Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2194
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CRÉDITOS DOS TRABALHADORES
CRÉDITOS COM GARANTIA HIPOTECÁRIA
Nº do Documento: SJ200709110021946
Data do Acordão: 09/11/2007
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I – Declarada a falência de uma sociedade, com trânsito em julgado, é a essa data que se deve atender para definir a lei aplicável à graduação de créditos.

II – O Código do Trabalho não é aplicável aos direitos de crédito laborais constituídos antes de 28 de Agosto de 2004, por via de contratos que anteriormente se tenham extinto.

III – Dividiu a jurisprudência a questão de saber se os privilégios imobiliários gerais, criados pela legislação avulsa posterior à publicação do actual Código Civil, seguiam o regime dos privilégios mobiliários gerais, aplicando-se-lhes o disposto no art. 749 deste Código, ou antes o regime dos privilégios imobiliários especiais, aplicando-se-lhes o preceituado no art. 751 do mesmo diploma.

IV- O dec-lei 38/03, de 8 de Março, interveio para dirimir tal questão controvertida, excluindo do art. 751 do C.C. os privilégios imobiliários gerais.

V – Trata-se de norma interpretativa, que se integra nas leis que atribuíam aos créditos laborais privilégio imobiliário geral.

VI – Assim sendo, no que concerne ao prédio, os créditos bancários garantidos por hipoteca, devem ser graduados antes dos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho, com privilégio imobiliário geral, aos quais se aplica o regime do art. 749 do C.C.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


No 2ª Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, por sentença de 10-12-03, foi decretada a falência de Empresa-A, com sede em S. Pedro de Avioso, na comarca da Maia, sendo que a data da falência foi fixada em 15 de Maio de 2003, correspondente à data da propositura da respectiva acção.
Foram apreendidos bens móveis e um bem imóvel, o edifício onde laborava a falida, constituído por dois pavilhões.

Reclamados os créditos e junto o parecer do Liquidatário Judicial, foi proferida sentença que, por falta de impugnação, declarou reconhecidos e verificados todos os créditos reclamados e os graduou, quanto ao produto da venda do imóvel ( único que aqui interessa considerar ), pela forma seguinte :
1º - As custas da falência, as despesas da administração e todas as demais custas que devam ser suportadas pela massa falida, que saem precípuas.
2 - Do remanescente, dar-se á pagamento aos créditos dos trabalhadores.
3 - Os 1º a 5º créditos hipotecários do Empresa-B
4 - O 6º crédito hipotecário do Empresa-B, (até perfazer 2.853.505,34 euros), da Empresa-C, e Empresa-D, em pé de igualdade. 5º...

Inconformados, apelaram o Empresa-B, e a Empresa-C, com êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 19 de Setembro de 2006, julgou procedentes ambas as apelações, revogou a sentença recorrida na parte impugnada e, colocando as ajuizadas hipotecas voluntárias à frente dos créditos dos trabalhadores, graduou os créditos para serem pagos pelo produto da venda do imóvel, nos seguintes termos :
- em 2º lugar, dar-se á pagamento ao 5º crédito hipotecário do Empresa-B;
- em 3º lugar, dar-se- á pagamento ao 6º crédito hipotecário do Empresa-B ( até perfazer 2.853.505,34 euros ), da Empresa-C., e do Empresa-D, em pé de igualdade e em rateio ;
- em 4º lugar, dar-se á pagamento aos créditos dos trabalhadores que antes se encontravam em 2º lugar.

Agora, foram os trabalhadores AA, por um lado, e BB e Outros, por outro, que, em recursos autónomos, pedem revista, onde resumidamente concluem :

Recurso da AA ( fls 3818 e segs ) :

1 - Os créditos laborais devem ter prioridade sobre os créditos hipotecários, devendo ser colocados antes destes, na respectiva graduação, por aplicação do regime do art. 751 do C.C.
2 - A aplicação do art. 751 do C.C. não torna as normas dos arts 12, nº3, al. b) da Lei 17/86 e 4º, al. b) da Lei 96/01 inconstitucionais, por violação do princípio constitucional da confiança, pois este deverá sempre ceder quando confrontado com o direito do trabalhador ao salário e a uma sobrevivência condigna, porque este defende valores ligados à dignidade da pessoa humana, enquanto o primeiro protege interesses eminentemente patrimoniais, logo de valor inferior.
3 - Não tendo graduado o crédito laboral da recorrente antes dos créditos hipotecários, como fez a 1ª instância, o tribunal recorrido violou o nº3, do art. 59 da Constituição da República, os arts 12, nº3, al. b), da Lei nº 17/86 e 4º, al. b), da Lei 96/01 e art. 751 do C.C.

Recurso da BB e Outros ( fls 3909 e segs ) ;
1- O regime instituído no art. 377 do Código do Trabalho aplica-se ao presente caso, porquanto os créditos dos trabalhadores recorrentes constituíram-se, na sua grande maioria, e pelo menos no que às indemnizações respeita e demais créditos resultantes da cessação do contrato de trabalho, em data posterior a 10-12-03, e bem assim após a entrada em vigor do Código do Trabalho.
2 - O art. 377 do Código do Trabalho foi de aplicação imediata, à data da entrada em vigor do referido código, e não com a entrada em vigor da regulamentação, porque, no art. 3º da Lei 99/03, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, no seu art. 1º, estabelece-se que o referido Código entra em vigor no dia 1 de Dezembro de 2003, e nos nºs 2 e 3 quais as normas do aludido código que entram em vigor após a entrada em vigor da lei especial que as regulamentou, o que não é o caso do art. 377, norma que não consta do elenco das norma indicadas nesses nºs 1 e 2.
3 - Assim, nos termos do disposto no art. 377 do Código do Trabalho, os créditos dos recorrentes que prestavam trabalho no imóvel dos autos gozam de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel aprendido neste processo, e devem ser graduados nos termos do disposto no nº2, da citado art. 377 e, como tal, antes, ou seja, à frente dos credores hipotecários.
4 - Pelo que decidindo pela não aplicação do art. 377 do Código do Trabalho aos presentes autos, o Acórdão recorrido violou o art. 3, da Lei 99/03, de 27 de Agosto.
5 - Independentemente disso, o regime a aplicar às leis 17/86, de 14 de Junho, e 96/01, de 20 de Agosto, é o regime previsto no art. 751 do C.C., e não o regime do art. 749 do mesmo diploma, pelo que, também por esta via, os créditos dos trabalhadores devem ser graduados à frente dos credores hipotecários.
6 - Só a aplicação do art. 751 do C.C. aos privilégios instituídos pelas leis 17/86 e 96/01, permite a defesa do direito à retribuição, direito fundamental consagrado no art. 59 da Constituição da República, ainda mais quando colocado perante os direitos de agentes económicos imensamente mais fortes, como as entidades bancárias.
7 - Ao não graduar os créditos dos trabalhadores recorrentes à frente dos créditos hipotecários dos bancos, o tribunal recorrido violou os arts 12, nº3 , al. b), da Lei 17/86 e 4º , al. b) da Lei 96/01, o art. 751 do C.C. e o art. 59, nºs 2 e 3 da Constituição da República.
8 - Deve ser mantida a decisão da 1ª instância sobre a graduação dos créditos dos trabalhadores, mantendo-se estes créditos, no que ao imóvel respeita, à frente dos credores hipotecários.

O Empresa-B contra-alegou no recurso da AA e o Empresa-B e a Empresa-C também contra-alegaram no recursos da BB e Outros, defendendo a manutenção do acórdão recorrido.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes, com interesse para a decisão :

1- A 15 de Maio de 2003, foi requerida a falência de Empresa-A, acabando por ser decretada a falência por sentença de 10-12-03, transitada em julgado, sendo fixada a data da falência em 15 de Maio de 2003.

2 –A fls 293, o Empresa-B, reclamou o crédito de 5.599.722, 33 euros, sendo que 2.913.858, 52 gozam de garantia real, hipoteca sobre o imóvel aprendido, assim descriminado :
- um crédito no valor de 1.705.888,81 euros , a coberto da hipoteca C5 de 1999, registada em 1º lugar - apresentação 52/070599 ;
- um outro crédito de 817.030,96 euros, a coberto da hipoteca C6 de 2001, hipoteca paritária registada em 2º lugar – apresentação 30/11012001;

3 – A fls 677, reclama a Empresa-C o crédito de 2.198.755,01 euros, garantido por hipoteca paritária, registada em 2º lugar sobre o único imóvel apreendido, até ao montante de 173.303,29 euros.

4 – Os trabalhadores recorrentes reclamaram vários créditos laborais, resultantes de salários em atraso e indemnizações devidas pela cessação de contratos de trabalho.

Os dois recursos serão apreciados em conjunto, por serem conexas as questões a decidir, que são as seguintes :

1 - Se os créditos laborais dos trabalhadores recorrentes gozam de privilégio imobiliário especial, sobre o produto da venda do bem imóvel aprendido, por lhes ser aplicável o art. 377 do Código do Trabalho.
2 - Em caso negativo e gozando apenas de privilégio imobiliário geral, se tal privilégio segue o regime dos privilégios mobiliários gerais, aplicando-se –lhes o disposto no art. 749 do C.C. (sendo os créditos hipotecários graduados à frente dos créditos dos trabalhadores), ou antes o regime dos privilégios imobiliários especiais, aplicando-se-lhes o preceituado no art. 751 do mesmo diploma ( sendo os créditos dos trabalhadores graduados antes dos créditos hipotecários ).

Vejamos :

1.

A questão da pretensa aplicação imediata do art. 377 do Código do Trabalho :

No Acórdão recorrido, foi decidido que, estando em apreciação os montantes retributivos de salários em atraso e indemnizações pela cessação do contrato de trabalho, até 15 de Maio de 2003, a lei a aplicável, no caso concreto, não é o Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/03, de 27 de Agosto, mas antes a que vigorava à data da ocorrência desses factos, por força da ressalva do art. 8, nº1, do mesmo Código do Trabalho.
Assim, considerou aplicáveis aos reconhecidos créditos laborais dos trabalhadores o regime do art. 12, nº1, al. b) da Lei 17/86, de 14 de Junho, e do art. 4, nº1, al. b) da Lei 96/01, de 20 de Agosto, que lhes conferem privilégio imobiliário geral, sobre o prédio apreendido, leis essas que apenas foram revogadas pela Lei 35/04, de 29 de Julho ( que entrou em vigor em 28 de Agosto de 2004), como decorre do art. 21, nº2, al. e) e t) do aludido Código do Trabalho.
Todavia, os recorrentes BB e Outros sustentam a aplicação imediata do Código do Trabalho à situação em análise.

Que dizer ?

O art. 377 do Código do Trabalho, na parte que agora importa considerar, dispõe o seguinte :
“ 1- Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam do seguintes privilégios creditórios :
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
2.... “

De forma inovadora, relativamente ao direito anterior, o citado art. 377, nº1, al. b), veio conceder aos trabalhadores privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
Mas, conforme resulta do disposto nos arts 3º, 8º, nº1 e 21, nº2, al. e) e t) da Lei 99/03, de 29 de Julho, o referido art. 377 apenas entrou em vigor em 28-8-04, ou seja, 30 dias após a publicação da Lei 35/04, de 27 de Agosto, que regulamentou o Código do Trabalho.
É neste sentido a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, em cujo Acórdão de 21-9-06, da 7ª Secção ( relatado pelo Conselheiro Salvador da Costa e publicado na Internet sob o nº 06B2871), se decidiu :
“ O art. 377 do Código do Trabalho é aplicável a todos os direitos de crédito dos trabalhadores constituídos desde o dia 28 de Agosto de 2004, independentemente de derivarem de relações jurídicas laborais ou de instrumentos de regulação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados conforme os casos, antes ou depois daquela data.
Apenas se exceptuam do mencionado regime, com a consequência de dever aplicar-se o pertinente regime anterior, os direitos de crédito laborais que se tenham constituído antes de 28 de Agosto de 2004 no âmbito de contratos de trabalho que se tenham extinguido anteriormente.
Assim, não é aplicável aos direitos de crédito laborais constituídos antes de 28 de Agosto de 2004, por via de contratos que anteriormente se tenham extinto.”
Tal entendimento também foi seguido no Acórdão deste S.T.J de 30-11-06 ( Col. Ac. S.T.J., XIV, 3º, 140).
Savigny ( System des Heutigen Romischen Rechs, Vol. VIII, pág. 445 e segs ) sustentava já que a lei competente para a graduação de créditos no concurso de credores é a lei vigente ao tempo deste concurso, salvo pelo que respeita aos créditos hipotecários ( Obra citada , pág. 28, nota 23).
É que os efeitos de direito já produzidos sob o império da lei antiga são respeitados na vigência da lei nova, como resulta do art. 12, nºs 1 e 2 do C.C.
Tudo isto porque as situações jurídicas extintas sobre a lei antiga não renascem pelo simples facto da entrada em vigor da lei nova.
No caso concreto, a falência foi decretada por sentença de 10-12-03, transitada em julgado.
Com a declaração da falência, são encerrados os livros, tornam-se imediatamente exigíveis todas as obrigações da falida e procede-se à imediata apreensão de todos os seus bens, que passam a integrar a massa falida, seguindo-se a reclamação de créditos – arts 147, 148, 151, 175 e 188 do C.P.E.R.E.F.
Tal significa que o concurso de credores se abre com o trânsito em julgado da sentença que declara a falência, sendo a essa data que se deve atender para definir as situações jurídicas provenientes das relações jurídicas havidas entre os seus credores.
Com a declaração da falência surgiu o direito ou situação jurídica dos credores verem graduados os seus créditos de acordo com as garantias constituídas.
Posteriormente a essa data, os credores, quer sejam trabalhadores ou outros, são apenas aqueles que o eram á data da declaração da falência.
Consequentemente, no nosso caso, datando de 10-12-03 a sentença que declarou a falência e vigorando o art. 377 do Código do Trabalho somente desde 28-8-04, os trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral sobre o prédio apreendido, nos termos do art. 12, nº1, al. b) da Lei 17786, de 14 de Junho , e do art. 4 nº1, al. b), da Lei 96/01, de 20 de Agosto, e não do privilégio imobiliário especial criado pelo art. 377, nº1, al. b), do Código do Trabalho.

2.

Se os créditos laborais dos trabalhadores devem ser graduados á frente dos créditos hipotecários dos recorridos :

Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores de serem pagos com preferência a outros – art. 733 do C.C.
Os privilégios creditórios podem ser mobiliários ou imobiliários- art. 735, nº1.
Os mobiliários podem ser gerais ou especiais, mas os privilégios creditórios imobiliários são sempre especiais, nos termos do art.735, nºs 2 e 3.
O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente – art. 749.
Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores – art. 751, na redacção anterior ao dec-lei 38/03, de 8 de Março.
Os privilégios imobiliários gerais graduam-se antes dos créditos referidos no art. 748 do C.C. e ainda dos créditos das contribuições devidas à Segurança Social – art. 12, nº3 , al. b) da Lei 17/86, de 14 de Junho, e art. 4, nº4, al. b) da Lei 96/01, de 20 de Agosto.
Por sua vez, o art. 686, nº1, do C.C., determina que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros, com preferência sobre os demais credores que gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Como já se referiu, o art. 735, nº3, do C.C. só admitia privilégios imobiliários especiais.
Suscitou-se a questão sobre se os privilégios imobiliários gerais criados pela legislação avulsa posterior à publicação do actual Código Civil, seguiam o regime dos privilégios mobiliários gerais, aplicando-se-lhes o disposto no art. 749 deste Código, ou antes o regime dos privilégios imobiliários especiais, aplicando-se-lhes o preceituado no art. 751 do mesmo diploma.
É sobejamente conhecido que tal questão dividiu a jurisprudência.
A doutrina e a jurisprudência, largamente maioritárias, inclinaram-se no sentido de que o referido art. 751 do C.C. contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, pelo facto dos privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil e ainda porque, não estando sujeitos a registo, afectam gravemente os direitos de terceiro, violando os princípios da segurança jurídica e da confiança no direito (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1994, pág. 850 e segs ; Menezes Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios, ROA, Ano 58, págs 645 a 672 ; Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª ed, pág. 315 e segs ; A. Luís Gonçalves, Privilégios Creditórios, Evolução Histórica, Regime e sua Inserção no Tráfego Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXVII, 1991, pág. 7; Ac. S.T. J. de 5-2-02, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 71 ; Ac. S.T.J. de 25-6-02, Col. Ac. S.T.J., X, 2º, 135 ; Ac. S.T.J. de 24-9-02, Col. Ac. S.T.J., X, 3º, 54; Ac. S.T.J. de 19-10-04, Col. Ac. S.T.J., XII, 3º, 67; Ac. S.T.J. de 13-1-05, Col. Ac. S.T.J., XIII, 3º, 86 ; Ac. S.T.J. de 12-9-06, Col. Ac. S.T.J., XIV; 3º, 47; Ac. S.T.J. de 14-11-06, Col. Ac. S.TJ., XIV, 3º, 107 ; Ac. S.T.J. de 30-11-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 3º, 140 ).
Entretanto, foi publicado o citado dec-lei 38/03, que deu nova redacção ao art. 751 do C.C., estabelecendo que os privilégios imobiliários especiais preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
Assim, o aludido dec-lei 38/03 interveio para decidir aquela questão controvertida, excluindo do art. 751 do C.C. os privilégios imobiliários gerais.
Com efeito, o art. 751, na redacção introduzida pelo dec-lei 38/03, de 8 de Março, passou a dispor :
Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores “
Trata-se de uma norma interpretativa que, nos termos do art. 13, nº1, do C.C., se integra nas leis que atribuíram aos créditos laborais privilégio imobiliário geral.
Assim sendo, no que concerne aos créditos hipotecários, os reconhecidos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho não podem ser graduados á frente dos créditos dos recorridos, que têm garantia hipotecária anterior, por lhes ser aplicável o regime do art. 749 do C.C., tal como foi decidido pela Relação.

Nem se diga que a interpretação atrás seguida padece de inconstitucionalidade, por violação do art. 59, nºs 1 e 3, da Constituição da República, na medida em que não assegura o direito fundamental à retribuição do trabalho, quando colocado em confronto com os direitos de agentes económicos mais fortes, como as entidades bancárias que gozam de garantia hipotecária.

O Acórdão do Tribunal Constitucional de 22-10-03 ( Diário da República de 3-1-04, 2ª Série ), ao versar sobre uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho ( art. 59, nº1, al. a) da Constituição ) e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito ( art. 2 da Constituição), por o tribunal ter recorrido ao art. 749 do C.C. para graduar os créditos dos trabalhadores, considerando que a aplicação ao caso do art. 751 do mesmo C.C. seria inconstitucional, por violação do princípio da confiança, previsto no art. 2 da Lei Fundamental, decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea b), do nº1, do art. 12 , da Lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes de contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art. 751 do C.C. “
No entanto, importa salientar, como se refere nesse Acórdão, que não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre as opiniões em confronto, no âmbito da interpretação do direito ordinário.
Ora, já vimos ser jurisprudência largamente dominante deste Supremo Tribunal, que o art. 751 do C.C. contém um princípio geral insusceptível de aplicação aos privilégios imobiliários gerais, sendo-lhes antes aplicável o regime do art. 749 do mesmo diploma.
É este art. 749 que tem aqui aplicação, na graduação dos créditos dos trabalhadores recorrentes, em confronto com os créditos hipotecários dos recorridos, regulados pelo art. 686, nº1, do C.C.
O conflito ou colisão de direitos apenas existe quando vários direitos concorrem, de modo que o exercício de um deles impede ou prejudica o exercício do outro, não sendo o caso quando a lei estabelece uma relação de subordinação entre eles ( Jacinto Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. II, pág. 105).
Tanto basta para se poder concluir, como se conclui, que, no caso, não ocorre nenhum conflito, pela simples razão de que os créditos em questão não se enquadram nos mesmos preceitos, mas antes em normas diferentes.
Daí que não possa ser validamente sustentado o pretenso juízo de inconstitucionalidade, invocado pelos recorrentes.
Improcedem, pois, as conclusões de cada um dos recursos.

Termos em que negam ambas as revistas.
Custas de cada um dos recursos, pelos respectivos recorrentes.

Lisboa, 11 de Setembro de 2007

Azevedo Ramos
Silva Salazar
Afonso Correia (Tem voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Afonso Correia)*
1

*Declaração de vencido


É do seguinte teor o artigo 12.° da Lei 17/86:

(Privilégios creditórios)

1 - Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) - Privilégio mobiliário geral;
b) - Privilégio imobiliário geral.
2 - Os privilégios dos créditos referidos no n.° 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça, sem prejuízo, contudo, das privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
3 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte
a) - Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no n.° 1 do artigo 747.° do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737.° do mesmo Código;
b) - Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748.° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social.
4 - Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no número anterior.

A Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, reforçou os créditos dos trabalhadores, dando nova redacção ao art. 12º da Lei nº 17/86 e acrescentando o regime criado pelo art. 4º:

«O artigo 12º da Lei nº 17/1986, de 14 de Junho, passa a ter a seguinte redacção:

«Artigo 12º [...]

1 - ..........................................
2 - Os privilégios dos créditos referidos no Nº 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça.
3 - ..........................................
4 - .........................................»


Artigo 4º - Créditos dos trabalhadores exceptuados da Lei nº 17/86, de 14 de Junho

1 - Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/1986, de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os créditos de carácter excepcional, nomeadamente as gratificações extraordinárias e a participação nos lucros das empresas.
3 - Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que sejam preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei nº 17/1986, de 14 de Junho, e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
4 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidos à segurança social.
5 - Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no artigo anterior.

Nos termos do artigo 377° do Código do Trabalho - Artigo 3° Entrada em vigor
1 - O Código do Trabalho entra em vigor no dia 1 de Dezembro de 2003.
2 - Os artigo 33° a artigo 70° , artigo 79° a artigo 90° , a alínea e) do n° 2 do artigo 225° e o artigo 281° a artigo 312°, artigo 364° e artigo 624° só se aplicam depois da entrada em vigor da legislação especial para a qual remetem.
3 - O disposto no n° 2 do artigo 139° só se aplica depois da entrada em vigor da legislação especial prevista no artigo 138°.
Privilégios creditórios

1 - Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) - Privilégio mobiliário geral;
b) - Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) - O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no n° 1 do artigo 747° do Código Civil;
b) - O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

No Código do Trabalho Anotado, 3ª edição, de Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira de Brito Guilherme Dray E Luís Gonçalves da Silva, na pág. 613 consta:

“São três as novidades relativamente ao direito anterior. A primeira consiste no alargamento do âmbito de aplicação dos privilégios creditórios a todos os “créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador”. Surge-nos, depois, a graduação do privilégio mobiliário geral “antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil claramente diferente da que constava dos artigos 12.°, n.° 3, alínea a), da LSA e 4.°, n.°4, alínea a), da Lei n.° 96/2001. Refira-se, finalmente, a substituição do privilégio imobiliário geral, criado pelo artigo 12.°, n.° 1, alínea b), da LSA, e alargado a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho pela alínea b) do mesmo preceito, por um privilégio imobiliário especial sobre os “bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, graduado nos mesmos termos em que o era aquele”.

Destes três conjuntos de normas resulta evidente a contínua e crescente preocupação do Legislador em dotar os créditos laborais de garantias que os colocavam, na fila dos credores, à frente do Estado e da Segurança Social.

…”o disposto no nº 3, al. b) do art. 12° da Lei nº 17/86, de 14/6 e nº 4, al. b) do art. 4º da Lei nº 96/2001, de 20/8, determina a aplicabilidade do regime previsto no art. 751° do Código Civil ao privilégio imobiliário por eles criado, na medida em que determina que a graduação dos créditos por ele garantidos – os créditos laborais - haverá de efectuar-se à frente dos créditos mencionados no art. 748º do Código Civil, créditos estes (do art. 748º) que beneficiam de privilégio imobiliário (especial).
A entender-se inaplicável o regime do art. 751° do C. Civil, criar-se-ia uma dificuldade de conjugação de tais normativos sempre que houvesse que proceder à graduação de créditos privilegiados referidos no art. 748° do C. Civil, créditos garantidos por hipoteca e créditos por salários em atraso, na medida em que estes cederiam, então, perante a hipoteca e aqueles (os do art. 748° do C. Civil) teriam de ficar à frente da hipoteca por força do art. 751º do C. Civil que não podia deixar de se lhes aplicar, tornando-se plenamente ineficaz (letra morta) a norma contida naqueles art. 12º, nº 3, al. b) da Lei nº 17/86 e 4º, n° 4, al. b) da Lei nº 96/2001, relegados que ficariam os créditos por salários em atraso para depois da hipoteca e, por consequência, para depois dos créditos referidos no art. 748º do C. Civil, prejudicando ou impedindo a aplicabilidade de tais preceitos legais - São palavras do Acórdão da Relação do Porto abaixo identificado.”.

Em suma: ao mandar (Leis 12/86, 96/2001 e Código do Trabalho) graduar os créditos laborais antes dos créditos do Estado (art. 748º) que preferem à hipoteca (art. 751º) o Legislador quis, sem sombra de dúvida, colocar os créditos do trabalho à frente da hipoteca.

Nem se veja neste comando legal assim interpretado sombra de inconstitucionalidade.
São do Acórdão da Relação do Porto (Ex.mo Desembargador Fonseca Ramos) de 08-11-2004, na base de dados do ITIJ, Processo nº 0455436, Documento nº RP200411080455436, estas palavras:

«Poderíamos, citar a doutrina social da Igreja e as encíclicas papais “Rerum Novarum (1891), Quadragésimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961) e Populo-rum Progressio (1967) … para sustentar que o direito ao trabalho e ao salário são dos valores mais caros à dignidade humana e que constitui “pecado social” não pagar a quem trabalha, mas quedamo-nos pela Lei Fundamental que, a par da consagração do princípio da igualdade e da confiança, afirma no art. 59º, nº 1, a):

“Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”.

E no nº 3:
“os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

Considerar que a mora ou incumprimento da retribuição salarial, por não ser conhecida da generalidade dos credores, pode “surpreendê-los” no momento em que exercem o seu direito de reclamação creditória e, por isso, constituir um “ónus oculto” é, com o devido respeito, insustentável.

O empresário sabe que é um seu dever jurídico do maior relevo pagar a quem trabalha; as instituições previdenciais têm o dever de fiscalizar a situação contributiva de empregadores e empregados; a inspecção do trabalho deve assegurar o cumprimento da legislação laboral, e as entidades financiadoras, sejam elas bancos ou locadoras financeiras, dispõem de meios para acautelarem os seus interesses quando financiam as empresas. Assim, os agentes económicos sabem, ou podem saber, da real situação das empresas, não sendo razoável alegarem surpresa a menos que a falência seja fraudulenta. Importa é que sejam diligentes e cautos.
O princípio constitucional da igualdade – art. 13º da C. R. P. – não desprotege os trabalhadores com salários em atraso, sob pena de conceder um injustificado “privilégio”, lá onde mais protecção se justifica, quando existe uma situação socialmente dramática, intolerável num estado de direito, qual seja a de não se dotar de garantia sólida e exequível o direito à retribuição salarial, tutelando-o com sólida armadura jurídica.

É certo que o princípio da segurança propiciado pelo registo desvanece a possibilidade de “surpresa”, já que a sua função publicística evidencia a situação dos prédios, mormente, em caso de existência de garantia hipotecária.

Com fundamento na violação do princípio da confiança … o Tribunal Constitucional … [concretamente no Acórdão nº 363/2002, no DR IA, de 16.10.2002, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11° do Decreto-Lei n°103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2° do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação, segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751° do Código Civil.

Mas o mesmo Tribunal Constitucional, não podendo desconsiderar a protecção que a Lei Fundamental confere ao salário, no seu aresto nº 498/2003, de 22.10, publicado no D.R. II Série de 3.1.2004, pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da LSA, “na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca”, nos termos do artigo 751° do Código Civil, doutrinando:

«Com efeito, do lado do credor hipotecário está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo artigo 2º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo, como se observou, por exemplo, no Acórdão n.º 215/2000 (Diário da República, II série, de 13 de Outubro de 2000)…

Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. Acórdão n.º 373/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 20, p. 111 e segs. e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, ed., Coimbra, p. 152, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 318, João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, p. 141, nota 215 e João Leal Amado, ob. cit., p. 32, nota 44).

O caso dos autos coloca-nos, assim, perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito.

Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida.

Acresce ainda que a inclusão, repita-se, para o efeito agora em causa, do direito ao salário e do direito à indemnização por despedimento no âmbito da tutela constitucional do direito à retribuição é a que mais se ajusta à referência constitucional a uma “existência condigna”, exprimindo o que João Leal Amado (ob. cit., p. 22) designa de carácter alimentar e não meramente patrimonial do crédito salarial, neste sentido (ou seja, no confronto com os créditos dos titulares de direitos reais de garantia levados ao registo).

Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional».

«Discorrendo acerca do princípio da democracia social, que não consideramos alheio à complexa problemática do recurso, cabem as considerações do Professor Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 6ª edição, pág. 348:

“Para além da dimensão subjectiva do princípio da democracia social, implícita no reconhecimento de numerosos direitos sociais (direitos subjectivos públicos), o princípio da democracia social, como princípio objectivo, pode derivar-se ainda de outras disposições constitucionais. Desde logo, a dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1°) é considerada noutros países como um princípio objectivo e uma “via de derivação” política de direitos sociais.
Do princípio da igualdade (dignidade social, art. 13°), deriva-se a imposição, sobretudo dirigida ao legislador, no sentido de criar condições sociais (cfr., também, art. 9º/d) que assegurem uma igual dignidade social em todos os aspectos (cfr. por ex., arts. 81.°/a, b e d e 93°/c).
Do conjunto de princípios referentes à organização económica (cfr. arts. citados) deduz-se que a transformação das estruturas económicas visa também uma igualdade social.
Neste sentido, o princípio de democracia social não se reduz a um esquema de segurança, previdência e assistência social, antes abrange um conjunto de tarefas conformadoras, tendentes a assegurar uma verdadeira “dignidade social” ao cidadão e uma igualdade real entre os portugueses (art.9º/d».

... estando em causa direitos fundamentais aparentemente colidentes, como sejam o direito de confiança ínsito no estado de direito e o direito ao salário, tendo este um valor mais relevante que aqueloutro, por contender com o indeclinável direito a uma vida digna e ter mais que natureza patrimonial, uma insofismável natureza alimentar, visando a subsistência pessoal, é este que deve prevalecer, numa hierarquia de normas constitucionais».

Dizer que aos privilégios imobiliários gerais regulados em leis avulsas se aplica o regime do art. 749º do CC porque no Código Civil os privilégios imobiliários eram sempre gerais (art. 735º, nº 3, do CC, na redacção originária) é proibir ao Legislador a conformação de interesses que só a Ele em cada momento compete e esquecer que a nova redacção dada ao referido nº 3 do art. 755º - Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código - As palavras sublinhadas foram acrescentadas pelo Dec-lei nº 38/2003, de 8 de Março. são sempre especiais – pelo Dec.-lei nº 39/2003, de 8 de Março, deixa intocados os privilégios imobiliários gerais constantes de leis extravagantes, como as aqui em causa.
Se os privilégios imobiliários gerais em causa não foram estabelecidos pelo CC, não há que lhes aplicar nenhuma norma do CC, nem dos privilégios gerais (art. 749º) nem dos especiais (art. 751º). Antes se deve respeitar a preferência estabelecida pela lei que os criou.

Tal preferência está claramente expressa no nº 4 do art. 4º da Lei nº 96/2001:
4 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidos à segurança social.

Mandando graduar os créditos laborais à frente dos créditos do Estado com privilégio imobiliário – os do art.748º CC - o Legislador quis, por razões bem ponderosas e já julgadas sem mancha de inconstitucionalidade, conceder àqueles créditos preferência sobre créditos privados (e das autarquias e segurança social) como os do art. 751º do CC, designadamente a hipoteca, ainda que anterior, créditos estes sempre graduados atrás daqueles do art. 748º.

Perde todo o sentido a referência à nova redacção dada aos art. 749º e 751º do CC quando o intérprete se atenha, como deve – art. 8º, nº 2 e 9º, n.os 2 e 3 CC – à letra e sentido daquele art. 4º da Lei 96/2001, aceitando a graduação ali determinada, ou seja, à frente dos créditos do Estado do art. 748º que preferem à hipoteca.
Respeitando esta graduação fixada nas leis 17/86 e 96/2001 nenhuma lacuna (como dito nos Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 22.6.2005, no Processo 05B1511 e de 5.5.2005, no Processo 05B835, da base de dados do ITIJ) ou ineficácia (como escrito nos Acórdão deste Tribunal, de 7.6.2005, no Processo 05A1774 e de 13.1.2005, Processo 04B4398, da mesma base de dados) existe que permita a aplicação, por analogia, do art. 749º do CC.

Assim como não colhe doutrina certamente muito perfeita de jure condendo mas imprestável de jure condito.

O novo Código do Trabalho – aqui inaplicável – abandonou a figura do privilégio imobiliário geral mas criou o privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade; e manteve exactamente nos mesmos termos a graduação do privilégio imobiliário especial que estabeleceu:

b) - O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

Por tudo se impõe a graduação dos créditos salariais à frente da hipoteca.

Lisboa, 11 de Setembro de 2007

Afonso Correia