Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
| Descritores: | ACÇÃO EXECUTIVA PENHORA DE DIREITOS TÍTULO EXECUTIVO FORÇA EXECUTIVA RECONHECIMENTO DA DÍVIDA NOTIFICAÇÃO PESSOAL ASSENTO GARANTIA BANCÁRIA INCONSTITUCIONALIDADE | ||
| Nº do Documento: | SJ200710040025572 | ||
| Data do Acordão: | 10/04/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário : | 1. Efectuada – através da notificação ao devedor de que o crédito fica à ordem do tribunal da execução – a penhora de um crédito do executado sobre um terceiro, recai sobre este o ónus de declaração a que alude o n.º 2 do art. 856º do CPC. 2. A omissão da declaração tem o mesmo efeito da declaração de reconhecimento da dívida, constituindo, conjugadamente com o despacho que ordenou a penhora, título executivo contra o terceiro devedor. 3. Esta equiparação da falta de declaração ao reconhecimento expresso da existência da dívida, operada pelo n.º 3 do citado art. 856º, não encaixa bem com a qualidade de terceiro do devedor do executado, que é apenas chamado a colaborar numa execução a que é estranho. 4. O n.º 2 do art. 856º (na redacção aqui aplicável, que é a anterior ao Dec-lei 38/2003, de 8 de Março) não estabelece prazo para o cumprimento, pelo devedor, do ónus de declarar se o direito existe, quando tal declaração não tem lugar no acto da notificação. 5. E, não sendo este parte na execução, não lhe é aplicável, nem directamente nem por analogia, o prazo de dez dias fixado no art. 153º do CPC. 6. Ao contrário do que hoje sucede (face à nova redacção daquele n.º 2), o terceiro devedor não estava sujeito a um prazo legal, mas apenas a prazo judicial – ao prazo que, no caso, fosse fixado pelo juiz – não sendo de acolher a doutrina do Assento do STJ 2/94, de 25.11.93. 7. A notificação a que se alude em 1. é uma verdadeira notificação pessoal, devendo ser feita de acordo com as regras da citação pessoal, observando, designadamente, as formalidades gerais do art. 235º do CPC, adaptadas em função das especificidades próprias da natureza do acto a notificar. 8. Não tendo sido fixado, no despacho judicial, o prazo para a declaração do terceiro devedor, a notificação a este feita, por ofício elaborado e assinado por funcionário judicial, fixando aquele prazo em dez dias, é, nesta parte, um acto ineficaz e irrelevante, não decorrendo para o notificado, por via do esgotamento de tal prazo – estabelecido por quem, para tal, não tinha poderes – quaisquer efeitos preclusivos da possibilidade de fazer a declaração. 9. A garantia bancária prestada, a favor de uma Câmara Municipal, por uma sociedade adjudicatária de empreitada de obra pública, e destinada a assegurar o pagamento do depósito obrigatório, previsto no Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, no caso de ocorrer incumprimento contratual da empresa adjudicatária, não traduz qualquer crédito desta sobre o Banco garante, sendo, por isso, ilegal, por afrontar o disposto no art. 821º/1 do CPC, a penhora da garantia em execução movida contra a referida sociedade. 10. Não viola o direito de acesso à justiça, consagrado no art. 20º da Constituição, a norma do art. 856º/3 do CPC, já que a cominação nela prevista pressupõe que ao devedor foi previamente dada a possibilidade de defender o seu direito, contestando a existência do crédito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: AA S.A. Sucursal intentou, em 06.07.1999, no Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim, contra o BB , S.A., por apenso à execução ordinária que havia instaurado contra a CC, S.A, a presente execução com processo sumário, para pagamento de quantia certa. Depois de ordenada a penhora, o processo foi remetido à conta, para posterior apensação ao processo, pendente no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, em que foi decretada a falência da aludida CC, S.A. Porém, na sequência de requerimento da exequente, o Ex.mo Juiz proferiu o despacho de fls. 33, no qual considerou que, estando em causa um processo autónomo, relativamente à sociedade falida, deveria ele prosseguir os seus termos, não se impondo a sua apensação ao aludido processo de falência. E, do mesmo passo, renovou o despacho em que havia ordenado a penhora. Deste despacho agravou o Banco executado, tendo o recurso sido admitido, com subida diferida. Prosseguindo o processo os seus termos, e após junção aos autos de certidão do processo executivo inicialmente referido (1)., veio a ser proferido novo despacho, a fls. 615/616, em que o Ex.mo Juiz, contrariando o sentido daquele despacho de fls. 33, decidiu rejeitar oficiosamente a presente execução, por falta de título executivo. Do despacho que assim decidiu agravou a exequente. E este recurso foi admitido, determinando-se a sua subida imediata, nos próprios autos. Conhecendo dos dois agravos, a Relação do Porto negou provimento ao primeiro e concedeu-o ao segundo, revogando o despacho de fls. 615/616 e determinando a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento da execução. Inconformado com o assim decidido, o executado interpôs novo recurso de agravo, agora para este Supremo Tribunal – recurso que, como se deixou referido no despacho liminar, se tem como admissível (2) E, a culminar as extensas alegações que apresentou, formulou um alargado leque de conclusões, nas quais suscita duas questões: - a da falta de título executivo que possa servir de suporte e fundamento à execução; - a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação que, do disposto nos arts. 856º/3 e 860º/3, ambos do CPC, fez o acórdão recorrido – inconstitucionalidade resultante da violação do disposto no art. 20º da Constituição, que consagra o direito de acesso à justiça. Em contra-alegações, a exequente pugna pelo não provimento do agravo e consequente manutenção do acórdão agravado. Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir. 2 Os factos que relevam para a decisão são os seguintes: 1) Em 17.02.1998 a ora agravada instaurou execução para pagamento de quantia certa contra a “CC, S.A.”, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim, sob o n.º 51/1998; 2) Na referida execução foi, além do mais, ordenada a penhora de várias garantias bancárias, uma das quais (com o n.º ------------, de 04.09.1996), no valor de 9.262.982$00, que o ora agravante havia prestado, a pedido daquela sociedade, a favor da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, e referente à empreitada “Arranjo Urbanístico entre a Fortaleza e o Largo Dr. José Pontes”; 3) Essa garantia assegurava o pagamento do depósito obrigatório de 5%, previsto no Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, no caso de vir a ocorrer um incumprimento contratual por parte da “CC, S.A.”, adjudicatária daquela empreitada, relativamente à adjudicante Câmara Municipal; 4) O despacho judicial que ordenou a penhora, proferido em 03.03.99, é do teor seguinte: “Proceda-se à penhora requerida a fls. 20, conforme o disposto no art. 856º, notificando as devedoras indicadas a fls. 34, todas com agências na Póvoa de Varzim, com referência aos números das garantias aí indicadas”; 5) O ora agravante foi notificado, por carta registada com A.R., de 08.03.1999, de que, naquela execução fora, por despacho de 03.03.99, ordenada a penhora sobre a aludida garantia bancária, em todo o seu montante (9.262.982$00), e de que a garantia ficava penhorada e à ordem do Juiz de Direito do 1º Juízo, 1ª Secção do Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim, sendo ainda notificado de que ficava fiel depositário das referidas importâncias, e de que tinha o prazo de dez dias para declarar nos autos, por simples requerimento, “se existe o crédito, qual o seu montante, quais as garantias que o acompanham, e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução, entendendo-se que na falta de declaração a notificada reconhece a existência da obrigação”; e ainda de que, “faltando conscientemente à verdade, incorre a notificanda na responsabilidade de litigante de má fé, tudo conforme o disposto no n.º 2, 3 e 4 do art. 856º do C. P. Civil”; 6) DD – Empresa de ..............., A.C.E. enviou ofício, datado de 30.03.99, e que deu entrada naquele Tribunal em 06.04.99, de resposta à aludida notificação, do teor seguinte: “... informamos que não procedemos ao solicitado, em virtude de não constar nos ficheiros da instituição de crédito nossa agrupada BB, S.A. quaisquer direitos de crédito em nome da(s) entidade(s) mencionada(s) no vosso ofício.” 7) O ora agravante remeteu igualmente ao processo referido um ofício, que deu entrada no Tribunal em 06.04.99, onde refere: Foi o BB notificado (...) de ter sido ordenada a penhora sobre a garantia bancária n.º ................, em que é beneficiária a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. A aludida garantia bancária foi prestada pelo Banco para garantir as obrigações que a Soc. de CC, SA se mostrasse devedora perante aquela autarquia, até ao montante nela fixado, e em relação ao objecto da garantia. Não existem, pois, em relação à referida garantia, quaisquer créditos da executada CC, SA que possam ser objecto de penhora. Com efeito, é a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim que tem legitimidade para fazer funcionar a garantia, desde que verificados os pressupostos respectivos, figurando a sociedade executada como devedora. Face à inexistência de quaisquer créditos da executada CC, SA emergentes da garantia bancária identificada nos autos, não é possível proceder à pretendida penhora. 8) A exequente, notificada das respostas constantes de 6) e 7), requereu que o BB fosse notificado para, em 10 dias, depositar à ordem do Tribunal o valor da garantia bancária, tendo o Ex.mo Juiz, titular do processo, ordenado tal notificação, invocando como fundamento o art. 861º-A do CPC; 9) O BB interpôs recurso de agravo deste despacho, recurso que foi admitido; 10) Por sentença proferida em 06.06.2000, no processo respectivo, que sob o n.º 172/99, correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, foi declarada a falência da “CC, SA”; 11) O BB requereu, em 12.07.2001, a extinção da execução referida em 1); 12) Por despacho judicial de 08.11.2001 foi a execução julgada extinta, por impossibilidade superveniente da lide, “considerando que foi proferida sentença transitada em julgado a declarar a falência da executada”; e, por despacho judicial de 23.01.2003, foi ordenada a remessa dos autos ao Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, para apensação ao processo de falência; 13) O BB não deu cumprimento à notificação aludida em 8), não tendo efectuado o depósito do valor da garantia bancária aí referida; 14) Invocando tal incumprimento, a ora exequente/agravada intentou a presente execução contra o Banco, aqui agravante. 3 Como decorre do requerimento inicial da presente execução, a exequente, ora agravada, invoca, como título executivo, o despacho que, na execução referida em 1) dos factos assentes, ordenou a penhora da garantia bancária mencionada em 2), e o incumprimento desse despacho [n.os 7), 8) e 13) dos factos assentes] por parte do BB, aqui executado e ora agravante. Funda-se no disposto no n.º 3 do art. 860º, que diz aplicável por força do n.º 1 do art. 860º-A, ambos do CPC (3). No despacho de fls. 615 entendeu-se que, para ter força executiva – a força executiva decorrente do n.º 3 do art. 860º – carece o despacho que ordenou a penhora (no caso, o que foi proferido a fls. 33) da verificação de dois pressupostos: o de que exista a obrigação de depositar a importância respeitante ao crédito penhorado e o de que essa obrigação não seja cumprida por quem o devia fazer. E, para que ela exista é, desde logo, necessário que o alegado devedor do mencionado crédito penhorado não a haja contestado, nos termos do art. 856º. Se ele negar a existência do crédito penhorado, não pode ser obrigado a depositar o respectivo valor; e se, ainda assim, for notificado para o fazer e não cumprir com essa ordem judicial, o despacho determinativo da penhora não terá nunca a força executiva reconhecida pelo apontado art. 860º/3, por falta do apontado requisito. Ora, encontrando-se comprovado nos autos que o Banco contestou a existência do alegado crédito – já que, embora não negando a existência da garantia bancária, nega que desta resulte qualquer crédito da executada CC, S.A. – de concluir é que “o despacho determinativo da penhora, dado como título executivo, não tem essa força.” Foi com apoio nesta argumentação, que se decidiu, naquele despacho, nos termos sobreditos, “rejeitar oficiosamente a presente execução, por falta de título executivo.” A Relação entendeu, porém, que sendo embora certo ter o BCP contestado a obrigação, o fez, todavia, extemporaneamente – é dizer, fora do prazo geral de cinco dias, a que aludia o Assento do STJ n.º 02/94, de 25.11.93, DR I-A, de 08.02.94, e mesmo para além do prazo de dez dias, hoje fixado no n.º 2 do art. 856º (redacção do Dec-lei 38/03, de 8 de Março) – “o que tem por consequência dever considerar-se o despacho determinativo da penhora como título executivo, nos termos do art. 856º/3.” E, por isso, revogou aquele despacho de fls. 615. 3.1. Cabe, antes de mais, salientar que as normas processuais citadas deverão ser analisadas à luz da redacção vigente à data dos factos (1999) – é dizer, a decorrente da reforma de 1995/96 – que diverge, em parte, da redacção que têm actualmente, resultante das alterações introduzidas pelo Dec-lei 38/2003, de 08 de Março e pelo Dec-lei 199/2003, de 10 de Setembro. Vejamos, pois, tendo em conta aquela anterior redacção das normas aplicáveis, se existe título executivo que legitime a presente execução. 3.1.1. Ordenada a penhora de um crédito do executado sobre um terceiro, ela efectua-se através da notificação ao devedor de que o crédito fica à ordem do tribunal da execução (art. 856º/1). Não há qualquer contraditório antes desta notificação, e esta produz logo os seus efeitos: actos posteriores, do executado ou do terceiro devedor, que contendam com a existência do crédito e a sua conformação – limitando-o, dispondo do respectivo direito, ou extinguindo-o por causa dependente da sua vontade – são inoponíveis à execução (arts. 819º e 820º do CC). Feita a penhora, recai sobre o devedor o ónus de declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução – ónus que pode satisfazer no próprio acto da notificação ou posteriormente, por termo ou requerimento (art. 856º/2). Esta declaração é uma declaração de terceiro, que, enquanto recondutível àquelas assinaladas especificidades, não extravasa os limites impostos pelo dever de cooperação para a descoberta da verdade, estabelecido pelo n.º 1 do art. 519º. Mas já constitui profundo desvio ao regime geral desse dever de cooperação – para cuja violação o n.º 2 do citado art. 519º estabelece uma simples multa – a cominação estatuída para a falta de declaração do terceiro devedor, e constante do n.º 3 do art. 856º: na falta de declaração – diz este normativo – entende-se que o devedor reconhece a existência da obrigação nos termos estabelecidos na nomeação do crédito à penhora. Vale isto dizer que a omissão de declarar tem o mesmo efeito da declaração de reconhecimento da dívida, constituindo, como esta, conjugadamente com o despacho que ordenou a penhora, título executivo contra o terceiro devedor (art. 860º/3). Este normativo referia apenas, como título executivo, o despacho que ordenou a penhora. Mas, na realidade, o título é mais complexo do que a enunciação legal deixa entender; se o terceiro devedor reconhece a obrigação ou nada declara, o título executivo resulta(va) da conjugação do despacho que ordenou a penhora com a declaração do devedor ou a sua omissão. Trata-se de um título judicial impróprio – não enquadrável na alínea a) do art. 46º, nem mesmo por apelo ao disposto no n.º 1 do art. 48º – uma vez que o despacho que ordena a penhora, porque não precedido de contraditório, não constitui uma decisão condenatória no cumprimento de uma obrigação. Por isso, na acção executiva baseada neste título judicial impróprio, o terceiro devedor, nela executado, não está impedido de deduzir os meios de defesa que tenha contra a pretensão executiva, relativamente à existência do direito de crédito, não estando, pois, no que concerne aos fundamentos dos embargos de executado, sujeito ao regime limitativo do art. 813º. As regras constantes dos mencionados arts. 856º/3 e 860º/3, facultando, assim, a criação de um título executivo contra o terceiro devedor que radica num mero comportamento de silêncio deste, colocam problemas de interpretação de não fácil solução, minimizados embora, nalguns casos, pela reforma introduzida por aqueles aludidos diplomas de 2003 (4). E bem se percebe a razão: o devedor do executado é um terceiro relativamente à execução – o exequente não se arroga a titularidade de qualquer pretensão de direito material contra ele. Por tal razão, sistemas jurídicos há – como o italiano e o alemão – que consagram a solução de que, apesar do seu silêncio, contra ele, devedor do executado, não pode fazer-se valer o direito de crédito invocado, se este não existir (5). Mesmo em França, onde vigora um regime mais gravoso para o terceiro devedor, tem prevalecido, nos acórdãos da Cour de Cassation, o entendimento de que a omissão, por parte deste, do dever de informar o huissier, no acto da penhora, só o vincula ao pagamento da dívida se tiver sido regularmente notificado e a dívida existir realmente. Se esta não existir, o silêncio do terceiro devedor apenas pode acarretar a sua condenação em indemnização, o que acontecerá se, nada declarando, tiver culposamente causado prejuízo ao exequente (6). 3.1.2. Entre nós, a falta de declaração do terceiro devedor sobre a existência da dívida tem como efeito, já o vimos, ter-se a dívida por reconhecida. Esta equiparação da falta de declaração ao reconhecimento expresso da existência da dívida, operada pelo já aludido n.º 3 do art. 856º, para além da questão de constitucionalidade que suscita – e a que aludiremos mais adiante – não encaixa bem, já acima o deixámos perceber, com a qualidade de terceiro do devedor do executado, que apenas é chamado a colaborar numa execução a que é estranho. E esta constatação obriga a que sejamos particularmente exigentes na verificação dos pressupostos que permitem afirmar tal equiparação. Ganham aqui particular relevo – como se salienta no excelente estudo do Prof. LEBRE DE FREITAS, que continuamos a seguir de muito perto – a questão do prazo para a declaração e a dos requisitos da notificação ao terceiro devedor. 3.1.3. O art. 856º/2 (na redacção a ter aqui em conta) não estabelece o prazo para o cumprimento, pelo devedor, do ónus de declarar se o direito existe, quando tal não tem lugar no acto da notificação. Na verdade, o respectivo segmento normativo textua assim: Não podendo ser feitas no acto da notificação, serão as declarações prestadas posteriormente, por meio de termo ou de simples requerimento. E, não sendo o terceiro devedor parte, não lhe é aplicável, nem mesmo por analogia, o prazo do art. 153º. Excluída que está a aplicação directa, por se tratar de normativo inserido em subsecção respeitante aos actos das partes, também a aplicação analógica do art. 153º é de rejeitar, porque, não se curando aqui de acto que o terceiro devedor tenha o direito de praticar (art. 145º/3), não procedem as razões justificativas do estabelecimento daquele prazo para os actos das partes (art. 10º/2 do CC). Um rápido excurso pelo diploma processual permite constatar que estão fixados prazos para os actos das partes, dos magistrados e da secretaria, mas não para os intervenientes acidentais no processo: a prática, por terceiros, de actos de colaboração com o tribunal, ocorre, via de regra, em prazo fixado pelo juiz, atentas as circunstâncias do caso concreto. Relativamente à declaração do terceiro devedor bem se entende, tendo em conta o gravoso efeito cominatório estabelecido para quem não é parte na causa, que se deixe ao prudente critério do juiz a fixação de um prazo que tenha em conta as circunstâncias concretas do caso, designadamente a natureza do crédito, a entidade devedora, etc. A fórmula legal “... serão as declarações prestadas posteriormente ...” aponta claramente para um prazo variável, flexível, que só poderia ser fixado judicialmente. Hoje, não se suscitam dúvidas: a lei estabelece o prazo de dez dias – prorrogável com fundamento justificado – para o terceiro devedor prestar as declarações. Mas este prazo só pode ter-se em conta “nos ou relativamente aos processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003” (art. 21º do Dec-lei 38/2003), o que afasta a sua aplicabilidade ao caso em apreço. E se o legislador de 2003 entendeu dever fixar este prazo, e se o fez expressamente, e não por mera remissão para o prazo geral estabelecido no art. 153º, foi, decerto, por considerar que, até então, não existia prazo, decorrente da lei, para a declaração do terceiro devedor, quando não efectuada no acto de notificação da penhora. O terceiro devedor não estava, pois, sujeito a um prazo legal, mas apenas ao prazo que fosse fixado, no caso, pelo juiz. Sustentou, é certo, este Supremo Tribunal, orientação diferente, no Assento 2/94, de 25.11.93, invocado pela Relação no acórdão recorrido. O aludido Assento fixou a regra seguinte: Quando o devedor de crédito penhorado não tiver prestado no acto da notificação da penhora declarações sobre a existência do crédito, as garantias que o acompanham, a data de vencimento e outras circunstâncias que interessem à execução, deve fazê-lo no prazo geral de cinco dias, sob a cominação de se haver como reconhecida a existência da obrigação nos termos em que o crédito foi nomeado à penhora. Declarada, porém, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 743/96 (DR I-A, de 18 de Julho de 1996), a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art. 2º do CC, na parte em que atribuía aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, aquele Assento não possui, fora do caso concreto, eficácia vinculativa, apenas constituindo um precedente judicial qualificado, de natureza meramente persuasória. E, como demonstra, no já citado estudo, o Prof. LEBRE DE FREITAS, com razões que aqui nos dispensamos de reproduzir (7) , mas que se nos afiguram perfeitamente convincentes, não foi, naquele Assento – ao entender-se directamente aplicável ao terceiro devedor o prazo então estabelecido no art. 153º do CPC para os actos das partes – fixada a melhor doutrina (8). Opinião que colhe apoio na lição do Prof. ALBERTO DOS REIS, que, depois de sustentar não ser a regra geral (correspondente à do art. 153º) aplicável a este caso, afirma que “não há prazo certo para as declarações posteriores autorizadas pelo art. 856º. O devedor deve prestá-las logo que possa; se demorar o cumprimento deste dever, ao exequente fica aberto o caminho para requerer que o devedor seja notificado para, dentro de prazo fixado pelo juiz, satisfazer ao que o artigo 856º preceitua” (9). 3.1.4. Quanto aos requisitos da notificação ao devedor: A regra hoje expressa na lei, face à redacção que ao n.º 1 do art. 856º foi conferida pelo Dec-lei 38/2003, já tantas vezes citado, é a de que a notificação ao devedor tem de ser feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta. E, pese embora a diferente redacção daquele preceito, ao tempo em que, no caso sub judicio, foi efectuada tal notificação, não pode deixar de entender-se, tendo em conta a cominação estatuída no n.º 3 do mesmo art. 856º, que aquela notificação ao devedor do executado teria de ser entendida como uma notificação pessoal. Os casos em que existe cominação devem (deviam) ser incluídos, numa correcta interpretação do art. 256º, entre os especialmente previstos. O que vale dizer que a notificação teria de ser feita de acordo com as regras da citação pessoal e estar sujeita ao regime desta, observando, designadamente, as formalidades gerais do art. 235º, adaptadas em função das especificidades próprias da natureza do acto a notificar. Ora, de acordo com o n.º 2 deste preceito, no acto de citação deverá ser indicado ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa e as cominações em que incorre no caso de revelia, o que significa – transportadas estas regras para o caso da notificação do terceiro devedor – que a este deveria, no acto da notificação, ser expressamente indicado o prazo de que dispunha para fazer a declaração do n.º 2 do art. 856º, a cominação estabelecida no n.º 3 e a responsabilização estabelecida no n.º 4, ambos do mesmo normativo, e o regime de ineficácia a que, de imediato, ficavam sujeitos quaisquer actos posteriores, de disposição do crédito (a existir este) ou extintivos deste. E não bastava a mera indicação dos artigos da lei: por não ser a notificação feita a advogado, a garantia de que o notificado compreendeu plenamente o significado e alcance daquele acto só ficaria assegurada com a indicação expressa do conteúdo dos preceitos legais aplicáveis. 3.2. Atento o que se deixou exposto, consideremos, mais de perto, o caso concreto aqui em apreciação. Como decorre do complexo fáctico acima alinhado [n.º 4)], no despacho que ordenou a penhora da garantia bancária não fixou a Ex.ma Juíza qualquer prazo para a declaração do terceiro devedor, ora agravante. Sendo certo que, da notificação a este efectuada, por carta registada com A.R., constava a menção do prazo de dez dias, teremos de concluir que, não estando, sequer, o ofício de notificação assinado pela magistrada autora daquele despacho, a indicação do mencionado prazo é da responsabilidade do oficial de justiça que elaborou e subscreveu tal ofício, o qual, ao cumprir o despacho judicial, o fez de forma incorrecta, extravasando dos limites do aí ordenado. Decerto por excesso de zelo, o dito oficial de justiça avançou com a indicação de um prazo que não constava da lei nem do despacho judicial a que dava cumprimento; e, porque para tanto lhe falecia poder, tal indicação tem de haver-se como irrelevante, não podendo produzir quaisquer efeitos, designadamente o de precludir a possibilidade da prática do acto, pelo notificado, após o esgotamento do indicado prazo. Em suma: na parte em que contém a indicação do prazo, a notificação assume-se como um acto ineficaz. E, consequentemente, cai pela base o fundamento que serviu de suporte à decisão da Relação, já que não pode haver-se por extemporânea a declaração do terceiro devedor, negando a existência do alegado crédito da executada. Deve, aliás, acrescentar-se que, também no mais, a notificação operada não observa a rigor as exigências do art. 856º, designadamente a que respeita à cominação inerente à falta de declaração: não basta a indicação de que “na falta de declaração, a notificada reconhece a existência da obrigação”, impondo-se igualmente a referência ao constante da parte final do n.º 3 daquele preceito, para que o notificado fique ciente dos termos e limites desse reconhecimento. 3.3. O que vem de ser dito é já bastante para se poder concluir pela procedência do recurso, já que, não se verificando, por um lado, a falta de declaração do terceiro devedor, e tendo em conta, por outro, o sentido da declaração por ele produzida, não se formou o título executivo no qual a exequente, ora agravada, fez assentar a execução que dirigiu contra aquele. Ainda assim, não deixaremos sem referência um outro aspecto da questão, também enfocado pelo agravante. No dizer deste, a falta de título executivo bastante decorre, antes de mais, da real inexistência de qualquer crédito da “CC, S.A.” sobre ele, susceptível de ser penhorado. E, na verdade, cremos que assim é. A garantia bancária em causa foi prestada a favor da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, e destinava-se a assegurar o pagamento do depósito obrigatório de 5%, previsto no Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, no caso de vir a ocorrer um incumprimento contratual por parte da “CC, S.A.”, adjudicatária da empreitada acima aludida (cfr. n.os 2 e 3 da matéria de facto supra). De acordo com aquele regime jurídico, definido no Dec-lei 405/93, de 10 de Dezembro, o adjudicatário da empreitada deve garantir, por caução, a prestar por depósito em dinheiro ou títulos emitidos ou garantidos pelo Estado, ou através de garantia bancária ou seguro-caução, o exacto cumprimento das obrigações que assume por força do contrato de empreitada, sendo em princípio, de montante equivalente a 5% do preço total acordado. Decidindo o adjudicatário da empreitada prestar garantia bancária, deve apresentar documento pelo qual um estabelecimento bancário legalmente autorizado assegure, até ao valor da garantia, o pagamento imediato de quaisquer importâncias que o dono da obra venha a reclamar em consequência do incumprimento das obrigações contratuais por aquele assumidas. O beneficiário da garantia é, pois, a Câmara Municipal de Póvoa de Varzim, não a executada “CC, S.A.”, pelo que só aquela, e não esta, pode exigir do garante a entrega do montante caucionado. Dúvidas não existem, por consequência, de que a garantia prestada não traduz qualquer crédito daquela sociedade sobre o ora agravante. Como vem por este sustentado, o direito de crédito emergente da emissão da garantia bancária em causa é da respectiva beneficiária da mesma, relativamente ao garante, e não da entidade que solicitou a sua emissão. Ora, só estando sujeitos à execução os bens do devedor susceptíveis de penhora, que respondam pela dívida exequenda (art. 821º/1), segue-se que a penhora de um direito de crédito inexistente no património da executada “CC, S.A.” afrontou este indicado preceito, sendo tal penhora ilegal – ilegalidade de que o próprio Tribunal, oficiosamente, e no exercício dos poderes conferidos pelo art. 820º, pode conhecer. E tal ilegalidade vicia todo o processo posterior, inquinando irremediavelmente a formação de título executivo contra o pretenso devedor, nos termos dos invocados arts. 856º/3 e 860º/3. Também por esta razão deverá o recurso lograr provimento. 3.4. O agravante alegou ainda que o acórdão recorrido, ao presumir a existência de um direito de crédito e ao considerar existir um verdadeiro e legítimo título executivo sem previamente sindicar a existência de tal direito, fez uma interpretação e aplicação do disposto nos mencionados arts. 856º/3 e 860º/3 manifestamente inconstitucional, por claramente violadoras do disposto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de acesso à justiça. Em defesa deste entendimento socorre-se da opinião que, no mesmo sentido, foi emitida por LEBRE DE FREITAS, no estudo aqui aludido (pág. 411). Considera este autor que a equiparação operada pelo legislador ordinário, entre a situação de reconhecimento da dívida, por parte do terceiro devedor, e a de falta de declaração deste, é inconstitucional, por iludir o direito de acesso à justiça, podendo conduzir a uma verdadeira apropriação, sem indemnização, de bens do terceiro forçado a pagar, nos casos em que, não existindo a dívida, a falta de declaração não cause prejuízo ao exequente, por não ter o executado outros bens penhoráveis. Há, todavia, que ter em conta que a cominação do n.º 3 do art. 856º só actua depois de ter tido o devedor a possibilidade de a afastar. Daí que, tal como decidiu o Tribunal Constituciona (10), não seja de configurar tal solução como um meio legal restritivo, desproporcionado, desrazoável ou excessivo em relação aos fins obtidos, nem ela se apresenta como violadora do direito de acesso aos tribunais, já que pressupõe que ao devedor foi previamente dada a possibilidade de defender o seu direito, contestando a existência do crédito. Ademais, e como já acima se deixou referido, na acção executiva baseada no título judicial impróprio, formado a partir da falta de declaração do terceiro devedor, não está este impedido de deduzir, por embargos, os meios de defesa que tenha contra a pretensão executiva (incluindo os que tinha à data da penhora), relativamente à existência do direito de crédito, nos termos do art. 815º, não estando, pois, no que concerne aos fundamentos dos embargos, sujeito ao regime limitativo do art. 813º. Não se sufraga, pois, a tese da alegada inconstitucionalidade. 4. Resulta, do acima exposto (designadamente sub 3.2. e 3.3.), a procedência do agravo interposto pelo Banco executado. E assim, concedendo-se-lhe provimento, revoga-se o acórdão recorrido, para que fique a subsistir a decisão da 1ª instância. As custas deste recurso e dos agravos interpostos para a Relação ficam a cargo da exequente, aqui agravada. Lisboa, 04 de Outubro de 2007 Relator : Santos Bernardino Adjuntos : Bettencourt de Faria Pereira da Silva ____________________________ (2) Na verdade, a actual redacção do n.º 2 do art. 754º do CPC, introduzida pelo Dec-lei 375-A/99, de 20 de Setembro, foi excluída da aplicação aos processos pendentes na data da entrada em vigor do citado diploma (cfr. o seu art. 8º/2) – isto é, aos pendentes em 21 de Outubro de 1999 – sendo certo que, nessa data, já o presente processo se achava pendente. (3)- São deste Código os normativos citados na exposição subsequente sem indicação do diploma a que pertencem (4)- Que, repete-se, não logra aqui aplicação. (5)- Cfr., a este respeito, Lebre de Freitas, O silêncio do terceiro devedor, R.O.A., ano 62, Abril 2002, págs. 386 e ss., autor e estudo que, de resto, seguimos de perto na exposição que segue. (6)- Lebre de Freitas, ibidem, págs. 388/389. (7)- Cfr. estudo e loc. citado, págs. 415/416. (8)- O Supremo entendeu que o devedor era parte num incidente para apuramento do crédito do executado; e, como parte nesse incidente, o art. 153º ser-lhe-ia aplicável, sem necessidade de recurso à analogia. Este entendimento não resiste, porém, à crítica certeira de LEBRE DE FREITAS. (9)- In Processo de Execução, vol. 2º, Coimbra Editora, L.da/1954, pág. 193. (10)- Acórdão n.º 6/2001, de 16 de Janeiro, in DR, II Série, de 22.02.2001. |