Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B4522
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
SENTENÇA
REFORMA
Nº do Documento: SJ200507060045222
Data do Acordão: 07/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 271/04
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - O lapso do juiz na aplicação do direito a que se refere o artº 669º nº 2 do C. P. Civil não é um erro de julgamento, caso em que se quis, embora mal, aquilo que realmente ficou consignado, mas um lapso, caso em que ficou consignado aquilo que não se queria.
II - Sendo esta possibilidade de reforma da sentença uma excepção ao princípio de que com a decisão fica esgotado o poder jurisdicional do julgador, só parece curial admiti-la nos casos em que a vontade daquele, que é a manifestação do poder jurisdicional - não é posta em causa, como na hipótese do lapso, mas não na hipótese do erro de julgamento, onde, apesar de incorrecta, existe uma vontade soberana.
III - Tal reforma tem de ocorrer antes do trânsito em julgado da sentença.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
Nos autos de execução ordinária que o Banco A move contra B, Lda, veio a credora reclamante C deduzir reclamação da liquidação, alegando que é credora com garantia real, com créditos graduados por sentença transitada em julgado, mas que não foi atendida nessa liquidação a ordem estabelecida nesta última sentença. Com efeito, só foi pago o exequente, quando deveriam ter sido também pagos outros credores com créditos graduados.
Pede a rectificação da liquidação.
O contador veio dizer que foi declarada extinta a instância de reclamação de créditos por impossibilidade superveniente.
O MºPº pronunciou-se no sentido de ser desatendida a reclamação
Foi proferida decisão desatendendo a reclamação.
Dela agravou a referida credora, mas sem êxito.
Recorre ela novamente, apresentando nas suas alegações de recurso as seguintes conclusões:

1 - Na sentença de graduação de créditos de fls. 215 a 217, proferida em 26.07.00, a C ficou graduada em 4º lugar.
2 - Os credores reclamantes, D e "A", SA, este na qualidade de reclamante, vieram aos autos dizer que estão pagos.
3 - Face ao pagamento dos demais credores reclamantes, pelo produto da venda do imóvel, só há lugar ao pagamento ao exequente (A, SA) e à C, por força da sentença de graduação de créditos.
4 - Quando foi proferida a sentença de extinção da instância, nos presentes autos, em 26.11.00, ainda não estava extinta a instância nos autos principais.
5 - Era inexistente o fundamento da extinção nos autos principais.
6 - A instância nos autos principais estava interrompida, conforme despachos proferidos, nos mesmos autos, em 20.03.01 e 10.10.01.
7 - A sentença de extinção de 16.11.00, enderma de erro de escrita ostensivo, que dá direito à rectificação, nos termos do artigo 249º do C. Civil.
8 - Verifica-se uma inexactidão devida a omissão ou lapso manifesto, que devia ser corrigido por iniciativa do Sr. Juiz, nos termos do artigo 667º nº 1 do CPC.
9 - Dado que não houve recurso daquela sentença, a rectificação pode ter lugar a todo o tempo, nos termos do artigo 667º nº 2 do CPC.
10 - Devia ter sido rectificada a sentença de extinção da instância e substituída por outra que ordenasse a remessa dos autos à conta para liquidação do julgado, ordenando os pagamentos em conformidade com a sentença de graduação de créditos, nos termos dos artigos 52º e 53º nºs 1 a 4, ambos do CCJ.
11 - Tal rectificação deveria ter sido ordenada no acórdão recorrido, por de uma questão de direito se tratar e por ser uma solução justa.
12 - A liquidação teve lugar em 12.07.01, muito depois de proferida a sentença de extinção da instância de 16.11.00.
13 - Por a liquidação ser um acto de secretaria de natureza administrativa, de expediente, que no acórdão recorrida é considerada válida para pagamento da quantia exequenda, também o devia ser para o pagamento à ora recorrente.
14 - Por os créditos da ora recorrente merecerem igual tratamento nos pagamentos, no acórdão recorrido devia ter sido ordenada a modificação/rectificação da liquidação de modo a que fosse pago à C o saldo de 11.073.077$00
(€ 55.232,28).
15 - Os créditos da ora recorrente merecem um tratamento igual ao dado aos créditos do exequente.
16 - No acórdão recorrido foi feita uma incorrecta interpretação e aplicação das disposições contidas nos artigos 249º do C. Civil, 667º nºs 1 e 2, ambos do CPC, 52º e 53º nºs 1 a 4, ambos do CCJ.
17 - Deve ser rectificada a sentença de extinção da instância e a liquidação do julgado.
18 - Deve passar a constar da liquidação do julgado o pagamento à C no valor de 11.073.077$00 (€ 55.232,28).

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
As instâncias consideraram relevantes para a decisão da causa o seguinte:

a) - Nos autos principais de execução para o pagamento de quantia certa, que o "A", SA move contra os executados "B", Lda e Outros, foi penhorado, entre outros, o prédio urbano sito na praça Sacadura Cabral ... e ..., da cidade de Moura, inscrito na matriz sob o artº 2051 e descrito na conservatória do Registo Predial de Moura sob o nº 100989/191093.
b) - Na sequência da convocação de credores levada a efeito no referido processo, foram reclamados créditos, designadamente pela credora C, reclamações que motivaram a abertura do apenso de reclamação de créditos nº 8-A/95.
c) - O imóvel a que se alude em a) foi, em 1 de Outubro de 1997, arrematado em hasta pública pelo credor reclamante C, no âmbito da mencionada execução.
d) - Na sequência do facto a que se alude na alínea anterior e no próprio acto de arrematação, foi exercido o direito de remição por E, na qualidade de filha do executado F, remição essa que lhe foi deferida, tendo a mesma depositado, de imediato, o preço do referido imóvel e demonstrado, posteriormente, o pagamento do correspondente imposto de sisa.
e) - Em 04.12.97, o exequente A requereu a remessa dos autos de execução à conta, com o fundamento em que era suficiente o produto da venda do imóvel a que se alude em a), para pagamento da quantia exequenda, juros e custas.
f) - Em 04.06.98, foi elaborada a conta de fls. 99 dos autos de execução, conta essa que foi notificada às diversas partes, bem como aos credores reclamantes, sem que sobre ela tivesse algum deles deduzido qualquer reclamação.
g) - Em 26.07.00, foi proferida sentença de graduação de créditos no apenso a que se alude em b), a qual não foi alvo de impugnação.
h) - Em 11.10.00, foi declarada interrompida a instância executiva por decurso do prazo a que se alude no artº 285º do C. P. Civil.
i) - Em 16.11.00, foi proferida decisão no apenso a que se alude em b), declarando extinta a instância por impossibilidade superveniente e ao abrigo do disposto no artº 287º e) do C. P, Civil, decisão essa que, não obstante notificada às partes, não foi objecto de qualquer impugnação.
j) - Em 16.11.00, o exequente A requereu o levantamento da quantia liquidada a seu favor na conta a que se alude em f), solicitando que lhe fosse emitido precatório cheque para esse efeito.
k) - O requerimento a que se alude na alínea anterior foi deferido por decisão proferida no mesmo dia 16.11.00.
l)- Na sequência da decisão a que se alude na alínea anterior, foi elaborada, em 12.07.01, a liquidação de fls. 214 dos autos de execução (fls. 49 dos presentes autos em separado).

III
Apreciando
A recorrente reclamou da liquidação efectuada no processo de execução, por não contemplar o seu crédito, apesar deste ter sido graduado no respectivo apenso.
O Tribunal da Relação entendeu que, independentemente da forma como fora elaborada a dita liquidação, o certo é que a posição da C como credor reclamante deixara de poder ser atendida, a partir do momento em que no apenso de reclamação de créditos fora lavrado despacho julgando extinta a instância por impossibilidade superveniente.
Não discordando desta posição da 2ª instância, veio a agravante, no entanto, dizer que o dito despacho que julgou extinta a instância enferma de erro de escrita que dá direito a rectificação, nos termos do artº 249º do C. Civil, verificando-se também uma omissão ou lapso manifesto que deveria ser corrigido por iniciativa do juiz, a todo o tempo, dado não ter havido recurso desse despacho - artº 667º nºs 1 e 2 do C. P. Civil - .
Não existe aqui qualquer lapso de escrita. Neste há unicamente uma formulação material - a escrita - que não traduz um juízo que é correcto e em que, por isso, não há lapso.
Ora, o que se alega (e bem) é que o juiz não deveria ter decretado a extinção da instância. Logo o lapso, a existir, é do juízo não da escrita.
Assim, o regime da questão proposta não é o dos artºs 249º do C. Civil e 667º do C. P. Civil que regulam o lapso de escrita, mas o do nº 2 do artº 669º do C. P. Civil, quando prevê o lapso manifesto do juiz na aplicação do direito, nomeadamente, quando dos autos constem elementos que imponham decisão diferente.
Na análise deste preceito cabe ver a diferença entre erro de julgamento e lapso do julgador.

O primeiro ocorre quando se quis e se consignou uma coisa que não se devia querer, o segundo quando se consignou uma coisa que não se queria.
Note-se que, nos termos do aludido artº 669º não basta, para haver reforma da sentença, que o erro seja manifesto, é necessário que provenha de lapso e não de erro de julgamento. A alínea b) do seu nº 2 depois de prever a hipótese de existirem nos autos elementos que imponham, só por si, decisão diversa, exige cumulativamente o lapso do juiz.
Compreende-se o regime.
Sendo esta possibilidade de reforma da sentença uma excepção ao princípio de que com a decisão fica esgotado o poder jurisdicional do julgador, só parece curial admiti-la nos casos em que a vontade daquele - que é a manifestação do poder jurisdicional - não é posta em causa, como na hipótese do lapso, mas não na hipótese de erro de julgamento, onde, apesar de incorrecta, existe uma vontade soberana.
Compreende-se igualmente, que esta possibilidade de reforma da sentença seja "preparatória" do trânsito em julgado ou do recurso, que o mesmo é dizer da fixação definitiva do julgado. É que não se trata dum simples lapso material rectificável a todo o tempo, mas antes dum acto que vai bulir, efectivamente, com o fundo do decidido (no caso dos autos, substituir a declaração de extinção da instância por outra que determine ulteriores trâmites processuais).
Por isso, é que a lei exige que a reforma seja requerida no tribunal que proferiu a sentença ou no recurso. Nunca depois do seu trânsito em julgado.
Que é o que sucede nos presentes autos.
A decisão que se pretende ver alterada, apesar de notificada aos interessados - alínea i) - não foi objecto de impugnação. Não pode, agora ser reformada.

Termos em que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao agravo, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela agravante.

Lisboa, 6 de Julho de 2005
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida,
Noronha do Nascimento.