Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6131/12.7TBMTS-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
TÍTULO DE CRÉDITO
CHEQUE
ENDOSSO
RELAÇÕES IMEDIATAS
OBRIGAÇÃO CARTULAR
MORA DO CREDOR
MORA DO DEVEDOR
INCUMPRIMENTO PARCIAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
AUDIÇÃO PRÉVIA DAS PARTES
ACESSO AO DIREITO
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
EXCEPÇÕES
EXCEÇÕES
OPONIBILIDADE
PORTADOR LEGÍTIMO
FIANÇA
CONSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 03/24/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES / FIANÇA / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / MORA.
Doutrina:
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil” Anotado, 1999, vol. 1.º, 8/9.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. II, 1968, 3.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 2, 405.º, 458.º, 627.º N.º 1, 628.º, 634.º, 637.º, 638.º, 762.º, N.º 1, 763.º, N.º 1, 781.º, 799.º, N.º 1, 813.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.º 3, E 4.º, 5.º, N.ºS 1 E 3, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, AL. D), 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES (LUCH): - ARTIGOS 14.º, 17.º, 22.º.
Sumário :
I - O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no art. 20.º da CRP e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão.

II - É o princípio do contraditório – com expressão na lei ordinária nos arts. 3.º, n.º 3, e 4.º do CPC – que garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais e lhes assegura a participação em idênticas condições até ser proferida a decisão.

III - Tal princípio proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido a prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.

IV - Não ocorre decisão-surpresa na convocação pelo acórdão recorrido do art. 22.º da LUCh – preceito que regula o regime de oponibilidade das excepções ao portador legítimo do título cambiário – quando tal questão havia já sido abordada pelas partes e tratada na sentença da 1.ª instância, pelo que, nestas circunstâncias, a audição das partes revelar-se-ia de manifesta desnecessidade.

V - Decorre do art. 22.º da LUCh que caso o cheque já se encontre no domínio das relações mediatas o obrigado cambiário a quem seja exigido o pagamento só poderá deduzir excepções de direito material se os factos provados revelarem que o portador do título em questão procedeu, ao adquiri-lo, conscientemente em detrimento do devedor, ou seja, se adquiriu o cheque de má fé (conhecendo o vício) e agiu com consciência de prejudicar o devedor.

VI - A partir do momento em que é emitido e entregue, o cheque entra em circulação e, por regra, logo que é endossado passa para o domínio das relações mediatas; sai da esfera das relações causais à sua emissão, estabelecidas entre o subscritor do cheque (sacador) e o seu beneficiário, relações a que o endossado é, por princípio, alheio.

VII - Pode suceder, porém, que todos os sujeitos cambiários, incluindo o endossado, sejam, concomitantemente, sujeitos da relação jurídica fundamental e da relação cambiária e, neste caso, o cheque mantém-se no campo das relações imediatas, apesar do seu endosso.

VIII - Resultando da factualidade provada que o cheque em que se funda a execução consubstancia uma ordem de pagamento dada pelos recorrentes (sacadores) a uma entidade bancária (sacado) a favor de um terceiro (beneficiário), seu filho, o qual, por sua vez, o endossou ao exequente, mas provando-se, igualmente, que os recorrentes foram partes intervenientes no negócio causal, nele se obrigando como fiadores do seu filho, devedor principal, nos termos exarados no acordo de pagamento celebrado, manteve-se o cheque então emitido no âmbito das relações imediatas, pelo que é permitido aos recorrentes, executados na acção, discutir com o exequente as excepções fundadas na convenção extracartular.

IX - Ao contrário do credor, que pode exigir o cumprimento parcial da prestação que lhe é devida, sem embargo de vir a exigir mais tarde o remanescente da prestação, o devedor está adstrito ao seu cumprimento por inteiro.

X - Em consequência, caso o credor não aceite apenas uma parte da prestação, não ocorrerá mora accipiendi, nos termos do disposto no art. 813.º, n.º 1, do CC, mas mora solvendi. Só assim não será se se verificar alguma excepção ao princípio contido no art. 763.º, n.º 1, do CC, resultante, designadamente, de convenção pelas partes contratantes ou da lei.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:


AA, BB e CC deduziram a presente oposição à execução que lhes moveu DD alegando em síntese o seguinte que o cheque dado à execução foi emitido e entregue ao exequente na sequência de um acordo de pagamento celebrado entre o oponente AA e o exequente no âmbito do procedimento cautelar de arresto que correu termos no 2º. Juízo do Tribunal Judicial de … sob o nº. 1981/12.7TBMTS, e nos termos do qual os oponentes BB e CC se teriam constituído fiadores e principais pagadores com renúncia ao benefício da excussão.

Mais alegaram que não era vontade dos oponentes BB e CC constituírem-se fiadores e que o texto do acordo não lhe foi lido nem eles o leram; que de todo o modo o acordo, por ser de valor superior a € 25.000,00, deveria ter sido celebrado por escritura pública do que resulta que o mesmo é formalmente nulo e, em consequência, é nula a fiança e, sendo o cheque dado à execução emitido e entregue na sequência da fiança e por causa dela, “a invalidade da fiança afecta não só constituição do dever de prestar como a eficácia do cheque como título executivo, cuja exequibilidade fica inquinada”.


Recebida a oposição e notificado o exequente veio o mesmo dizer o seguinte:

Que o cheque lhe foi entregue para pagamento de uma dívida do primeiro oponente e em conformidade com o acordado entre os executados e o exequente.

Que os executados não cumpriram o acordado quanto à entrega de cheques que titulassem cada uma das prestações acordadas, do que resultou que o exequente, sempre nos termos do acordado, considerasse o acordo incumprido e apresentasse a pagamento o cheque que agora dá à execução.

Mais alegou que os oponentes BB e CC assumiram-se de forma livre e esclarecida como fiadores e principais pagadores, com renúncia ao benefício da excussão prévia e, finalmente, que não se estando perante um contrato de mútuo ou obrigação que carecesse de qualquer formalidade inexiste qualquer nulidade formal na constituição da fiança, que, de todo o modo, não se estenderia ao título dado à execução.


Saneado o processo, foi dispensada a condensação da matéria de facto.

Por despacho oportunamente proferido foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide a oposição deduzida pelo oponente AA pelo facto do mesmo ter sido, entretanto, declarado insolvente.

Foi interposto recurso deste despacho que foi julgado improcedente, com decisão transitada em julgado.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento no culminar da qual foi proferida sentença, em 2 de Abril de 2015, na qual se decidiu: «julgar parcialmente procedente a oposição à execução, na parte respeitante às quantias de € 29.540,08 e € 205,60, prosseguindo a execução contra os executados/opoentes apenas quanto à quantia de € 3.282,22».


Inconformado, apelou o exequente DD.

Os executados BB e CC interpuseram recurso subordinado.


Por acórdão de 17 de Março de 2016, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente o recurso subordinado interposto pelos executados /oponentes BB e CC e procedente o recurso principal interposto pelo exequente DD, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, julgou improcedente a oposição à execução e determinou o prosseguimento da execução contra aqueles executados para cobrança da quantia de 32.822,30 €, acrescida de juros à taxa legal contados desde 04.09.2010, e despesas bancárias que se cifram no montante de 30,06 €.


Agora inconformados os oponentes BB e CC, vieram interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

Na alegação oportunamente apresentada, formularam as seguintes conclusões:

«I. Foi dado à execução o cheque n° 39… sacado sobre o Banco EE, datado de 31/8/2013 e no valor de 32.822,30€.

II . Os oponentes basearam a sua oposição além do mais na alegação de que o cheque dado à execução foi emitido e entregue ao exequente na sequência de um acordo de pagamento em vinte prestações mensais celebrado entre o seu filho e o exequente no âmbito do procedimento cautelar de arresto que correu termos nos autos de processo n° 1981/12.7TBMTS pelo então 2º Juízo do Tribunal de …, nos termos do qual os oponentes se constituíram fiadores e principais pagadores com renúncia ao benefício de excussão.

III. Em primeira instância o Meritíssimo Juiz considerou que o exequente não podia exigir a totalidade das prestações que se venceriam até ao final do período acordado para efectivação do pagamento, pelo que julgou parcialmente provada a oposição, ordenando que a execução prosseguisse apenas quanto à quantia de 3.282,22€.

IV. O exequente recorreu da sentença para o Tribunal da Relação do Porto suscitando além do mais as seguintes questões:

- Da (I) Modificabilidade do Negócio Jurídico,

- Da perda do benefício do prazo da dívida em prestações e da cláusula condicional.

V. Por sua vez os oponentes interpuseram recurso subordinado, suscitando as seguintes questões:

- Má fé do exequente ao tentar cobrar o cheque em 4/9/2012, em vez de aguardar pelo vencimento da primeira das vinte prestações acordadas,

- Mora accipiendi do exequente,

- Tentativa de imposição pelo exequente - na concomitante tentativa de cobrança em 4/9/2012 - de perda de benefício do prazo, aferida pela prerrogativa de o montante inscrito no cheque vir a ser pago em 20 prestações, das quais nenhuma estava vencida.

VI. Nenhuma destas questões foi objecto de apreciação e decisão pelo Tribunal da Relação do Porto, porque entendeu que constavam dos autos questões prévias que entendeu dever apreciar no recurso; quais [l] sejam a da impossibilidade de nas relações cartulares mediatas, como será o caso das relações que se estabeleceram entre o exequente e os oponentes, [não é possível] opor àquele as excepções peremptórias por estes invocadas e que constituem as questões suscitadas no recurso subordinado e supra enunciadas.

VII. Esta questão prévia não foi suscitada por nenhuma das partes (maxime pelo recorrente principal) nem no recurso, nem nos articulados no decurso do processo em 1a instância, nem é uma questão de conhecimento oficioso, pelo que ao conhecer dela o Tribunal da Relação do Porto excedeu pronúncia e cometeu a nulidade prevista no artigo 615° n° 1 al d) in fine (ex vi do art. 666° n° 1) ambos do C.P.Civil.

VIII. Os oponentes não tiveram de se pronunciar sobre se a relação cartular que se estabeleceu entre exequente e oponentes é mediata ou imediata e se as excepções por si invocadas podem ou não ser opostas ao exequente, o que significa que a decisão, douta embora, foi tomada sem a observância do disposto no n° 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, o que implica nulidade que se argui para todos os efeitos legais, suscitando-se ainda a questão da inconstitucionalidade prevista no artigo 20° do Constituição da República Portuguesa.

IX. O Tribunal deve resolver os conflitos nos limites configurados pelas partes, não omitindo decisão sobre questão submetida à sua apreciação, mas o certo é que nenhuma das três questões suscitadas pelos oponentes e supra enunciadas foi objecto de pronúncia pelo Tribunal a quo e não o tendo feito foi praticada a nulidade de omissão de pronúncia.

X. E não se diga que o não fez porque apreciou uma questão prévia que levou à procedência do recurso, pelo que prejudicada ficava a apreciação daqueloutras questões suscitadas pelos oponentes, porque não é lícito que o juiz aprecie uma questão que nenhuma das partes suscitou, para depois sustentar que a decisão dessa questão que ninguém suscitou prejudica a apreciação das questões suscitadas pelas partes.

XI. Tendo os oponentes ficado fiadores e principais pagadores com renúncia ao benefício da excussão prévia, para além de sujeitos cambiários são também sujeitos da relação extracartular, pelo que estamos no domínio das relações imediatas estabelecidas entre oponentes e exequente, pelo que estes podem discutir entre si as excepções relacionadas com a relação contratual donde emerge a obrigação pecuniária a cujo pagamento se destinava, o que significa que as excepções peremptórias suscitadas pelos oponentes são ao exequente oponíveis.

XII. Mesmo que se entenda que estamos no domínio das relações mediatas a verdade é que a aquisição do cheque pelo exequente causou prejuízo aos oponentes porque destinando-se o cheque a pagamento de um crédito do exequente, caso não fosse cumprido o acordo de pagamento em vinte prestações, deveria o mesmo ser emitido à ordem do exequente e só foi emitido à ordem do filho dos oponentes por instrução do Advogado do exequente que naturalmente patrocinava os interesses do seu constituinte que passavam por evitar que os oponentes pudesses suscitar excepções, assim se constituindo um simulacro de relações mediatas, com manifesto prejuízo dos oponentes que não fora as instruções recebidas teriam emitido o cheque a favor do exequente.

XIII. Daí que mesmo nesta acepção das relações mediatas, ainda assim deveriam ser apreciadas as excepções invocadas pelos oponentes.

XIV. Há lugar à procedência dessas excepções e consequente extinção da execução instaurada.

Nestes termos e nos melhores de direito deve a presente revista ser concedida e em consequência ser julgada procedente a arguição de nulidade por excesso de pronúncia, ou quando assim se não entenda, julgar-se procedente a arguição de nulidade por violação do princípio do contraditório, ou quando assim se não entenda julgar-se procedente a arguição de nulidade por omissão de pronúncia e ainda quando assim se não entenda revogar-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto com extinção da execução».


O exequente, ora recorrido, não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Fundamentos:

De facto:

As instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1 – O exequente é portador do cheque dado à execução com o nº. 39…, sacado sobre o Banco EE, S.A., no valor de 32.822,30, emitido por BB e CC a favor de AA e por este endossado e com data de emissão de 31 de Agosto de 2012.

2 – Apresentado a pagamento o cheque atrás referido foi devolvido na compensação, em 4 de Setembro de 2012, com a menção “Falta de Provisão”.

3 – O referido cheque foi entregue ao exequente para cumprimento do acordo de pagamento celebrado no âmbito dos autos de arresto com o nº. 1981/12.7TBMTS requeridos pelo exequente contra o executado AA e que correram termos no 2º. Juízo deste Tribunal e nos quais foi ordenado o arresto dos bens móveis existentes no estabelecimento comercial do arrestado sito na Av. …, … na S… da H….

4 – No auto de arresto lavrado naqueles autos e que constitui o documento junto de fls. 35 a 38 dos autos consignou-se que “ … não foi efectuada a diligência em virtude de entre as partes se ter chegado ao seguinte acordo: 1- fixa-se a quantia em dívida em 47.822,30 € que o requerido se confessa devedor ao requerente. Para pagamento dessa quantia é entregue o cheque nº. 52…, sacado sobre a conta 24…./10 do Banco EE à ordem do requerido e por este endossado. A restante quantia em dívida, no montante de 32.822,30€ será paga em 20 prestações, no valor unitário de 1.641,11€, mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a 1ª. no dia 30 de Julho de 2012 e as restantes em iguais dias dos meses subsequentes. Ficam como fiadores e principais pagadores, com renúncia ao benefício da excussão prévia, do acordo ora celebrado Mª. BB e CC, pais do requerido. Sendo pressuposto do presente acordo a entrega de cheques da conta dos fiadores, que titulem todas as prestações é entregue o cheque nº. 43…, sacado sobre a conta atrás mencionada, no valor de 32.822,30€ com data de 30.7.2012. Até essa data o requerido está obrigado a entregar cheques da conta já mencionada assinados por ambos os fiadores emitidos à sua ordem e por si endossados, que titulem todas as prestações acordadas. Caso não o faça é atribuído ao requerente a faculdade de considerar o acordo incumprido e apresentar a pagamento o cheque de 32.822,30 €. (…)

Depois de lido e achado em conformidade o auto vai ser assinado”.

5 – O referido auto mostra-se assinado pelo advogado do exequente, pelos executados, pelo agente da PSP e pela agente de execução.

6 - Segundo instruções do Advogado do arrestante os cheques, depois de assinados pelos executados CC e BB, foram preenchidos pelo executado AA que apôs a sua assinatura no verso dos mesmos.

7 – O valor aposto no cheque nº. 43… destinava-se a ser pago em 20 prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de € 1.641,11 cada uma.

8 – No dia 20/6/2013 o cheque nº. 52… no valor de 15.000,00€ foi devolvido ao executado mediante a entrega por este para pagamento daquele valor do veículo automóvel matrícula …-AH-….

9 – A pedido do executado AA o exequente aceitou que lhe fosse entregue um novo cheque, de idêntico montante, com data de 31 de Agosto de 2012 para substituir o cheque nº. 43….

10 – No dia 29 de Agosto de 2012 quando se dispunha a proceder ao pagamento das duas primeiras prestações referidas em 7 foi transmitido ao executado AA pelo advogado do exequente que os pagamentos não seriam aceites e que o cheque subscrito pelos seus pais seria apresentado a pagamento.


2. De direito:

Vistas as conclusões da alegação dos oponentes, aqui recorrentes, as quais balizam o objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso, as questões colocadas à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça são as seguintes:

- nulidade do acórdão recorrido fundada em violação do princípio do contraditório;

- nulidade do acórdão recorrido por ter incorrido, simultaneamente, em excesso e omissão de pronúncia;

- possibilidade (ou não) de os oponentes deduzirem excepções fundadas na relação extracartular, questão que passa pela de saber se o cheque dado à execução se encontra no domínio das relações imediatas ou mediatas.


1. O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no artigo 20º da Constituição e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão,

Constitui um princípio basilar na concretização do princípio da igualdade das partes, tendo encontrado ambos expressão na lei ordinária nos artigos 3º nº 3 e 4º do Código de Processo Civil.

É o princípio do contraditório que garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais, que lhes assegura a participação em idênticas condições até ser proferida a decisão.

Manifesta-se em diversos planos ao longo do processo, (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1999, vol. 1º, págs. 8/9). No plano das questões de direito, sejam processuais sejam materiais, o princípio do contraditório proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.

No caso, as partes não podiam deixar de perspectivar como solução plausível do litígio a invocação do disposto no artigo 22º da Lei Uniforme Sobre Cheques, preceito que regula o regime de oponibilidade das excepções ao portador legítimo do título cambiário em toda a sua amplitude, tanto mais que os oponentes invocaram em sua defesa a relação jurídica subjacente à emissão do cheque e o exequente teve oportunidade de se pronunciar nos autos sobre esta questão.

Aliás, já na sentença proferida na 1ª instância se havia observado que “não obstante o cheque ter sido emitido a favor do co-executado AA e por este imediatamente endossado ao exequente, resulta do alegado pelas partes e dos factos provados que os sujeitos cambiários são, também, sujeitos das convenções extracartulares – (…) – estando assim o cheque no domínio das relações imediatas podendo os opoentes e o exequente discutir entre si as excepções relacionadas com a relação contratual donde emerge a obrigação pecuniária a cujo pagamento se destinava”.

Logo, saber se o cheque se encontrava no campo das relações imediatas ou imediatas constituía questão já abordada pelas partes e tratada na sentença da 1ª instância. Nestas circunstâncias a audição das partes revelar-se-ia de manifesta desnecessidade, pelo que a omissão apontada não é susceptível de configurar a violação do aludido princípio do contraditório.


2. Sustentam os oponentes que o acórdão recorrido é nulo por ter incorrido no vício de excesso de pronúncia no segmento em que considerou estar-lhes vedado opor ao exequente, portador do cheque que constitui título executivo, as excepções fundadas nas relações pessoais deles com o sacador por já se encontrar aquele título cambiário no domínio das relações mediatas, questão que não foi levantada no processo por qualquer das partes.

A causa de nulidade prevista no artigo 615º nº 1 al. d) do Código de Processo Civil radica no desrespeito do comando legal inserto no artigo 608º nº 2 do mesmo código, que impõe ao juiz a resolução de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, estando-lhe vedado ocupar-se de questões não suscitadas pelas partes, salvo das de conhecimento oficioso.

Em sede de recurso são, como é sabido, as conclusões da alegação que definem o âmbito de cognoscibilidade do tribunal, sem prejuízo, como é óbvio, daquelas questões que devam ser apreciadas ex officio (artigos 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil).

Trata-se de um vício de limites. O juiz conhece de menos na primeira hipótese e conhece de mais do que lhe era permitido na segunda.

Como é sabido, cumprido pelas partes o ónus de alegação dos factos essenciais que integram a causa de pedir ou a matéria de excepção, em conformidade com o princípio do dispositivo consagrado no artigo 5º nº 1 do Código de Processo Civil, ao tribunal compete, por sua vez, examinar toda a facticidade alegada e, em função desta, proceder à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito adequadas, domínio em que não está sujeito às alegações das partes (nº 3).

No que ao caso vertente respeita, vale aqui o que afirmámos para concluirmos que não houve violação do princípio do contraditório. Com efeito, quer as partes, quer a sentença da 1ª instância se pronunciaram expressamente sobre a questão de o cheque se encontrar no domínio das relações imediatas, tese que o acórdão recorrido não sufragou.

Na verdade, o Tribunal da Relação, dissentindo da decisão da 1ª instância, concluiu que o cheque em causa se encontrava no âmbito das relações mediatas, o que não envolveu, naturalmente, o conhecimento de questão subtraída à sua apreciação.

Defendem, igualmente, os oponentes que o acórdão recorrido é nulo por não ter tomado conhecimento de questões por si suscitadas, a saber:

- Má fé do exequente ao tentar cobrar o cheque em 4/9/2012, em vez de aguardar pelo vencimento da primeira das vinte prestações acordadas,

- Mora accipiendi do exequente.

É evidente que se não verifica tal vício.

Na linha decisória seguida no acórdão recorrido de que estava vedado aos oponentes, aqui recorrentes, opor ao exequente excepções fundadas na relação jurídica fundamental, em virtude de o título de crédito se encontrar já no âmbito das relações mediatas, quedava prejudicada a apreciação das duas referidas questões porque intrinsecamente ligadas à relação extracartular, que a Relação entendeu não ser permitido aos oponentes discutir.

Consequentemente, inexistem os invocados vícios de excesso e omissão de pronúncia.


3. Entrando na apreciação do mérito do recurso, a questão essencial a dilucidar consiste em definir se o cheque apresentado como título executivo se encontra no domínio das relações imediatas ou imediatas.

Da resposta dada a esta questão dependerá a possibilidade de serem ou não opostas ao exequente, legítimo portador daquele título de crédito, as excepções fundadas na convenção extracartular atento o disposto no artigo 22º do da Lei Uniforme sobre Cheques. 

Na verdade, caso o título já se encontre no domínio das relações mediatas, o obrigado cambiário a quem seja exigido o pagamento só poderá deduzir excepções de direito material se os factos provados revelarem que o portador do título em questão procedeu, ao adquiri-lo, conscientemente em detrimento do devedor, ou seja, se adquiriu o cheque de má fé (conhecendo o vício) e agiu com a consciência de prejudicar o devedor.

Em relação a esta questão fulcral divergiram as instâncias, considerando o acórdão recorrido que a relação cartular imediata só se estabeleceu entre o endossante AA e o exequente DD (portador), não podendo, consequentemente, os sacadores CC e BB opor-lhe as excepções peremptórias em que fundaram a sua defesa por a tal obstar o citado preceito da Lei Uniforme Sobre Cheques.

O cheque em que se funda a execução consubstancia uma ordem de pagamento dada pelos recorrentes (sacadores) a uma entidade bancária (sacado) a favor de um terceiro (beneficiário), seu filho, o qual, por sua vez, o endossou ao exequente, transmitindo-lhe por essa via todos os direitos emergentes daquele título, que se caracteriza pela literalidade, abstracção e autonomia (artigos 14º e 17º da mesma lei.

A partir do momento em que é emitido e entregue o cheque entra em circulação e, por regra, logo que é endossado passa para o domínio das relações mediatas. Sai da esfera das relações causais à sua emissão estabelecidas entre o subscritor do cheque (sacador) e o seu beneficiário, relações a que o endossado é, por princípio, alheio.

Pode suceder, porém, que todos os sujeitos cambiários, incluindo o endossado, sejam, concomitantemente, sujeitos da relação jurídica fundamental e da relação cambiária e, neste caso, o cheque mantém-se no campo das relações imediatas, apesar do seu endosso.

No caso que nos ocupa, foi alegado e resultou provado que o acordo de pagamento que esteve na origem da emissão e entrega do cheque em causa foi celebrado no âmbito dos autos de arresto com o nº. 1981/12.7TBMTS requeridos pelo exequente contra o executado AA e nos quais foi ordenado o arresto dos bens móveis existentes num estabelecimento comercial deste último.

Tal acordo ficou consignado no auto de arresto (fls. 35 a 38). Os recorrentes declararam ali serem «fiadores e principais pagadores, com renúncia ao benefício da excussão prévia, do acordo ora celebrado Mª. BB e CC, pais do requerido. Sendo pressuposto do presente acordo a entrega de cheques da conta dos fiadores, que titulem todas as prestações é entregue o cheque nº. 43…, sacado sobre a conta atrás mencionada, no valor de 32.822,30€ com data de 30.7.2012», correspondentes ao montante ainda em dívida e do qual o ali requerido se confessou devedor.

Nesse acordo, assinado pelo advogado do exequente, pelo devedor e pelos recorrentes, ficou estabelecido que a «quantia em dívida, no montante de 32.822,30€ será paga em 20 prestações, no valor unitário de 1.641,11€, mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a 1ª. no dia 30 de Julho de 2012 e as restantes em iguais dias dos meses subsequentes. E ainda que «Até essa data o requerido está obrigado a entregar cheques da conta já mencionada assinados por ambos os fiadores emitidos à sua ordem e por si endossados, que titulem todas as prestações acordadas. Caso não o faça é atribuído ao requerente a faculdade de considerar o acordo incumprido e apresentar a pagamento o cheque de 32.822,30 €».

Desta facticidade resulta que os recorrentes foram partes intervenientes no negócio jurídico causal, nele se obrigando como fiadores do seu filho, devedor principal, nos termos exarados no aludido acordo, pelo que o cheque então emitido se manteve no âmbito das relações imediatas, apesar do seu endosso ao exequente, como entendeu, e bem, a sentença proferida na 1ª instância.

Logo, era-lhes permitido discutir com o exequente, legítimo portador do título de crédito, as excepções fundadas na convenção extracartular.

Não lograram, contudo, demonstrar, como era seu ónus por envolver matéria de excepção (artigo 342º nº 2 do Código Civil), factos evidenciadores da invocada nulidade da fiança por vício de forma. Também não demostraram os alegados vício da vontade, consubstanciado na falta de vontade de se constituírem fiadores, e falta de informação sobre o teor do acordo em que intervieram e se obrigaram.

No que respeita, concretamente, à fiança, esta mostra-se validamente prestada, posto que nenhuma outra exigência de forma se colocava, para além da sua redução a escrito assinado pelos contraentes, formalidade idêntica à exigida para a obrigação principal, que não é subsumível, ao contrário do que defendem os recorrentes, ao contrato de mútuo (artigos 1142º e 1143º do Código Civil).

Ao assinarem o acordo exarado no auto de arresto ficaram os recorrentes vinculados ao cumprimento da obrigação de pagamento do crédito titulado pelo cheque, assumindo na qualidade de fiadores as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor e podendo opor ao credor, além dos meios de defesa que lhe são próprios, também aqueles que competem ao devedor, desde que não incompatíveis com a obrigação emergente da fiança (artigos 458º, 627º nº 1, 628º, 634º e 637º do Código Civil).

A expressa renúncia ao benefício da excussão prévia por parte dos recorrentes (artigos 405º e 638º do Código Civil), facultava ao exequente, portador legítimo do cheque, a possibilidade de exigir, em simultâneo, dos sacadores e do beneficiário/endossante do mesmo o pagamento coercivo.

Como emerge dos factos provados, a pedido do executado AA, o exequente aceitou que lhe fosse entregue um novo cheque, em substituição do cheque nº. 43… inicialmente emitido, de idêntico montante, mas com data de 31 de Agosto de 2012, que veio a ser apresentado à execução.

Com este novo cheque foi dilatado o prazo para o devedor principal cumprir a obrigação, passando de 30 de Julho para 31 de Agosto de 2012 o vencimento da primeira das vinte prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor unitário de 1.641,11€, em que foi desdobrada a quantia em dívida titulada no referido cheque (32.822,30 €).

Além do pagamento da primeira prestação vencida, recaía ainda sobre aquele devedor a obrigação de entregar ao credor até à nova data estabelecida  – 31 de Agosto de 2012 – cheques da conta dos recorrentes (fiadores) assinados por ambos, emitidos à ordem do devedor principal e por este endossados, os quais titulariam as vinte prestações acordadas, sob pena de assistir ao exequente a faculdade de considerar o acordo incumprido e apresentar a pagamento o cheque no valor de 32.822,30 €.

Ora, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado e esta deve ser realizada integralmente e não por partes, como dispõem os artigos 762º nº 1 e 763º nº 1 do Código Civil.

Ao contrário do credor, que pode exigir o cumprimento parcial da prestação que lhe é devida, sem embargo de vir exigir mais tarde o remanescente da prestação, o devedor está adstrito ao seu cumprimento por inteiro.

Em consequência, caso o credor não aceite apenas uma parte da prestação, não ocorrerá mora accipiendi, nos termos do disposto no artigo 813º nº 1 do Código Civil, mas mora solvendi. Só assim não será se se verificar alguma excepção ao princípio contido no nº 1 do artigo 763º resultante, designadamente, de convenção das partes contratantes ou da lei (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 1968, pág. 3).

Nos presentes autos apenas se provou que no dia 29 de Agosto de 2012, quando o executado AA se dispunha a proceder ao pagamento das duas primeiras prestações, foi-lhe transmitido pelo advogado do exequente que os pagamentos não seriam aceites e que o cheque subscrito pelos seus pais seria apresentado a pagamento.

Não provaram os recorrentes, como lhes competia, que, conforme acordado, tivesse sido também oferecida ao exequente a entrega dos cheques que titulariam cada uma das fracções em que tinha sido desdobrado o montante total em dívida, entrega indispensável para a realização integral da prestação devida.

O que significa que apenas foi oferecido ao credor o cumprimento parcial da prestação, pelo que a recusa do seu recebimento se fundou em motivo justificado, não o fazendo incorrer em mora accipiendi. A mora no cumprimento da obrigação é neste caso imputável ao devedor por força da presunção contida no nº 1 do artigo 799º do Código Civil, que não foi ilidida.

Não obstante o prazo se tenha por estabelecido a favor do devedor, à luz do disposto no artigo 799º nº 1 do Código Civil, o incumprimento culposo do devedor principal determinou o vencimento de todas as prestações estipuladas (artigo 781º do mesmo código), permitindo ao exequente exigir o pagamento da totalidade da quantia em dívida inscrita no cheque que serve de base à execução (32.822,30€) aos recorrentes, cuja responsabilidade deriva quer da relação cambiária, enquanto sacadores do cheque, quer da relação extracartular, por força da fiança que prestaram.


Improcedem, em consequência, as conclusões da alegação dos recorrentes, merecendo o acórdão recorrido confirmação, embora com fundamentação diversa.


III. Decisão:

Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 24 de Março de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro