Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8553/06.3TBMTS.P1.S1.
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: HERANÇA ILÍQUIDA
HERANÇA INDIVISA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
UNIVERSITAS JURIS
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1.A única consequência que sobressai da decisão que considera que a demandada herança ilíquida e indivisa, representada pelas suas herdeiras, não carece de personalidade judiciária é a de que é esta universalidade jurídica de bens a ré na ação.

2. Quer isto dizer que, não tendo a instância sofrido qualquer alteração, ex vi do princípio da estabilidade da instância consignado no art.º 268.º do C.P.Civil, a instância conserva permanentes os componentes essenciais da causa, isto é, mantém a sua conformidade original quanto às pessoas, pedido e causa de pedir.

3. Se é certo que quanto ao seu aspecto jurídico-processual a herança ilíquida e indivisa conserva a sua legitimidade para prosseguir na ação após o despacho que a considerou dotada de personalidade judiciária, também é verdade que do ponto de vista jurídico-substantivo, esta mesma demandada não é passível de ser encarada como responsável pela dívida que contra ela a credora pretende que seja satisfeita.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


      “AA - Sociedade de Construção, L.da”, com sede na avenida .............., ....., .........., Senhora da Hora, intentou, em 23/10/2006, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, onde foi distribuída ao 5.º Juízo Cível, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra a Herança Ilíquida e Indivisa, aberta por óbito de BB, representada pelas suas herdeiras CC e DD, ambas residentes na rua ......., n.º..., Matosinhos, pedindo que a Ré seja condenada a pagar à Autora a quantia de € 71.280,12, acrescida de € 45.209,03 de juros de mora vencidos e dos que se vierem a vencer até efectivo e integral pagamento.

     Para tanto, alegou, em resumo, que, no exercício da sua actividade e a pedido do falecido BB, que se dedicava à compra e venda de imóveis, procedeu à elaboração de vários projectos no valor total de 71.280,12 €, o qual não foi pago por aquele.

     A ré contestou, excepcionando a falta da sua personalidade judiciária, por ter sido aceite e partilhada por escritura pública de 13 de Dezembro de 2002, bem como a prescrição presuntiva, por terem decorrido mais de dois anos sobre a data da prestação dos “pretensos serviços” que não destinou ao exercício do seu comércio de carnes nem a qualquer actividade industrial.

     A autora replicou, reconhecendo a falta de personalidade judiciária da demandada, requerendo, para sua sanação, a citação dos seus herdeiros, a fim de com eles prosseguir a acção, e reafirmando que o falecido se dedicava à compra e venda de imóveis, fazendo disso a sua principal actividade, concluindo pela improcedência das excepções invocadas.

     No despacho saneador, ainda que a título de questão prévia, foi apreciada e decidida a excepção da falta de personalidade judiciária invocada, tendo sido julgada improcedente. Nele, foram, ainda, afirmados os demais pressupostos processuais, tendo sido relegado para sentença o conhecimento da excepção da prescrição, por se entender que carecia de produção de prova.

     Seguiu-se a selecção da matéria de facto, com elaboração da matéria de facto assente e da base instrutória, de que não houve reclamações.

     Da decisão que julgou improcedente a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária foi interposto recurso pela ré, o qual foi admitido como agravo, mas que foi julgado deserto por despacho de fls. 108.

     Entretanto, foi comunicada ao processo a insolvência da autora, decretada em 10/3/2008, passando a intervir nele a respectiva massa insolvente.

  Prosseguiram os autos para julgamento, ao qual se procedeu, tendo a matéria da base instrutória sido decidida nos termos constantes do despacho de fls. 282 e 283 que não foi objecto de qualquer reclamação.

     Após, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção procedente e condenar as Rés (CC e DD) a pagarem solidariamente à Autora a quantia de € 71.280,12, acrescida de € 45.209,03 de juros de mora vencidos e dos juros de mora vincendos, desde a data da propositura da acção, à taxa supletiva legal para os juros comerciais.”

     Inconformadas com o assim decidido, a ré e as condenadas (em representação daquela e em nome próprio) interpuseram recurso de apelação para a Relação do Porto que, por Acórdão de 13.09. 2011 (cfr. fls.), julgando procedente a apelação, revogou a sentença recorrida e, em consequência, absolveu as “rés” do pedido.

     Inconformada, recorreu para este Supremo Tribunal a autora “AA - Sociedade de Construção, L.da”, apresentando as seguintes conclusões:

1 - A argumentação vertida no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto está eivada de um importante vício de raciocínio.

2 - As considerações vertidas sobre a impossibilidade dos herdeiros serem condenados a pagar as dívidas do autor da herança, apenas têm aplicabilidade quando se trate de uma herança indivisa.

3 - O mesmo se verifica relativamente ao reconhecimento da existência do crédito e à satisfação do mesmo pelos bens da herança, únicos pedidos de condenação legalmente admissíveis no caso de estarmos perante uma herança por partilhar.

4 - Está provado e definitivamente assente que a herança aberta por óbito de BB foi partilhada por escritura pública outorgada em 13 de Dezembro de 2002 e cuja certidão se encontra junta aos autos.

5 - Está igualmente provado que a herança foi dividida entre as suas duas únicas e universais herdeiras, as aqui demandadas CC e DD.

6 - Tratando-se de uma herança já partilhada, os muitos doutos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais "aceites e adoptados" pelo Tribunal a quo não podem ser utilizados na resolução do caso dos autos.

7 - É o que resulta inequívoco e transparente do texto doutrinário citado no acórdão, da autoria do Sr. Dr. Juiz Conselheiro José Martins da Fonseca e que tem como título "Herança Indivisa - sua Natureza Jurídica. Responsabilidade dos Herdeiros pelas Dívidas da Herança", publicado na ROA, ano 46, Setembro de 1986, pp. 567 e ss, disponível para consulta no sitio da Ordem dos Advogados (www.oa.pt).

8 - Após a partilha os herdeiros podem ser condenados a pagar as dívidas da herança, na totalidade ou na proporção que lhes vier a caber, sendo certo que a sua responsabilidade nunca poderá ir além do conteúdo da herança.

9 - Só a possibilidade de condenação dos herdeiros da herança partilhada, justifica a existência de um preceito como o artigo 827.º, n.º l do CPC que estabelece que "Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança".

10 - Se os herdeiros (de herança já partilhada) não pudessem assumir a posição de devedores, não poderiam figurar como executados, porquanto, o artigo 55.º, n.º l do CPC estabelece expressamente que "a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor."

11 - As duas herdeiras de BB foram demandadas pela A. e nessa qualidade, citadas para contestarem a presente acção.

12 - A acção foi contestada pelas demandadas que constituíram como mandatário judicial o Ilustre causídico subscritor das várias peças processuais e a favor do qual outorgaram, em nome próprio, procuração forense conferindo-lhe os poderes forenses necessários para o efeito.

13 - No despacho saneador o Tribunal de Matosinhos proferiu decisão que considerou as referidas herdeiras como partes, decisão essa que transitou em julgado e que não mais pode ser revogada, sob pena de violação do disposto no artigo 672.º, n.º l respeitante ao caso julgado formal.

14 - Se inicialmente as RR. foram demandadas pela A. na qualidade de herdeiras de uma herança indivisa, após ter sido alegado e provado que a herança havia sido partilhada nada alterou, mantendo ambas a qualidade de herdeiras e respondendo apenas e só até ao limite dos bens adquiridos por via sucessória.

15 - O tribunal pode e deve interpretar o pedido formulado na PI pela A.

16- Na PI a A. peticionou o pagamento do crédito que detém sobre a herança, por via da execução do património que compõe o acervo hereditário deixado por óbito de BB.

17 - A decisão de condenação das RR/herdeiras no pagamento da quantia em dívida não consubstancia qualquer alteração ou adaptação do pedido, porquanto, tendo o acervo hereditário sido partilhado e, portal motivo, passado a integrar o património das respectivas herdeiras, terão de ser estas - e não a herança - a serem condenadas no pagamento das quantias em dívida, enquanto herdeiras do de cujos/devedor originário e titulares de um núcleo à parte, de um centro patrimonial autónomo que, não obstante integrar o património de ambas está afecto ao pagamento preferencial dos credores da herança

18 - Incumbia às demandadas alegar e provar, ainda que subsidiariamente e para a hipótese da acção ser procedente, a proporção da quota que lhes coube na herança ou a existência de acordo das herdeiras na forma de efectuar o pagamento das dívidas da herança.

19 - O facto de não ter sido alegado e, por consequência, não ter sido dado como provado qual a proporção da quota que coube a cada uma das herdeiras, não impede a condenação das mesma no pedido ainda que determinação da proporção/montante da condenação de cada uma delas seja relegada para execução de sentença, tal como dispõe o artigo 661.º, n.º 2 do CPC.

20 - A decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto violou o disposto nos artigos 1154.º, 1156.º, 1158.º, n.º l, 2.ª parte, 1167.º alínea b), 2068.º, 2071.º, 2098.º, 661.º, n.º 2, todos do CC e 55.º, n.º l, 661.º, n.º 2 do, 672.º e 827, n.º l todos do CPC.

Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e sejam condenadas as rés CC e DD, enquanto herdeiras de BB, no pagamento das quantias peticionadas pela autora, na proporção que se vier a determinar em sede de execução de sentença.

     Contra-alegaram os recorridos pedindo a manutenção do julgado.
   
              Corridos os vistos legais cumpre decidir.


           
As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

A) No dia 22 de Março de 2001, faleceu BB.

B) No dia 13 de Dezembro de 2002, no Cartório Notarial de Vila do Conde, os herdeiros, CC e DD, procederam à partilha da totalidade do acervo hereditário.

C) A Autora dedica-se à actividade de construção e execução de projectos.

D) No exercício da respectiva actividade e a pedido de BB, a Autora procedeu à elaboração de projectos de arquitectura, gás, água, saneamento, telefones, electricidade, térmico e acústico referentes aos lotes de terreno - A6, A7, A10, A14, A15 e A17 - sitos na Rua e na .................... na Senhora da Hora, o que totalizou o montante de € 65.444,18.

E) A Autora elaborou um projecto de alteração ao loteamento na Rua ................. com a Rua..........., o que totalizou o montante de € 5.835,94.

F) A elaboração dos projectos pela Autora - factos D) e E) - foi concluída em data não concretamente determinada, mas anterior a 18 de Dezembro de 2000.

G) BB exercia profissionalmente a actividade de produtor de gado e comerciante de carnes.

H) BB nunca se dedicou à actividade de compra e venda de imóveis.

Atentos os elementos constantes dos autos e face às questões suscitadas, importa considerar provados, para além do que consta do relatório acima exarado, mais os seguintes factos:

I) CC e DD foram citadas, unicamente, na qualidade de herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB (cfr. fls. 14 a 20).

J) Constituíram mandatária a sociedade “P.......... & Associados – Sociedade de Advogados”, através de procuração, datada de 20/11/2006, junta ao processo com a contestação da ré herança, apresentada no dia 24 seguinte (cfr. fls. 22 e 40).

K) E constam como rés nas actas da audiência de discussão e julgamento, referentes aos dias 6 e 13 de Novembro de 2009, na decisão sobre a matéria de facto e na sentença (cfr. fls. 270, 282 e 303).

    A questão essencial posta no recurso é a de saber se na ação intentada contra a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB e nela representada pelas suas herdeiras CC e DD), podem estas ser individualmente condenados a pagar as dívidas da herança já partilhada entre elas.


     I. Para além da legitimidade processual, a personalidade judiciária - susceptibilidade de ser parte (art.º 5.º, n.º 1, do C.P.Civil) - é outro pressuposto processual e que consiste na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecida na lei (Antunes Varela; Manual; pág.108).

     O critério geral para se saber quem é que está dotado de personalidade judiciária é o da equiparação desta à personalidade jurídica (artigo 5.º, n.º 2, do C.P.Civil): "quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária".

     Deste modo podemos dizer que, em princípio, pode ser parte (tem personalidade judiciária) quem puder ser titular de direitos e obrigações (tem personalidade jurídica).

     Mas nem sempre a realidade jurídico-processual se configura assim. É que, se efectivamente toda a entidade portadora de personalidade jurídica goza indirectamente de personalidade judiciária, isto é, pode recorrer ao Estado que lhe conceda as medidas destinadas a acautelar os seus interesses, o certo é que, em casos especificadamente assinalados, acontece que se concede personalidade judiciária a quem não desfruta de personalidade jurídica.

     Está incluída nesta restrição àquela regra geral a "herança jacente... cujo titular não estiver determinado" - art.º 6.º, al. a), do C.P.Civil.

     Nos termos desta disposição legal a herança jacente, ou seja, a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046.º do C. Civil), despida embora de personalidade jurídica (não se acha compreendida na previsão estatuída no artigo 157.º do C. Civil), pode propor acções em juízo (de reivindicação, confessórias de servidão, de cobrança de dívidas, etc.), sendo a herança a verdadeira parte na acção e não o sucessível chamado, o herdeiro, o curador ad hoc ou o Ministério Público que aja em nome dela (art.º 2047.º e segs. do C.Civil) - Prof. Antunes Varela; ob. citada; pág. 111).

         Tendo na devida conta que as herdeiras da herança aberta por óbito de BB já procederam à partilha da totalidade do acervo hereditário, não se pode falar de herança jacente (jacente, diz-se da herança que, já tendo sido aberta, todavia ainda não foi aceite nem repudiada - Dr. Pereira Coelho; Direito das Sucessões; Prelecções ao 4.º Ano Jurídico de 1966/67; pág. 223).

     Se é assim, o regime jurídico-processual a atender ao nosso caso não pode ir buscar-se ao estatuído no art.º 6.º do C.P.Civil.

II. No caso "sub judice" é, inicialmente, demandada a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, representada na ação pela totalidade das suas herdeiras, CC e DD.

Posteriormente e com vista a sanar a falta de personalidade judiciária da demandada, excecionada pela demandada e aceite pela demandante - em 13.12.2002 as herdeiras (CC e DD) haviam procedido à partilha da totalidade do acervo hereditário - veio esta autora requerer a citação dos aceitantes da herança, que o fizeram, aceitando os direitos dela decorrentes, bem como os encargos, contra quem deverá prosseguir a presente acção; com a citação dos abaixo identificados réus (D. CC e D. DD) deve a presente excepção ser considerada sanada e prosseguir a acção os seus ulteriores termos, o que se requer (cfr. fls. 49/50).

     Apreciando e decidindo este requerimento no despacho saneador o Ex.mo Juiz, não vislumbrando fundamento para considerar verificada a invocada falta de personalidade judiciária, julgou improcedente a excepção de falta de personalidade invocada pelas rés (cfr. fls. 56).

   Porque não foi impugnada mediante recurso esta decisão transitou em julgado.

Sendo definitivamente indeferida esta pretensão, continuou a manter-se inalterada a primitiva estrutura jurídico-processual da ação, ou seja, permaneceu intocável a configuração da instância delineada na petição inicial: é ré a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, representada pelas suas herdeiras CC e DD e é contra esta demandada - herança ilíquida e indivisa - que a autora faz o pedido.

A única consequência que daquela decisão resultou foi a de que a demandada herança ilíquida e indivisa, representada pelas suas herdeiras, não carece de personalidade judiciária e, por isso, é esta universalidade jurídica de bens a ré na ação.

Quer isto dizer que, não tendo a instância sofrido qualquer alteração, ex vi do princípio da estabilidade da instância consignado no art.º 268.º do C.P.Civil - só susceptível de ser afectado por virtude da modificação subjectiva, seja pela intervenção de novas partes, seja em razão da substituição de alguma das partes primitivas, seja por virtude da intervenção de terceiros (Salvador da Costa; Incidentes da Instancia; pág.10) - a instância conserva permanentes os componentes essenciais da causa, isto é, mantém a sua conformidade original quanto às pessoas, pedido e causa de pedir.

Se é assim, porque aquela jurisdicional determinação tão-só se circunscreve à especificada questão de que se não verifica a falta de um pressuposto processual (personalidade judiciária) e se preserva o pedido dirigido contra a herança ilíquida e indivisa, havendo de prosseguir a ação assim projetada apenas contra a herança, ficou de fora daquele despacho qualquer posterior vinculação do Julgador aos fundamentos que hão-de fazer deferir ou desatender o pedido formulado na lide.

         Vamos ver agora que o pedido não pode proceder.

III. O pedido é o ponto de partida de toda a tramitação processual, posta ao serviço das pessoas para a resolução do conflito de interesses que trazem a juízo.     

É porém certo que, em nome da segurança das partes, o Tribunal terá de atender aos limites que a própria parte estabelece à causa, ao fixar os contornos do seu próprio pedido (Nuno Sebastião; A Condenação Além do Pedido; pág. 10), ferindo de nulidade a sentença que não consagra este comando legal - art.º 668.º, n.º 1, al. e), do CPC.
     Não pode, pois, a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, nem abordar questões que o autor ou réu omitiram nos articulados.
    Caracterizados e clarificados os conceitos jurídicos pelo modo como assim as entendemos e deixámos atrás transcrito, não poderemos dar a exteriorizada razão à recorrente quanto ao pedido que faz na ação.

     Em primeiro lugar porque, sendo o pedido formulado contra a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, ele tem de soçobrar porque, estando comprovado agora que a herança está já partilhada pelas suas duas únicas e universais herdeiras, não é esta “universitas juris” a quem se devem pedir responsabilidades pelas obrigações a cargo do autor da herança.
     Nos termos do que está proposto no n.º 1 do art.º 2091.º do C.Civil …os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, deste normativo se inferindo que, tratando-se de um caso de litisconsórcio necessário, só os herdeiros podem praticar, em geral: a disposição dos bens, o pagamento do passivo hereditário, a defesa judicial dos direitos contestados, nomeadamente a cobrança de dívidas activas (Oliveira Ascensão; Sucessões; 2.º; edição 1989; pág.496)[1].
     Em segundo lugar, nada se rogando contra elas, também não podem ser condenadas as suas herdeiras CC e DD pelos débitos da herança.

Com estas considerações queremos revelar que, se é certo que quanto ao seu aspecto jurídico-processual a herança ilíquida e indivisa conserva a sua legitimidade para prosseguir na ação após o despacho que a considerou dotada de personalidade judiciária, também é verdade que do ponto de vista jurídico-substantivo, aquele de que tratamos agora, esta mesma demandada não é passível de ser encarada como responsável pela dívida que contra ela a credora pretende que seja satisfeita.
     No caso de herança indivisa cabe apenas aos seus herdeiros intervir em nome próprio para fazer valer os seus direitos e que só por todos eles podem ser exercidos; e, quando determinados os seus herdeiros, não devem eles ser condenados a pagar os encargos da herança, mas sim reconhecer a existência dos débitos que devam ser satisfeitos pelas forças da herança (Ac. STJ de 19.3.1992; BMJ; 415.º - 658).

    A argumentação que a recorrente pretende retirar do estatuído no art.º 827.º, n.º l do C.P.Civil (só a possibilidade de condenação dos herdeiros da herança partilhada justifica a existência de um preceito como o artigo 827.º, n.º l do CPC que estabelece que "na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança") não colhe.
      Na verdade, o pressuposto formal da acção executiva é a apresentação do título executivo, por si só capaz de desencadear os trâmites da respectiva acção, sem olhar ao direito que pressupõe; a causa de pedir na acção executiva não é o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente (art. 498.º, n.º, 4, do C.P.Civil) para passar a ser o próprio título executivo.
     Na ação de que nos ocupamos (uma ação declarativa) estamos ainda aquém da realidade jurídica que o processo de execução confere às partes e, por isso, impossibilitados de transpor para aquela os princípios que só para esta estão expressamente traçados.

     Quando a lei estabelece que o Tribunal não pode decidir sobre objecto diverso do pedido, querer referir-se ao efeito jurídico que se peticionou, isto é, o Tribunal não pode decretar efeitos jurídicos diversos daqueles que foram formulados, fundamentados e pretendidos por aquele que intentou a acção (Nuno J. S. Sebastião; Ob. citada; pág. 11/12, remetendo para Anselmo de Castro, Alberto dos Reis e Cunha Gonçalves).

     Porque não são individualmente devedoras da credora/sociedade, nem contra elas a autora deduziu circunstanciado pedido de pagamento da dívida da herança, também às titulares da herança, CC e DD está autora/recorrente impedida de provocar a sua condenação.
     A ação não pode preceder.

     Concluindo:
     1. Sendo o pedido formulado contra a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, ele tem de soçobrar porque, estando comprovado agora que a herança está já partilhada pelas suas duas únicas e universais herdeiras, não é esta “universitas juris” a quem se devem pedir responsabilidades pelas obrigações a cargo do autor da herança.
     2. Igualmente, nada se rogando contra elas, também não podem ser condenadas as suas herdeiras CC e DD pelos débitos da herança.

     3. O Tribunal não pode decretar efeitos jurídicos diversos daqueles que foram formulados, fundamentados e pretendidos por aquele que intentou a acção.

         Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                  Custas pela recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Fevereiro de 2012

Silva Gonçalves (Relator)

Ana Paula Boularot

Pires da Rosa

___________________


[1] Citado por Abílio Neto; Código de Processo Civil Anotado; artigo 2091.º.