Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
253/21.0T9GDM.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
DIFAMAÇÃO
PROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I. Dos princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima, da proporcionalidade do direito penal, mas também da insignificância e da adequação social, resulta que determinados comportamentos insultuosos não são susceptíveis de contrariar o sentido social de valor contido no tipo “difamação”; e por isso não o realizam materialmente, mesmo quando formalmente o pareçam preencher.

II. Os crimes contra a honra são tipos particularmente submetidos à erosão dos tempos, sofrendo o desgaste da interacção social, acrescendo que a linguagem, como forma de manifestação da liberdade de expressão, consente alguma margem de aspereza.

III. No que respeita à “difamação”, é hoje incontroverso que nem tudo o que causa contrariedade e é desagradável, grosseiro e pouco educado, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos; a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, não a sua susceptibilidade ou melindre, e a valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural.

IV. Do mesmo modo que um vocábulo linguístico só adquire sentido no contexto em que é utilizado, por maioria de razão a relevância penal de qualquer expressão só pode ser aferida contextualizadamente.

V. Se dos factos provados consta apenas que houve um telefonema da arguida para o local de trabalho do assistente, no decurso do qual aquela afirmou que “o assistente era um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muito às filhas” - nada mais se tendo apurado, nomeadamente, qual o grau de intimidade existente entre a arguida e a sua interlocutora, se eram conhecidas, se eram amigas, qual o contexto em que surgiu e se desenrolou a referida conversa, se se tratou ou não de um desabafo... - não é possível afirmar a tipicidade da conduta.

VI. Nas desconhecidas circunstâncias, falhando o referente e o contexto da comunicação, não se poderia concluir que a expressão “é um mentiroso” era objetivamente ofensiva da honra no patamar mínimo exigido pelo direito penal.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 253/21.0T9GDM.P1.S1

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

1.1. No processo comum singular n.º 253/21.0T9GDM, no Juízo Local Criminal de Gondomar foi proferida sentença a absolver a arguida AA da prática de um crime de difamação do art. 180.º, n.º 1, do CP e do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BB.

Inconformado com a decisão absolutória, dela interpôs recurso o assistente para o Tribunal da Relação do Porto, que, na procedência do recurso, condenou a arguida pela prática de um crime de difamação do art. 180.º, n.º 1 do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, e no pagamento ao demandante da quantia de € 700,00 (setecentos euros), a título de reparação dos danos não patrimoniais causados, acrescida de juros legais de mora desde a notificação.

Inconformada com o decidido pelo Tribunal da Relação, interpôs a arguida recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1. Nos presentes autos, a arguida foi condenada pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.

2. O bem jurídico tutelado por esta norma incriminadora é a dignidade individual, latente no respeito pela honra e consideração que são devidas a qualquer cidadão.

3. As expressões alegadamente proferidas pela Arguida subsumíveis ao tipo de ilícito, nos termos da acusação, são as seguintes: «o assistente era um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muito às filhas».

4. Os elementos do tipo objetivo do crime de difamação são: a) a imputação ou reprodução de facto (visto como dado real da experiência) ou juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia); b) que seja ofensivo da honra ou consideração de outrem; c) que seja dirigido a terceiros; e, d) que seja de forma direta ou insinuada (ser dirigida sob a forma de suspeita).

5. Ora, nem todos os factos que envergonham, perturbam ou humilham, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão da norma contida no n.º 1 do artigo 180.º do Código Penal,

6. não devendo dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena (cfr. BELEZA DOS

SANTOS, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, p. 168) aquilo que razoavelmente não se deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria.

7. De facto, o Direito Penal não deve intervir para criminalizar condutas comuns, simples desrespeitos, descortesias ou más educações; outrossim, para ser operante torna-se necessário haver um mínimo de significado da conduta, um mínimo de gravidade, para que se considere ter a mesma atingido o patamar da tipicidade e para se lhe atribuir dignidade penal.

8. Neste caso concreto, não se vislumbra a imputação de qualquer facto desonroso, uma vez que as afirmações em causa não têm potencialidade para afetar a imagem do assistente junto da comunidade e/ou da sua entidade patronal, não bastando que aquele se tenha sentido magoado e incomodado com as imputações feitas para que seja atingida honra, o direito ao bom nome e à reputação.

9. Ora, neste caso em concreto e como já referido, as expressões proferidas provêm de um grau de conflitualidade e animosidade entre a Arguida e o Assistente, em virtude do conflito conjugal e das discussões havidas a propósito da regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha de ambos, tendo sido proferidas apenas nesse contexto.

10. Nunca tiveram nem poderiam ter o intuito de ferir a honra pessoal e profissional do assistente, pois não passam de um desabafo normal numa relação desavinda.

11. Portanto, no caso em concreto, não se mostra preenchido o elemento objetivo pressuposto no artigo 180.º do Código Penal, o que conduziu à absolvição da arguida na 1ª instância e à improcedência do pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante contra a demandada a título de indemnização por danos não patrimoniais causados.

12. Nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, havendo que distinguir entre situações que traduzem apenas indelicadeza, grosseirismo ou má educação e aquelas que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros merecedoras de tutela penal.

13. E assim é pois, como é normal, entre os membros de uma comunidade há um certo grau de conflitualidade e animosidade, ocorrendo situações em que os cidadãos se podem expressar de forma deselegante ou indelicada, só devendo o direito intervir nas situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana.

14. No caso do crime de difamação, o direito tem de intervir quando é posto em causa a tutela constitucional do direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa, direito esse que se encontra consagrado no artigo 26º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

15. Contudo, este direito tem de ser compatibilizado com outro direito fundamental que é a liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos.

16. É o que decorre do art. 37.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, quando preceitua que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações.".

17. A liberdade de expressão assume o caráter de um direito individual do cidadão, enquanto manifestação essencial das sociedades democráticas e pluralistas.

18. O direito à liberdade de expressão e de opinião encontra igualmente consagração a nível do direito internacional, como a Convenção dos Direitos do Homem (artigo 10º) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 19º), compreendendo, nomeadamente a liberdade de transmitir e difundir ideias por qualquer meio de expressão.

19. “A propósito da configuração do crime de difamação, afirma-se no acórdão deste TRP, de 21/3/2018[1] que “É pacífico que a ofensa à honra no crime de difamação pode ser perpetrada através da imputação de factos ou da formulação de juízos. Quando se trate da imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, a conduta não é crime caso se verifiquem os pressupostos de exclusão de punibilidade do artigo 180º nº 2 do CP. Já quando se trate da formulação de juízos, a exclusão da ilicitude não está regulada nesse preceito mas sim na norma geral do artigo 31º do CP.”

20. O adjectivo “mentiroso” é polissémico, apresentando várias acepções.

21. É certo que o adjectivo “mentiroso”, da autoria da arguida, “visando” a pessoa do assistente, não consubstancia a conduta mais correcta ou o comportamento mais civilizado.

22. Porém, não obstante se reconhecer que se trata de um vocábulo desagradável, indelicado e pouco cortês, e que, noutras circunstâncias, pode ter subjacente uma carga ofensiva, podendo até configurar a prática de um crime, o certo é que, naquele concreto contexto, a expressão em causa não tem a virtualidade de alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhe confira dignidade penal.

23. Quando uma palavra tem uma pluralidade de sentidos, não temos de acolher o significado atribuído pelo visado tão-só por se ter considerado ofendido, sendo que isso terá de resultar inequivocamente dos factos.

24. O direito penal não se destina a tutelar o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhes sejam dirigidas, antes pretende punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos.

25. O que, evidentemente, está em consonância com o princípio da necessidade ou da última ratio do direito penal, do qual decorre que devem ser excluídas da protecção jurídico-penal aquelas condutas que não representam uma lesão adequada, suficientemente grave do bem jurídico.

26. nunca poderia o Tribunal a quo ter entendido que:

“No presente caso, tendo a arguida dito, num telefonema que manteve com a entidade patronal do assistente, que este é um “mentiroso”, estamos inequivocamente perante um juízo de valor objetivamente suscetível de ofender a honra e consideração da pessoa visada.

“Deste modo, e diversamente do que foi entendido pelo tribunal de primeira instância, o comportamento da arguida não pode ser considerado penalmente atípico. Tendo formulado um juízo de valor objetivamente suscetível de ofender a honra e consideração da pessoa do assistente – tanto mais que o destinatário de tais considerações desonrosas acerca do comportamento e personalidade do assistente foi a sua entidade patronal – encontra-se preenchido o tipo de ilícito objetivo do crime de difamação, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal.

Já o preenchimento do tipo de ilícito subjetivo – e o consequente tipo de culpa -decorre inequivocamente da matéria de facto apurada. Com efeito, a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível dos arguidos, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum.

Optando por incluir estes factos descritos na acusação no elenco dos factos não provados, o tribunal de primeira instância incorreu numa apreciação da prova e dos factos em discussão manifestamente ilógica e, por isso, incorreta, a qual não pode passar despercebida à observação e verificação do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.

No presente caso, é possível sanar neste tribunal de recurso o aludido vício (o erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP) em que incorreu o tribunal de primeira instância, alterando a decisão sobre a matéria de facto.

Assim, ao elenco dos factos provados são aditados os seguintes (previamente constantes do elenco dos factos não provados): «A arguida agiu com o propósito de ofender e humilhar o assistente na sua honra e consideração social junto da entidade patronal.» - acrescentando-se o segmento, constante da acusação particular, mas que não foi transposto pelo tribunal para a sentença recorrida, evidenciador do elemento emocional do dolo (“bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”).

27. O Tribunal a quo aplicou erradamente o art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP.

28. O Tribunal recorrido deveria ter mantido a sentença da 1.ª instância, pois, como foi demonstrado, fundamentou corretamente a decisão, apreciando as provas, no caso em questão, declarações da arguida, testemunhal e declarações do assistente, de acordo com o artigo 127.º do CP.

29. A sindicância, sequente à impugnação da decisão coloca o tribunal de recurso a verificar se na decisão a quo, na explanação e explicitação da sua convicção, ocorreu ou não o bom uso do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o artigo 127.º, do CPP.

30. Ora, no caso, a recorrente, em face da motivação da matéria de facto não pode deixar de apontar que o tribunal de 1ª instância fez um exame correto e crítico da prova, na medida em fundamentou a sua decisão de julgar provado ou não provado determinados factos históricos a partir dos meios de prova considerados.

31. Já não pode dizer o mesmo em relação ao tribunal a quo, que em face da motivação da matéria de facto não pode deixar de apontar a omissão do exame crítico da prova, na medida em que o tribunal a quo não transportou e fundamentou corretamente a alteração dos factos não provados para factos provados.

32. Por todo o exposto nunca poderia o tribunal a quo ter efetuado as alterações agora introduzidas na matéria de facto e ter dado diferente valoração do comportamento da arguida, e em consequência ter aplicado o direito em substituição do Tribunal de primeira instância.

33. E como resultado ter condenado a arguida/recorrente “pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.”

34. Pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e em consequência absolver a arguida mantendo a decisão de 1.ª instância.

35. O tribunal a quo ao aplicar erradamente o art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP, viola os seguintes artigos, artigo 37.º, n.º 1 da CRP; artigo 19.º DUDH; art.º 10º, § 1, da CEDH; artigo 31.º, n.º 2, b), do CP; artigo 127.º do CP.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“O Acórdão em crise mostra-se bem fundamentado, de facto e de direito, cumprindo integralmente o exame critico que a lei impõe, fez correcta interpretação e aplicação do direito, não enfermando de qualquer vicio ou nulidade, não tendo sido violadas as normas invocadas pela arguida, ou quaisquer outras que cumpra apreciar ou principio geral, e mantendo dessa forma a posição assumida processualmente, pelo que deve ser este Acórdão integralmente mantido, improcedendo totalmente a pretensão da arguida.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, pronunciando-se no sentido da rejeição do recurso, justificando, designadamente

“4. Parecer sobre as questões a decidir:

4.1. Enquadramento jurídico:

O recurso impugna a decisão que inovatoriamente condenou a recorrente insurgindo–se contra a valoração da prova efetuada pelo TRP para reverter a decisão da 1.ª instância; em suma, invoca erro de julgamento, violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal e violação do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

A recorrente não se conforma com a apreciação e qualificação da matéria de facto operada pelo TRP, que a veio a condenar nos termos sobreditos, pelo que é sobre a livre convicção que recaiu sobre a prova da matéria de facto e sobre a valoração que dela foi efetuada pelo tribunal a quo que o recurso incide, ancorando–se na invocação de erro–vício consistente em erro notório na apreciação da prova.

A nosso juízo, delimitado o objeto de recurso no que se refere ao âmbito normativo identificado (erro–vício), não estamos perante uma questão de procedência ou improcedência do recurso, mas antes perante a inviabilidade do conhecimento do próprio objeto do recurso.

(…) Excluídos os obter dictum, a recorrente ancora o recurso e a argumentação que apresenta na violação do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

Decorre do atual regime de recursos, por via das alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro (ampliando o regime de admissão de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça1), que apenas nas situações previstas no artigo 432.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer da invocada existência dos vícios da decisão previstos no artigo 410.º, do Código de Processo Penal, em conformidade com o artigo 434.º do Código de Processo Penal “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do artigo 432.º.”.

Com fundamento nos vícios previstos no artigo 410.º do Código de Processo Penal ou com fundamento em nulidade não sanada (artigo 379.º, .º 2 e 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), apenas cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações proferidas em 1.ª instância ou nos casos de recurso per saltum, de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos.

Vale por dizer que, fora dos casos previstos no artigo 432.º, n.º 1, alínea a) e c), do Código de Processo Penal, não é admissível recurso de acórdão da Relação proferido em recurso com um dos fundamentos previstos no artigo 410.º, do Código de Processo Penal, pois com esses fundamentos apenas é admissível recurso de decisões proferidas em 1.ª instância, incluindo a Relação, se os demais pressupostos legais também estiveram verificados.

Porém, continua a estar salvaguardada a possibilidade de, oficiosamente, o Supremo Tribunal de Justiça tomar a iniciativa de examinar a existência dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cf. AUF n.º 7/95).

É jurisprudência consensual que essa sindicância apenas deve ter lugar quando tal se torne imperioso e indispensável para proferir a decisão de direito, ainda ou apesar do pedido (inadmissível) das partes 2.

Trata-se, assim, de um conhecimento oficioso, da iniciativa do Supremo Tribunal de Justiça, de natureza excecional, como último remédio contra vícios manifestos no julgamento da matéria de facto.

Por via desse conhecimento oficioso procura-se salvaguardar a verdade material ou a justiça de uma condenação, que não pode estar sustentada em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em manifesto erro de apreciação ou assente em premissas contraditórios, ilações incompreensíveis ou erróneas (juízos irrazoáveis, temerários, inverosímeis ou arbitrários), i.e., com a gravidade inerente a um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.3

A existirem esses vícios, ocorre nulidade da decisão e o processo é reenviado para novo julgamento (cf. artigo 426.º, do Código de Processo Penal).

Ora, o recurso interposto recaiu sobre decisão proferida pelo tribunal da Relação que, por sua vez, decidiu em recurso da decisão de 1.ª instância, e tem por fundamento a invocação da violação do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, ancorando–se nele para divergir da valoração da prova efetuada pelo TRP.

Assim sendo, com fundamento nos vícios previstos no artigo 410.º, do Código de Processo Penal ou nulidades não sanadas, de acordo com o n.º 3 respetivo, não é admissível recurso de acórdãos da Relação quando tirados em recurso de decisão de 1.ª instância, ainda que o mesmo tenha sido admitido (cf. artigo 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

(…) Estando a decisão impugnada transitada em julgado, ela é ordinariamente irrecorrível.

Sem prejuízo, ainda assim podemos acrescentar algumas observações – entrando–se, porventura, na apreciação do mérito do recurso, mas por mera lealdade processual na ponderação das razões apresentadas – sobre a invocação pela recorrente da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, em estreita relação com o erro–vício apontado, atacando a convicção firmada pelo tribunal recorrido ao atestar que este não deveria ter efetuado alterações na matéria de facto, nem ter dado diferente valoração ao comportamento da arguida, mantendo antes a decisão da primeira instância.

Assim:

Apesar de dever estar salvaguardada a inviabilidade da sindicância à valoração da prova e à convicção sobre a matéria de facto provada e não provada efetuada pela instância recorrida, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, e tendo por irrelevante a vontade, interesse subjetivo ou convicção pessoal da recorrente sobre essa valoração, não está em causa no acórdão recorrido qualquer erro-vício na apreciação da prova, nem qualquer falha grosseira, por absurda, manifesta ou ostensiva na análise da prova, ao arrepio dos axiomas da lógica elementar da argumentação (correção formal do discurso sobre a realidade pensada, segundo os princípios da identidade, da não contradição e do terceiro excluído, e correção informal que justifica a decisão, apoiada em factos, princípios, tópicos ou valores admitidos, e que resolve a controvérsia e decide com razoabilidade), facilmente identificável como arbitrária, seja por não atender a prova vinculada, seja por grosseiramente violadora das leges artis, seja por contrária às regras de experiência, seja por contrária à prova relevante e evidente, cujo resultado não deve ser manifestamente irracional ou incoerente.

As regras de experiência comum são as relativas às boas razões e à legitimação racional, explicativa e com sentido do que é normal (id quod plerumque accidit), típico, plausível, intersubjetivamente compreensível, credível ou verosímil do acontecer empírico e do conhecimento partilhado, do modo de existir ou da condição da experiência comum, com implicação ou ressonância no facto e na sua autocoerência ou adequação explicativa; em suma, com afinidade válida e objetiva com o que é imparcialmente julgado como a verdade processual.

Não cabe no erro-vício relativo à apreciação e valoração da prova, nem com ele se confunde, uma valoração da prova produzida que seja admissível, por ser possível, por ser aceitável, plausível, provável ou razoável, i.e., o eventual erro de julgamento, como reiteradamente tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça.

(…) Na sequência, o Ministério Público na 2.ª instância evidenciou a correção da valoração efetuada pelo TRP, acentuando que a decisão recorrida não está ferida pelo vício que a recorrente lhe assaca e aditando que:

Na conformidade do que vem sido dito e essencialmente pelo exposto, tudo visto, analisado e ponderado, sem necessidade de ulteriores ou mais apuradas considerações, afigura-se-nos que o Tribunal apreciou criticamente a prova produzida em audiência de julgamento, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência e com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, inexistindo assim qualquer erro na apreciação da matéria de facto ou erro notório.

A fundamentação do Acórdão recorrido é suficientemente profícua, tendo recorrido às regras de experiência e apreciou a prova de forma objetiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção.

Em síntese, sempre se dirá que o Acórdão em crise mostra-se bem fundamentado, de facto e de direito, cumprindo integralmente o exame critico que a lei impõe, fez correta interpretação e aplicação do direito, não enfermando de qualquer vicio ou nulidade, não tendo sido violadas as normas invocadas pela arguida, ou quaisquer outras que cumpra apreciar ou principio geral, e mantendo dessa forma a posição assumida processualmente, pelo que deve ser este Acórdão integralmente mantido, improcedendo totalmente a pretensão da arguida.”.

São alegações que se acompanham, não sem antes se acrescentar que, em sede de recurso de revista não há lugar, por regra, à formulação, revisão ou inovação dos juízos relativos à apreciação e valoração da prova, pelo que não é convocável erro de julgamento assente na violação do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, pois o presente recurso visa exclusivamente a reapreciação da matéria de direito e o citado princípio tem aplicação na apreciação da prova, que não compete a este supremo tribunal reapreciar ou censurar, a não ser, excecionalmente, quando esteja patenteado de forma manifesta no texto da decisão recorrida, à semelhança da apreciação dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal4.

Tem sido essa a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, entendendo–se que um suposto erro de julgamento não pode ser corrigido pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Na verdade, impulsionada pelo recurso do assistente da decisão de 1.ª instância, a Relação reapreciou a matéria de facto provada e não provada e formulou o seu juízo valorativo de forma legítima, congruente e isenta de dúvidas, a partir da valoração das provas que o recurso referido impunha reavaliar e que, estando adquiridas no processo, impuseram decisão diversa da 1.ª instância, observando os poderes que o quadro legal definido no artigo 431.º do Código de Processo Penal legitima.

Atendendo aos termos em que a recorrente objetiva o seu recurso, insurgindo–se contra a matéria de facto fixada, a valoração da prova e a consequente, necessária e suficiente qualificação jurídica que lhe corresponde, na verdade atacou essencialmente a convicção do Tribunal recorrido, pelo que, fixando o artigo 434.º do Código de Processo Penal os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que não é um tribunal de instância, mas de revista, não pode este Supremo Tribunal conhecer das questões suscitadas pela recorrente.

Apesar das diferenças entre o “erro na apreciação da prova” e o “erro notório na apreciação da prova”, no caso presente tanto a reapreciação da matéria de facto, em termos amplos (erro-julgamento), como no âmbito dos vícios do artigo 410.º, do Código de Processo Penal (erro-vício), não podem servir de fundamento ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se impõe rejeitar, por inadmissível, o recurso interposto pela arguida, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do Código de Processo Penal.

4.2. Conclusão:

Em conformidade, somos de parecer que o recurso deve ser rejeitado, ou sumariamente, ou, a não se entender assim, sempre em conferência se deverá decidir pela sua rejeição, mantendo–se a decisão recorrida.”

A arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor:

“Factos provados e não provados (segue transcrição):

«1. FACTOS PROVADOS

Da acusação particular

Em hora não concretamente apurada de dia também não apurado, mas entre novembro e dezembro de 2020, a arguida telefonou para a entidade patronal do assistente para saber se este estava a trabalhar.

No desenrolar da conserva telefónica que estabeleceu com a sócia CC, a arguida afirmou que o assistente era um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muito às filhas.

A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente.

Outros factos provados:

DO PIC

- na sequência dos factos, o assistente sentiu-se chocado, angustiado e desgostoso;

- o assistente é uma pessoa muito bem comportada, muito respeitado na empresa e no meio laboral;

- Dos antecedentes criminais da arguida:

- a arguida não tem antecedentes criminais.

Das condições sócio pessoais da arguida: A arguida trabalha em gabinete de contabilidade em parte time, auferindo, cerca de 350 euros mensais, vive em casa dos pais e tem duas filhas (de 13 e 20 anos que vivem com o pai).

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Da acusação particular:

- que os factos tenham ocorrido no dia 29 de dezembro de 2020, que as expressões tenham sido feitas repetidamente;

- que as expressões “um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muitos às filhas” são manifestamente ofensivas da honra e consideração social do assistente;

- que a arguida agiu com o mero propósito de ofender e humilhar o assistente na sua honra e consideração social junto da entidade patronal;

Do PIC

- que a arguida ofendeu profundamente o assistente;

- que o uso das referidas expressões e afirmações prejudicaram gravemente o nome, honra e consideração social do demandante junto da sua entidade patronal;

- que o assistente continua a sentir-se profundamente chocado.»

*

Apreciando os fundamentos do recurso.

O objeto do presente recurso prende-se, unicamente, com o preenchimento do tipo de ilícito imputado à arguida – e, mais concretamente, com a questão de saber se as expressões proferidas pela arguida, dirigindo-se ao assistente, são objetivamente suscetíveis de ofender a sua honra e consideração pessoal.

A propósito do enquadramento jurídico-penal do comportamento da arguida/recorrida, escreveu-se na sentença o seguinte:

«Dispõe o n.º 1 do art.º 180.º do C. Penal que ”quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.

O bem jurídico protegido é a honra.

Por honra entende-se “a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter”.

Já a consideração “é o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros”.

Por outras palavras, a honra será a “dignidade subjetiva”, enquanto a consideração será a “dignidade objetiva”, “a forma como a sociedade vê cada cidadão” (cfr. Leal-Henriques - Simas Santos, in “Código Penal Anotado, vol. 2º, 1996, pág. 317).

São elementos objetivos deste tipo de crime:

- A imputação de um facto (visto como dado real da experiência), a formulação de um juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia), ou a reprodução daquela imputação ou juízo (imputação que pode ser direta ou insinuada, ou seja, dirigida sob a forma de suspeita);

- que o agente o faça dirigindo-se a terceiros;

- que os factos ou juízos sejam ofensivos da honra ou consideração do ofendido.

No plano subjetivo o crime de difamação configura um crime doloso que se basta com um dolo genérico, em qualquer das modalidades referidas no art.º 14.° do C. Penal, não se exigindo que o agente queira ofender a honra e consideração do visado, bastando que saiba que com o seu comportamento pode lesar o bem jurídico protegido com a norma, e que, consciente disso não se abstenha de agir (cfr. Ac. do S.T.J. de 2/10/96, CJSTJ, tomo 3, pág. 147).

Para a verificação do tipo objetivo de ilícito da difamação serão, assim, a imputação, dirigida a terceiros, de facto (visto como dado real da experiência) ou juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia), ofensivos da honra ou consideração de outrem, ou a sua reprodução, imputação que, por seu turno, pode ser direta ou insinuada (ser dirigida sob a forma de suspeita).

Importa referir, porém, que nem todos os factos que envergonham, perturbam ou humilham, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão do preceito em referência, tudo dependendo da intensidade ou do perigo da ofensa (Vide Oliveira Mendes, in o Direito à honra e a sua tutela penal, pág. 34).

Por sua vez, relativamente ao tipo subjetivo, estamos em face de um crime doloso (em qualquer uma das suas modalidades), bastando para uma plena imputação subjetiva o dolo eventual (cf. art.º 14.º do Código Penal).

Com efeito, para a verificação do elemento subjetivo do crime em referência, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir.

*

Apreciando os factos provados, temos que em hora não concretamente apurada de dia também não apurado, nas entre novembro e dezembro de 2020, a arguida telefonou para a entidade patronal do assistente para saber se este estava a trabalhar.

No desenrolar da conserva telefónica que estabeleceu com a sócia CC, a arguida afirmou que o assistente era um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muitos às filhas.

A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente.

Tais factos, não são, em termos de objetividade, suscetíveis de envergonhar, perturbar ou humilhar a honra e consideração de quem quer que seja, ainda que o ofendido se tenha sentido como tal, porquanto traduzem uma opinião, ainda que menos educada da arguida mas que não atingem o núcleo essencial da tutela da honra e consideração, a não merecer censurabilidade penal.

Nos crimes contra a honra, como salienta o Acórdão da Relação do Porto de 19-12-2007, o que, de resto, constitui doutrina e jurisprudência uniforme, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.

O que significa que a proteção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos só se justifica em situações que objetivamente as palavras proferidas não têm outro sentido que não a ofensa, ou em situações em que, ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente injuriosas, lesivas da honra e consideração do lesado.

Neste sentido o Prof. Faria Costa alerta para que «o cerne da determinação dos elementos objetivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correta determinação dos elementos objetivos do tipo».

Nas afirmações constantes dos factos alegados na acusação particular e depois assente em julgamento, são atribuídas à arguida condutas que quanto a nós não podem ser consideradas ofensivas. Podem sim serem falsas, revelarem falta de educação, rudeza no tratamento com terceiros, mas daí a serem ofensivas da honra e consideração é necessário, quanto a nós, algo mais. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, como se verifica amiúde nas questões relacionadas com separações de pessoas, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma excessiva.

Porém, o Direito Penal deve ter um carácter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio, não podendo intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.

Nessa medida, as afirmações em causa não se vê que tenham potencialidade para afetar a imagem do assistente junto da comunidade, da sua entidade patronal, sendo certo que para a pretendida proteção da honra e correspondente direito ao bom nome e à reputação não basta que aquele se tenha sentido magoado e incomodado com as imputações feitas.

Impõe-se, pois, a absolvição da arguida.»

Concordando-se com o tribunal a quo quando salienta que o Direito Penal deve ter um carácter fragmentário, devendo a sua intervenção, neste âmbito, reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana, já divergimos da conclusão, firmada na sentença recorrida, de atipicidade do comportamento da arguida.

Com efeito, nos crimes contra a honra importa considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, designadamente, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto e a forma em que ocorre a imputação de factos ou a formulação de juízos de valor.

No presente caso, tendo a arguida dito, num telefonema que manteve com a entidade patronal do assistente, que este é um “mentiroso”, estamos inequivocamente perante um juízo de valor objetivamente suscetível de ofender a honra e consideração da pessoa visada.

De facto, e como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, tal afirmação só pode querer significar que o visado não é uma pessoa confiável, sendo, pelo contrário, desprovido de princípios/valores morais e que, sem pudor, ou seja, interessadamente, se lhe for conveniente, não fala verdade.

Contrariamente, a expressão “não quer saber da filha” (referindo-se ao assistente) já não tem a virtualidade de ofender a honra da pessoa visada. A referida expressão revela desarmonia, diferendo, falta de civilidade e, no limite, até alguma agressividade, mas não ultrapassa o patamar de simples desabafo, não chegando a traduzir a imputação gratuita de um comportamento desonroso ao assistente.

Deste modo, e diversamente do que foi entendido pelo tribunal de primeira instância, o comportamento da arguida não pode ser considerado penalmente atípico. Tendo formulado um juízo de valor objetivamente suscetível de ofender a honra e consideração da pessoa do assistente – tanto mais que o destinatário de tais considerações desonrosas acerca do comportamento e personalidade do assistente foi a sua entidade patronal – encontra-se preenchido o tipo de ilícito objetivo do crime de difamação, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal.

Já o preenchimento do tipo de ilícito subjetivo – e o consequente tipo de culpa - decorre inequivocamente da matéria de facto apurada. Com efeito, a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível dos arguidos, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum.

Deste modo, atuando a arguida da forma descrita na sentença recorrida – enquadramento factual que temos por definitivamente assente, tanto mais que não foi impugnado -, apelidando o assistente de “mentiroso” numa conversa que manteve com a respetiva entidade patronal, impõem regras de normalidade e princípios da lógica que se considere igualmente provado que a arguida agiu com o propósito de ofender e humilhar o assistente na sua honra e consideração social junto da entidade patronal.

Ao assim não ter procedido, optando por incluir estes factos descritos na acusação no elenco dos factos não provados, o tribunal de primeira instância incorreu numa apreciação da prova e dos factos em discussão manifestamente ilógica e, por isso, incorreta, a qual não pode passar despercebida à observação e verificação do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.

No presente caso, é possível sanar neste tribunal de recurso o aludido vício (o erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP) em que incorreu o tribunal de primeira instância, alterando a decisão sobre a matéria de facto. Assim, ao elenco dos factos provados são aditados os seguintes (previamente constantes do elenco dos factos não provados): «A arguida agiu com o propósito de ofender e humilhar o assistente na sua honra e consideração social junto da entidade patronal.» - acrescentando-se o segmento, constante da acusação particular, mas que não foi transposto pelo tribunal para a sentença recorrida, evidenciador do elemento emocional do dolo (“bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”).

*

Considerando as alterações agora introduzidas na matéria de facto e a diferente valoração do comportamento da arguida, incumbe a este Tribunal da Relação aplicar o direito em substituição do Tribunal de primeira instância.

Comecemos por determinar a espécie e medida da pena a aplicar à arguida, sendo certo que o crime de difamação por ela praticado é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias (cf. o art.º 180.º, n.º 1, do CP).

(…).”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar respeita à relevância penal dos factos provados.

Questiona a recorrente a relevância criminal dos factos objectivos, defendendo que as expressões por si proferidas, e alusivas à pessoa do assistente, não são susceptíveis de ofender a honra e consideração pessoal deste, no sentido que releva para o direito penal.

Assim, importa conhecer do invocado erro de subsunção, sem prejuízo de se poder vir ainda a detectar e (a reparar) um eventual vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, vício(s) de que o Supremo sempre pode conhecer oficiosamente.

Na verdade, caso se venha a considerar, como defende a recorrente, que os “factos exteriores” provados não realizam o tipo objectivo “difamação”, então, eles nunca poderiam ter permitido a demonstração dos factos integrantes do “dolo de difamação”, como entendeu a Relação. O que, a ter assim sucedido, configuraria o vício do erro notório na apreciação da prova, de que enfermaria o acórdão recorrido (art. 410.º, n.º 2, als. b) e c), do CPP).

A precedência-regra do tratamento da questão de facto sobre a questão de direito, no presente caso terá de sofrer inversão, pois a resolução da questão de direito colocada em recurso não permite o tratamento dissociado e sequencial dos dois problemas (primeiramente, o de facto, e depois, o de direito). Concretamente, eles entrecruzam-se aqui num “insolúvel círculo lógico” (na expressão de Castanheira Neves).

A arguida fora absolvida em 1.ª instância da prática de um crime de difamação do art. 180.º, n.º 1, do CP e do pedido de indemnização civil deduzido. O acórdão recorrido, dando provimento ao recurso do assistente, reverteu a decisão de absolvição em condenação, por considerar que os factos objectivos provados em julgamento realizavam o tipo de crime de difamação; e, consequentemente, detectou um erro notório na apreciação da prova relativamente aos factos do dolo, que haviam sido considerados como não provados na sentença. Naturalmente, detectou oficiosamente tal erro de facto, alterando a matéria de facto não provada para provada, assim o reparando.

Também o Supremo poderá vir agora a sanar oficiosamente o vício (do erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP), mas resolvendo-o em sentido contrário, caso considere que nele incorreu o acórdão da Relação ao ter procedido do modo descrito.

Comecemos, pois, por conhecer da relevância penal dos factos objectivos provados.

São eles (apenas) os seguintes:

“Em hora não concretamente apurada de dia também não apurado, mas entre novembro e dezembro de 2020, a arguida telefonou para a entidade patronal do assistente para saber se este estava a trabalhar.

No desenrolar da conserva telefónica que estabeleceu com a sócia CC, a arguida afirmou que o assistente era um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muito às filhas.”

A expressão penalmente difamatória, segundo o acórdão recorrido, seria apenas a primeira – a de que “o assistente era um mentiroso” -, procedendo-se a uma separação desta frase, do conjunto das asserções seguintes. Mas esta separação é até feita no sentido inverso do que seria concretamente mais adequado, tendo em conta o tipo de crime em apreciação.

Na verdade, a relevância penal de qualquer expressão, mormente a expressão grosseira ou indelicada, nunca pode ser aferida descontextualizadamente, do mesmo modo que um vocábulo, qualquer vocábulo linguístico, só adquire um sentido no contexto em que é utilizado, mudando até de significado consoante a frase em que se insere.

Ensina Wittgenstein que o sentido de uma expressão não se obtém identificando o objecto que ela supostamente designa, mas sim atendendo ao uso que lhe é dado em cada contexto. E os significados são pelo menos tantos quantos os jogos de linguagem em que a podemos utilizar. A mesma palavra pode adquirir na linguagem comum diferentes significados, opostos até tudo dependendo do contexto em que é empregue, das regras do jogo de linguagem em que a encontremos.

Por exemplo, o vocábulo “mentiroso” pode adquirir valor pejorativo na frase “ele é um mentiroso”, mas “és mentiroso” pode ganhar o sentido oposto quando dito em tom brejeiro e em resposta a um elogio que se recebe.

Assim, e por maioria de razão, quando se trate da aferição da relevância penal de expressão dirigida a alguém, a contextualização torna-se ainda mais vital e absolutamente imprescindível.

As fronteiras da tipicidade nos crimes contra a honra não são fáceis de definir. São tipos de crimes muito submetidos à erosão dos tempos. São um bom exemplo para recordar a expressão de Welzel, de que “os bens jurídicos não são peças de museu em redomas de vidro; vivem no mundo e sofrem o desgaste da interacção social”.

A difamação assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26.º, n.º 1 da CRP), conceitos muito debatidos na doutrina e na jurisprudência.

A “honra” continua a identificar-se com a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, rectidão, carácter; a “consideração” é o valor atribuído por alguém ao juízo do público, isto é, do apreço ou, pelo menos, da não desconsideração que os outros tenham por ele (Beleza dos Santos, RLJ 3152-142); e o Código Penal adopta uma concepção dual de honra (concepção normativa-pessoal de honra) segundo a qual esta é vista como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

De referir também que o direito penal reveste natureza fragmentária, “de tutela subsidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revele digna de pena” (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43).

Tutela os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade, imanentes ao Estado de Direito.

Assim, e no que respeita à “difamação”, é hoje incontroverso que nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente possa parecer integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, não a sua susceptibilidade ou melindre, e a valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural.

Na lição antiga, mas actual, de Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167). Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).

De tudo resulta que, do mesmo modo que a contextualização de qualquer enunciado linguístico importa para a sua integral compreensão, por maioria de razão a contextualização das expressões proferidas é sempre indispensável a um juízo sobre a tipicidade.

Impõe-se, assim, olhar as expressões sub judice, não abstracta nem isoladamente, mas no contexto e nas circunstâncias em que foram realmente proferidas. E apreciar então se, nesse contexto, atingiram (podiam atingir) a pessoa visada num quadro merecedor de tutela penal. Pois também à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente com o tipo em presença, utilizando agora palavras de Cavaleiro de Ferreira, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade”.

Na avaliação sobre a tipicidade não pode deixar de relevar, insiste-se, o contexto em que a expressão desagradável é proferida. O que, no presente caso, está muito longe de ser conhecido.

Na verdade, diz-se apenas no acórdão que ocorreu um telefonema da arguida para o local de trabalho do assistente, e que, em conversa com a entidade patronal do assistente, são por ela proferidas as comprovadas expressões verbais: “a arguida telefonou para a entidade patronal do assistente para saber se este estava a trabalhar. No desenrolar da conserva telefónica que estabeleceu com a sócia CC, a arguida afirmou que o assistente era um mentiroso, que não queria saber da filha e que mente muito às filhas.” E é tudo.

São estes os únicos factos objectivos provados, o que se revela manifestamente insuficiente para permitir concluir pela tipicidade da apurada conduta da arguida.

No acórdão, na apreciação jurídica destes factos, procedeu-se ainda à separação do vocábulo “mentiroso” do resto da conversa mantida pela arguida. Resultou assim ainda mais desconhecido o contexto em que surgiu o vocábulo insultuoso, e ainda mais difícil a possibilidade de apreciação jurídica positiva.

Desde logo, desconhece-se o grau de intimidade existente entre a arguida e “a sócia” da empresa, se eram conhecidas, se eram amigas, desconhece-se o contexto em que surgiu e se desenrolou a referida conversa, se se tratou de um desabafo...

Era tudo isto que cumpria ter averiguado, e não o foi. Até a fim de fazer boa aplicação do próprio acórdão da Relação do Porto que o acórdão recorrido cita.

Diz-se: “Nos crimes contra a honra, como salienta o Acórdão da Relação do Porto de 19-12-2007, o que, de resto, constitui doutrina e jurisprudência uniforme, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.” (itálico nosso)

Ora, tendo tudo isto ficado por apurar, a matéria de facto provada não permitia à Relação poder considerar sem mais que, nas desconhecidas circunstâncias, a expressão “é um mentiroso” era objetivamente ofensiva da honra, no patamar mínimo exigido pelo direito penal.

Acresce que em relação à linguagem, como forma de manifestação da liberdade de expressão, tem de existir alguma tolerância social e alguma aceitação de uma margem de aspereza de linguagem.

Em suma, falhando o referente e o contexto da comunicação em que foi proferida a expressão em causa, não é possível concluir pela tipicidade objectiva da conduta da arguida. Tanto mais que, como se adiantou, dos princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal, mas também da insignificância e da adequação social, sempre resulta que determinados comportamentos “insultuosos” não são susceptíveis de contrariar o sentido social de valor contido no tipo “difamação”. E, por isso, não o realizam materialmente, mesmo quando formal e aparentemente até o pareçam preencher.

De tudo resulta que os factos objectivos provados não permitem concluir que a conduta da arguida contraria o sentido social de valor contido no tipo e, por isso, não preenchem materialmente o tipo objectivo “difamação”, do art. 180.º do CP. O que se conclui.

E daqui decorre igualmente que os “factos exteriores” não deveriam ter permitido, consequentemente, concluir pela demonstração dos factos integrantes do dolo de difamação. Pois a prova dos “factos interiores”, do tipo subjectivo - consistente num querer (elemento volitivo) e num saber (elemento cognitivo) dos factos do tipo objectivo -, segundo a Relação, teria precisamente resultado desses factos exteriores.

Reportando-se aos factos do tipo objectivo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, é natural que os factos integrantes do dolo possam normalmente resultar daqueles. Mas se, in casu, a alteração da matéria de facto provada decidida no acórdão recorrido – a passagem dos factos não provados da sentença, relativos ao dolo, para os factos provados – se deveu apenas a uma deficiente pré-compreensão do direito a aplicar (o erro de subsunção, que ora se repara), da correcção deste erro de subsunção resulta agora a revogação do acórdão da Relação na parte em que ali se procedera à alteração da matéria de facto, a qual permanecerá como constava, anteriormente, da sentença.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso, revogando-se o acórdão na parte em que se procedeu à alteração da matéria de facto e à condenação, confirmando-se a absolvição da arguida.

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario).

Lisboa, 13.03.2024

Ana Barata Brito, relatora

Maria do Carmo Silva Dias, adjunta José Luís Lopes da Mota, adjunto