, 1476.º, N.º1, AL. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 6-10-1981, BMJ, N.º 310, P. 259;
-DE 11-09-2007, PROCESSO N.º 07A2104, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 14-02-2008, PROCESSO N.º 08B074, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 25-03-2010, PROCESSO N.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 11-01-2011, PROCESSO N.º 2226/07.7TJVNF.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O contrato, mediante o qual os autores vendem a quinta com reserva de usufruto a seu favor, significa que o proprietário cede a nua propriedade sobre uma coisa e reserva para si o direito de usufruto vitalício. A situação mais comum é a de esta modalidade de constituição do usufruto ser acompanhada de uma doação, por exemplo, aos filhos ou a outros familiares, mas nada impede que a constituição do usufruto se realize por contrato oneroso como a compra e venda.

II - As partes inseriram no contrato uma cláusula que classificam de condição resolutiva, de acordo com a qual o incumprimento do contrato de cessão de exploração por um período superior a 18 meses, extingue automaticamente o contrato de compra e venda.

III - Os contratos de compra e venda e de cessão de exploração são contratos coligados de acordo com um modelo de interdependência contratual, segundo o qual se um dos contratos se extingue (anulação ou resolução) por uma causa própria, os outros que a ele estão subordinados extinguem-se em virtude do desaparecimento do primeiro contrato.

IV – Não incorrem em abuso do direito de resolução, os usufrutuários que invocam a resolução do contrato de compra e venda com reserva de usufruto, após incumprimento do contrato de cessão de exploração pelos titulares do direito de propriedade de raiz: não cumprimento dos deveres de exploração da Quinta e não pagamento das rendas em atraso, mesmo após trânsito em julgado de decisão de condenação e procedência de impugnação pauliana por alienação do património a terceiros com intenção de fuga às dívidas.

Decisão Texto Integral:
 

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I - Relatório

AA e marido, BB, vieram propor contra:

“CC – …, S.A.”; DD e mulher, EE, a presente acção ordinária, pedindo que:

- Sejam declarados resolvidos o contrato de compra e venda e o contrato de cessão de exploração celebrados a 11 de Dezembro de 1989, aquele entre os Autores e a 1.ª Ré e este entre os Autores e os 2ºs. Réus, como representantes da 1.ª Ré;

- Sejam condenados os Réus a pagar solidariamente aos Autores a quantia de € 156.935,25, referente a rendas e taxas de inflação não pagas, acrescida de juros de mora até efectivo pagamento, e em indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que causaram aos Autores, esta a liquidar em execução de sentença.

A 1.ª Ré deduziu reconvenção, pedindo a condenação dos Autores a pagarem à mesma Ré as quantias que por esta lhe foram entregues, no montante de € 283.635,60, acrescidas de juros legais comerciais desde aquela entrega até à data da contestação, no valor de € 799.063,84.

Alegou a autora que por contratos celebrados em 89 venderam com reserva de usufruto a propriedade identificada, e cederam a exploração da mesma. A falta de cumprimento deste segundo funcionava como condição resolutiva do primeiro. A ré a partir de 95 passou a pagar as prestações com prorrogações e a partir de 97 votou a quinta ao abandono. Em 1998 não pagou a segunda prestação nem o acréscimo referente à inflação. Em Julho de 1999, os autores vedaram a quinta à ré. Em 2000, numa tentativa de recuperarem a vinha tiveram as despesas que invocam. Em Fevereiro de 2000, enviaram comunicação à ré, rescindindo o acordo de cessão de exploração e resolvendo o contrato de compra e venda. Em 2002 propõem acção em tribunal com o fim de ver declarada válida a rescisão da compra e venda e da cessão.  

Por decisão do STJ foi julgada improcedente a acção na parte relativa à rescisão dos contratos, mantendo a condenação dos Réus a pagar os valores de exploração e inflação em falta no valor de € 47.083,81 mais juros à taxa das obrigações civis e outros, parte a liquidar.

Os Réus não retomaram a exploração nem pagaram os valores em que foram condenados, nem qualquer outra prestação e continuam a votar a quinta ao abandono, tendo sido os Autores que têm controlado a exploração do solo, replantando a vinha e tratando-a. O valor pago pela raiz era simbólico. A venda era completada com a celebração do contrato de cessão exploração, constituindo a formalização legal de uma “venda a prestações”.

Impugna a 1.ª Ré ter ocorrido falta de pagamento de prestações a partir de 95. Dispôs-se a pagar aquilo em que foi condenada. Não retomou a exploração por os autores terem arrancado a vinha tornando impossível o contrato, o que determinou a resolução do mesmo por iniciativa da Ré. O impedimento de acesso inviabilizou a continuação da exploração. O terreno foi disponibilizado sem vinha. Negam a relação entre os dois contratos, invocam o abuso de direito. Referem os montantes já pagos, que devem ser devolvidos por força da rescisão. 

            Em réplica, pede-se a condenação por má-fé da 1.ª Ré, o que mereceu resposta.

 

Realizado o julgamento a Mmª Juíza respondeu à matéria de facto e proferiu a seguinte decisão:

“ Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:

- declaram-se resolvidos o contrato de compra e venda e o contrato de cessão de exploração, celebrados a 11 de dezembro de 1989, aquele entre os Autores BB e mulher AA e a 1.ª Ré “CC – …, S.A.”, e este entre os Autores, a 1.ª Ré e os 2.ºs Réus DD e mulher EE;

- condenam-se solidariamente os Réus a pagar aos Autores a quantia de € 96.556,66 (noventa mil quinhentos e cinquenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 1 de Julho de 2010 sobre  € 31,066,56, desde 1 de Janeiro de 2011 sobre 33.304,55 e desde 1 de Julho de 2011 sobre € 32.185,55, tudo até integral pagamento;

- absolvem-se os Réus do pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, formulado pelos Autores.

Na improcedência da reconvenção, absolvem-se os Autores do pedido contra eles formulado pela 1.ª Ré…”.

Inconformados os Réus interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães decidido o seguinte:

«Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão na parte em que declarou válida a resolução do contrato de compra e venda.

No mais confirma-se a decisão.

Custas em ½ pelos recorrentes e ½ pelos recorridos.»

Inconformados, interpõem os Autores recurso de revista para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões:

A) Por lapso material da 1.ª instância, não foi transcrita (3, portanto, não foi expressamente dada como provada) a totalidade da cláusula 6.ª do contrato de cessão de exploração celebrado entre as partes.

B) Tal omissão assume – só agora – relevo essencial para a boa decisão da causa, porquanto o desconhecimento da parte omitida pelo Tribunal da Relação de Guimarães foi o que conduziu a que este não se tivesse apercebido de uma condição essencial do contrato de cessão de exploração, o que o levou, por sua vez, a sustentar uma argumentação que não encontra suporte na realidade contratual.

C) O contrato de cessão de exploração não tinha uma duração mínima de  dez anos, antes deveria durar enquanto qualquer dos ora recorrentes fosse vivo (tinha, nesse sentido, um carácter vitalício).

D) Da análise dos dois contratos (compra e venda e cessão de exploração), celebrados no mesmo dia entre as mesmas partes, resulta evidente a estreita conexão existente entre ambos e o facto de só o seu conjunto traduzir os objectivos prosseguidos pelas partes: a maior “fatia” do preço acordado para a venda da Quinta do P.. seria paga sob a forma de renda devida pela cessão de exploração da parte do prédio afeta à produção do vinho.

E) Por tal razão, a renda convencionada excedia, para a cessão de exploração da parte do prédio afeto à vitinicultura, em muito, a “renda de mercado” que normalmente seria devida.

F) Este conjunto de dois contratos apresenta de particular o facto de uma prestação essencial (a renda/preço, a cargo dos ora recorridos) ser de montante aleatório por depender do tempo de vida dos ora recorrentes.

G) O facto de o pagamento da parte mais substancial do preço da venda da Quinta do P.. ser feito através de uma renda vitalícia torna compreensível e totalmente proporcional a “sanção acessória” prevista na cláusula 10.ª do contrato de cessão de exploração, ou seja, que o incumprimento dos cessionários (Recorridos) deste contrato implicasse, também, o direito dos cedentes (Recorrentes) resolverem, com justa causa, o contrato de compra e venda.

H) O Tribunal a quo incorreu num erro de direito: mesmo no pressuposto de que o contrato de cessão de exploração pudesse ter uma duração de apenas dez anos (ou seja, que só se renovaria se tal fosse a vontade da Recorrida CC, SA), o certo é que, nessa data, a plena propriedade não se consolidaria nas mãos desta Ré.

I) Mas o que aqui mais releva é o erro factual em que incorreu o Tribunal a quo: a obrigação da CC, SA permanecer como cessionária da exploração das vinhas em causa não tinha uma duração mínima de dez anos. Essa obrigação existia durante toda a vida dos ora Recorrentes.

J) Este erro factual viciou, de forma decisiva, o raciocínio em que se fundamenta a douta decisão do tribunal a quo.

K) Mesmo “ignorando” o facto de o contrato de cessão de exploração ter uma duração igual à da sobrevida dos ora recorrentes, isto é, admitindo que tinha prazos de duração de dez anos, renováveis, então a sua vigência terminaria em 11 de dezembro  de 2019.

L) Quando os ora Recorrentes exerceram o seu direito à resolução dos dois contratos (a pretensão de resolução que está em causa  nos presentes autos e não aquela que esteve em causa no processo judicial anterior), em 21 de Outubro de 2011 (data de propositura da presente acção), faltariam – no entendimento de não se tratar de um contrato “vitalício” – mais de oito anos para o termo do período da renovação em curso do contrato de cessão de exploração.

M) Ao fundamentar a sua decisão numa valoração do ilícito contratual praticado pelos ora Recorrentes entre julho de 1999 e 16 de junho de 2009, o tribunal a quo “julgou”, de novo, a mesma situação que foi apreciada e decidida em processo judicial anterior, o que é legalmente inadmissível.

N) na presente acção, os Recorrentes pediram a resolução, com justa causa, dos contratos de cessão de exploração e de compra e venda com base em factos ocorridos posteriormente ao acórdão do STJ de 16 de Junho de 2009. Sendo apenas esses os factos que podem ser considerados como causa de pedir nos presentes autos.

O) A tese de que a invocação de uma cláusula contratual, prevendo uma sanção para o caso de incumprimento de uma das partes, se vai tornando “progressivamente abusiva” à medida que o contrato se aproxima do seu termo não tem qualquer suporte legal ou jurisprudencial.

P) A legalidade da cláusula 10.ª do contrato de cessão de exploração, que prevê a resolução do contrato de compra e venda como sanção acessória do incumprimento, pelo cessionário, das obrigações decorrentes do contrato de cessão de exploração, foi reafirmada pelas duas instâncias anteriores, com base no art. 405.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que esta é uma questão definitivamente resolvida.

Q) O argumento de que é abusivo invocar uma cláusula resolutiva num momento em que já decorreram vinte e três anos após a celebração do contrato não tem fundamento de qualquer natureza.

R) O Tribunal a quo, ao justificar a sua decisão, deu relevo aos aspectos negativos do “comportamento” dos Recorrentes ao longo da vigência do contrato de cessão de exploração (apesar de o “comportamento” em causa ser uma questão que já havia sido apreciada e decidida em outro processo judicial), mas, sic et simpliciter, absteve-se de fazer quaisquer considerações sobre os aspectos francamente negativos da conduta contratual dos Recorridos. Ou seja, nesta apreciação (que, de qualquer modo, não deveria fazer) o Tribunal a quo usou “dois pesos e duas medidas”.

S) Se o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu existir incumprimento, culposo e definitivo, por parte dos Recorridos da obrigação contratual essencial de pagamento das rendas acordadas e decidiu, em coerência, pela procedência do pedido de resolução com justa causa do contrato de cessão de exploração, não se entende como é que tal incumprimento não deva igualmente relevar para a aplicação da outra cláusula contratual (10.ª), expressamente acordada entre as partes para regular as consequências de um tal incumprimento.

T) Ao chamar à colação a questão do replantio da vinha como justificativo para considerar “menos culposa” a conduta da recorrida CC, SA, em ordem a justificar a qualificação de “abusiva” da pretensão dos ora recorrentes em obterem a resolução do contrato de compra e venda, o Tribunal a quo, pura e simplesmente, ignorou a distinção (e as consequências jurídicas que dela advêm, nomeadamente para os recorridos) entre recursos judiciais com efeito suspensivo e com efeito devolutivo.

U) A decisão recorrida parece louvar-se em juízos de equidade que, para além de se revelarem injustos no caso concreto, são legalmente inadmissíveis.

V) A confirmação do Tribunal da Relação de Guimarães poderá resultar num insuportável locupletamento dos ora Recorridos à custa dos Recorrentes e, também, dos herdeiros destes, pois, um dia, por morte do último dos ora Recorrentes, a sociedade ora Recorrida poderá adquirir a plena propriedade da Quinta do P.. (um imóvel de elevadíssimo valor), tendo apenas pago três mil contos (o valor atribuído à raiz) e 17 rendas semestrais do contrato de cessão de exploração (as vencidas desde o início do contrato até ao primeiro semestre de 1998).

W) Tal locupletamento seria, ele sim, um verdadeiro “abuso de direito”!

X) Só a peticionada resolução do contrato de compra e venda poderá evitar esta situação de locupletamento dos Recorridos à custa dos Recorrentes e permitirá a reposição, no possível, do equilíbrio contratual.

Y) Sem “os incidentes” a que o incumprimento dos Recorridos deu causa primeira, na normal vigência do contrato de cessão de exploração, até hoje, teriam recebido 29 rendas semestrais, sempre actualizadas, e receberiam ainda as que se vencessem até ambos falecerem.

Z) É incerto, desde logo em função da alienação e oneração de bens imóveis a que os Recorridos procederam, que os Recorrentes consigam cobrar coercivamente os valores em que aqueles já foram condenados, quer no âmbito deste processo, quer no anterior, e que nunca foram liquidados voluntariamente (nem sequer em parte).

AA) Termos em que, por a peticionada resolução do contrato de compra e venda não constituir um qualquer abuso de direito, antes se mostrar totalmente justa e proporcional, deve ser revogada a decisão tomada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães ora recorrido e confirmada, na sua totalidade, a sentença proferida em primeira instância».

Sabido que o objecto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635.º n.º 3 do NCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608.º NCPC in fine), as questões a decidir, pela sua ordem lógica, são as seguintes: 

I) Rectificação da matéria de facto fixada, por falta de inclusão na mesma da alínea b) da cláusula 6.ª do contrato de cessão de exploração outorgado por escritura pública junta aos autos;

II) Interpretação das declarações negociais e coligação de contratos;

III) Abuso do direito de resolução do contrato.

II – Fundamentação de facto

 

A) - Por escritura pública outorgada a 11 de dezembro de 1989, na Secretaria Notarial de ..., os Autores, como primeiros outorgantes, declararam que «com reserva de usufruto vitalício e sucessivo para eles, por inteiro, e pelo preço de três mil contos, vendiam à sociedade que os 2ºs outorgantes [DD e EE] representam “CC, …, SA”, o prédio denominado “Quinta do P..”, situado no lugar do ..., da freguesia ..., prédio este todo murado e que se compõe de duas parcelas; a parcela A de vinha, com ramadas e cruzetas, todas produtoras de uvas brancas; e a parcela B separada da parcela A por uma linha que, partindo do extremo sul da estufa, se dirige para poente, terminando no muro da quinta que margina com a estrada de acesso ao centro da freguesia, ou seja termina a trinta metros a sul do portão principal da Quinta, parcela esta situada a norte da parcela a, nela se encontrando a casa principal, a garagem, lojas e armazéns de arrumos, duas habitações mais pequenas, eira com espigueiro, tanque de irrigação, vacaria com anexos, alpendre, relvados com árvores de fruto e outras, roseiral, canteiros com flores e horta com videiras, a nascente da qual existe uma construção de trinta e cinco metros que serve de casa para pessoal e mais a sul uma estufa» e «que este prédio “Quinta do P..”, formado pelas duas referidas parcelas A e B, está descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número zero, zero, cento e quarenta e nove, da freguesia ..., com registo de transmissão a favor deles vendedores pelas inscrições G - um, G – dois, G – três, G –quatro, G – Cinco e G – Seis e inscrito nos artigos setenta e sete e setenta e nove da matriz urbana e mil cento e dois da matriz rústica…» e «que já receberam dos segundos outorgantes o indicado preço».

B) - Os Réus DD e EE, na qualidade de segundos outorgantes declararam «que para a sua representada aceitam este contrato».

C) - Por escritura pública outorgada no mesmo dia 11 de dezembro de 1989, na mesma Secretaria Notarial, os Autores como primeiros outorgantes e os Réus DD e EE (que intervieram em seus próprios nomes e também na qualidade de administradores da Ré “CC …, S.A.”) como segundos outorgantes, declararam «que, pela presente escritura, eles primeiros outorgantes, na qualidade de usufrutuários, da denominada “Quinta do P..” cedem à sociedade representada pelos segundos “CC …”, a exploração de toda a sua parcela A, nas seguintes condições: (…) 3.ª- a) A sociedade fica responsável por todos os trabalhos de conservação, tratamento, plantio e reparações na parcela A, necessárias àqueles fins; (…) 6.º- a) Este contrato terá o seu início em um de janeiro de mil, novecentos e noventa e durará pelo período de DEZ anos, renovável automaticamente por iguais períodos de dez anos, sem que a isso se possam opor os primeiros outorgantes; 7.º - a) O valor da exploração é de quatro mil e quinhentos contos anuais, pagáveis cinquenta por cento até ao fim do mês de junho e os restantes cinquenta por cento até ao fim de dezembro de cada ano; b) O preço final sofrerá um aumento também anual, correspondente ao valor da inflação calculada sobre o preço dos bens de consumo fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística; c) A inflação será sempre acrescida ao valor da segunda prestação pagável até trinta e um de dezembro, ou seja, sobre a metade da prestação global do ano anterior já atualizada; 8.º - os segundos outorgantes, em seus nomes pessoais, vinculam-se como fiadores e principais pagadores da sociedade sua representada por todas as obrigações emergentes deste contrato e da lei, tanto no período inicial do contrato como das suas eventuais renovações; 9 – A falta de cumprimento deste contrato quer pela sociedade concessionária quer pelos segundos outorgantes em seus próprios nomes, por período superior a dezoito meses, será motivo para rescisão do contrato ipso facto, por parte dos primeiros outorgantes; 10.º - A falta de cumprimento deste contrato por parte da sociedade cessionária funciona ainda como condição resolutiva para a compra e venda, hoje efetuada da raiz da Quinta do P..».

D) - Correu termos neste 1.º juízo a ação ordinária com o n.º 2/2002, interposta pelos aqui Autores contra os ora Réus, onde aqueles pediram «que seja declarada válida a rescisão do contrato de compra e venda e de cessão de exploração; a condenação dos 1.ª e 2.º réus no pagamento solidário das rendas e inflações correspondentes em falta, no valor de 14 224 984$00 acrescidas de juros de mora vencidos, no valor de 5 120 995$00 e dos vincendos, à taxa legal, até integral pagamento; a condenação dos mesmos réus no pagamento solidário de 813.847$00, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescidos de juros desde a citação até integral pagamento; que sejam declarados ineficazes as transmissões dos prédios dos 2.ºs réus quer à 3.ª ré quer aos 4.ºs réus, através das escrituras públicas referidas nos autos, e que os bens alienados sejam restituídos ao património dos 2.ºs réus» e onde os Réus deduziram reconvenção pedindo «que seja mantido considerado válido e eficaz o contrato de arrendamento rural, impropriamente designado na escritura como cessão de exploração; que a renda seja reduzida de acordo com a avaliação que vier a ter lugar; que a 1.ª ré só seja obrigada a pagar as rendas devidas e em atraso desde 31/12/1998 e até ao encerramento dos portões da propriedade, sem juros, deduzidas as importâncias correspondentes aos tratamentos e colheitas de que os autores se apropriaram; se assim não se entender, pedem … que, face à resolução ilícita do contrato pelos autores, sejam estes condenados a devolver à 1.ª ré as rendas entregues, no montante de 56 863 833$0, e ainda, a pagar uma indemnização por prejuízos materiais e à imagem da 1ª ré, a liquidar em execução de sentença».

E) - Por sentença proferia a 20/07/2007, na acção referida em D), resultou provado que:

«A) - Por escritura pública datada de 11 de dezembro de 1989, outorgada no 1.° Cartório Notarial de ..., os Autores, como primeiros outorgantes, declararam que “com reserva do usufruto vitalício e sucessivo para eles, por inteiro, e pelo preço de três mil contos, vendem à sociedade que os segundos outorgantes - os Réus DD e EE - representam, CC, …, SA., o prédio denominado Quinta do P.., situado no lugar do ..., da referida freguesia ..., prédio todo este murado e que se compõe de duas parcelas: a parcela A de vinha, com ramadas e cruzetas, todas produtoras de uvas brancas; e a parcela B separada da parcela A por uma linha que, partindo do extremo sul da estufa, se dirige para poente, terminando no muro da quinta que margina com a estrada de acesso ao centro da freguesia, ou seja, termina a trinta metros a sul do portão principal da Quinta, parcela esta situada a norte da parcela A, nela se encontrando a casa principal, a garagem, lojas e armazéns de arrumos, duas habitações mais pequenas, eira com espigueiro, tanque de irrigação, vacaria com anexos, alpendre, relvados com árvores de fruto e outras, roseiral, canteiros com flores e horta com videiras, a nascente da qual existe uma construção de trinta e cinco metros que serve de casa para pessoal e mais a sul uma estufa (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número zero zero cento e quarenta e nove, da freguesia ..., com registo de transmissão a favor deles vendedores pelas inscrições G-um, G-dois, G-três, G-quatro, G-cinco e G-seis e inscrito nos artigos setenta e sete e setenta e nove da matriz urbana e mil cento e dois da matriz rústica (. ..), e que já receberam dos segundos outorgantes o indicado preço", tendo os Réus DD e EE, na qualidade de segundos outorgantes, declarado que "para a sociedade sua representada aceitam este contrato".

B) - Por escritura pública datada de 11 de dezembro de 1989, outorgada no 1.º Cartório Notarial de ..., os Autores, como primeiros outorgantes, e os Réus DD e mulher EE, que intervieram em seus próprios nomes e também na qualidade de administradores da Ré “CC, …, S.A.", como segundos outorgantes, declararam que “pela presente escritura, eles, primeiros outorgantes, na qualidade de usufrutuários da denominada Quinta do P.., cedem à sociedade representada dos segundos outorgantes «CC, …, S.A.» a exploração de toda a sua parcela A, nas seguintes condições: (…) 3º -a) A sociedade fica responsável por todos os trabalhos de conservação, tratamento, plantio e reparações na parcela A, necessárias àqueles fins; (…) 7°- a) O valor da exploração é de quatro mil e quinhentos contos anuais, pagáveis cinquenta por cento até ao fim do mês de junho e os restantes cinquenta por cento até ao fim de dezembro de cada ano; b) O preço anual sofrerá um aumento, também anual, correspondente ao valor da inflação calculada sobre o preço dos bens de consumo fornecido pelo Instituto Nacional de Estatística; c) A inflação será sempre acrescida ao valor da segunda prestação pagável até trinta e um de dezembro, ou seja, sobre a metade da prestação global do ano anterior já atualizada; 8°. - Os segundos outorgantes, em seus nomes pessoais, vinculam-se como fiadores e principais pagadores da sociedade sua representada por todas as obrigações emergentes deste contrato e da lei, tanto no período inicial do contrato como das suas eventuais renovações; 9º - A falta de cumprimento deste contrato quer pela sociedade cessionária quer pelos segundos outorgantes em seus próprios nomes, por período superior a dezoito meses, será motivo para rescisão ipso facto, por parte dos primeiros outorgantes; 10° 1 - A falta de cumprimento deste contrato por parte da sociedade cessionária funciona ainda como condição resolutiva para a compra e venda, hoje efetuada, da raiz da Quinta do P..".

C) - Desde 1995, a 1°. Ré liquidava as prestações do “valor da exploração” com atrasos, solicitando sempre uma moratória e subdivisão em outras prestações.

 D) - A quantia de 4 536 896$00, referente à segunda prestação do “valor de exploração" de 1998, não foi paga.

E) - A quantia de 254 067$00, referente à inflação do ano de 1998, não foi paga.

F) - A quantia de 4 536 896$00, referente à primeira prestação do “valor de exploração" de 1999, não foi paga.

 G) – Os Autores enviaram à 1.ª Ré e aos 2°s. Réus, no dia 7 de janeiro de 2000, duas cartas registadas com aviso de receção, com vista a “rescindir” o acordo referido em B) e a “resolver” o acordo referido em A), ao abrigo das cláusulas nona e décima do acordo identificado em B), por violação das cláusulas 3°-a) e 7º deste acordo.

H) - As cartas referidas em G) foram devolvidas aos Autores com a nota “não reclamadas".

I) – Os Autores requereram a notificação judicial avulsa da 1.ª Ré e dos 2º.s Réus do teor das cartas referidas em G).

J)L) - A 1ª. Ré foi notificada em 16 de fevereiro de 2000 e os 2°s. Réus foram notificados em 9 de fevereiro de 2000 (a Ré) e 11 de fevereiro de 2000 (o Réu).

M) - Por escritura pública datada de 9 de setembro de 1997, outorgada no Cartório Notarial de ..., entre FF, em representação dos segundos Réus, e GG, na qualidade de procurador da sociedade comercial por quotas denominada “HH", foi declarado pelo primeiro que “pela presente escritura os seus constituintes vendem à sociedade que o segundo outorgante representa pelo preço total de dezassete milhões e quinhentos mil escudos, que já receberam, os seguintes bens: - pelo preço de onze milhões de escudos o prédio misto que por alterações supervenientes se compõe de casas de habitação, sendo uma de rés do chão e outra de rés do chão e primeiro andar com logradouro, com a área coberta de duzentos metros quadrados e a descoberta de três mil e oitenta metros quadrados, e Eido do ..., com a área de duzentos e vinte metros quadrados, sito no lugar do ..., da referida freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número setecentos e setenta e dois, da respetiva freguesia, encontrando-se um terço indiviso registado a favor do vendedor pelas inscrições G-dois e G-três, inscrito na matriz sob os artigos … e … urbanos e … rústico. (…) - Pelo preço de dois milhões e quinhentos mil escudos, o seguinte mobiliário existente na casa de habitação inscrita na matriz sob o art. …: Na cave. Sala Grande - mobília de sala de jantar, composta por mesa, seis cadeiras, sete candeeiros, cinco sofás individuais, duas carpetes e mesa de apoio. Sala Pequena – um sofá de três lugares, uma carpete, duas mesas de apoio e um armário. Rés do chão: Capela: dez candeeiros, um altar, uma imagem de São José, uma imagem da Senhora do Sameiro, um crucifixo e uma imagem de Santo António; Cozinha - uma mesa, oito cadeiras, um frigorífico, uma máquina de lavar loiça, um fogão, uma prateleira e dois móveis de cozinha para louça; Sala de jantar - mobília composta por mesa, oito cadeiras, um aparador, dois sofás individuais, uma mesa de apoio, uma carpete, um móvel de secretária, três candeeiros de teto e um quadro; Quarto principal - uma cama, duas mesinhas de cabeceira, um guarda-fatos, um candeeiro de teto e uma cadeira; Segundo quarto - duas camas individuais, duas mesinhas de cabeceira, um candeeiro de teto, dois candeeiros de mesinha de cabeceira e urna cadeira; Terceiro quarto - uma cama, duas mesinhas de cabeceira, um candeeiro de teto, dois candeeiros de mesinha de cabeceira e uma cadeira; Primeiro andar: Três quartos - Primeiro: uma cama, uma mesinha de cabeceira e uma cadeira. Segundo: uma cama, duas mesinhas de cabeceira e um guarda-fatos. Terceiro - uma cama e duas mesinhas de cabeceira. E que pelo preço de quatro milhões de escudos, o seguinte imóvel: Prédio rústico denominado «C...››, com a área de dois mil setecentos e trinta e seis metros quadrados, sito lugar de Seara da referida freguesia ..., descrito na citada Conservatória sob o número oito da respetiva freguesia, registado a favor do vendedor pela inscrição G-dois, inscrito na matriz sob o art. … (...). Pelo segundo outorgante foi dito que para a sociedade que representa aceita o presente contrato".

N) - Na Conservatória do Registo Predial de ..., mostra-se inscrita a favor dos 4°s. Réus desde 29 de julho de 1999 a aquisição do prédio rústico – C..., lote …, parcela de terreno para construção urbana - área 465 m2, a confrontar do norte com arruamento do loteamento, nascente com o lote dezassete, sul com herdeiros de II e poente com lote 19, aí descrito sob o n.° …, freguesia ..., por compra aos 2°s. Réus.

 O) – Na Conservatória do Registo Predial de ..., mostra-se inscrita a favor dos 4°s. Réus desde 29 de julho de 1999 a aquisição do prédio rústico - C..., lote …, parcela de terreno para construção urbana - área 580 m2, a confrontar do norte com arruamento do loteamento, nascente com o lote dezoito, sul com herdeiros de II e poente com lote 20, aí descrito sob o n°…, freguesia ..., por compra aos 2°s. Réus.

P) - A escritura referida em M) foi celebrada pelos 2°s Réus com a expectativa de estes reaverem os prédios logo que a sua situação financeira o permitisse.

1.º - A quantia de 4 663 929$00, referente à segunda prestação do “valor de exploração" de 1999, não foi paga. 

2.º - A quantia de 233 196$00, referente a inflação de 1999, não foi paga.

5.º, 6.º, 7.º - No verão de 1999, a vinha encontrava-se com ervas daninhas, nomeadamente junça, algumas videiras estavam secas e havia arames e ferros partidos.

8.º - Em abril de 2000, os Autores gastaram 196 455$00 em adubos e estrumes para recuperarem a vinha.

9.º - Em novembro de 1999, os Autores gastaram 117 351$00 em arame para colocar na vinha.

10.º - Nos trabalhos de recuperação da vinha, os Autores empregaram várias pessoas, a quem pagaram.

11.º, 12.º - Desde o início do cultivo da parcela A da Quinta do P.., a 1ª. Ré dispunha um técnico para orientar o cuidado das vinhas, bem como de um funcionário experiente no ramo que orientava os trabalhos.

13.º - O técnico responsável fazia visitas à vinha mais do que uma vez por mês.

14.º, 15.° - Tal técnico orientava o funcionário referido na resposta conjunta aos quesitos 11.º e 12.º, que aí trabalhava em permanência.

20.º - Sempre que não era possível, por razões de tesouraria, pagar atempadamente as prestações do “valor de exploração", a 1.ª Ré acordava com os Autores novas datas de liquidação, sem nunca pôr em causa os acordos referidos em A) e B).

21.º - Em maio de 1999, os Autores e a 1.ª Ré acordaram que esta pagaria em 30.06.99 a segunda prestação do “valor de exploração" referente ao ano de 1998.

22.° - Em 2 de julho de 1999, os Autores vedaram o acesso da 1.ª Ré à parcela A da Quinta do P.., fechando o portão à chave e trocando os cadeados.

23.° - Por causa disso, a 1ª. Ré não pôde mais zelar pela vinha.

25.° - A 1.ª Ré não colheu as uvas em 1999; em 27 de setembro de 1999, o Autor remeteu àquela uma carta pondo à disposição da 1ª. Ré as uvas, na condição do pagamento, até às vindimas, das rendas em atraso e das despesas efetuadas com a recuperação da colheita, tudo acrescido de juros.

26.° - Em 1999, os Autores ficaram com a produção de uvas da Quinta do P...

27.° - Até à data referida em 22.°, a 1.ª Ré entregou aos Autores a quantia de 56 863 833$00 pelo “valor de exploração" da Quinta do P...

28.° - À data do acordo referido em M), os 2.°s Réus conheciam as dificuldades de tesouraria da 1.ª Ré.

30.º - À data referida em N) e O), os 4°s Réus conheciam a situação financeira da 1.ª Ré e tinham conhecimento da responsabilidade assumida pelos 2°s Réus no âmbito do acordo referido em B). 31.º - Os 2°s Réus sabiam que o acordo referido em M) dificultava o pagamento dos créditos dos Autores.

32.º - Os 2°s e 4°s Réus sabiam que os negócios referidos em N) e O) dificultavam o pagamento dos créditos dos Autores.

33.º, 34.º - Os 2°s Réus foram administradores da 1.ª Ré desde a sua constituição, em 1989, tendo a 2.ª Ré deixado de o ser a 28 de fevereiro de 1991 e continuando o 2.º Réu a sê-lo, pelo menos, até janeiro de 1997.

35.º, 36.º - A 1.ª Ré abordou várias vezes o Autor no sentido de ser revisto o “valor de exploração" referido em B), face à diminuição da produtividade da vinha.

38.° - A 1.ª Ré e os Autores nunca alteraram o “valor de exploração" fixado no acordo referido em B).

39.°/40.º - O referido em 22.º foi comentado na região onde se situa a Quinta do P.., e criou um mal-estar aos 2°s Réus».

F) - Nessa sentença, que foi confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, decidiu-se em 1.ª instância que «declara-se válida a resolução do contrato de compra e venda e do contrato de cessão de exploração, celebrados a 11 de dezembro de 1989, aquele entre os Autores BB e mulher AA e a 1.ª Ré “CC - …, S.A.”, e este entre os Autores, a 1ª. Ré e os 2°s. Réus DD e mulher EE, resolução essa operada pelos Autores por notificação judicial avulsa de fevereiro de 2000 - condenam-se a 1.ª Ré e os 2°s a pagar solidariamente aos Autores, a título de valores de exploração e inflação em falta, a quantia de € 47.083,81 (quarenta e sete mil e oitenta e três euros e oitenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, desde 1 de janeiro de 1999 sobre € 23.897,22, desde 1 de julho de 1999 sobre € 22.629,94 e desde 1 de janeiro de 2000 sobre o restante, tudo até integral pagamento; - condenam-se a 1ª. Ré e os 2°s Réus a pagar solidariamente aos Autores a indemnização por danos patrimoniais de € 1.565,26 (mil quinhentos e sessenta e cinco euros e vinte seis cêntimos), acrescida de juros de mora, a taxa legal aplicável às obrigações civis, desde a citação até integral pagamento, e ainda a quantia, a liquidar em execução de sentença, relativa aos custos de mão-de- ‑obra que os Autores suportaram para recuperação da vinha; - julga-se procedente a impugnação pauliana dos negócios jurídicos de alienação, a favor dos 4°s Réus JJ e mulher KK, relativos aos prédios rústicos sitos na C..., freguesia ..., ... destinados à construção urbana (lote …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° …, e lote …, aí descrito sob o n°…), determinando-se a restituição desses bens ao património dos 2.ºs Réus, na medida do interesse dos Autores; mais se reconhece aos Autores o direito de executar esses bens imóveis no património dos 4°s Réus e de praticar sobre eles os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei; - absolvem-se os 2°s Réus e a 3.ª Ré “HH" do pedido de ineficácia da transmissão do prédio misto sito no lugar do ..., freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° …, operada pela escritura pública de 9 de setembro de 1997; - absolvem-se a 1ª. Ré e os 2°s Réus do pedido de condenação, em multa e em indemnização a favor dos Autores, como litigantes de má fé. Julga-se improcedente por não provado o pedido reconvencional formulado pela 1ª. Ré e pelos 2°s. Réus, dele se absolvendo os Autores».

G) - Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2009, foi julgada parcialmente procedente a revista interposta do acórdão referido em F), decidindo-se conceder «parcialmente a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que declarou válida a rescisão (resolução) dos contratos de cessão de exploração e de compra e venda, julgando-se nessa parte improcedente a acção. Declara-se que os juros moratórios relativos à 2.ª prestação de 1998 devida pela 1.ª e pelos 2.ºs réus deverão ser contados a partir de 30/06/1999».

H) - Desde a data referida em G) e até à data da instauração da presente acção, os Réus não pagaram aos Autores o valor em que foram condenados no processo referido em D), nem retomaram a exploração do solo da parcela A referida nas escrituras acima mencionadas.

I) - A Ré também não pagou aos Autores as prestações a que se obrigou na escritura parcialmente transcrita supra em C), devidas pela exploração da parcela A (as quais haveriam de ser actualizadas em função do aumento anual correspondente ao valor da inflação calculado sobre o preço dos bens ao consumo fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística).

J) - A Ré esteve impedida de ter acesso à “Quinta do P..” desde julho de 1999 até 16/06/2009.

K) - Em finais de 2009, a Ré remeteu aos Autores o ofício cuja cópia se encontra junta a fls. 194, onde diz “declarar a resolução do mencionado contrato de exploração” referido em C).

L) - Em 15 de outubro de 2010, através da sua Il. Mandatária, os Autores enviaram uma carta à Ré “CC” e com conhecimento aos demais Réus (cuja cópia se encontra junta a fls. 228), e por todos recebida, com o seguinte teor:

«Ex.mºs Senhores:

1 – Em vão aguardaram os M/ Clientes referenciados, desde o trânsito em julgado da sentença proferida nos autos que correram os seus termos sob o n.º 2/2002 - 1° Juízo no Tribunal Judicial de ..., que V.as Ex.as retomassem o tratamento da parte do prédio da Quinta do P.., objeto do contrato de exploração celebrado em 11 de dezembro de 1989 no Cartório Notarial de ... e constante do referido processo judicial e como era V/ direito. 2 - Como expressei ao Ex.mo Sr. Dr. LL, Ilustre mandatário que patrocinou V. Ex.as na referida ação que mas que deixou de Vos representar, conforme fax que me enviou no passado mês de maio do corrente ano, as vinhas, dado o estado de degradação a que V. Ex.as as votaram e pela sua idade, tinham de ser substituídas, o que foi feito a custo dos M/ Clientes no passado mês de junho. 3 – Não aceitam, por isso, e como referi ao meu Ex. mo Colega, a "Rescisão do Contrato" comunicada por V. as Ex.as em carta sem data, mas que terá sido enviada em fins de 2009. 4 – Toda a estrutura das novas vinhas bem como a plantação das mesmas foi feita pela empresa Vertente Viticultura e Enologia; Lda., trabalho inevitável pelos motivos amplamente discutidos e provados no processo judicial. 5 – Face a tal situação e numa última tentativa de evitar novo recurso às vias judiciais, muito agradeço me informem se estão ou não interessados em retomar o tratamento da dita parcela de terreno e concretamente em tratar as vinhas que aí estão plantadas e em franco crescimento e desenvolvimento. 6 – Na ausência de qualquer contacto, aconselharei os meus Clientes a agirem em conformidade com os direitos que lhes assistem».

1.º - Desde a data do acórdão referido em G) até ao presente, a 1.ª Ré não mais tratou o solo e as vinhas da referida parcela A.

2.º - No período referido na resposta ao quesito anterior, os Autores controlaram a exploração do solo da parcela A, nomeadamente procedendo ao tratamento da terra, que passou, no segundo trimestre de 2009, pelo arranque da vinha existente e, no primeiro trimestre de 2010, pela replantação de videiras e subsequente tratamento.

3.º - Os aludidos arranque e replantação foram feitos sob a orientação de técnicos do Ministério da Agricultura.

7.º,8.º,9.º - Por causa do desenrolar da relação entre os Réus e os Autores a propósito dos acordos aludidos em A) e C), os Autores sentem-se desconsiderados e têm menos disposição para estar com amigos.

12.º - A 1.ª Ré não quis retomar a exploração da parcela A pelo facto de os Autores terem arrancado a vinha.

13.º - A decisão dos Autores de arrancar a vinha foi tomada sem prévia consulta aos Réus.

20.º - Uma vinha só produz em plenitude decorridos 6 anos da respectiva plantação.

21.º - À data da celebração do acordo referido em C), a parcela A tinha ramadas adultas.

 

III - Fundamentação de direito

1. Alegam os recorrentes que as instâncias, na matéria de facto fixada, remeteram para a escritura pública, datada de 11 de Dezembro de 1989 (facto provado C), sem reproduzir integralmente a cláusula 6.ª do contrato de cessão de exploração. Solicitam a este Supremo Tribunal que acrescente à matéria de facto a totalidade do teor da cláusula 6.ª conforme consta da escritura pública junta aos autos.

Consultando o documento autêntico junto aos autos, a referida cláusula afirma o seguinte: a) Este contrato terá o seu início em um de janeiro de mil, novecentos e noventa e durará pelo período de DEZ anos, renovável automaticamente por iguais períodos de dez anos, sem que a isso se possam opor os primeiros outorgantes; b) Quer isto dizer que o contrato só terminará quando se extinguir o usufruto por morte do último dos primeiros outorgantes, data em que se consolidará a propriedade plena da sociedade cessionária, nos termos da escritura de compra e venda hoje outorgada».

A cláusula agora transcrita em b) não consta do facto provado C), mas tratando-se de um documento autêntico, podemos integrá-la na matéria de facto provada, tanto mais que o conteúdo da cláusula resulta também do contrato de compra e venda no qual os primeiros outorgantes declararam «que, com reserva do usufruto vitalício e sucessivo para elas, por inteiro, e pelo preço de três mil contos, vendem à sociedade que os segundos outorgantes (…)».

Uma vez que estão em causa declarações de vontade das partes, inseridas em documento autêntico (escritura pública de 11 de Dezembro de 1989, que titula o contrato de cessão de exploração), para o qual remete a matéria de facto, deve considerar-se a mesma incluída na matéria de facto, relevando o seu significado na definição do regime jurídico do contrato.

Sendo assim, deve aplicar-se o regime jurídico do usufruto, e a propriedade plena só se consolida na pessoa dos compradores à data do falecimento do cônjuge sobrevivente, conforme os artigos 1476.º, n.º1, al. a), 1.ª parte e 1441.º do CC.

Procedem, portanto, as conclusões A) a C) da alegação de recurso do recorrentes.

2. Interpretação das declarações negociais e coligação de contratos 

A interpretação das declarações negociais é uma questão de direito, que se encontra dentro dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal.

Segundo o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 2010, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas (processo n.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1), «A vontade real constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias. Já a vontade hipotética, por resultar do exercício interpretativo, na situação do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, pode ser apurada pelo Supremo Tribunal de Justiça e deve coincidir com o sentido apreensível pelo declaratário normal (…)».     

No caso dos autos, encontramo-nos no domínio do significado das cláusulas contratuais tal como são entendidas pelo declaratário normal, de acordo com a teoria da impressão do destinatário consagrada no n.º 1 do art. 236.º do Código Civil.

A regra estabelecida no n.º 1 do art. 236.º é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Consagra-se uma doutrina objectivista – a teoria da impressão do declaratário – com duas excepções de natureza subjectivista: os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (art. 236.º, n.º 1, 2.ª parte), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (art. 236.º, n.º 2).

Como dizem Pires de Lima/ Antunes Varela, “A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”[1].

 

A interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado”[2].

O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. Serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, a doutrina refere os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou o negócio concluído[3].

 A doutrina critica, hoje, a concepção positivista-legalista em matéria de interpretação do contrato, entendendo que a fixação do sentido do contrato não pode ser procurada meramente no plano linguístico, apelando a uma perspectiva integrada da autonomia privada através de uma articulação com outros princípios do direito dos contratos, como o da justiça (ou equilíbrio do contrato), o da protecção da confiança ou o da conduta segundo a boa fé[4]

 

Estamos perante uma união de contratos, em que apesar de os contratos serem autónomos e distintos, mantêm entre si uma relação de interdependência, em termos de a resolução de um dos contratos determinar a extinção do outro (cf. acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, 11-09-2007, processo n.º 07A2104, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos).

A jurisprudência tem entendido que na coligação ou união de contratos existe uma pluralidade de contratos, ligados entre si por um nexo funcional, de tal modo que constituem uma unidade económica, embora cada um mantenha a sua individualidade própria. Porém, nestes casos, dada a dependência recíproca, ambos os contratos se completam na obtenção de uma finalidade económica comum e verifica-se entre eles uma subordinação que implica que as vicissitudes de um se repercutam no outro. Donde resulta que todas as normas e institutos dirigidos directa ou indirectamente ao conteúdo “económico” do contrato devam ser objecto de aplicação unitária.

Conforme se ilustra no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14-02-2008, proferido no processo n.º 08B074 e relatado pelo Conselheiro Oliveira Vasconcelos:

«Trata-se de uma união de contratos, em que existe entre estes um nexo funcional que influi na respectiva disciplina, que cria entre eles uma relação de interdependência bilateral ou unilateral, em que um deles pode funcionar como condição, contraprestação, base negocial do outro, ou outra forma de dependência criada por cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de motivação que afectam um deles ou ambos.

A existência de uma coligação funcional entre dois ou mais negócios produz efeitos jurídicos relevantes, na medida em que, em virtude dessa dependência funcional, as vicissitudes de um acabam por se repercutir sobre o outro ou outros».

A complexificação das relações económicas demonstrou que os contratos não são isolados entre si, mas que se unem num mesmo conjunto, existindo uma interdependência entre as suas prestações, e funcionando estes vários contratos coligados como elementos constitutivos de uma operação económica global e unitária[5].

Em consequência, o raciocínio lógico-jurídico do direito dos contratos, que tinha como padrão o modelo das convenções isoladas, segue hoje um modelo de interdependência contratual, segundo o qual se um dos contratos se extingue (anulação ou resolução) por uma causa própria, os outros que a ele estão subordinados extinguem-se em virtude do desaparecimento do primeiro contrato. «Os contratos, nos quais se repercute a extinção de um outro contrato, não se extinguem por uma causa própria ou interna. O seu desaparecimento só se explica por uma causa externa, que resulta do desaparecimento do conjunto contratual, situação que condena necessariamente todos os seus elementos constitutivos, isto é, os contratos»[6]. «A causa externa reflecte a imbricação material das prestações que caracteriza a interdependência contratual. Mais exactamente, ela exprime que a causa de cada contrato se prolonga no objecto de todos os outros, isto é, ao nível global, no objecto do conjunto contratual. Assim, desaparecendo o conjunto contratual, cada contrato perde uma parte da sua causa. (…) A inexecução do conjunto contratual priva de causa os contratos em curso de execução. Eles extinguem-se por resolução». (…) «A inexecução de um dos contratos impede a realização do objectivo prosseguido e priva de causa as outras convenções concluídas nesta perspectiva» [7].

No caso dos autos, o contrato de compra e venda da propriedade de raiz foi celebrado por um preço simbólico de três mil contos, tendo como contrapartida para além deste preço, as rendas anuais fixadas no contrato de cessão de exploração, que permitiriam aos autores ter uma empresa especializada na área da agricultura a tratar das vinhas sem despesas e sem preocupações para si, ficando a 1.ª ré, como contrapartida, com os proventos da quinta, e obtendo a propriedade plena da mesma à data da morte do último membro do casal, aumentando assim o seu património. 

O contrato de compra e venda e o contrato de cessão de exploração correspondem a uma operação económica unitária e não podem subsistir um sem o outro. A participação de um contrato num conjunto contratual expõe-no a um risco de extinção mais elevado do que aquele que pode afectar um contrato isolado. A interdependência recíproca verifica-se, quer entre os contratos, quer entre a operação global e cada um dos contratos necessários à sua realização[8].

Num conjunto contratual, uma vez que todos os contratos são necessários e insuficientes, quando vistos de forma isolada, à realização da operação global querida pelas partes, a extinção de um só contrato basta para comprometer a realização desta operação[9]. Não sendo possível a operação económica global querida pelas partes, desaparece o conjunto contratual, o que explica o desaparecimento de todos os contratos que o integram[10].

De acordo com estes princípios, a resolução do contrato de cessão de exploração, dados os efeitos retroactivos da resolução (art. 434.º, n.º 1, 1.ª parte do CC), provoca a extinção do contrato de compra e venda, o qual, apesar da produção de efeitos jurídicos instantâneos, estava sujeito a uma condição resolutiva, consistente no incumprimento durante 18 meses do contrato de cessão de exploração, conforme resulta da sua cláusula 10.ª.

Da análise global das cláusulas contratuais decorre que há uma conexão entre os dois contratos, em termos de se poder concluir, aplicando os critérios de interpretação das declarações negociais fixados no art. 236.º, n.º 1 do CC, que os contratos são interdependentes entre si, repercutindo-se o destino de cada um deles na subsistência do outro.

As partes declararam que o incumprimento do contrato de cessão de exploração pela 1.ª ré funcionaria como condição resolutiva do contrato de compra e venda, assim afirmando que a compra e venda tinha como contrapartida essencial a subsistência do contrato de cessão de exploração e que, em consequência, resolvido este, extinguir-se-ia também o contrato de compra e venda, que perderia a sua razão de ser, dada a unidade económica dos dois contratos.

Veja-se a cláusula 10.ª do contrato de cessão de exploração, reproduzida na matéria de facto:

«A falta de cumprimento deste contrato por parte da sociedade cessionária funciona ainda como condição resolutiva para a compra e venda, hoje efetuada, da raiz da Quinta do P...»

As partes inseriram no contrato uma cláusula que classificam de condição resolutiva e que visa fazer repercutir sobre a compra e venda a verificação de um evento futuro e incerto: o incumprimento do contrato de cessão de exploração.

Adoptando o critério seguido por este Supremo Tribunal (acórdão de 6 de Outubro de 1981, BMJ, n.º 310, p. 259) quanto à diferença entre condição resolutiva e cláusula resolutiva, entendemos estar perante uma condição resolutiva.

De acordo com o teor da cláusula está presente um automatismo na extinção da eficácia do negócio, na medida em que o atraso no pagamento da renda ou valor de exploração ou o incumprimento da obrigação de zelar pela exploração da quinta desencadeia imediatamente a resolução do contrato de compra e venda, isto é, independentemente de declaração de vontade dos vendedores.

A condição relaciona-se com a coligação dos contratos de compra e venda e de cessão de exploração e significa que os dois contratos coligados são imediatamente eficazes, com possibilidade de extinção conjunta em virtude da influência da cessação de um contrato sobre o outro.

Nas palavras da jurista MM, na sua tese de doutoramento, a condição é, assim, um instrumento utilizado para, ao abrigo da autonomia privada, realizar uma «função negocial complexa», originando um «fenómeno de coligação negocial ou de união de contratos: em lugar de produzir os seus efeitos dentro do próprio negócio ao qual é aposta, a condição vem espoletar a eficácia de um outro negócio subsequente ao primeiro»[11].

           A condição permite a introdução de «um elemento de flexibilidade nos efeitos vinculantes da relação jurídico-negocial, sem atentar contra a indispensável certeza do Direito, posto que a condição integra o conteúdo negocial – é conformada pela vontade das partes que podem, em conformidade, ajustar as suas expectativas ou confiança»[12].

           

 Não há dúvida, portanto, que esta declaração negocial, constante da cláusula 10.ª, interpretada à luz do conceito de declaratário normal significa a interdependência dos dois contratos e a unidade económica destes, pelo facto de prosseguirem um fim comum, concepção que é reforçada pela circunstância de terem sido as escrituras outorgadas no mesmo dia e entre as mesmas partes.

A ligação entre os dois contratos e o recurso à condição resolutiva significam que as vicissitudes de um dos contratos (o contrato de cessão de exploração) se repercutem na subsistência do outro (o contrato de compra e venda), criando esta articulação entre os dois contratos um nexo sinalagmático que ultrapassa as fronteiras internas de cada um dos contratos isoladamente, dependendo a ideia de equilíbrio contratual da união ou ligação entre as prestações de contratos distintos. Neste sentido, constituindo o contrato um instrumento de troca de bens e serviços, que enquadra juridicamente a deslocação de um bem de um património para outro, é essencial à justiça contratual que aquilo que uma das partes recebe tenha um valor idêntico à prestação fornecida pela contraparte.

 

            Sendo assim, procedem as conclusões D) a G) da alegação de recurso dos recorrentes.

3. Abuso do direito de resolução do contrato

Para analisarmos a aplicabilidade do instituto do abuso do direito, é necessário procedermos a uma descrição da evolução das decisões judiciais sobre a validade ou invalidade da resolução dos contratos de compra e venda e de cessão de exploração celebrados entre os autores e os 1.ºs e 2.ºs réus, por escritura pública, em Dezembro de 1989.

A figura do abuso do direito depende do poder dos factos na sua globalidade e não apenas de um segmento dos factos.

Os agora autores já em 2002 tinham intentado uma acção ordinária contra os agora 1.ºs e 2.ºs réus, pedindo a declaração de validade da resolução dos contratos de compra e venda e de cessão de exploração, operada pelos autores através de notificação judicial avulsa, em Fevereiro de 2000, e a condenação dos 1.ºs e 2.ºs réus ao pagamento solidário das rendas em atraso, actualizadas de acordo com a taxa de inflação, tal como tinha sido acordado, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até integral pagamento.

O Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação de Guimarães decidiram declarar a validade da declaração de resolução dos contratos e condenar os 1.ºs e 2.ºs réus ao pagamento solidário das rendas em falta no valor de € 47, 083,81, acrescido de juros de mora, bem como ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais no valor de € 1565, 26 e ao pagamento de valor dos custos da mão-de-obra com a recuperação da vinha a liquidar em execução de sentença, bem como julgaram procedente a impugnação pauliana dos negócios jurídicos de alienação, a favor dos 4.ºs. Réus.

Em recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, admitido com efeito devolutivo, a revista dos réus foi parcialmente concedida, tendo este Supremo Tribunal, através de acórdão de 16 de Junho de 2009 (Revista n.º 135/09.4YFLSB - 1.ª Secção), revogado o acórdão recorrido na parte em que se declarou a validade da declaração de resolução dos contratos de compra e venda e de cessão de exploração. Entendeu o acórdão deste Supremo Tribunal que à data da resolução dos contratos operada pelos autores, Fevereiro de 2000, estavam apenas em dívida a segunda prestação do valor de exploração de 1998 e o valor da inflação correspondente a este ano de 1998, bem como a primeira prestação do valor de exploração de 1999, não se verificando ainda os requisitos necessários à cláusula resolutiva integrada na cláusula 6.ª do contrato de cessão de exploração, que exigia um incumprimento do estipulado no contrato por período superior a 18 meses.

Na presente acção, entre os mesmos autores e os mesmos réus, e dirigida à resolução dos mesmos contratos, embora com base em factos novos, o tribunal de 1.ª instância declarou a validade da resolução dos mesmos, enquanto o acórdão recorrido, revogando em parte a sentença de 1.ª instância, declarou a invalidade da resolução do contrato de compra e venda, mantendo a resolução do contrato de cessão de exploração decretada pelo tribunal de 1.ª instância e a condenação dos réus ao pagamento do valor de correspondente às rendas em atraso mais o acordado quanto à inflação, tudo acrescido de juros de mora.

O fundamento invocado pelo acórdão recorrido foi o abuso do direito de resolução em virtude de, no Verão de 1999, os autores, ainda antes de completado o prazo de 18 meses de atraso no pagamento das rendas ou valores de exploração, necessário para que os réus incorressem em incumprimento definitivo, terem vedado o acesso dos réus às vinhas [Em 2 de julho de 1999, os Autores vedaram o acesso da 1.ª Ré à parcela A da Quinta do P.., fechando o portão à chave e trocando os cadeados], facto provado na sentença de 20 de Junho de 2007, proferida ma acção 2/2002, conforme transcrição no facto provado E) da presente acção.

O acórdão recorrido fundamentou o recurso ao instituto do abuso do direito no facto de os autores terem vedado o acesso dos réus às vinhas e de terem declarado a resolução dos contratos quando estava quase a completar-se o prazo de 10 anos após a celebração dos mesmos, momento que torna visível que estes pretendiam com o exercício do direito de resolução impedir os réus de adquirem o direito de propriedade sobre o imóvel, conforme estipulado na cláusula 6.ª, que estipulava a renovação automática do contrato de cessão de exploração à qual os autores não se podiam opor.

Veja-se o seguinte excerto da fundamentação do acórdão recorrido:

«Ora no caso presente deparamo-nos com uma situação bizarra. É que aquando do ato ilícito por parte dos autores de obstarem à entrada da ré na quinta de que haviam cedido a exploração, faltava já menos de seis meses para a ré poder consolidar a nua propriedade, bastando para tanto que no término dos 10 anos iniciais denunciasse o contrato, como podia, pois nos termos estipulados apenas os AA. não podiam opor-se à renovação. Ora, a essa data – término dos 10 anos – ainda que continuasse o não pagamento das prestações em débito aquando do impedimento de acesso à parcela -, não poderiam os AA. resolver o contrato de compra e venda por não verificação dos requisitos convencionalmente acordados. Importa ainda referir que a prestação de 99, embora devida como salientou o STJ, não obstante o impedimento de explorar a parcela, seria paga com os rendimentos desse ano. Relativamente à prestação de 98 refira-se que ocorrera um acordo. Tudo circunstâncias a atender em sede de apreciação da conduta à luz do abuso de direito.

Relativamente ao dito abandono, que na realidade não existe, pois que foi considerado pelo supremo que tal não ocorria, sendo que após a decisão deste o que ocorre não é um abandono – a parcela estava nas mãos dos AA. que impediam a R. de entrar e fruir a mesma -, mas antes uma não (re)tomada de posse. Conquanto não sendo motivo justificativo para a não retomada da fruição da parcela, o comportamento dos AA. em arrancar a vinha antes da decisão definitiva do litígio, essa atitude contribuiu para aquele comportamento da R., no quadro de um relacionamento já desgastado por dez anos de impedimento de exploração sem causa justa.

Saliente-se que se a venda era completada com o contrato de exploração, sendo o valor da venda simbólico, então, em face da possibilidade da ré por termo ao contrato de exploração passados dez anos, então podemos dizer que o valor tido em conta seria sensivelmente o correspondente ao total dessas prestações (de 10 anos), deduzidas da parte que corresponderia verdadeiramente ao “custo” da cessão de exploração. Como quer que seja, a nua propriedade estaria praticamente paga, mesmo nesta indemonstrada tese.

Por tudo o que se nos afigura ilegítimo e abusivo o exercício do direito de resolução relativamente ao contrato de compra e venda».

Mas, atentando à evolução dos factos na fase posterior ao acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Junho de 2009, entendemos que o acórdão recorrido não tem razão.

Com o acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Junho de 2009, os 1.ºs e 2.ºs Réus foram condenados, por sentença transitada em julgado, a pagar aos autores o valor das rendas em atraso e o valor correspondente à taxa de inflação, o que perfazia um montante de € 47.083,81 mais juros à taxa das obrigações civis e outros.

O citado acórdão entendeu não aplicar a medida drástica de resolução dos contratos pedida pelos autores, pois estes, conforme decorria do facto n.º 22 vedaram o acesso dos réus às vinhas em 2 Julho de 1999, ou seja, ainda antes de decorrido o prazo de 18 meses estipulado no contrato como requisito do incumprimento definitivo. Entendeu, portanto o Supremo que nesta data apenas havia mora e não incumprimento definitivo.

O fundamento invocado pelo acórdão de 16 de Junho de 2009 foi o seguinte: 

 

«Provando-se que no Verão de 1999, a vinha se encontrava com ervas daninhas, nomeadamente junça, algumas videiras estavam secas e havia arames e ferros partidos; que, em Novembro de 1999, os autores gastaram 117 351$00 em arame para colocar na vinha; que, em Abril de 2000, os autores gastaram 196 455$00 em adubos e estrumes para recuperarem a vinha; que nos trabalhos de recuperação da vinha, os autores empregaram várias pessoas, a quem pagaram; mas demonstrando-se, também, que em 02-07-1999, isto é, logo no início do Verão, os autores vedaram o acesso da 1.ª ré ao prédio, fechando o portão à chave e trancando os cadeados, razão pela qual essa ré não pôde mais zelar pela vinha, considera-se que os factos provados não legitimam a radical e drástica posição assumida pelos autores de resolverem o contrato. Por isso, não poderiam os autores com o fundamento de omissão de tratamento do prédio, por banda da 1.ª ré, resolver o contrato. Para essa eventual omissão terá sido decisiva a sua própria acção». 

Contudo, após o trânsito em julgado desta decisão e até à data da interposição da presente acção, as obrigações dos réus não foram cumpridas, tal como também não foi retomada pelos 1.ºs e 2.ºs Réus a exploração das vinhas, conforme consta nos factos H e I: «H - Desde a data referida em G) e até à data da instauração da presente acção, os Réus não pagaram aos Autores o valor em que foram condenados no processo referido em D), nem retomaram a exploração do solo da parcela A referida nas escrituras acima mencionadas; I - A Ré também não pagou aos Autores as prestações a que se obrigou na escritura parcialmente transcrita supra em C), devidas pela exploração da parcela A (as quais haveriam de ser actualizadas em função do aumento anual correspondente ao valor da inflação calculado sobre o preço dos bens ao consumo fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística).»

Por outro lado, o impedimento colocado pelos autores a que os réus explorassem as vinhas cessou, conforme resulta do facto J, em 16-06-2009, ou seja, logo após ser proferido o acórdão deste Supremo Tribunal.

Mostraram assim os autores disponibilidade para cumprir o decidido pelo acórdão de 16 de Junho de 2009, enquanto os réus persistiram no incumprimento do pagamento das rendas e dos deveres de exploração da quinta, tendo declarado a resolução do contrato de cessão de exploração, conforme facto K): «Em finais de 2009, a Ré remeteu aos Autores o ofício cuja cópia se encontra junta a fls. 194, onde diz “declarar a resolução do mencionado contrato de exploração” referido em C)».

A justificação apresentada pelos réus para não cuidar da exploração das vinhas foi motivada pelo facto de os autores terem arrancado as mesmas, sem prévia consulta, conforme resulta dos factos seguintes:

1.º - Desde a data do acórdão referido em G) até ao presente, a 1.ª Ré não mais tratou o solo e as vinhas da referida parcela A.

12.º - A 1.ª Ré não quis retomar a exploração da parcela A pelo facto de os Autores terem arrancado a vinha.

13.º - A decisão dos Autores de arrancar a vinha foi tomada sem prévia consulta aos Réus.

O acórdão recorrido valorizou estes factos como uma causa justificativa do incumprimento dos réus, conjugado com a circunstância de na acção n.º 2/2002 ter ficado provado que os autores impediram os réus de entrar na vinha, uns meses antes de se ter completado o prazo de 18 meses necessário para estarmos perante incumprimento definitivo.

No entanto, pensamos que os réus não estão em condições ético-jurídicas de beneficiar do instituto do abuso do direito.

Vejamos a globalidade do comportamento dos réus ao longo da relação contratual: Os réus não pagaram aos autores as prestações de 1998 e 1999 em atraso, mesmo depois de decisão judicial transitada em julgado de condenação e que manteve em vigor os dois contratos; a 1.ª ré alienou o seu património a terceiros, conforme se provou na acção n.º 2/2002, com intenção de fugir ao pagamento das dívidas aos autores.

Alegou a 1.ª Ré dificuldades financeiras e que o valor de exploração a pagar era demasiado elevado. Contudo, a postura mais correcta, neste contexto, dada a impossibilidade de um novo acordo quanto ao valor das rendas, que não podia ser imposto aos autores, seria a proposta de um acordo de resolução de ambos os contratos e não os incumprimentos sucessivos da obrigação de pagar os valores acordados, acompanhados da intenção de manterem o direito de nua propriedade e de o converter em propriedade plena.

O contrato celebrado continha uma álea que podia proporcionar um lucro à 1.ª ré, na hipótese de os autores falecerem num curso espaço de tempo, consolidando-se a propriedade plena na esfera jurídica da 2.ª ré; ou um lucro menor ou até um prejuízo, na hipótese de os autores terem uma vida longa, mantendo-se, assim, durante muitos anos o dever de pagar uma renda anual que poderia vir a ser de montante superior em relação ao valor do imóvel e aos proventos a retirar da exploração da quinta. Mas, na falta de alegação e prova da ocorrência de alguma alteração substancial de circunstâncias que tornasse o cumprimento do contrato demasiado oneroso, nos termos do art. 437.º do CC, permitindo, assim, uma modificação do contrato, é irrelevante o argumento dos réus de que as rendas são demasiado elevadas e não correspondentes ao rendimento da Quinta. Não aceitando os autores, a descida do valor das rendas, aplica-se, em consequência, o princípio geral de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos – pacta sunt servanda - tanto mais que os réus aceitaram a celebração deste contrato livremente, no exercício da sua autonomia privada.

De um ponto de vista ético-jurídico, os comportamentos da 1.ª ré (não pagamento das rendas e alienação do património a terceiros com intenção de fuga às dívidas) pela intencionalidade e persistência que revelam são de gravidade superior à precipitação dos autores nos seus comportamentos de impedir a entrada dos réus na quinta e de deitar abaixo a vinhas para plantar outras.

Note-se que em relação ao primeiro facto – impedimento de acesso às vinhas – este já foi valorado pelo acórdão de 16 de Junho de 2009 e não é adequado fazer uma dupla valoração do mesmo facto para agora impedir o direito de resolução dos autores após reiteração do incumprimento dos réus relativamente ao pagamento das rendas. Compreende-se que no primeiro processo, o Supremo tenha entendido que o direito de resolução era uma solução demasiado drástica. Mas volvidos dois anos após essa decisão - na data da propositura desta acção - os réus ainda não tinham pago a quantia a que foram condenados por decisão transitada em julgado.

Em relação ao facto de os autores terem arrancado as vinhas e substituído as anteriores por outras novas, esta alteração foi acompanhada pelo Ministério da Agricultura, pelo que temos de presumir ter sido uma decisão adequada à produtividade do terreno e das vinhas. Por outro lado, os autores, na altura não estavam a desobedecer a qualquer decisão judicial, pois tinham obtido ganho de causa, quer na 1.ª instância, quer na Relação, e o recurso para o Supremo tem efeitos meramente devolutivos, não suspendendo os efeitos da decisão recorrida.

Como afirmou a sentença do tribunal de 1.ª instância, deve entender-se que o decurso do anterior processo judicial como que suspendeu a vigência do contrato, tal como sucedeu a propósito do pagamento da prestações da cessão: sem acesso à quinta durante praticamente 10 anos, a Ré não podia dela cuidar, cumprindo as suas obrigações contratuais. Perante este contexto jurídico, os autores na qualidade de usufrutuários, que mantiveram, competia-lhes cuidar da quinta e fazê-la produzir.

Nos termos do art. 1439.º do CC «Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância», regulando-se os direitos e obrigações do usufrutuário, segundo o art. 1445.º, pelo respectivo título constitutivo e, na falta ou insuficiência deste, pelas disposições dos arts 1446.º a 1475.º do CC.

No caso concreto dos autos, o título – o contrato de compra e venda – prevê que os autores «ficam expressamente isentos de inventário e prestação de contas quanto aos bens usufruídos, podendo neles fazer as benfeitorias úteis e ou voluptuárias que bem entenderem, sem quaisquer restrições». Esta última regra afasta-se do art. 1450.º, n.º1 do CC, na medida em que o estipulado na norma tem uma formulação mais restrita, porque estabelece um limite às benfeitorias: «contanto que não altere a sua forma ou substância, nem o seu destino económico».

  A decisão dos autores de zelar pela produtividade dos bens e de melhorar a coisa usufruída está legitimada pelo título constitutivo e pela lei, não podendo sequer o proprietário impedir a realização destas benfeitorias.

            As benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (art. 216.º, n.º 1), sendo as úteis “as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor”, e as voluptuárias “as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante (art. 216.º, n.º 3).

As diligências feitas pelos autores em relação às vinhas consistem numa benfeitoria útil, porque, como considerou o tribunal de 1.ª instância, melhoraram e aumentaram o valor da coisa usufruída, e foram praticadas dentro dos poderes do usufrutuário, uma vez que não alteraram a forma e a substância da coisa, nem o seu destino económico (arts. 1450.º, n.º1, 1439.º e 1446.º do CC).

Pelo que também este facto não pode ter a conotação negativa que lhe atribuiu o acórdão recorrido na ponderação valorativa feita para justificar a aplicabilidade do instituto do abuso do direito.

 O direito de resolução só pode ser considerado abusivo quando se baseou numa falha diminuta ou de escassa importância.

A figura só se aplica quando o exercício do direito ofende, nas palavras da doutrina e da jurisprudência, o sentimento jurídico dominante e cria situações de desequilíbrio que não devem ser toleradas pela ordem jurídica.

«O abuso de direito, que dispensa o “animus nocendi”, tem por base a existência de um direito subjectivo na esfera jurídica do agente, já que tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, como sejam o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a desproporção grave entre o exercício do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem.» Cf. 11-01-2011, Sebastião Póvoas (Relator), processo n.º 2226/07 – 7TJVNF.P1.S1.

Ora, no caso sub judice, o incumprimento reiterado dos réus em relação ao pagamento das prestações em dívida, que remontam a 1998 e a 1999, consiste numa falta grave e reiterada, que faz perder a esperança de qualquer possibilidade de reatamento da relação contratual. A este incumprimento acrescem os novos incumprimentos verificados após o trânsito em julgado do acórdão deste Supremo que manteve os contratos em vigor, e que se referem quer ao pagamento das prestações, quer à exploração da quinta.

Esta situação deve ser considerada um incumprimento definitivo que dá origem à resolução do contrato de cessão de exploração, conforme decretado pelas instâncias, extinção que provoca o funcionamento automático da condição resolutiva, que extingue também o contrato de compra e venda.

A resolução do contrato, nas circunstâncias descritas, não provoca qualquer situação de desequilíbrio para a posição dos réus. Pelo contrário, paralisar o exercício do direito de resolução dos autores é que consiste numa solução que criaria um resultado de vantagem injustificada para os réus.

Com efeito, decidir pela manutenção do contrato de compra e venda, como fez o acórdão recorrido, sem que os réus tenham pago as rendas em atraso e sem que tenham explorado e cuidado da Quinta - e tudo isto após terem intencionalmente criado uma situação de impossibilidade de solver as suas dívidas, alienando o seu património a terceiros - é permitir o seu enriquecimento injustificado e a obtenção de vantagens sem contrapartidas, resultado que não pode ser aceite pela ordem jurídica e muito menos ao abrigo de um instituto como o abuso do direito, que apela à boa fé e à justiça.

Note-se que também não se verificou qualquer investimento na confiança da parte dos réus, que justifique a sua protecção.

Na concretização da confiança, para o efeito de aplicabilidade do instituto do abuso do direito (art. 334.º do CC), devemos ter em conta, como propõe Menezes Cordeiro, quatro proposições[13]:

«1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível;

3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.»

Ora, no caso concreto, para além de os réus não se encontrarem numa situação de confiança legítima, pois não cumpriram reiteradamente o dever de pagar as rendas, bem sabendo que estavam a lesar posições alheias, não fizeram qualquer investimento nos bens, uma vez que não só não têm tido despesas com o cuidado da quinta, como não têm pago as rendas.

Vejamos os factos invocados pelo acórdão recorrido para fundamentar o abuso do direito.

Afirma o acórdão recorrido que, quando os autores procederam à vedação das vinhas e à resolução do contrato, faltavam uns escassos meses para se completar o prazo de 10 anos.

Ora, tendo sido o contrato celebrado em Dezembro de 1989, completou-se o prazo de dez anos em Dezembro de 1999, datando a primeira resolução operada pelos autores de Fevereiro de 2000, quando ainda faltavam 9 anos e 9 meses para se operar a segunda renovação automática.

Por outro lado, a tese do acórdão recorrido não tem base jurídica, pois não resulta da interpretação das cláusulas do contrato que a propriedade plena se consolide na pessoa da 2.ª ré, aquando da renovação automática do contrato de cessão de exploração ao fim de 10 anos. No contrato de compra e venda dos autos não ficou estabelecido um usufruto com limite temporal fixo ou condicionado por uma renovação automática facultada ao titular da propriedade de raiz. Tratou-se, antes, da constituição de usufruto per deductionem, mediante a qual o proprietário cede a nua propriedade sobre uma coisa e reserva para si o direito de usufruto vitalício. A situação mais comum é a de esta modalidade de constituição do usufruto ser acompanhada de uma doação, por exemplo, aos filhos ou a outros familiares, mas nada impede que a constituição do usufruto se realize por contrato oneroso como a compra e venda.

No caso dos autos, celebrou-se um contrato de compra e venda para a transmissão do direito à propriedade de raiz com reserva de usufruto vitalício e sucessivo a favor dos autores, proprietários originários da quinta. Este contrato só permite a consolidação da propriedade plena na esfera jurídica da 2.ª ré, titular da propriedade de raiz, à data da morte do último dos membros do casal, conforme resulta das cláusulas contratuais e do artigo 1476.º, n.º1, al. a), em conjugação com o art. 1441.º, ambos do Código Civil.

           A interpretação do contrato feita pelo acórdão recorrido e a argumentação jurídica adoptada não encontra, assim, suporte na realidade contratual concreta no caso dos autos.

Como o próprio acórdão recorrido reconhece, o preço da venda foi meramente simbólico, tendo que ser complementado pelo pagamento dos valores de exploração que os réus nunca mais pagaram.

A paralisação do direito de resolver o contrato de compra e venda pela aplicação do instituto de abuso do direito não tem, pois, fundamento factual nem jurídico, como resulta da análise global dos factos descrita e do princípio do equilíbrio das prestações. E redundaria na aquisição do direito de propriedade pelos réus sem o cumprimento das obrigações correspectivas e sem uma contrapartida equilibrada em relação ao valor económico da quinta, quebrando-se assim o sinalagma inicialmente previsto na conjugação dos dois contratos, compra e venda e cessão de exploração, intimamente ligados.

Para além deste resultado, também se criava, na solução do acórdão recorrido, uma situação jurídica duradoura de divisão dos poderes inerentes ao direito de propriedade. E, embora o legislador permita esta divisão também não a quis incentivar, pelos obstáculos que introduz ao melhoramento das terras e à circulação de bens.

 

Como tem defendido Menezes Cordeiro[14], a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa. Por outro lado, a aplicação do instituto exige a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo[15], sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjectiva para a materialidade da situação.

 

Não há dúvida, na factualidade provada, como reconheceu o acórdão recorrido, que estamos perante uma situação de incumprimento definitivo dos réus que dá origem à formação na esfera jurídica dos autores do direito de resolução de contrato de compra e venda, a qual também resulta automaticamente da condição resolutiva fixada na cláusula 6.ª.

Fracassada a demonstração dos pressupostos do instituto do abuso do direito, é por esta regra do não cumprimento das obrigações que o caso concreto deve ser decidido.

 

 

Sendo assim, não consideramos aplicável o instituto do abuso do direito e procedem as conclusões H) a AA) da alegação de recurso dos autores.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, revogar o acórdão recorrido e repor a sentença de 1.ª instância.


Lisboa, 24 de Março de 2015

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves


____________________
[1] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 223.
[2] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 755.
[3] Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 446-447.
[4] Cf. Carneiro da Frada, «Sobre a interpretação do contrato», in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Volume II, Almedina, Coimbra, pp. 977-979.
[5] Cf. Sébastien Pellé, La notion d’interdépendance contractuelle, Contribution à l’étude des ensembles de contrats, 2007.
[6] Ibidem, p. 440.
[7] Ibidem, p. 436.
[8] Ibidem, p. 429.
[9] Ibidem, pp. 429-439.
[10] Ibidem, p. 430.
[11] Cf. Ana Isabel da Costa Afonso, A condição como elemento acidental do negócio jurídico, Ensaio em torno de modalidades especiais de compra e venda, edição policopiada, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola do Porto, 2012, p. 45.
[12] Ibidem, p.46.
[13] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral,Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 292.
[14] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Livraria Almedina, 1999, pp. 197-198.
[15] Ibidem, p. 196-198.