Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3853
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: SJ200512070038537
Data do Acordão: 12/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 491/05
Data: 06/15/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A fixação dos factos materiais da causa baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
2. As presunções judiciais são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos.
3. É exclusivamente de facto, por isso da competência reservada das instâncias, a ilação extraída a partir do embate no lado esquerdo de um veículo automóvel estacionado, de que a vítima, ao ser atingida naquele choque, pretendia abrir a porta esquerda deste último veículo.
4. É questão de direito, da competência do Supremo Tribunal de Justiça, a da admissibilidade ou não das referidas ilações, face ao disposto no artigo 351º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I

"A" e B intentaram, no dia 14 de Outubro de 1997, contra o C, acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação no pagamento de 20.149.335$00, acrescidos de juros desde a citação, com fundamento na morte do seu filho, D, ocorrida no dia 8 de Agosto de 1993, na Estrada Nacional nº 207, Fafe, em acidente de viação provocado com o veículo automóvel matriculado sob o nº LA, conduzido por E, pertencente a F, sem seguro, ao embater no veículo automóvel matriculado sob o nº TM, que estava estacionado, quando o falecido se preparava para nele entrar.
O "C" invocou a sua ilegitimidade ad causam e os autores requereram a intervenção principal do G como associado daquele, que foi admitida.
Contestou o G, invocando a sua ilegitimidade, por estar desacompanhado do responsável civil, e a prescrição do direito de indemnização, e impugnou os factos articulados pelos autores; estes responderam e requereram a intervenção de E e F, que foi admitida.
"E" e F, em contestação, afirmaram, o primeiro a prescrição do direito de crédito invocado pelos autores e que o veículo tinha seguro válido à data do acidente e que o conduzia a cerca de 40 quilómetros por hora quando de súbito lhe surgiu D da frente de veículos automóveis estacionados, metendo-se na frente dele, e o último, além de impugnar os factos articulados pelos autores, afirmou que à data do acidente já tinha alienado o veículo a H.
Na fase da condensação, foi o C absolvido da instância por ilegitimidade, relegou-se para final o conhecimento da excepção peremptória da prescrição e foi concedido aos autores e a E o apoio judiciário na modalidade de dispensa de preparos e do pagamento de custas.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 7 de Janeiro de 2003, por via da qual F foi absolvido do pedido e o G e E solidariamente condenados a pagar aos autores € 45.000 com dedução ao segundo € 299,28 a título de franquia.
Apelaram os autores e E, a Relação anulou a resposta a onze quesitos, foi realizado novo julgamento, e proferida a nova sentença no dia 18 de Agosto de 2004, por via da qual F foi absolvido do pedido e o G e E solidariamente condenados a pagar aos autores € 59.000, com dedução à condenação do segundo de € 299,28 a título de franquia.

Apelou E, e a Relação, por acórdão proferido no dia 15 de Junho de 2005, negou provimento ao recurso, e ele interpôs recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões de alegação:
- através das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos dados da intuição humana não pode transformar-se um facto declarado não provado na decisão da matéria de facto em facto provado;
- a Relação não pode considerar como provado um facto desconhecido quando reconhece que o mesmo, se não foi dado como não provado, é porque o tribunal da 1ª instância entendeu que ele não resultou da prova produzida;
- a Relação devia considerar como deficientes, obscuros e contraditórios os pontos determinados da matéria de facto apontados nas conclusões do recurso de apelação e não colmatar essas vicissitudes através do uso indevido das presunções judiciais;
- a decisão da Relação violou as regras substantivas do artigo 349º do Código Civil atinentes à disciplina da prova por presunções, devendo a acção ser julgada improcedente quanto ao recorrente.

Responderam os recorridos, em síntese de conclusão:
- não deve conhecer-se do recurso, por só ter por objecto matéria de facto, e não foi quesitada a questão de saber qual a porta que D estava a abrir na altura do embate;
- provado o facto conhecido, o julgador pode concluir dele a existência do facto desconhecido por via de regras deduzidas da experiência da vida das quais resulte ser o último a consequência típica do primeiro;
- provado que o embate ocorreu no lado esquerdo do veículo, é deduzível pela lógica ser a porta do veículo que a vítima pretendia abrir a do lado esquerdo pois de contrário não teria sido colhido;
- para presumir esse facto não era necessário apelar ao facto desconhecido indicado pelo recorrente, bastando para o efeito os factos provados mencionados sob 4, 7 e 8.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada na sentença proferida na 1ª instância e no acórdão recorrido:
1. No dia 8 de Agosto de 1993, cerca das 2 horas e 30 minutos, de noite, no Lugar da Luz, freguesia de Fornelos, Município de Fafe, circulava pela Estrada Nacional nº 207 o veículo ligeiro de passageiros de matrícula LA, sem seguro de responsabilidade civil, conduzido por E, dentro da sua faixa de rodagem, no sentido Travassos - Fafe.
2. O local era numa recta em que se avistava o tráfego existente, a estrada tinha 5,40 metros de largura e o piso estava seco, e lá decorria uma festa, com movimento de veículos e peões na estrada, estando o veículo automóvel ligeiro de passageiros matriculado sob o nºTM estacionado junto à berma do lado direito, sentido Travassos-Fafe.
3. Ao chegar ao referido Lugar de Luz, E iniciou a ultrapassagem ao veículo automóvel matriculado sob o nº TM, que estava estacionado, onde D, cozinheiro, de boa saúde, nascido no dia 7 de Junho de 1967, filho dos autores, pretendia entrar, e abria a porta da frente.
4. Com a parte da frente do lado direito do veículo matriculado sob o nº LA, que conduzia, E embateu na parte do lado esquerdo junto à porta da frente do veículo matriculado sob o nº TM e colheu D, que foi projectado a cerca de 20 metros.
5. "D" sofreu lesões no referido embate, foi imediatamente transportado de ambulância para o serviço de urgência do Centro Hospitalar Distrital de Fafe, e aquelas lesões determinaram-lhe a morte.
6. "D" tinha grande alegria de viver e constante boa disposição, era activo e trabalhador, e a sua morte causou aos autores dor e desgosto.
7. O réu F havia declarado alienar o veículo matriculado sob o nº LA a H, intervindo como mediador I.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrente deve ou não ser absolvido do pedido contra ele formulado pelos recorridos.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente e pelos recorridos, sem prejuízo de a solução a dar a uma prejudicar a solução a dar a outra ou a outras, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação do objecto do recurso;
- competência do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação da matéria de facto;
- síntese da decisão fáctica da Relação e do seu sentido;
- infringiu ou não a Relação as normas de direito substantivo relativas às presunções judiciais?
- pode ou não este Tribunal sindicar o juízo da Relação na ilação que operou?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei aplicável.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela delimitação do objecto do recurso em função do conteúdo das conclusões de alegação.
O objecto do recurso em análise é delimitado pelo conteúdo das alegações do recorrente (artigos 664º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O recorrente não põe em causa no recurso a circunstância de a vítima haver sofrido as lesões que lhe determinaram a morte no embate com o veículo automóvel que conduzia, nem o valor da indemnização ou da compensação atribuída aos recorridos, nem a escolha, a interpretação ou a aplicação das normas jurídicas a essa matéria concernentes.
Com efeito, apenas discorda do acórdão recorrido na parte em que, na sua perspectiva, considerou que infringia a lei substantiva relativa às presunções judiciais a ilação de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido.
Assim, o objecto do recurso cinge-se a esta última problemática na medida em que não esteja fora do quadro de competência funcional deste Tribunal.

2.
Atentemos agora na competência do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação da matéria de facto.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - LOTJ99).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova formado pela Relação sobre a matéria de facto quando ela tenha dado como provado algum facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência ou ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos que sejam livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Em consequência, não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão da Relação por via da qual, de factos assentes, extrai outros que sejam o seu desenvolvimento.

3.
Vejamos, ora, em síntese, o conteúdo da decisão proferida pela Relação e do seu sentido, de que o recorrente discorda.
A Relação afirmou, por um lado, que se provado que o veículo automóvel colidido estava estacionado junto à berma do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo automóvel colidente, lhe parecia poder retirar-se que ele ocupava a faixa respectiva de rodagem, ao menos parcialmente.
E, por outro, referiu que se o juiz o não deu como provado é porque entendeu que isso não resultou da prova produzida, sem que daí se pudesse retirar alguma deficiência neste ponto da matéria de facto.
Noutro ponto, por um lado, a partir do estacionamento do veículo embatido junto à berma do lado direito, sentido Travassos-Fafe, do início da ultrapassagem daquele pelo veículo que embateu, da acção da vítima da abertura da porta do primeiro para nele entrar.
E, por outro, a partir do embate do veículo automóvel conduzido pelo recorrente com a frente direita na parte esquerda junto à porta da frente do veículo estacionado e da colisão com a vítima, a Relação expressou poder retirar-se que a porta que a vítima pretendia abrir era a esquerda, porque, se fosse a direita, a vítima não teria sido colhida.
Finalmente, quanto à contradição invocada pelo recorrente entre a factualidade que referiu e a restante, dita consubstanciada na circunstância de que se a porta do veículo estacionado estava aberta não podia o veículo que conduzia ir embater na sua parte esquerda junto à porta da frente, a Relação considerou que ela se não verificava e que nela havia sequência compreensível e lógica.
E descreveu essa sequência por via da referência de que o veículo conduzido pelo recorrente seguia pela sua faixa de rodagem, iniciou a ultrapassagem ao veículo estacionado junto à berma do lado direito segundo o sentido de marcha do primeiro, com a parte dianteira direita colheu a vítima, que abria a porta da frente do lado esquerdo do veículo estacionado, no qual queria entrar, embatendo naquele veículo na parte esquerda junto à porta da frente.
Ora, no primeiro ponto, ao afirmar poder retirar-se que o veículo automóvel estacionado ocupava, ao menos parcialmente, a faixa respectiva de rodagem, a Relação nenhuma consequência extraiu dessa ilação, certo que concluiu que se o juiz não deu como provado o facto foi porque entendeu não ter isso resultado da prova, e sem que daí se pudesse inferir alguma deficiência da matéria de facto.
A questão de saber se a vítima pretendia abrir a porta esquerda ou a porta direita do veículo estacionado não foi objecto de base instrutória, e não fora enunciada pelas partes nos articulados da acção.
Quanto a este ponto, a Relação limitou-se a expressar poder retirar-se dos factos que enunciou que a porta que a vítima pretendia abrir era a esquerda porque se fosse a direita não teria sido colhida.
Também neste ponto a Relação só operou a referida ilação para efeito de justificação da inexistência de deficiência, obscuridade ou contradição no âmbito da decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância.
E não se vislumbra que a Relação tenha extraído, para aquele efeito ou outro, de um facto um outro por meio de ilação e depois, com base nele, tenha extraído um outro facto, como que se se tratasse de uma cadeia de inferências.

4.
Atentemos agora se no acórdão recorrido foi ou não infringido o regime legal inerente às presunções judiciais.
O recorrente alegou que a Relação fez operar presunções judiciais contra o disposto nos artigos 349º e 351º do Código Civil.
Sabe-se que as presunções judiciais são as ilações que o julgador extrai de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos (artigo 349º do Código Civil).
Assim, o seu funcionamento depende de estarem assentes determinados factos, que são a sua base, não estão tipificadas na lei e são operadas pelo julgador em cada caso concreto.
Trata-se de situações em que, num quadro de conexão entre factos, uns provados e outros não provados, a existência dos primeiros, com considerável grau de probabilidade, segundo a experiência comum, juízos correntes de probabilidade, princípios de lógica corrente e os dados da intuição humana, fazem admitir a existência dos últimos.
São admitidas nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º do Código Civil).
Não está em causa que a Relação tenha operado a ilação que operou fora de caso em que não seja admissível a prova testemunhal, a que se reporta o artigo 351º do Código Civil.
Ademais, face à estrutura dos factos assentes e dos factos deles inferidos, não há fundamento legal para se concluir que a Relação tenha infringido o disposto no artigo 349º do Código Civil.
Assim, ao invés do que o recorrente alegou, a Relação não infringiu o disposto nos artigos 349º e 351º do Código Civil, ou seja, o regime legal das presunções judiciais ou de facto.

5.
Vejamos, finalmente, se este Tribunal pode ou não sindicar o conteúdo da ilação operada pela Relação.
Ao firmar o conteúdo das mencionadas ilações, a Relação operou no âmbito da sua competência, no quadro da decisão da matéria de facto, na envolvência do princípio da livre apreciação da prova a que se reporta o artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Ainda que ocorresse a situação invocada pelo recorrente de a ilação haver sido operada a partir de factos alegados e não provados, o juízo da Relação confinava-se à matéria de facto da sua exclusiva competência.
Por isso, conforme acima se justificou sob 2, não tem este Tribunal competência funcional para sindicar o juízo da Relação ao operar as mencionadas ilações em sede de determinação da existência ou inexistência de deficiência, obscuridade ou contradição da matéria de facto.

6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei aplicável.
O objecto do recurso cinge-se à parte do acórdão recorrido que, na perspectiva do recorrente, terá infringido a lei substantiva relativa às presunções judiciais.
Ao Supremo Tribunal de Justiça apenas compete conhecer da matéria de facto apurada por presunções judiciais no caso de estar em causa a violação dos artigos 349º e 351º do Código Civil.
A Relação não infringiu as normas de direito substantivo relativas às presunções judiciais.
E este Tribunal não pode sindicar o juízo da Relação que operou as mencionadas ilações do quadro da matéria de facto.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencido no recurso, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, porque é beneficiário do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, considerando o disposto nos artigos 15º, n.º 1, alínea a), 37º, n.º 1 e 54º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, 57º, nº 1, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nºs 1 e 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que seja condenado no pagamento das custas do recurso.

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2005.
Salvador da Costa,
Ferreira de Sousa,
Armindo Luís.