Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8115/21.5T9LSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PENA DE PRISÃO
INTERNAMENTO DE IMPUTÁVEIS PORTADORES DE ANOMALIA PSÍQUICA
ANOMALIA PSÍQUICA POSTERIOR
PERIGOSIDADE CRIMINAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. O art. 106.º, n.º 1, do CP determina que se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime, determinante da incapacidade de compreensão da pena, não determinar simultaneamente a perigosidade do agente, a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão.

II. Deve por isso ser determinada a suspensão da prisão aplicada a condenado por crime de abuso sexual de criança quando, em data posterior aos factos, sofreu um AVC, com agravamento das funções cognitivas, encontrando-se acamado e totalmente dependente de terceiros, não se mostrando viável fundamentar qualquer fundado receio de recidiva criminal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 8115/21.5T9LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo ... Criminal – Juiz 5, foi proferido acórdão a condenar o arguido AA como autor de um crime de abuso sexual de criança do art. 171.º, n.º 1, do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; como autor de um crime de abuso sexual de criança, do artigo 171.º, n.º 2, do CP, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir, pelo tempo correspondente à duração da pena, em regime de internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, nos termos previstos no art. 105.º, n.º 1, do Código Penal.

Foi o arguido ainda condenado no pagamento de indemnização à vítima BB, no valor de € 10.000 (dez mil euros), acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão, e até integral pagamento.

Inconformado em parte com o decidido, interpôs o Ministério Público recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1.ª Norma jurídica violada: art. 106.º, n.º 1, do Cód. Penal.

2.ª Actualmente, o arguido, que praticou 2 crimes gravíssimos e hediondos sobre menor deficiente, completou já 82 anos de idade, apresenta anomalia psíquica, com agravamento das funções cognitivas, e encontra-se acamado e totalmente dependente de terceiros, mais apresentando um quadro de alucinações, com comprometimento da memória.

3.ª O Tribunal a quo recorreu à “perigosidade (…) que ressalta da prática dos crimes por que vai condenado” para expressamente afastar a aplicabilidade do estatuído no art. 106.º, n.º 1, do Cód. Penal.

4.ª Ora, o juízo de perigosidade não pode ter como pressuposto único o passado anterior à anomalia psíquica, mas também, e sobretudo, o presente, tendo de haver um nexo de causalidade entre a anomalia psíquica superveniente e a perigosidade (art. 106.º, n.º 1, do Cód. Penal), sendo a perigosidade um fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (art. 91.º, n.º 1, do Cód. Penal).

5.ª A total falta de autonomia, incluindo para sair da cama, não sustenta qualquer fundado receio de recidiva criminal.

6.ª Acresce que o embotamento mnésico e o quadro alucinatório o impedem de alcançar uma representação do seu passado criminal e da natureza da pena.

7.ª Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente, pois, no caso, o Direito que urge dizer é a suspensão da execução da pena, a que alude o art. 106.º, n.º 1, do Cód. Penal.”

O arguido interpôs igualmente recurso, pelos mesmos fundamentos do recurso do Ministério Público, o qual não foi admitido por intempestividade.

Não houve resposta ao recurso.

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto acompanhou o recurso, pronunciando-se no sentido da total procedência do recurso.

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor:

“FACTOS PROVADOS:

1. BB nasceu a ........2009, e é filha de CC e de DD.

2. BB, desde que nasceu, reside com a progenitora, com o tio EE e com a sua avó materna, FF, na habitação sita na Rua ..., lote D, 3.º- C, ... ....

3. BB sofre de distrofia muscular desde os seis meses de idade e desde os nove anos que se movimenta com auxílio de cadeira de rodas, encontrando-se dependente de terceiros.

4. O arguido conhecia a vítima, pelo menos, desde o ano de 2013, porquanto a mesma é filha do companheiro da sua filha GG e amiga da sua neta HH.

5. Desde 2009 até, pelo menos, meados de 2020, BB frequentava e pernoitava, em inúmeras ocasiões, na residência de II, a qual se situa na mesma rua (prédio ao lado) da residência do arguido.

6. A residência do arguido é composta por dois andares, situando-se a maioria os quartos no piso inferior.

7. BB era amiga da neta do arguido, HH, motivo pelo qual, desde, pelo menos o ano de 2013, que frequentava, em inúmeras ocasiões, a residência do arguido, local onde brincava com aquela.

8. Em data e hora não concretamente apuradas, mas entre os anos de 2015 e 2019, quando a vítima tinha, entre os seis anos e os nove anos de idade, deslocou-se à habitação do arguido para ir brincar com a sua amiga HH.

9. Nessa ocasião, a HH não se encontrava na habitação, tendo o arguido dito a BB para entrar e aguardar que a HH e a mãe deviam estar a chegar a casa.

10. Já no interior da habitação, o arguido disse a BB para o acompanhar ao piso inferior da habitação (cave), seguindo apeados, pois, nessa altura, BB ainda não precisava da cadeira de rodas para se locomover.

11. Nesse momento, aproveitando-se do facto de se encontrar sozinho com BB, num dos quartos do piso inferior da habitação, o arguido sentou-se numa cadeira e forçou a vítima, pegando-lhe pela cintura, a sentar-se ao seu colo, roçando o seu corpo no corpo da vítima.

12. Instantes após o sucedido, o arguido sentou BB na cadeira, desapertou as calças que trazia vestidas e, tirou o pénis para fora, o qual estava ereto.

13. Depois, o arguido colocou o pénis ereto no interior da boca de BB, fazendo movimentos para a frente e para trás (em vai e vem).

14. Instantes depois, entraram na habitação a neta do arguido e a sua mulher. Por esse motivo, o arguido terminou com o ato sexual que levava a cabo.

15. Noutra ocasião, em data e hora não concretamente apuradas, mas entre os anos de 2015 e 2019, quando a vítima tinha, entre os seis anos e os nove anos de idade, o arguido encontrava-se sentado no sofá, juntamente com BB, a sua neta HH, a sua filha GG e a sua esposa, JJ, quando colocou uma almofada por cima das pernas e, discretamente, sem ser visto, puxou a mão de BB para baixo da almofada.

16. Após, o arguido colocou a sua mão sobre a mão de BB, agarrando-a e, fazendo uso da força, efetuava movimentos vai e vem (para cima e para baixo) no seu pénis.

17. Com as condutas acima descritas, o arguido agiu com o propósito de satisfazer os seus desejos libidinosos e com vontade de dominar a liberdade de autodeterminação sexual de BB, bem sabendo que agia completamente contra a vontade da menor BB e que colocava em crise os sentimentos de pudor e vergonha da mesma, além do sentimento de decência inato à generalidade das pessoas.

18. Bem sabia o arguido que sua a atuação era idónea para produzir dano no desenvolvimento psicológico da menor BB.

19. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, tinha consciência de que, à data dos factos, BB era menor de idade, tendo menos de catorze anos e, apesar disso, não se coibiu de praticar os atos supra descritos, bem sabendo que esta em razão da sua idade, ainda não possuía a capacidade e discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente e que com a sua conduta molestava a integridade psicológica e emocional daquela, prejudicando gravemente o seu desenvolvimento sexual.

20. Ao agir como acima descrito, o arguido, em cada uma das suas descritas condutas, procedeu de forma deliberada, livre e consciente, praticando atos de teor sexual com menor de catorze anos, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, o que conseguiu.

21. Sabia o arguido, em cada uma das suas descritas condutas, que os factos que praticou, com e sobre a menor BB, eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta e que tinham reflexos na esfera sexual da personalidade da mesma;

22. O que fez sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal e criminalmente punida.

Mais resultou provado que:

23. O arguido é natural de ..., tendo iniciado o seu percurso laboral aos 12 anos de idade, após a conclusão da 4.ª classe; posteriormente concluiu o 9.º ano e frequentou formação para ..., tendo desempenhado as funções inerentes; de seguida, trabalhou na “C......”, em ...;

24. Chegou a Portugal em 1993 com o filho, para tratamento, e posteriormente a família juntou-se ao agregado; neste país trabalhou como administrativo no Cartório da ..., tendo-se reformado em 2015;

25. O arguido vive com a mulher, igualmente reformada, e com a sogra, de 97 anos de idade, em apartamento camarário;

26. O agregado subsiste das pensões de reforma do arguido e do cônjuge, nos valores de 442,85 euros, e de 340,16 euros, respectivamente, bem como de cerca de 300 mensais e que esta última aufere enquanto empregada de limpeza numa igreja;

27. No plano da saúde, o arguido, de 82 anos de idade, apresenta patologias de diversa ordem, nomeadamente, diabetes tipo 2, demência vascular, displipidémia, hipertrofia prostática, anemia, doença cardiovascular;

28. Sofreu um AVC em Janeiro de 2020, com agravamento das funções cognitivas, e encontra-se acamado e totalmente dependente de terceiros;

29. Essa situação determinou a emissão de atestado multiuso, em 26-04-2022, tendo-lhe sido fixada uma incapacidade de 86 %;

30. Recentemente apresentou um quadro de alucinações, com comprometimento da memória, que originou pedido de exame específico, em 03-03-2023, pelo Serviço de Neuropsicologia do Hospital de ..., por suspeita de doença de Parkinson;

31. É seguido nos Hospitais de ..., ..., ...e C.... ......;

32. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

(….)

Da execução da pena de prisão em regime de internamente em estabelecimento destinado a inimputáveis:

Resultou da factualidade provada que as funções cognitivas e a memória do arguido, actualmente, se encontram comprometidas, tendo apresentado recentemente um quadro de alucinações, e que está acamado e totalmente dependente de terceiros. Tal situação determinou que lhe fosse concedido um atestado multiuso, com uma incapacidade fixada em 86 %.

Ora, a condição de saúde do arguido, reveladora de anomalia psíquica que lhe sobreveio depois da prática dos crimes por que vai condenado, pelas específicas exigências de tratamento que se impõem, dado que o mesmo se encontra acamado e totalmente dependente de terceiros, é incompatível com a execução da pena em estabelecimento prisional comum.

Nos termos do disposto no art. 105º, n º1, do Código Penal, “Se uma anomalia psíquica, com os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 91.º ou no artigo 104.º, sobrevier ao agente depois da prática do crime, o tribunal ordena o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena”.

Assim, impondo a condição de saúde do arguido, mormente a anomalia psíquica de que actualmente padece, o acompanhamento médico adequado, e sendo este incompatível com o cumprimento da pena em estabelecimento comum, ordena-se o internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, isto é, pelo período de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, considerando que a perigosidade inerente à sua personalidade, que ressalta da prática dos crimes por que vai condenado, impede que tenha aplicação ao caso a suspensão do internamento a que alude o nº 1 do art. 106º do mesmo diploma.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar circunscreve-se à (não) suspensão da execução da pena, nos termos do art. 106.º, n.º 1, do CP.

Como logo enuncia o recorrente, o Ministério Público “adere, quase integralmente, ao teor do Acórdão, no que se refere à factualidade e sua fundamentação, à subsunção dos factos ao tipo de ilícito e à determinação do quantum da pena”, estando a sua “desarmonia única” circunscrita à “não suspensão da execução da pena, nos termos do art. 106.º, n.º 1, do CP”.

Assim, não se detectando qualquer vício ou nulidade do acórdão de que cumprisse conhecer oficiosamente, a decisão sobre a matéria de facto é de considerar definitivamente estabilizada, bem como todo o processo decisório em matéria de direito que conduziu à pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Até aqui, nada há a censurar no acórdão e nada mais cumpre em toda essa parte sindicar.

Assim, por opção do recorrente, a análise em recurso circunscreve-se ao momento final do processo decisório, que respeita à suspensão da execução da prisão. Trata-se da medida prevista no art. 106.º, nº 1, norma integrada no Capítulo VII do CP, que trata do internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica.

O capítulo desdobra-se (sobretudo) em três normas fundamentais: o art. 104.º, que trata da “anomalia psíquica anterior” (anomalia já existente ao tempo do crime); o art. 105.º, que trata da “anomalia psíquica posterior” (anomalia posterior ao tempo do crime), e o art. 106.º, que trata da “anomalia psíquica posterior sem perigosidade”.

Resulta do acórdão que o tribunal de julgamento fez aplicação do art. 105.º, afastando o art. 106.º do CP.

Assim, o arguido foi condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão “a cumprir, pelo tempo correspondente à duração da pena, em regime de internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, nos termos previstos no art. 105.º, n.º 1, do Código Penal”. E justificou-se (a efectividade d)o internamento do seguinte modo: “impondo a condição de saúde do arguido, mormente a anomalia psíquica de que actualmente padece, o acompanhamento médico adequado, e sendo este incompatível com o cumprimento da pena em estabelecimento comum, ordena-se o internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, isto é, pelo período de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, considerando que a perigosidade inerente à sua personalidade, que ressalta da prática dos crimes por que vai condenado, impede que tenha aplicação ao caso a suspensão do internamento a que alude o nº 1 do art. 106º do mesmo diploma.”

E é neste segmento final que reside a controvérsia – “considerando que a perigosidade inerente à sua personalidade, que ressalta da prática dos crimes por que vai condenado, impede que tenha aplicação ao caso a suspensão do internamento a que alude o nº 1 do art. 106º do mesmo diploma” -, é desta conclusão que discorda o Ministério Público. E com razão, adianta-se.

Argumenta, então, o recorrente que o arguido completou já 82 anos de idade, que apresenta anomalia psíquica com agravamento das funções cognitivas, que se encontra acamado e totalmente dependente de terceiros, que apresenta um quadro de alucinações com comprometimento da memória, que posteriormente aos crimes passou também a padecer de hipertrofia prostática.”

Censura então o recorrente que o Tribunal tenha recorrido à perigosidade que ressalta da prática dos crimes para afastar a aplicabilidade do art. 106.º, n.º 1, do CP, justificando desadequadamente que “o juízo de perigosidade não poder ter como pressuposto único o passado anterior à anomalia psíquica, mas também, e sobretudo, o presente, tendo de haver um nexo de causalidade entre a anomalia psíquica superveniente e a perigosidade (art. 106.º, n.º 1, do Cód. Penal), sendo a perigosidade um fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (art. 91.º, n.º 1, do Cód. Penal)”.

Para concluir que “a total falta de autonomia, incluindo para sair da cama, não sustenta qualquer fundado receio de recidiva criminal”, que o “embotamento mnésico e o quadro alucinatório impedem o arguido de alcançar uma representação do seu passado criminal e da natureza da pena” e que se impõe a suspensão da execução da pena prevista no art. 106.º, n.º 1, do CP.

Dos factos provados do acórdão resulta efectivamente que:

“27. No plano da saúde, o arguido, de 82 anos de idade, apresenta patologias de diversa ordem, nomeadamente, diabetes tipo 2, demência vascular, displipidémia, hipertrofia prostática, anemia, doença cardiovascular;

28. Sofreu um AVC em Janeiro de 2020, com agravamento das funções cognitivas, e encontra-se acamado e totalmente dependente de terceiros;

29. Essa situação determinou a emissão de atestado multiuso, em 26-04-2022, tendo-lhe sido fixada uma incapacidade de 86 %;

30. Recentemente apresentou um quadro de alucinações, com comprometimento da memória, que originou pedido de exame específico, em 03-03-2023, pelo Serviço de Neuropsicologia do Hospital de ..., por suspeita de doença de Parkinson.”

Da globalidade da matéria de facto provada mais resulta que estes factos pessoais, descritos nos pontos ora retranscritos, ocorreram, todos eles, em data posterior à dos factos delituosos.

E tem razão o recorrente quando na motivação desenvolve que “a aplicação do internamento, a que alude o art. 105.º, n.º 1, CP, ou a suspensão da execução, como estatuído no art. 106.º, n.º 1, CP, são uma consequência de se conseguir estabelecer, ou não, uma probabilidade de reincidência criminal por causa da anomalia psíquica póstera ao crime”. E que, assim, “comprovando-se anomalia psíquica póstera, o condenado: - art. 105.º, 1 – será internado, caso a anomalia psíquica gere um “fundado receio” ou probabilidade de novo incurso criminal – é isto a perigosidade; - art. 106.º, 1 – beneficiará de suspensão da execução da pena caso a anomalia psíquica não esteja associada a uma concreta perigosidade.”

Ora, dos factos provados resulta realmente a total falta de autonomia do condenado, incluindo para sair da cama, não se mostrando viável fundamentar um fundado receio de recidiva criminal, juízo de prognose que, em concreto, carece de base factual.

Como ensina Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Ed. reimpressão, 2005, pp 606-612), acompanhando Maria João Antunes (O Internamento de Imputáveis, Coimbra, 1990, pp 100s), “o internamento de imputáveis em estabelecimentos de inimputáveis e a suspensão da execução da pena previstos nos arts 104.º e 105.º do CP” (actualmente, 104.º a 106.º do CP), “ traduzem-se na imposição de medidas que podem crismar-se, em certo sentido, como medidas de diversão na execução da pena”.

Quanto à natureza do internamente e da suspensão, Figueiredo Dias, acompanhando sempre Maria João Antunes, considera tratar-se de “um instituto de natureza especial que constitui uma medida de diversão da execução da pena sem que, todavia, ele perca por isso natureza penal”. E acentua que “o regime previsto na lei para o internamento e para a suspensão da execução da pena traduz a introdução do princípio da necessidade da pena na fase da execução: a execução efectiva da pena privativa da liberdade ocorre somente quando tal se revelar necessário do ponto de vista das finalidades preventivas assinaladas à punição”.

É então na coerência deste regime que o art. 106.º, n.º 1, do CP determina que se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime, determinante da incapacidade de compreensão da pena, não determinar simultaneamente a perigosidade do agente, “a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão”.

Ora esse juízo de perigosidade, no presente caso, carece de um mínimo de base factual que o sustente.

Do exposto resulta que o acórdão é de revogar na parte em que procedeu à aplicação do art. 105.º, n.º 1, do CP, em detrimento da aplicação do art. 106.º, n.º 1, do CP, norma cuja convocação impunham as circunstâncias do caso, necessariamente retiradas dos factos provados.

Assim, revogando-se o acórdão nesta parte, determina-se a suspensão da pena única de prisão aplicada ao arguido, até cessar o estado que fundamentou a suspensão, tudo nos limites do tempo de duração da pena (art. 106.º, n.ºs 1 e 4, do CP). Deve ainda o arguido ser colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social, nos termos dos arts. 106.º, n. 2, e 98.º, n.º 4, do CP, o que igualmente se determina.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso, suspendendo-se a pena aplicada de 6 anos e 6 meses de prisão, até cessar o estado que fundamentou a suspensão, com o limite imposto pelo art. 106.º, n.º 4 do CP, e com a vigilância tutelar dos serviços de reinserção social (art. 106.º, n. 2, e 98.º, n.º 4, do CP), mantendo-se no mais o acórdão.

Sem custas.

Lisboa, 21.02.2024

Ana Barata Brito, relatora

Pedro Branquinho Dias, adjunto

Teresa de Almeida, adjunta