Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
974/17.2T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MOTOCICLO
CULPA DO LESADO
SEGURADORA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 12/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, p. 404;
- Galvão Telles, Manual de Direito das Obrigações, p. 196;
- Sinde Monteiro, RLJ, Ano 131º, p. 378.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º E 663.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º 1, 487.º, N.º 1 E 570.º, N.º 1.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGO 11.º, N.º 2.
Sumário :
I - Resultando da factualidade provada que: (i) o autor/lesado conduzia o motociclo na retaguarda de um veículo ligeiro de passageiros e que podia ver a mais de 50 metros de distância; (ii) nesse momento chovia, encontrando-se o pavimento molhado e, como tal, escorregadio; e (iii) ao guinar para a direita para passar pela parte de trás do referido veículo, o autor acabou por embater com a parte lateral esquerda do motociclo e com o membro inferior esquerdo na parte central traseira do veículo, é de concluir que o acidente é de imputar, a título culposo, ao autor, dado que é este quem vai embater na traseira do veículo ligeiro sem que se tenha provado que o condutor deste último tenha efectuado qualquer manobra que tivesse colocado em risco a condução daquele.

II - Ao circular na via, naquelas condições de tempo (chuva e piso molhado) devia o autor ter tomado cautelas acrescidas, pelo que, não o tendo feito, violou a regra de trânsito, de conteúdo geral, que obriga os condutores, durante a condução, a abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança (art. 11.º, n.º 2, do CEst, e arts. 483.º, n.º 1, 487.º, n.º 1, e 570.º, n.º 1, do CC).

III - Não podendo exigir-se do condutor do veículo ligeiro, seguro na ré, qualquer conduta destinada a evitar o acidente, torna-se inequívoco que não lhe pode ser imputada qualquer culpa na sua produção.

IV - Pelo que, não tendo igualmente o acidente ficado a dever-se ao risco próprio dos veículos nele intervenientes, mas antes à culpa efectiva do autor, não pode a ré seguradora ser responsabilizada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

  

l. AA, residente na rua Urbanização …, … – … (…), … intentou a presente acção com processo comum contra BB - Companhia de Seguros, S.A., com sede na rua …, …, Lisboa, alegando:

Ocorreu um embate entre o motociclo propriedade do Autor, que o conduzia, e um veículo ligeiro de passageiros, que também identifica, seguro na Ré.

Afirma que o acidente se deu por culpa do condutor do veículo seguro na Ré e que como consequência desse embate sofreu danos de índole patrimonial e não patrimonial que pretende ver indemnizados.

Conclui pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) – a quantia de 147.129,85 €, através de cheque cruzado emitido a favor do demandante, sem a inscrição não à ordem ou não endossável, a enviar para o escritório dos mandatários do demandante, contra recibo.

b) – o que se vier a liquidar em execução de sentença de acordo com o alegado nos artigos 52º, 53º, 56º, 57º, 76º, 77º e 111º a 117º da petição inicial.

Mais afirma optar pelos juros de mora a partir da citação.


2. Contestou aBB - Companhia de Seguros, S.A. alegando, em resumo, que a culpa do acidente se ficou a dever ao Autor e afirmando, quanto aos danos, que o Autor foi ressarcido em parte ao abrigo de um contrato de seguro de acidentes pessoais.

3. Foi citado o I. S. Social, I.P., o qual deduziu pedido de reembolso.


4. Instruído o processo, foi proferido despacho saneador, procedeu-se ao julgamento, tendo sido, de seguida, proferida sentença com o seguinte teor:

«Por tudo o exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré BB – Companhia de Seguros, S.A.:

a). a pagar ao Autor a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros moratórios, às taxas legais sucessivamente emergentes do disposto no artº. 559º/1 do Código Civil, contados desde a data da presente sentença e até integral pagamento;

b). a pagar ao Autor a quantia de € 2.583,82 (dois mil, quinhentos e oitenta e três euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios, às taxas legais sucessivamente emergentes do disposto no artº. 559º/1 do Código Civil, 20 de Fevereiro de 2017 e até integral pagamento;

c). a pagar ao I.S.Social, I.P., o montante de € 2.459,87 (dois mil, quatrocentos e cin-quenta e nove euros e oitenta e sete cêntimos)».


4. Inconformados com a decisão, foi interposto recurso pelo Autor AA e pela Ré BB – Companhia de Seguros, S.A.

O Tribunal da Relação de …, por Acórdão de 14 de Junho de 2018, decidiu:

«julga-se procedente a apelação interposta pela Ré e improcedente a apelação interposta pelo Autor e em consequência revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se a Ré dos pedidos formulados pelo Autor e pelo Instituto de Segurança  Social, I.P.

Custas na segunda instância pelo Autor e na primeira instância pelo Autor e pelo Instituto de Segurança Social, I.P, na respetiva proporção.


5. Inconformado, o Autor, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1ª. O recorrente jamais pode conformar-se com o teor da decisão do Tribunal da Relação de …, sobretudo com a Ia conclusão do sumário do acórdão recorrido, que é uma contradição em si próprio, como veremos.

2ª. Com efeito, e com o devido respeito por opinião diversa, sempre se dirá que nessa conclusão consegue colocar-se em crise concorrência entre culpa efectiva e responsabilidade objectiva ou pelo risco.

3ª. Vejamos, então, o que se escreveu nessa Ia conclusão do sumário do acórdão recorrido: 1. Age com culpa o condutor de um motociclo que guina o seu veículo, numa estrada escorregadia, para passar por detrás de outro veículo, embatendo na traseira deste, sem que se apure qualquer circunstância que explique esse acto.

4ª. E, tanto quanto se percebeu da fundamentação do acórdão recorrido, essa conclusão estará relacionada com o incumprimento por parte do recorrente de regras do Código da Estrada, nomeadamente o disposto no n° do artigo 11° do Código da Estrada.

5ª. Mas aquilo que se pode também retirar da fundamentação do acórdão recorrido é o seguinte:

E certo que não se provaram as razões que determinaram o Autor a guinar por querer passar por detrás do veículo que o precedia (num piso escorregadio, produzindo o embate).

6ª. Mas, ainda assim, e ao arrepio das mais elementares regras da responsabilidade civil, se preteriu a responsabilidade objectiva ou pelo risco, em face de uma prova de primeira aparência, de sentido único, atribuindo-se culpa exclusiva ao recorrente pela eclosão do acidente.

7ª. Porém, e com o devido respeito, não cuidou o Tribunal da Relação de … de perceber, como parece não ter percebido, o que teria motivado a colisão do motociclo do recorrente, de forma enviesada, na traseira do veículo seguro na recorrida.

8ª. O que teria sucedido à frente do motociclo do recorrente para que o mesmo guinasse para a sua direita, não obstante o piso estar escorregadio?!

Será que foi por que lhe apeteceu ali fazer essa manobra?!!!

Claramente se percebe que essa manobra do recorrente mais não é do que uma manobra de recurso para evitar uma colisão com o veículo seguro na recorrida em face de alguma manobra que pelo seu condutor foi efectuada em contravenção às regras do Código da Estrada.

9ª. É que não nos podemos esquecer que o motociclo do recorrente circulava no mesmo sentido e atrás do veículo seguro na recorrida.

Assim sendo, como inquestionavelmente é, como seria possível um veículo que circula atrás de outro, possa passar por detrás daquele?

Apenas é possível se esse veículo (o que circula à frente) assumir uma posição perpendicular ou enviesada em relação ao eixo da via, pois se assim não for, jamais o veículo que circula atrás de um outro poderá passar por detrás daquele...!

Parece-nos, com o devido respeito, particularmente óbvio.

10ª. O certo e seguro, que resulta já da decisão de Ia Instância, é que não se provou em que circunstâncias ocorreu a colisão relatada nos presentes autos. Apenas se demonstrou que os veículos EMBATERAM. NADA MAIS.

11ª. Por isso, e como está bom de ver, resultando já essa posição da decisão de Ia Instância, o presente sinistro apenas poderia ser resolvido, em face da matéria de facto apurada com recurso à responsabilidade objectiva, isto por culpa de ambas as partes no processo, pois nenhuma provou a culpa da outra.

12.ª E se a "prova de primeira aparência" que foi trazida à colação no acórdão recorrido tivesse a interpretação que lhe foi ali dada, jamais alguma Companhia de Seguros seria chamada a indemnizar um qualquer lesado, pois sobre este sempre impenderia uma presunção de culpa...!

Com o devido respeito, é mau de mais ler-se este tipo de decisão num Tribunal Superior, como é o caso do Tribunal da Relação de ….

13ª. E permita-se-nos dizer que é até desonrosa e chocante a forma como foi colocada em crise a decisão de Ia Instância, que resultou, para quem conhece o Meritíssimo Juiz de Ia Instância, de um árduo e hercúleo trabalho na descoberta do modo como terá ocorrido o acidente dos autos.

E a sentença de Ia Instância é o espelho disso mesmo, pois a sua fundamentação representa o meritório esforço desenvolvido pelo Meritíssimo Juiz de Ia Instância no apuramento de factos que o pudessem levar a atribuir a culpa a um, ao dois ou a nenhum dos condutores dos veículos intervenientes.

14ª. Por isso, e à semelhança do que se disse aquando do recurso de Apelação, o recorrente está absolutamente de acordo com a forma como foi decidida a presente demanda, no que respeita à solução encontrada ao abrigo do instituto da responsabilidade objectiva. Aquilo com que o recorrente continua a discordar é com a atribuição do risco em partes iguais, atendendo ao facto de os veículos intervenientes no acidente terem volumetrias absolutamente distintas.

15ª. Acontece que, quanto ao modo como ocorreu o acidente dos autos, nada se provou no sentido de se atribuir culpa a um dos condutores em exclusivo ou em concorrência de culpa aos dois. Por isso, e muito bem, o Meritíssimo Juiz de Ia Instância decidiu-se pela responsabilidade objectiva para resolver essa questão.

16ª. Todavia, e porque se provou que os veículos intervenientes no sinistro relatado nos autos foram um veículo ligeiro de passageiros (seguro na recorrida) e um motociclo (conduzido pelo recorrente) jamais a divisão do risco deveria ter ocorrido nesses moldes e, muito menos, como sucedeu no acórdão recorrido, ter sido atribuída culpa exclusiva ao recorrente.

17ª. Manda, nestas situações, o disposto no artigo 506° do Código Civil repartir a responsabilidade de acordo com o risco de cada um dos veículos intervenientes. Ora se é assim, como efectivamente é, temos de ter em consideração o tipo de veículos que intervieram no acidente:

-        por um lado, um veículo ligeiro de passageiros;

-        por outro, um motociclo.

18ª. Assim, e como se depreende do acabado de referir por que a volumetria desses dois veículos é distinta, a contribuição de cada um deles — em termos de risco — tem de ser, óbvia e obrigatoriamente, distinta.

19ª. Como é sabido, o risco é apreciado não na vertente do utilizador da máquina (em que quanto mais pequeno é o veículo maior é o risco), mas sim na vertente dos danos que pode provocar a terceiros, o que implica que quanto maior for a máquina/veículo maior será o risco da sua utilização provocar maiores danos.

20ª. Assim e como resulta da mais variada Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, quando está em causa uma colisão entre um veículo ligeiro de passageiros e um motociclo, a repartição do risco nunca é realizada em partes iguais, sendo que de vários Acórdãos se retira que a divisão ronda percentagens que se situam entre os 75 a 80% para o veículo ligeiro e os 20 a 25% para o motociclo.

21ª. Por isso, e no caso dos autos, deveria ter sucedido de igual, isto é, deveria ter sido repartido o risco na percentagem de 75 a 80% para o veículo seguro na recorrida e 20 a 25% para o motociclo do recorrente.

22ª. É que, à míngua de outros elementos, sempre terá de se considerar a diferente volumetria dos veículos intervenientes e a sua própria estrutura orgânica, como aliás nos ensina o douto acórdão do Tribunal da Relação de …, de 11.03.2014, no Proc. N° 857/07.4TBLRA.C1, de entre muitos outros.

23ª. Quanto aos danos, e atendendo a que o acórdão recorrido nem tampouco se pronunciou sobre essa matéria impugnada no recurso de Apelação importa trazer de novo à colação essa matéria, sob pena de se perder o efeito útil daquele e deste recurso.

24ª. Por um lado, e no que respeita à compensação do dano não patrimonial sofrido, atendendo à matéria de facto que foi tida com provada, o Meritíssimo Juiz de Ia Instância entendeu valorar esse dano com a quantia de 10.000,00 €.

25ª. Todavia, e considerando que, como se provou, as lesões sofridas lhe provocaram um quantum doloris de grau 3, um défice funcional total de 294 dias, e as sequelas de que ficou a padecer definitivamente lhe provocam um défice funcional permanente de 1 ponto e um dano estético de grau 2, impunha-se que a quantia a arbitrar a esse título se tivesse situado na quantia de 15.000,00 €.

26ª. É que, ainda a este propósito, não podemos descurar o facto de o recorrente, com 37 anos de idade à data do acidente, ter sido submetido a duas intervenções cirúrgicas com recurso a anestesia geral, a que acresceram quer os períodos de internamento, quer os períodos de tratamento de recuperação.

27ª. Por isso, e considerando até a matéria de facto constante do ponto 27 dos factos provados, como se disse, devia ter sido arbitrada quantia nunca inferior a 15.000,00 € para compensar o recorrente de todo o sofrimento por que passou, passa e irá continuar a passar até ao fim dos seus dias.

28ª. Mas como resulta do teor da decisão recorrida a propósito da compensação do dano não patrimonial, referiu o Meritíssimo Juiz de Ia Instância que a quantia que arbitrou (10.000,00 €) estava já actualizada.

Todavia, e como podia e devia, nada referiu acerca dos critérios ou do modo como foi operada essa actualização.

Assim sendo, como inquestionavelmente é, como poderá o recorrente exercer o seu contraditório relativamente a essa actualização?

A decisão recorrida não lhe dá a mais ténue pista acerca dos critérios ou do método que terá norteado essa alegada actualização.

29ª. Por outro lado, quanto ao dano patrimonial, no que respeita às perdas salariais, o Meritíssimo Juiz de Ia Instância entendeu que nada era devido ao recorrente a este propósito.

Mas nada mais errado, como demonstraremos.

30ª. Com efeito, o recorrente, por força das lesões sofridas e dos tratamentos a que teve de se submeter, esteve sem poder trabalhar desde o dia do acidente até ao dia 22.12.2014, motivo por que deixou de ganhar a quantia de 6.185,87 €, a título de salários, subsídios de férias, de Natal e de alimentação.

31ª. E recebeu de uma Companhia de Seguros (CC), com a qual tinha contratado um seguro facultativo de danos pessoais, a quantia de 3.635,00 €, que o Meritíssimo Juiz de Ia Instância entendeu deduzir àquelas perdas salariais com a justificação de que não podia ocorrer um duplo ressarcimento.

32ª. Como é sabido, apenas têm de ser descontadas as quantias recebidas a esse título se se tratar de um seguro obrigatório, como sucede nos casos em que o acidente é simultaneamente de viação e de trabalho, o que não é o caso dos autos.

Por isso, jamais devia ter sido operado esse desconto, tanto mais que essas indemnizações podem e devem ser recebidas, pois estamos no âmbito de um contrato de seguro facultativo.

33ª. E se assim não fosse, e é, necessariamente que teria a referida Companhia de Seguros (CC) de peticionar à aqui recorrida a devolução daquela quantia sub-rogando-se nos direitos do recorrente, o que não sucedeu e jamais sucederá, nem tampouco a recorrida alguma vez trouxe essa questão aos autos (de ter devolvido essa parte a essa Companhia de Seguros).

34ª. É caso para perguntar: - se um qualquer cidadão tiver vários seguros de vida, terá de falecer várias vezes ou bastará apenas uma para fazer accionar os contratos de seguros facultativos que tiver contratado?

A resposta é obviamente a de que, como qualquer outro simples mortal, bastar-lhe-á falecer uma só vez para que os seus herdeiros possam receber aquilo que o de cujus tinha contratado.

35ª. A ser válido entendimento do Meritíssimo Juiz de Ia Instância a este respeito, teríamos então de ver uma qualquer Companhia de Seguros com quem o de cujus tinha contratado um seguro de vida (e que tinha falecido em consequência de acidente de viação sem culpa) a ir exigir à sua congénere que segurava a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo que provocou aquela morte a solicitar o reembolso do que pagou por essa morte... Bem sabemos que jamais é assim que as coisas sucedem.

36ª. Por isso, jamais deve ser deduzida às perdas salariais as quantias que o recorrente recebeu ao abrigo de um contrato de seguro facultativo de acidentes pessoais.

37ª. Assim, melhor teria andado o Meritíssimo Juiz de Ia Instância se, a este título, tivesse condenado a recorrida a pagar ao recorrente a quantia de 1.266.13 €, uma vez que a este título o recorrente tinha recebido a quantia de 4.919,74 € da Segurança Social (6.185,87 € - 4.919,71 €).

38ª. A sentença recorrida violou, entre outros, o disposto no artigo 506° do Código Civil.

Conclui pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogado o acórdão recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine uma divisão do risco na proporção de 75% a 80% para o veículo ligeiro de passageiros e 20% a 25% para o motociclo, alterando as quantias arbitradas de acordo com o constante das alegações.


5. Veio a Ré BB - Companhia de Seguros, SA, responder ao recurso interposto pelo autor e, não tendo formulado conclusões, pede que o presente recurso seja julgado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido.


O Tribunal da Relação admitiu o recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


Foram dados como provados os seguintes factos:


1. O Autor nasceu no dia 8 de Dezembro de 1967 – cfr. documento de fls.25 (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

2. Por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº 008…2, a Ré assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros 39-...-90, propriedade de DD – cfr. fls.69 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

3. Cerca das 12h30 do dia 04.03.2014 ocorreu um acidente de viação na Rua do …, em … (…) – Famalicão, em que intervieram os veículos: 40-...-93, motociclo, conduzido pelo Autor, seu proprietário e 39-...-90, ligeiro de passageiros, propriedade de DD e conduzido por EE.

4. O LG circulava pela referida Rua do …, no sentido Quinta … – Avenida da ….

5. O veículo 39-...-90 circulava imediatamente à sua frente e pretendia mudar de direcção para a sua esquerda, para aceder a uma residência que se situa do lado esquerdo da rua do Cimo …, considerando o sentido Quinta … – Avenida da ….

6. O Autor AA é beneficiário do I.S.S., IP, através do Centro Distrital de Segurança Social de … com o n.º 10…03.

7. O Autor, enquanto beneficiário da Segurança Social, esteve com incapacidade temporária para o exercício de actividade profissional, no período de 2014.03.04 até 2015.01.09, por motivo de acidente de viação.

8. Em consequência do acidente de viação ocorrido 04.03.2014, o I.S.S., I.P., pagou ao Autor, a título de subsídio de doença, a importância de € 4.919,74 no período de 2014.03.04 até 2015.01.09 – cfr. certidão junta a fls.53, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

9. O Autor guinou para a sua direita para tentar passar por trás do DM.

10. O Autor acabou por embater com a parte lateral esquerda do motociclo 40-...-93 e com o membro inferior esquerdo na parte central da traseira do veículo 39-...-90.

11. Aonde deixou o pára-choques riscado, a mala e vidro riscados.

12. Era intenção do condutor do DM entrar por um portão existente na residência referida em I.5.

13. Ambos os condutores se podiam ver a mais de 50 metros de distância.

14. A faixa de rodagem da Rua … configurava-se como uma recta e tinha a largura de 8,60 metros, dividindo-se em duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha, com a largura de 4,30 metros cada uma.

15. Aquelas hemi-faixas não estavam divididas por qualquer sinalização no pavimento.

16. Após o embate o DM ficou imobilizado numa posição diagonal, sobre o eixo da via, com a respectiva frente esquerda na hemi-faixa de rodagem esquerda, a cerca de 2 metros do sobredito portão e com a respectiva traseira na hemi-faixa direita, a 3,30 metros do limite direito daquela hemi-faixa.

17. Na altura chovia, o pavimento da via encontrava-se molhado e, como tal, escorregadio.

18. Em consequência do embate o demandante sofreu traumatismo do membro inferior esquerdo, com fractura exposta de grau I do pilão tibial da perna esquerda.

19. No local do acidente foi assistido por uma equipa da VMER, após o que foi transportado para o S.U. do Centro Hospitalar do Alto Ave (CHAA) …, onde ficou internado.

20. Nesse mesmo dia foi ali submetido a uma intervenção cirúrgica para redução fechada e colocação de fixadores externos Hoffman II, após o que teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa.

21. No dia 25.03.2014 foi internado naquele Unidade Hospitalar para ser submetido a nova intervenção cirúrgica, desta vez para se submeter a extracção dos fixadores e colocação de placa LCP por MIPO.

22. Permaneceu ali internado até ao dia 31.03.2014, altura em que teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso.

23. Após o que iniciou, na Consulta Externa de Ortopedia daquela Unidade Hospitalar, carga assistida com o auxílio de duas canadianas, 8 semanas após o acidente dos autos.

24. E, cerca de um mês mais tarde, iniciou carga total e desmame das canadianas, tendo, entre os meses de Julho e Setembro de 2014 efectuado tratamento fisiátrico.

25. Em diversas ocasiões o demandante teve de recorrer a medicação antiálgica e ao auxílio de canadianas, o que sucedeu em virtude de agudizações álgicas.

26. No dia 22.12.2014 teve alta definitiva, atingindo as lesões sofridas a cura clínica.

27. Apesar dos tratamentos a que se submeteu o demandante ficou a padecer definitivamente, no membro inferior esquerdo, das seguintes sequelas: comprimento do pé esquerdo 27,5 cm (pé direito com 26,5 cm); edema do terço distal da pérnea, tumefacção na face anterior e lateral da perna, palpando-se o calo ósseo e placas metálicas nas laterais; cicatriz linear na face medial do terço distal da perna sobre o maléolo medial com 10 cm de comprimento; maléolo medial ligeiramente irregular; cicatriz linear na face lateral do terço distal da perna com 9,5 cm; edema do terço distal da perna e pé; não consegue ficar de cócoras ou agachado com o tornozelo flectido; mobilidade articular do tornozelo com diminuição leve da flexão dorsal; ausência de atrofia significativa da perna.

28. As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional total de 294 dias.

29. E um quantum doloris de grau 3 numa escala de 1 a 7.

30. As sequelas de que ficou a padecer definitivamente provocam-lhe um défice funcional permanente de 1 ponto, o qual é compatível com o exercício da sua actividade habitual, mas que lhe exige esforços suplementares.

31. As referidas sequelas determinam-lhe um dano estético de grau 2 numa escala de 1 a 7.

32. As lesões sofridas provocaram-lhe dores físicas intensas, tanto no momento do acidente, como no decurso do tratamento

33. E as sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal estar e que se exacerbam com as mudanças de tempo.

34. À data do acidente, era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, alegre, trabalhador, social e sociável.

35. E, no exercício da sua profissão de mecânico não consegue, igualmente, manter-se na posição ortostática durante muito tempo por dor no tornozelo esquerdo.

36. O Autor é mecânico, no que trabalha de 2ª a 6ª feira

37. O que, à data do embate, lhe proporcionava um rendimento mensal de 631,21 €, 14 vezes por ano, incluído subsídio mensal de alimentação.

38. Por causa do acidente (das lesões sofridas e dos tratamentos a que teve de se submeter) o A. esteve sem poder trabalhar até ao dia 22.12.2014.

39. Motivo por que, em salários, subsídios de férias, de Natal, de alimentação deixou de receber a quantia de € 6.185,87.

40. O Autor recebeu da CC, ao abrigo de um contrato de seguro de acidentes pessoais e pelo sinistro ocorrido, a quantia total de € 6.742,50 (seis mil, setecentos e quarenta e dois euros e cinquenta cêntimos), sendo € 1.485,00 por subsídio de hospitalização, € 137,50 por subsídio de fractura, € 1.210,00 e € 275,00 por subsídios de convalescença, € 272,00 por incapacidade temporária parcial e € 3.363,00 por incapacidade temporária absoluta.

41. Por causa do embate, o Autor gastou um total de € 1.667,65, sendo 435,00 € em fisioterapia; 563,25 € na Santa Casa da Misericórdia de …; 101,90 € no Centro Hospital do Alto Ave; 35,00 € em taxas moderadoras, 318,92 € em medicamentos; 38,58 € numas meias elásticas e 175,00 € em transportes para receber tratamentos.


A Factualidade Não Provada é a seguinte


1. O LG circulava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido de marcha.

2. E com velocidade não excedente a 40 Kms por hora.

3. Quando o condutor do DM atingiu as proximidades do nº. de polícia 46 da referida rua, imobilizou o referido veículo junto da berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha, o que fez sem sinalizar essa sua intenção fosse de que modo fosse.

4. Em face dessa imobilização o Autor ficou com a convicção de que aquele veículo iria ali ficar parado ou, quando muito, estacionado.

5. Motivo pelo qual, depois de se certificar de que não estava a ser ultrapassado, de que o condutor DM não tinha sinalizado qualquer intenção de mudar de direcção para a sua esquerda e de que não circulava qualquer veículo em sentido contrário, se preparou para ultrapassar o DM.

6. Nesse momento, o condutor do DM iniciou a marcha, mudando de direcção para a sua esquerda de um modo brusco sem sinalizar essa sua intenção fosse de que modo fosse.

7. O LG era avistável pelo condutor do DM pois encontrava-se a meia dúzia de metros de distância.

8. O DM não se aproximou do eixo da via.

9. O DM barrou completamente a passagem ao motociclo do demandante.

10. O referido em I.9 ocorreu em face da manobra do DM.

11. O condutor do veículo 39-...-90 não utilizou o espelho retrovisor exterior esquerdo para verificar que o Autor estava a preparar a ultrapassagem ao DM

12. O DM circulava pela hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento aquele dito sentido de marcha.

13. Quando estava a cerca de 50 metros do portão, o condutor do DM accionou o sinal luminoso de mudança de direcção à esquerda (pisa esquerdo).

14. Reduziu a velocidade do DM e aproximou-o do eixo da via, aonde o imobilizou em frente do sobredito portão.

15. Como, na altura, não circulasse qualquer trânsito em sentido contrário ao seu, a referida hemi-faixa de rodagem do lado direito, ainda atento o sentido de marcha atrás indicado, se encontrasse com mais de 2 metros de largura livres para a circulação e ninguém o estivesse, naquele momento, a ultrapassar, como não estava, o condutor do DM iniciou a manobra de mudança de direcção para a esquerda, para o que accionou a 1ª velocidade.

16. E invadiu em cerca de 2 metros a hemi-faixa do lado esquerdo, atento o sentido de marcha supra, sendo embatido pelo LG quando se encontrava nesta posição.

17. O Autor seguia a velocidade superior a 50 km/h.

18. O Autor iniciou uma manobra de ultrapassagem pela esquerda do DM em vez de parar na sua retaguarda, face à sinalização daquela manobra.

19. O Autor tinha, naquele momento, mais de 3,30 metros livres para contornar o DM pela respectiva direita.

20. O embate ocorreu ainda na hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido de marcha acima invocado, a 3,30 metros do limite direito da faixa de rodagem.

21. O LG deixou o DM com os apoios partidos e com os sensores danificados.

22. O portão tinha cerca de 3 metros de largura.

23. No momento da colisão, o DM circulava sob a direcção e no interesse de DD que tinha cedido o seu uso a EE.

24. O Autor manteve mobilização gessada no membro inferior esquerdo durante cerca de 4 semanas.

25. Entretanto, e porque desenvolveu infecção da ferida operatória, o demandante teve de se submeter a cuidados específicos de penso e antibioterapia.

26. Em consequência do embate, o Autor ficou com as seguintes sequelas: a) – aumento de volume do tornozelo e extremidade distal da perna; b) – tatalgia residual que agrava com a manipulação tibiotársica e subastragaliana, passiva e activa; c) – flexão/extensão com mobilidade até 40º/-10º e inversão e eversão dolorosas; d) – impossibilidade de manter a posição de apoio monopodálico com flexão dorsal por desconforto e dor; e) – dificuldade em se deslocar em plano horizontal em pisos irregulares por dor no retropé; f) – impossibilidade em se levantar do chão, muitas vezes conseguindo apenas com auxílio de terceiros; g) – dificuldade em carregar pesos ou apanhar objectos do chão.

27. As sequelas de que ficou a padecer definitivamente provocam-lhe uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 11 pontos,

28. É previsível a necessidade futura de uma artrose precoce com anquilose e/ou artrodese, o que agravará a sua incapacidade parcial permanente para o trabalho em, pelo menos, 20 pontos e lhe agravará o défice funcional permanente.

29. Em consequência, o A. terá de ser submetido a artrodese com internamento previsto de 10 dias, a que se seguirá uma incapacidade temporária total para o trabalho de 90 dias e um período de recuperação fisiátrica de 90 dias.

30. As referidas sequelas determinam-lhe uma repercussão nas actividades de desporto e de lazer de grau 3 numa escala de 1 a 7.

31. As referidas sequelas de que ficou a padecer determinam a necessidade actual de recurso a ajudas medicamentosas, nomeadamente a analgésicos e anti inflamatórios em situações de agudização e provável cronicidade da tatalgia.

32. No que o Autor gasta, por ano, € 150,00.

33. E a necessidade de recurso a ajudas técnicas, nomeadamente a tratamentos regulares de medicina física e de reabilitação.

34. Por causa do embate, o demandante mantém tratamento fisiátrico durante 40 sessões por ano, motivo pelo qual tem uma despesa de 800,00 (40 x 20,00 € por sessão).

35. Por causa do embate, no início de cada ciclo de fisioterapia, o Autor é submetido a uma consulta com um fisiatra para avaliação no que gasta por ano a quantia de € 120,00 (2 x 60,00).

36. As dores referidas em I.33 vão acompanhar o Autor durante toda a vida.

37. Por causa do acidente (das lesões sofridas e das sequelas de que ficou a padecer definitivamente) o demandante deixou de jogar futebol com o seu habitual grupo de amigos, de praticar enduro e bem assim de dar as habituais caminhadas ao fim de semana com familiares e amigos.

38. O que fez com que acabasse por se afastar desse seu grupo de amigos e lhe provocou, provoca e irá continuar a provocar uma profunda tristeza e amargura.

39. No seu dia-a-dia, o demandante tem extrema dificuldade em subir ou descer escadas, tendo de o fazer degrau a degrau, sendo que, quando se levanta, durante os primeiros 15 minutos arrasta literalmente a sua perna esquerda.

40. O que lhe causou profundo desgosto e mal-estar por se ver, com aquela idade, com tamanhas limitações.

41. E, no exercício da sua profissão de mecânico, não se consegue ajoelhar, não consegue transportar uma peça que seja um pouco mais pesada.

42. E tem, igualmente, dificuldade extrema em conduzir bem como em subir e descer de transportes colectivos (autocarros ou comboios).

43. À noite, durante a semana, e aos sábados dedica-se ao restauro de veículos antigos, no que ganha a quantia mensal de 500,00 €, 12 vezes por ano.

44. Nessa sua actividade não conhece férias ou feriados.

45. No trabalho habitual e no trabalho no restauro de veículos antigos, o Autor deixou de ganhar a quantia de € 14.706,67.


III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações do recurso e tendo em consideração as conclusões formuladas pelo Recorrente, a questão concreta de que cumpre conhecer é apenas uma, a saber:

1ª- O acidente dos autos ocorreu por culpa do Autor, como decidiu o Acórdão recorrido ou se não se provou a culpa de nenhum dos condutores intervenientes, devendo a Ré responder pelo risco?


Vejamos

B) Analisemos

1 - A questão a decidir nos presentes é, como se deixou dito, apenas a de saber se o acidente dos autos ocorreu por culpa do Autor, como decidiu o Acórdão recorrido ou se não se provou a culpa de nenhum dos condutores intervenientes, devendo a Ré responder pelo risco?

Ou seja, a questão é a de se saber «Quem foi o culpado pela produção do acidente em causa»?

Foi o condutor do veículo ligeiro DM? Ou terá sido o lesado/Autor, condutor do motociclo LG? Ou foram ambos os intervenientes e em que proporção?  

Porém, antes de se avançar importa clarificar que o recurso apenas visa o Acórdão e não o «Sumário do Acórdão».

Efectivamente, nos termos do artigo 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão» sendo que o sumário, que é da exclusiva responsabilidade do relator, (n.º 7 do mesmo preceito) é autónomo do Acórdão.

Por isso, quando o recorrente afirma (clª 1ª e ss) que «O recorrente jamais pode conformar-se com o teor da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, sobretudo com a Ia conclusão do sumário do acórdão recorrido, que é uma contradição em si próprio….», devemos entender que se dirige ao Acórdão propriamente dito e não ao seu sumário, pois que deste (do sumário) não há recurso.

Mas vejamos então a questão colocada.

De quem foi a culpa na produção do acidente?

A presente acção tem por objecto a responsabilidade civil por danos decorrentes de acidente de viação.

Em matéria de acidente de viação a obrigação de indemnização tem por fonte a responsabilidade civil emergente de facto ilícito ou do risco.

Nos termos do artigo 483º, nº 1 do Código Civil (de cujo diploma passarão a ser os demais normativos que se vierem a citar sem referência à origem), «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Dispõe o art. 487º, nº 1 do C.C. que “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”.

Estatui também o n.º 1 do artigo 570.º que «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

Devem ainda ter-se em consideração a disposição constante do artigo 11 do Código da Estrada.

O primeiro dispositivo atrás citado onde se consagra a teoria tradicional fixa, como pressupostos da obrigação de indemnizar, o facto, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre este e o facto, cfr. A. Varela «Das Obrigações em Geral», Vol. I, pág. 404.

E a lei geral, consagrada no art. 483º, nº 1 do Cód. Civil, estabelece como pressuposto fundamental da responsabilidade civil por factos ilícitos a existência de culpa, seja na modalidade de dolo ou de mera culpa.

A responsabilidade objectiva ou pelo risco só existe em casos especificados na lei e inexiste «qualquer disposição legal abrangedora deste caso, que comine responsabilidade a título objectivo ou responsabilidade por acto lícito». Assim, como «não deve ser considerada qualquer presunção de culpa» (cfr., neste sentido, Sinde Monteiro, RLJ, ano 131º, pág. 378, e o citado Ac. da RP de 18/05/2000).

A culpa na definição dada pelo Prof. Galvão Telles, in «Manual de Direito das Obrigações», pág. 196, é a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa. Se se produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquico ou moralmente imputável a certo indivíduo diz-se que este agiu com culpa.

No Código Civil a culpa é apreciada em abstracto (artigo 487º, n.º 2 e 799, n.º 2).


2 - Impõe-se apreciar agora, face aos supra enunciados princípios legais, o caso concreto.

Relembremos a matéria de facto com interesse para a decisão.

Cerca das 12h30 do dia 04.03.2014 ocorreu um acidente de viação na Rua …, em … (…) – …, em que intervieram os veículos: 40-...-93, motociclo, conduzido pelo Autor, seu proprietário e 39-...-90, ligeiro de passageiros, propriedade de DD e conduzido por EE.

O LG circulava pela referida Rua …, no sentido Quinta … – Avenida ….

O veículo 39-...-90 circulava imediatamente à sua frente e pretendia mudar de direcção para a sua esquerda, para aceder a uma residência que se situa do lado esquerdo da rua do …, considerando o sentido Quinta … – Avenida ….

O Autor guinou para a sua direita para tentar passar por trás do DM.

O Autor acabou por embater com a parte lateral esquerda do motociclo 40-...-93 e com o membro inferior esquerdo na parte central da traseira do veículo 39-...-90.

Aonde deixou o pára-choques riscado, a mala e vidro riscados.

Era intenção do condutor do DM entrar por um portão existente na residência referida em I.5.

Ambos os condutores se podiam ver a mais de 50 metros de distância.

A faixa de rodagem da Rua … configurava-se como uma recta e tinha a largura de 8,60 metros, dividindo-se em duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha, com a largura de 4,30 metros cada uma.

Aquelas hemi-faixas não estavam divididas por qualquer sinalização no pavimento.

Após o embate o DM ficou imobilizado numa posição diagonal, sobre o eixo da via, com a respectiva frente esquerda na hemi-faixa de rodagem esquerda, a cerca de 2 metros do sobredito portão e com a respectiva traseira na hemi-faixa direita, a 3,30 metros do limite direito daquela hemi-faixa.

Na altura chovia, o pavimento da via encontrava-se molhado e, como tal, escorregadio.


3 - Perante esta factualidade a decisão da 1ª. Instância entendeu que o acidente se ficou a dever ao risco próprio dos veículos intervenientes (pois não haveria culpa efectiva de nenhum dos condutores intervenientes).

Após recurso a Relação, com base na mesma factualidade provada, decidiu alterar aquela decisão, entendendo que a culpa na produção do acidente se deve atribuir ao Autor.

Em revista, pretende o Autor que se altere a decisão da Relação, e que o acidente seja atribuído ao risco próprio dos veículos intervenientes, fixando-se uma percentagem de 75% a 80% para o veículo ligeiro de passageiros e 20% a 25% para o motociclo, alterando as quantias arbitradas na 1ª. instância de acordo com o constante das alegações.

Perante entendimentos tão diversos qual a posição a adoptar?

De quem foi a culpa na produção do acidente? Do Autor? De ambos os intervenientes no acidente? De nenhum deles?

Apesar da subjectividade que a concretização das condutas humanas sempre comporta, afigura-se-nos, sem qualquer dúvida, que a razão se encontra do lado do Acórdão recorrido, que não merece censura.

Da factualidade provada resulta inequivocamente que a culpa no desenrolar do acidente deve ser atribuída ao Autor.

O Autor/recorrente conduzia o motociclo LG na retaguarda do veículo ligeiro de passageiros DM, sendo que podia ver o DM a mais de 50 metros de distância.

Não podemos esquecer que naquele momento chovia, o pavimento da via encontrava-se molhado e, como tal, escorregadio.   

Em determinado momento o Autor guinou para a sua direita para tentar passar por trás do DM, acabando por embater com a parte lateral esquerda do motociclo 40-...-93 e com o membro inferior esquerdo na parte central da traseira do veículo 39-...-90.

Resulta desta factualidade que é o Autor quem vai embater na traseira do DM sem que se tenha provado que o condutor do DM tenha efectuado qualquer manobra que tivesse colocado em risco a condução do Autor.

A conduta do Autor é independente de qualquer manobra do condutor do DM (que não se provou).

Ora, o Autor ao circular naquela via e naquelas condições de tempo (chuva e piso molhado) devia ter tomado cautelas acrescidas. Cautelas essas que claramente não tomou.

Efectivamente, como bem se refere na análise do acidente feita pelo acórdão recorrido, o autor, «sem razão que se apurasse, guinou para a sua direita, para tentar passar por detrás do veículo que estava à sua frente, acabando por embater com a parte lateral esquerda na parte central traseira do veículo ligeiro de passageiros.

...

Provou-se, pois, que o Autor guinou o seu veículo, para “passar por trás” daquele que antes seguia, vindo a embater na traseira deste.

Mais se sabe que essa mudança brusca de direção (guinar), que, mesmo em piso seco uma condução cuidada não permite, pelo perigo de despiste, foi efetuada num piso escorregadio.

O piso escorregadio impõe um cuidado acrescido na condução, por força das derrapagens, com particular acuidade para os motociclos, com apenas duas rodas e menor aderência à estrada. O que como é bom de ver, pelas simples regras da experiência comum, para qualquer homem medio, mesmo sem nunca ter conduzido um motociclo, não é compatível, caso se pretenda uma condução minimamente segura, com guinadas, por natureza bruscas (mais a mais sem razão que se perceba que as tenham determinado).

Enfim uma condução cuidada, atenta, preocupada com a segurança, exigível a qualquer homem médio, não permite que o condutor de um veículo, mais a mais de um motociclo, o guine, num piso escorregadio, para passar por detrás de outro, enfaixando-se nesse veículo».

Concordamos inteiramente com o acórdão recorrido neste ponto particular.

Temos que o Autor foi imprudente na sua conduta, pois que não podia ter efectuado a manobra que efectuou.

Pode afirmar-se que não se provaram as razões que determinaram o Autor a guinar por querer passar por detrás do veículo que o precedia, (num piso escorregadio, produzindo o embate).

Mas como bem salienta o Acórdão recorrido competia ao Autor demonstrar que a sua conduta se ficou a dever a uma qualquer imprevidência do condutor do DM. E essa prova não foi feita apesar de ter sido alegada pelo Autor/recorrente.

Perante os factos provados o acidente ficou a dever-se à conduta negligente do Autor que «violou a regra de trânsito, de conteúdo geral, que obriga os condutores, durante a condução, a abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança, prevista no artigo 11.º nº 2 do Código da Estrada» (Ac. recorrido)

Dito isto torna-se inequívoco que ao condutor do DM não pode ser imputada qualquer culpa no desenrolar do acidente (pois que não se lhe poderia exigir uma qualquer conduta destinada a evitar o acidente).

Por outro lado, tendo o Autor culpa na produção do acidente não pode a ré seguradora ser responsabilizada a título do risco. O acidente em causa não se ficou a dever ao risco próprio dos veículos intervenientes mas sim à culpa efectiva do Autor/recorrente.

Assim, impõe-se a improcedência total das alegações do recorrente, pelo que se nega a revista.



III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar a revista do Autor/lesado, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.  


Lisboa, 13 de Dezembro de 2018


José Sousa Lameira (Relator)

Hélder Almeida

Oliveira Abreu