Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1548/06.9TBEPS-D.G1.S1
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
OBRIGAÇÃO
EFICÁCIA
TRADIÇÃO DA COISA
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDAS AS REVISTAS
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Doutrina: -Catarina Serra, Efeitos da Declaração de Falência sobre o Falido, 1998, pág. 304.
-Gravato de Morais, “ Promessa Obrigacional de Compra e Venda com Tradição da Coisa e Insolvência do Promitente Vendedor “, Cadernos de Direito Privado, nº 29, pág. 9 e segs..
-Rosário Epifânio, Os Efeitos Substantivos da Falência, Porto, 2000, pág. 292.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, 219.º, 442.º, 755.º, Nº1, AL. F), 759.º, NºS 1 E 2.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 102.º, Nº1, 106.º, Nº1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28-5-02 (ACESSÍVEL EM WWW DGSI.PT);
-DE 19-9-06 (ACESSÍVEL EM WWW. DGSI.PT).
Sumário : I –A recusa de cumprimento dos contratos a que se refere o art. 102.º, nº1, do CIRE não exige declaração expressa, nem forma especial, aplicando-se-lhe os princípios dos arts 217.º e 219.º do C.C.

II-A inclusão pelo Administrador da insolvência dos créditos dos promitentes- compradores no elenco dos créditos reconhecidos, sem o subordinar a qualquer condição, corresponde à declaração de recusa de cumprimento dos invocados contratos promessa, equivalente a incumprimento definitivo pela insolvente.

III – Os contratos-promessa de compra e venda, quer com eficácia real, quer com eficácia obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, conferem ao promitente-comprador direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato prometido.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Por apenso aos autos de insolvência da sociedade AA-A… M…, Lda, em que é requerente BB, foram reclamados os créditos constantes da relação junta aos autos pelo Senhor Administrador da insolvência, em 27 de Maio de 2007.
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Foram deduzidas diversas impugnações e, entre outras, as atinentes aos créditos reclamados por CC-Construções P... & P..., Lda., DD-G...& C... V..., Comércio de Materiais de Construção Civil, Lda, e EE, emergentes de contratos-promessa outorgados entre a insolvente e tais credores reclamantes, tendo por objecto (mediato) diversas fracções autónomas apreendidas para a Massa.
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Foi lavrado despacho saneador, no qual foram julgados reconhecidos os créditos não impugnados e bem assim o crédito reclamado por FF, prosseguindo os autos para verificação dos demais créditos impugnados e pertinente graduação, tendo, a final, sido proferida sentença cuja parte decisória é do seguinte teor:

“Pelo exposto, decide-se:

I. Homologar a lista de credores junta a fls. 3 a 7, em 22 de Maio de 2007, com as seguintes alterações:

a) O crédito reconhecido a EE, é fixado em montante a liquidar em ulterior decisão, e corresponderá a €74.819,68 ou ao valor à data da recusa do contrato pelo Sr. administrador da insolvência da fracção autónoma designada pela letra... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em C..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ...º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., se inferior, é garantido por direito de retenção sobre a fracção autónoma referida, e é sujeito à condição suspensiva da declaração de recusa de cumprimento do contrato-promessa descrito na alínea u) dos factos provados pelo Sr. administrador da insolvência;
b) O crédito reclamado por CC-Construções P... & P..., Lda é julgado não reconhecido;
c) O crédito reconhecido a DD-G...& C... V..., Comércio de Materiais de Construção Civil, Lda., é fixado no montante total de €225.929,81, do qual €174.579,26 é garantido por direito de retenção sobre as fracções designadas pelas letras T e U do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em C..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ....º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., e além da garantia é sujeito à condição suspensiva da declaração de recusa de cumprimento do contrato-promessa descrito na alínea o) dos factos provados pelo Sr. administrador da insolvência;
d) O crédito reconhecido a GG-M... P... P... & Filhos, Lda. é fixado no montante de capital de €52.026,78, acrescido de juros vencidos até 9/01/2004, cifrados em €1.238,91, e vincendos à taxa legal para juros comerciais, nos termos já decididos no despacho saneador.

II. Julgar improcedentes as impugnações deduzidas não contempladas nas alterações à relação de créditos reconhecidos enunciadas em I.

III. Graduar os créditos reconhecidos pela forma seguinte:

1. A pagar com preferência pelo produto dos bens móveis integrantes da
massa insolvente, pela ordem seguinte:
a) Reclamado pelo Ministério Público, no montante de €2.616,99.
b) Reclamado pelo Instituto de Segurança Social, I.P., no montante de €7.235,31;
c) Reclamado por BB, no montante de €38.737,48.

2. A pagar com preferência pelo produto dos bens imóveis integrantes da massa insolvente, pela ordem seguinte:
a) Reclamado por EE, em montante a liquidar em ulterior decisão, limitado ao produto da venda da fracção autónoma designada pela letra M do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em C..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana sob o art. ...º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., e após verificação da condição suspensiva da declaração de recusa de cumprimento do contrato-promessa descrito na alínea u) dos factos provados pelo Sr. administrador da insolvência;
b) Reclamado por DD-G...& C... V..., Comércio de Materiais de Construção Civil, Lda., no montante de €174.579,26 limitado ao produto da venda das fracções designadas pelas letras ... e ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em C..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ....º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., e após verificação da condição suspensiva da declaração de recusa de cumprimento do contrato-promessa descrito na alínea o) dos factos provados pelo Sr. administrador da insolvência;
c) Reclamado por HH-Banco E... S... S.A., no montante de capital de €885.105,37, acrescido de juros vencidos à taxa de 14%, no montante de €60.944,26, num total de €946.049,63, limitado ao produto da venda da fracção autónoma designada pela letra B, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. Eng. A... de O..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ....º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., e do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em C..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ....º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., com limite em três anos nos juros entretanto vencidos e vincendos;
d) Reclamado pelo Instituto de Segurança Social, I.P., no montante de €7.235,31;
e) Reclamado pelo Ministério Público, no montante de €2.616,99.

3. Os restantes créditos constantes da lista homologada, o restante crédito reclamado por DD-G...& C... V..., Comércio de Materiais de Construção Civil, Lda., referido em I. c), e o crédito reconhecido na acção declarativa com processo especial, em apenso sob o n.º 1548/06.9TBEPS -G a serem pagos rateadamente pelo produto da liquidação da massa insolvente.

4. Os juros dos créditos referidos em III. 3. vencidos após a declaração da insolvência.
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Inconformados com o teor da sentença, recorreram os credores CC-Construções P... & P..., Lda e o HH-Banco E... S..., S.A., o primeiro para pôr em crise a sentença no tocante à improcedência da impugnação que deduzira contra a reclamação da sociedade DD-G... e C... V..., Lda e também relativamente à decretada procedência da impugnação dirigida contra o crédito por si reclamado, enquanto o segundo pugna também pela revogação da sentença no que tange ao crédito verificado a favor da mesma sociedade DD-G... e C... V..., Lda e bem assim do crédito reconhecido ao credor EE.
A Relação de Guimarães, através do seu Acórdão de 12-7-10, julgou improcedente a apelação de CC-Construções P... & P..., L.da, e parcialmente procedente a apelação interposta pelo HH-Banco E... S..., S.A., e, em consequência, confirmou a sentença recorrida , salvo no tocante aos créditos dos reclamantes DD-G... & C... V..., L.da e EE, que se consideram verificados pelos montantes reclamados, mas como créditos comuns sobre a insolvência.

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Agora, foram os credores EE e DD-G...& C... V..., Comércio de Materiais de Construção Civil, Lda, que pedem revista, em recursos autónomos, mas com alegações de idêntico teor, em cujas conclusões consideram violados os arts 46, nº1, 47, nº4, al. a), 102, 104 e 106, 149, 150, 164, nºs2 e 3 e 174, nº1, do CIRE e arts 754, 755, nº1 al. f) e 759 do C.C.
Insurgem-se contra a interpretação a contrario do art. 106, nº1, do CIRE, que foi feita no Acórdão impugnado, para considerar os créditos dos recorrentes como comuns.
Defendem que o direito de retenção também tem aplicação em contratos promessa sem eficácia real (como é o caso), devendo ser entendido que tal direito de retenção prevalece sobre o crédito hipotecário do recorrido, Banco Espírito Santo, S.A., pelo que os créditos dos recorrentes devem ser reconhecidos e graduados nos mesmos termos decididos pela sentença da 1ª instância, como créditos garantidos por direito de retenção e preferenciais sobre o crédito hipotecário do Banco recorrido, como tem sido aceite pela doutrina e pela jurisprudência.
Também sustentam que a interpretação a contrario que o Acórdão recorrido fez do art. 106 do CIRE é inconstitucional, por violação do art. 60 da Constituição da República e dos arts 755, nº1, al. f) e 759 do C.C.
Neste âmbito, o recorrente EE acrescenta que o Acórdão recorrido, ao decidir que o seu crédito não goza de direito de retenção e, consequentemente, não será pago preferencialmente sobre os demais credores, faz uma interpretação inconstitucional das normas legais aplicáveis e põe em causa os direitos consagrados constitucionalmente, ou seja, o direito à protecção dos interesses económicos do promitente-comprador, que se traduzem na garantia de que, no caso de insolvência, do promitente-vendedor e desde que haja tradição da coisa, objecto do contrato prometido, lhe estará salvaguardado, com base no direito de retenção, o pagamento preferencial sobre os demais credores, pelo produto da venda da coisa devida.

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O recorrido Banco Espírito Santo, S.A., contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade dos recursos, ou, quando assim se não entenda, pedindo a confirmação do julgado pela Relação.
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Em Acórdão autónomo, este Supremo Tribunal já julgou a questão prévia, decidindo pela admissibilidade e conhecimento do objecto dos recursos.

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Corridos os vistos, cumpre agora decidir o objecto das revistas.

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A Relação considerou provados os factos seguintes :

a) O gerente da insolvente e um representante de II-Banco B... & I..., S.A. apuseram as suas assinaturas no documento junto por cópia a fls. 379 a 382 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, pretendendo fazer dos seus representados as declarações escritas aí constantes; [alínea a) da matéria de facto assente];

b) Por escritura pública de 13 de Fevereiro de 1996, exarada de fls. 33, verso, a 37, verso, do livro de notas n.º ...-B, do 2.º Cartório Notarial de Viana do Castelo, com fotocópia de certidão junta de fls. 383 a 392, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, JJ, em representação de II-Banco B... & I..., S.A., e LL, em representação de AA-A...M..., Lda., declararam nomeadamente que o Banco concede à sociedade em questão um empréstimo no montante de 62.000.000$00 por crédito na conta de depósitos à ordem n.º ...-01 da agência de V... do C..., e o segundo declarou ainda que em nome da sua representada constitui a favor do mesmo Banco hipoteca sobre um prédio urbano, constituído por uma parcela de terreno destinada à construção urbana, que constitui o lote n.º ..., situada na Avenida da Marginal, concelho de Esposende, descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ...; [alínea b) da matéria de facto assente];

c) II-Banco B... & I..., S.A. é titular de uma inscrição de hipoteca voluntária na Conservatória do Registo Predial de Esposende, datada de 29 de Janeiro de 1996, respeitante ao prédio urbano composto de parcela de terreno para construção, designada por Lote n.º ..., com área de 1857 m2, sito na Avenida da M..., no sítio do C... do R..., freguesia e concelho de Esposende, a confrontar a norte com AA-A...M..., Lda. e outro, a sul com arruamento, a nascente com CC-P... e P..., Limitada, e a poente com MM e outros, assim descrito na supra referida Conservatória sob o n.º 00.../..., e omisso na Repartição de Finanças; [alínea c) da matéria de facto assente];

d) Em 7/02/1996, por causa do acordo referido em a) e b), o II-Banco B... & I..., S.A., fez entregar a AA-A...M..., Lda.., por crédito na conta de depósitos à ordem desta última, 62.0000.000$00; (resposta ao quesito 1.º)

e) Por escrito datado de 29 de Setembro de 2004, com cópia junta de fls. 17 a 21, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, Augusto Pires Vaz Meireis, em representação de AA-A...M..., Lda. declarou nomeadamente prometer vender a CC-Construções P... & P..., Lda., pelo preço total de €810.000,00, aí descriminado por fracção, as fracções designadas pelas letras AE, AH, AD, AB, T, U, V, e X do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em Cachada, freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ....º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., e a designada pela letra ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. Eng. A... de O..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o artº ....º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., tendo NN, em representação de CC-Construções P... & P..., Lda., declarado no mesmo acto prometer comprar as mesmas fracções nas condições aí descritas; [alínea d) da matéria de facto assente];

f) No mesmo escrito consta que na data da outorga de tal contrato CC-Construções P... & P..., Lda. entrega a AA-A...M..., Lda. €448.257,01, a título de sinal e princípio de pagamento de que a última dá quitação, e que CC-Construções P... & P..., Lda, fica desde já investida na posse das referidas fracções, podendo realizar nelas o que lhe aprouver, nomeadamente arrendar; [alínea e) da matéria de facto assente];

g) Após o escrito referido em e), um representante de AA-A...M..., Lda. declarou que se recusava a celebrar o contrato prometido; [resposta ao quesito 5.º];

h) Por ocasião do acordo referido em e), CC-Construções P... & P..., Lda pagou ao OO-BIC a quantia de €448.257,01 para distrate da hipoteca que incidia sobre as fracções que tinha adquirido à insolvente em 29/12/2003, não tendo entregado qualquer quantia a título de sinal relativo àquele contrato.

i) Ao aporem as suas assinaturas no escrito referido em e), os representantes, em consonância com o decidido pelas suas representadas, não queriam vender ou comprar ou prometer vender ou comprar as fracções aí referidas, mas apenas subtrair os bens aí mencionados à acção dos credores de AA-A...M..., Lda. (resposta ao quesito 9.º)

j) Tendo os representantes de CC-Construções P... & P..., Lda e AA-A...M..., Lda. acordado previamente proferir as declarações aí descritas contrárias à sua vontade e das suas representadas; (resposta ao quesito 10.º)

k) Em 11 de Abril de 2007 representantes de CC-Construções P... & P..., Lda. entregaram as chaves das fracções referidas em e) ao Sr. Administrador da insolvência; (resposta ao quesito 7º).

l) Por escrito datado de 11 de Fevereiro de 2000, com cópia junta de fls. 34 a 35, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, um representante de AA-A...M..., Lda. declarou nomeadamente prometer permutar com DD-G... & C... V..., L.da, dois apartamentos T2 por materiais de construção a fornecer pela DD-G... & C... para construção do Empreendimento S... da S.., constituído por um bloco de lojas comerciais e apartamentos em construção pela primeira, tendo um representante de DD-G... & C... Vale declarado no mesmo acto prometer permutar os materiais de construção nas condições aí descritas; [alínea f) da matéria de facto assente];

m) No mesmo escrito assinado por ambos os representantes consta que o valor dos apartamentos aí referidos é de 35.000.000$00, e que no final da construção, se o valor total dos materiais fornecidos não atingir o valor dos apartamentos a referida DD-G... & C... entregará à LL a diferença, e no caso contrário, esta pagará àquela o valor que ultrapasse o dos apartamentos; [alínea g) da matéria de facto assente];

n) Na sequência do escrito supra referido, DD-G... & C... V... – Comércio e Materiais de Construção, fez entregar a AA-A...M..., Lda., materiais no valor total de €230.000,00, que foram aplicados na construção do edifício referido no mesmo escrito; [alínea h) da matéria de facto assente];

o) Representantes de AA-A...M..., Lda.. e DD-G... & C... V..., Comércio de Materiais de Construção, Lda., apuseram as suas assinaturas no escrito junto por fotocópia a fls. 36 e 37, datado de 30 de Dezembro de 2004, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que a primeira promete vender à segunda, que por sua vez promete comprar dois apartamentos de tipologia T2, ambos com lugar na garagem e arrecadações, localizados no bloco de lojas comerciais e apartamentos designado “Empreendimento S... da S...”, pelo preço de €174.579,26, que a primeira outorgante recebeu com a realização da permuta descrita em l) e m), fixando-se para celebração da escritura definitiva o dia 31 de Agosto de 2005; [alínea i) da matéria de facto assente];

p) Representantes de AA-A...M..., Lda.. e DD-G... & C... V..., Comércio de Materiais de Construção, Lda., apuseram as suas assinaturas no escrito junto por fotocópia a fls. 38 e 39, datado de 28 de Abril de 2005, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que, em alteração parcial do referido em o), fixava-se para celebração da escritura definitiva o dia 31 de Agosto de 2006; [alínea j) da matéria de facto assente];

q) Actualmente, as duas fracções autónomas referidas em o), incluindo garagens e arrecadações, valem €220.000,00; [alínea k) da matéria de facto assente];

r) À data de 28 de Abril de 2005 AA-A...M..., Lda. fizera já entregar a DD-G... & C... V..., Comércio de Materiais de Construção, Lda. as chaves das fracções designadas pelas letras T e U do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em C..., freguesia e concelho de Esposende, inscrito na matriz urbana da freguesia de Esposende sob o art. ...º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...; (resposta ao quesito 11.º);

s) Desde o ano de 2002, DD-G... & C...V..., Comércio de Materiais de Construção, Lda. passou a dispor e utilizar tais fracções e respectivas garagens e arrecadações, fazendo zelar pela sua conservação e mobilando-as, nomeadamente instalando balcões de granito nas casas de banho, colocando cadeiras, mesas e carpete nas salas, e cama e demais mobiliário e roupa de cama em um dos quartos de cada uma das fracções, por forma a estas serem frequentadas pelos respectivos sócios gerentes e ainda usadas em reuniões, sem oposição de ninguém e com o conhecimento e consentimento de AA-A...M..., Lda., até poucos dias antes da data da assembleia de credores, quando as fechaduras das fracções em questão foram trocadas por pessoa que não foi possível identificar, ficando os sócios gerentes de DD-G... & C... V..., Comércio de Materiais de Construção, Lda. impedidos de aí aceder, e as novas chaves à disposição de CC-P... & P..., Lda., sendo posteriormente entregues ao Sr. administrador de insolvência pelos seus sócios gerentes; (resposta ao quesito 12.º)

t) Após o escrito referido em p) e após decurso do prazo aí referido, DD-G... & C... V... , Comércio de Materiais de Construção, Lda. dirigiu várias solicitações a AA-A...M..., Lda., no sentido de serem outorgadas as escrituras definitivas e serem levantados os ónus que sobre as fracções impendiam, ao que este foi respondendo com dificuldades em distratar as hipotecas que oneravam as fracções e protelando a sua celebração; (resposta ao quesito 13.º)

u) Augusto Meireis, em representação de AA-A...M..., Lda.. e EE, apuseram as suas assinaturas em escrito datado de 10 de Fevereiro de 2003, do qual consta nomeadamente que a primeira promete vender ao segundo, que por sua vez promete comprar a fracção ..., correspondente à 5.ª fracção a contar do norte para sul, com o n.º ..., situada no ...º andar, apartamento tipo T2, do prédio constituído em propriedade horizontal denominado “Empreendimento S... da S...”, sito Estrada Nacional n.º ..., que inclui lugar de garagem e arrecadação na cave, pelo preço de €74.819,68; (resposta ao quesito 17.º);

v) EE pagou a AA-A...M..., Lda. a totalidade do montante mencionado em u); (resposta ao quesito 18.º);

w) Após as assinaturas referidas em u), AA-A...M..., Lda. fez entregar a EE as chaves da referida fracção, e este passou a utilizá-la, mobilou totalmente o apartamento e equipou a cozinha com electrodomésticos, passou a habitá-la aos fins de semana e nas férias, aí dormindo, fazendo refeições e recebendo familiares e amigos, a guardar haveres seus na arrecadação, a proceder à sua limpeza e manutenção, tendo ainda solicitado junto da Câmara Municipal a instalação de água; (resposta ao quesito 19.º);

x) Após as assinaturas referidas em u), EE insistiu diversas vezes junto de AA-A...M..., Lda.. pela celebração da correspondente escritura pública, que foi sendo protelada pela última, com variadas desculpas; (resposta ao quesito 20.º).

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Vejamos agora o mérito dos recursos:

A sentença da 1ª instância julgou que os contratos promessa celebrados pelos recorrentes DD-G... & C... V..., L.da, e EE, como promitentes compradores e com tradição da coisa, se encontram garantidos por direito de retenção.
Todavia, no Acórdão recorrido, foi entendido que os contratos promessa em causa não são dotados de eficácia real, pelo que não assiste aos indicados promitentes compradores, ora recorrentes, o direito de retenção sobre as questionadas fracções, objecto dos contratos prometidos, o que deu origem a que os créditos dos mesmos recorrentes fossem considerados como tendo natureza comum.
Assim, a razão que levou ao reconhecimento do crédito dos recorrentes como créditos comuns sobre a insolvência não foi a não consideração da constitucionalidade do art. 755, nº1, al. f) do C.C. ou da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca para efeitos da graduação dos respectivos créditos.
O motivo que levou à verificação e graduação dos créditos dos recorrentes sobre a insolvente como crédito comum foi antes o não reconhecimento do direito de retenção sobre as fracções objecto dos contratos promessa de compra e venda, face à declaração da insolvência e à circunstância dos referidos contratos não serem dotados de eficácia real.

Assim, a única questão a decidir, em cada um dos recursos, consiste em saber se os questionados contratos promessa, com tradição da coisa, gozam de direito de retenção, apesar de terem apenas eficácia obrigacional.

De acordo com o art. 755, nº1, al. f), do C.P.C., o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.
O direito de retenção é um direito real de garantia que consiste na faculdade de uma pessoa reter ou não restituir uma coisa alheia que possui ou detém até ser paga do que lhe é devido por causa dessa coisa, pelo respectivo proprietário.
Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor - art. 759, nº1, do C.C.
O direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente – art. 759, nº2, do C.C.
No âmbito do processo de insolvência, o direito de retenção não impede a apreensão da coisa para a massa insolvente.
No caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente comprador - art. 106, nº1, do CIRE ( Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
No caso concreto, os questionados contratos promessa não têm eficácia real, pelo que lhes é aplicável a doutrina do art. 102 do CIRE, onde se dispõe o seguinte:
“ 1- Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração da insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
2 – A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento”.
No domínio do anterior Código Especial de Recuperação de Empresas e Falência discutia-se o problema de saber se, em caso de falência do promitente vendedor, o promitente adquirente, com tradição da coisa, era titular de direito de retenção.
Alguns autores negavam a existência de direito de retenção nos casos de promessa com eficácia obrigacional e tradição da coisa.
Isto por considerar o crédito como comum ( Rosário Epifânio, Os Efeitos Substantivos da Falência, Porto, 2000, pág. 292), ou por deixar de se poder qualificar o direito à restituição do sinal em dobro como “crédito resultante do não cumprimento imputável à contraparte”, que é requisito de aplicabilidade do art. 755, nº1, al. f), do C.C. ( Catarina Serra, Efeitos da Declaração de Falência sobre o Falido, 1998, pág. 304).
Outros, porém, admitiam-no.
Assim, se decidiu no Acórdão do S.T.J. de 28-5-02 (acessível em www dgsi.pt), que, embora afirme que a “impossibilidade de cumprimento não é imputável à promitente alienante, mas à declaração da falência, defende a subsistência do direito de retenção em favor do promitente comprador “.
Em face do actual regime do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, a questão continua controvertida, havendo doutrina que se inclina no sentido da admissibilidade do direito de retenção, como nos dá conta Gravato de Morais, no seu artigo intitulado Promessa Obrigacional de Compra e Venda com Tradição da Coisa e Insolvência do Promitente Vendedor (Cadernos de Direito Privado, nº 29, pág. 9 e segs).
Tal como o referido autor Gravato de Morais, também propendemos para a admissibilidade do direito de retenção na promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente vendedor, pelas razões alinhadas nesse artigo, que aqui nos dispensamos de repetir e para que se remete (Cadernos de Direito Privado, nº 29, pág. 10 e segs).
Sabemos que, por força do art. 755, nº1, al. f) do C.C., o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442 do C.C.
Os pressupostos desse direito de retenção são os seguintes:
- existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real;
- a entrega da coisa objecto do contrato promessa;
- a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato promessa.
Não sofre dúvida que os dois primeiros pressupostos se encontram preenchidos.
Quanto ao último requisito, tudo está em saber se o incumprimento é imputável à insolvente.
A jurisprudência pronunciou-se já, por várias vezes, sobre esta questão, tendo-se manifestado, nalgumas decisões, no sentido da imputabilidade reflexa.
No Acórdão do S.T.J. de 19-9-06 (acessível em www. dgsi.pt), sustenta-se que “essa extinção do contrato é, sem qualquer dívida, imputável ao falido que se colocou na situação de não poder satisfazer pontualmente as suas obrigações.
Mas ainda que assim se não entendesse, sempre a impossibilidade de cumprir procederia de sua culpa, ex vi do disposto no art. 799, nº1, do Código Civil”.
A ideia de imputabilidade deve ser entendida, em sede de insolvência, no sentido de “ter dado causa “, “ter motivado”.
A tudo isto acresce, no caso concreto, que a recusa de cumprimento dos contratos a que se refere o citado art. 102, nº1, do CIRE não exige declaração expressa, nem forma especial, aplicando-se-lhe os princípios dos arts. 217 e 219 do C.C.
Por isso, é pacífico o entendimento de que a inclusão pelo Administrador da insolvência dos créditos dos promitentes compradores, ora recorrentes, no elenco dos créditos reconhecidos, sem o subordinar a qualquer condição, corresponde à declaração de recusa de cumprimento dos invocados contratos promessa, como foi decidido pela Relação.
Assim, face ao teor da relação de fls 3 a 7 do apenso da reclamação de créditos, está processualmente adquirida a recusa do Sr. Administrador da insolvência e o incumprimento definitivo dos contratos pela insolvente.
Em face do exposto, é de concluir que os contratos promessa, quer com eficácia real, quer com eficácia obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, conferem ao promitente comprador direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato prometido, nos termos do art. 755, nº1, al. f) do C.C.
Mas no caso do direito de retenção, o direito de insolvência não altera o regime civilista resultante do art. 759 do C.C., cujo preceito já tem sido submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, tendo este sempre decidido pela sua constitucionalidade.
A única diferença é que no caso de insolvência do promitente vendedor e do contrato promessa ter eficácia real, não pode ser recusado o seu cumprimento, nos termos do art. 106, nº1, do CIRE.
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Termos em que concedendo as revistas, revogam o Acórdão recorrido, na parte impugnada, ficando a prevalecer o decidido na sentença da 1ª instância, quanto à graduação dos créditos reconhecidos dos ora recorrentes DD-G... & C... V..., Lda, e EE na posição indicada em III, nº2, al. a) e b) da parte decisória da mesma sentença, garantidos por direito de retenção.
Custas de cada um dos recursos pelo recorrido HH-BES.


Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2011.


Azevedo Ramos (Relator)

Silva Salazar

Nuno Cameira