Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S3957
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
DIREITO A REPARAÇÃO
ROUBO
ESTICÃO
Nº do Documento: SJ200703280039574
Data do Acordão: 03/28/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. A noção de acidente de trabalho reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho.
2. No domínio da LAT de 1997, para que se qualifique um acidente in itinere como acidente de trabalho basta que ocorra no trajecto normalmente utilizado de ida e regresso para e do local de trabalho e durante o período ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo quando esse trajecto tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
3. A circunstância do acidente de trabalho ter resultado de um roubo por esticão perpetrado por terceiro, quando a trabalhadora regressava ao seu domicílio, após ter terminado o trabalho, a pé e pelo trajecto habitualmente utilizado, não exclui o direito à sua reparação.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Em 30 de Março de 2004, no Tribunal do Trabalho de Braga, FUNDO DE ACIDENTES DE TRABALHO (FAT) e AA, filha da sinistrada BB, ambos representados pelo Ministério Público, intentaram acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho contra COMPANHIA DE SEGUROS …, S. A., pedindo a condenação da ré a pagar: (i) ao primeiro autor, a quantia de € 15.611,82, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro; (ii) à segunda autora, a quantia de € 332,44 relativa a indemnização por incapacidade temporária absoluta da sinistrada, entre 25 de Março de 2002 e 6 de Junho de 2002, e € 1.292,04 atinentes a despesas de funeral da sinistrada.
Alegaram, em síntese, que, no dia 25 de Março de 2002, pelas 22,30 horas, quando a sinistrada regressava a casa, a pé, após ter terminado a jornada de trabalho, foi abordada por um indivíduo, que, conduzindo um veículo automóvel ligeiro, lhe arrancou a carteira que transportava consigo, puxando-a com tal violência que a projectou contra o solo, arrastando-a durante vários metros e fazendo-lhe passar por cima do tronco as rodas daquele veículo automóvel, do que resultou para a sinistrada lesões várias que foram a causa da sua morte, ocorrida em 6 de Junho de 2002.
A ré contestou alegando que aquele acidente não se pode qualificar como de trabalho, porque derivado de um assalto, estando expressamente excluído do âmbito da cobertura do contrato de seguro em causa, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), das condições gerais da apólice, acrescendo que o trajecto para casa não foi realizado no período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pela trabalhadora.
Após o julgamento, foi proferida sentença que, entendendo que o acidente sofrido pela sinistrada deve ser considerado como acidente de trabalho, não estando excluído do âmbito de cobertura do seguro em causa, condenou a ré a pagar, ao primeiro autor, a quantia de € 15.611,82, nos termos do artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 100/97, e, à segunda autora, a quantia de € 332,44 de indemnização por incapacidade temporária absoluta de sua mãe.
2. Inconformada, a ré apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida, sendo contra esta decisão que a ré se insurge, mediante recurso de revista, em que pede a revogação do acórdão recorrido ao abrigo das seguintes conclusões:
– O sinistro dos autos resultou de um acto doloso de terceiro caracterizável como um assalto (roubo), previsto e punido na legislação penal;
– Os acidentes in itinere ou de percurso são acidentes de trabalho quando as condições em que se realiza o percurso de ida para o trabalho e/ou regresso, condições essas impostas pela relação laboral, sujeitam o trabalhador a um risco particular das condições do percurso, e se verifique um nexo de causalidade entre o acidente e o mencionado risco;
– A morte da vítima resultante de diversas lesões cuja causa foi um assalto por esticão, devido a razões totalmente estranhas à relação laboral, ocorrido quando a mesma se deslocava para casa, não constitui acidente de trabalho — a sinistrada foi vítima desse assalto, tendo caído e sido atropelada pelo veículo onde seguia o agressor;
– Ora, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), das condições gerais da apólice, estão expressamente excluídos do âmbito da cobertura do contrato de seguro em causa os acidentes devidos a assaltos ou actos caracterizáveis como distúrbios sociais, que foi o que sucedeu, realmente, no presente caso;
– O facto da vítima ter sido alvo de crime previsto e punido no Código Penal, é espelho de que o trajecto acarretava um risco anormal, atento o local, modo e hora, ficando assim excluídos os pressupostos de indemnização previstos na lei e na apólice;
– E é necessário que haja nexo de causalidade entre o acidente e os riscos particulares do percurso, cabendo ao sinistrado o ónus da prova;
– Ora, não resulta provada a existência de factualidade concretizadora de um risco particular e específico à actividade profissional do sinistrado ou de um risco agravado, sendo certo que esse ónus lhe pertencia nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil;
– De facto, a vítima circulava numa via pública onde não corria qualquer risco específico relacionado com o trabalho, mas tão-somente o risco comum e genérico a todos que fazem o mesmo percurso;
– A morte da vítima, resultante de diversas lesões cuja causa foi um assalto por esticão, devido a razões totalmente estranhas à relação laboral, ocorrido quando a mesma se deslocava para casa, não constitui acidente de trabalho — neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 1999, proferido na Revista n.º 183/99, da 4.ª Secção.
Os recorridos não contra-alegaram.
3. No caso, a única questão suscitada cinge-se a saber se o acidente em causa se pode qualificar como de trabalho e dá direito à correspondente reparação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
1. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:
a) No dia 25 de Março de 2002, na Rua …, Braga, BB, divorciada, nascida a 18 de Novembro de 1958, sofreu um acidente, que consistiu no facto de, quando caminhava pelo passeio daquela Rua …, em direcção a sua casa de domicílio, ter sido lançada violentamente contra o solo e ter sido arrastada pelo chão durante alguns metros e, desse modo, metida entra as rodas de um veículo automóvel em movimento, ligeiro, de matricula …, tendo as rodas deste passado por cima do tronco dela [alínea a) da matéria de facto assente];
b) A queda, o arrastamento e o que se seguiu foi causado por acção do puxão, com intenção de roubar, da carteira que a BB levava ao ombro ou na mão, arrastada por um indivíduo de nome CC, o qual se fazia transportar no veículo referido na alínea anterior [alínea b) da matéria de facto assente];
c) Em consequência do que se referiu nas alíneas anteriores, a BB sofreu lesões graves, nomeadamente nos membros superiores e inferiores e no tórax, descrito no relatório de autópsia ao cadáver daquela, lesões que produziram hemorragia subsequente a cirurgias para correcção de sequelas do traumatismo torácico, que foi causa directa e necessária da morte daquela [alínea c) da matéria de facto assente];
d) O acidente ocorreu depois da BB efectuar limpezas na Universidade do Minho ao serviço, debaixo da direcção, ordem e fiscalização da DD, Companhia De Limpeza, L.da, com sede na Estrada Nacional n.º …, n.º …, 2.º Dtº, …, …, Porto, a quem estava ligada por contrato de trabalho, mediante salário [alínea d) da matéria de facto assente];
e) A BB faleceu no estado de divorciada, deixando como herdeira a sua única filha, a A. AA [alínea e) da matéria de facto assente];
f) Pelos factos criminosos de que a BB foi vítima, o autor dos mesmos, o CC, já foi condenado por acórdão, transitado em julgado, proferido em 14/11/2002, na Vara de Competência Mista do Tribunal de Braga [alínea f) da matéria de facto assente];
g) A DD transferiu a sua responsabilidade por acidente de trabalho da BB para a Companhia de Seguros …, S. A., por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 14/9500361, sendo a retribuição segura de € 348,00 x 14 meses + € 9,24 x 11 meses + € 19,18 x 12 meses [alínea g) da matéria de facto assente];
h) O acidente referido nas alíneas a) e b), ocorreu às 22:30 horas, quando a BB regressava ao seu domicílio, pelo caminho mais directo, a pé e pelo passeio, como o fazia habitualmente [respostas aos n.os 1 e 2 da base instrutória];
i) O horário de trabalho da BB era das 18:00 horas às 22:00 horas, de 2.ª a 6.ª feira, e das 14:00 às 19:00 horas, aos sábados, e o local de trabalho era a Universidade do Minho [resposta ao n.º 3 da base instrutória];
j) O CC faleceu no dia 9 de Fevereiro de 2003 e a A. AA não recebeu daquele qualquer indemnização pelo acidente e morte da mãe dela [resposta ao n.º 4 da base instrutória];
l) Não é provável que venha a ser ressarcida pelo mesmo CC [resposta ao n.º 5 da base instrutória];
m) A BB esteve 73 dias com incapacidade temporária absoluta (ITA), entre o dia 25 de Março de 2002 e o dia 6 de Junho de 2002 [resposta ao n.º 6 da base instrutória];
n) O local onde ocorreu o assalto à BB é zona de grande afluxo de pessoas durante o dia, mas quase desertificado à noite [resposta ao n.º 13 da base instrutória].
Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra que ocorra qualquer das situações que permitam ao Supremo alterá-los ou promover a sua ampliação (artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil), por conseguinte, será com base nesses factos que há-de ser resolvida a questão suscitada no presente recurso.
2. O acidente dos autos ocorreu em 25 de Março de 2002, pelo que o regime jurídico aplicável é o da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.
O artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, adiante designada por LAT, caracteriza como acidente de trabalho «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte». Mas logo o n.º 2 do mesmo normativo estabelece a extensão do conceito de acidente de trabalho a outras situações, entre as quais figuram os acidentes in itinere, isto é, os ocorridos no «trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior» [alínea a)].
Segundo o n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LAT estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador: (a) entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho; (b) entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e os mencionados nas alíneas a) [local do pagamento da retribuição] e b) [local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente] do número 4 [deste artigo]; (c) entre o local de trabalho e o local da refeição; (d) entre o local onde por determinação da entidade empregadora presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual.
Por seu turno, o n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99 dispõe que não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
2.1. Em geral, considera-se acidente, o acontecimento repentino, fortuito e desagradável (cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, volume I, Editorial Enciclopédia, L.da, Lisboa, Rio de Janeiro, Agosto de 1978, p. 259, e Dicionário da Língua Portuguesa, Dicionários Editora, 8.ª edição, Porto Editora, 1998, p. 22).
Discorrendo sobre o conceito de acidente de trabalho, MÁRIO BIGOTTE CHORÃO (Direito do Trabalho, volume II, lições policopiadas, Instituto de Estudos Sociais, Lisboa, 1970-1971, p. 127-128) define-o «como uma alteração do organismo determinada por uma causa violenta que actua por ocasião do trabalho e que provoca a morte do trabalhador ou a sua incapacidade para o trabalho», logo acrescentando, no que respeita ao requisito «ocasião do trabalho», que este requisito se considera preenchido nos chamados acidentes in itinere, «aduzindo-se que o trabalhador se expõe ao risco do trajecto para cumprimento das obrigações laborais, em suma, por motivos do trabalho», por isso, «ainda de algum modo, neste caso, a causa violenta e danosa actuará por ocasião do trabalho».
Por seu lado, FELICIANO TOMÁS RESENDE (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1971, p. 16--18), dando conta das redacções ensaiadas durante os trabalhos preparatórios da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, e em anotação à Base V daquela Lei (Conceito de acidente de trabalho), refere que o texto final desse preceito «corresponde ao da proposta governamental, depois de substituída a palavra evento por acidente e de eliminada a expressão salvo quando a este inteiramente estranho, conforme uma proposta de substituição e de eliminação apresentada por um grupo de deputados e largamente discutida na Assembleia Nacional (v. Diário das Sessões, de 22-4-965, págs. 4805 a 4809), constando da intervenção de um dos autores da proposta de alteração que se eliminou a expressão salvo quando a este inteiramente estranho, “por se entender que esse elemento descaracterizador tinha assento noutro local e já aí estava compreendido tudo quanto pode descaracterizar o acidente”. Por outro lado, parece depreender-se da discussão havida que se reputou a palavra evento de significado inconvenientemente amplo, preferindo-se, com prejuízo do rigor formal da definição (tautologia), o termo acidente, com o sentido, em geral aceite pela doutrina e pela jurisprudência, de acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa (v., por ex., os acórdãos do STA de 16-11-937, 26-5-953 e 9-3-954, respectivamente, na Colecção, II, 381, XV, 285, e XVI, 122).»
Para MELO FRANCO («Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais», Direito do Trabalho, B.M.J., Suplemento, Lisboa, 1979, p. 62), citando SACHET, acidente é «o acontecimento anormal, em geral súbito, ou pelo menos de uma duração curta e limitada, que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano».
Especificamente sobre o actual âmbito de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, p. 779), citando CUNHA GONÇALVES e CARLOS ALEGRE, salienta que o acidente de trabalho «pressupõe que seja súbito o seu aparecimento, assenta numa ideia de imprevisibilidade quanto à sua verificação e deriva de factores exteriores».
Nesta linha de entendimento, refira-se que o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, veio a acolher como noção de acidente de trabalho, «o sinistro, entendido como acontecimento súbito e imprevisto, sofrido pelo trabalhador que se verifique no local e no tempo de trabalho» (artigos 284.º, n.º 1).
Justifica-se, ainda, uma brevíssima nota de direito comparado.
Em França, François Gaudu (Droit du Travail, 2.ª edição, Dalloz, Paris, 2007, p. 151), professor na Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne), sintetizando a evolução do conceito de acidente de trabalho, refere que «l’accident du travail, autrefois caractérisé par l’action soudaine e violente d’une cause extérieure, se définit aujourd’hui essentiellement par le caractère de soudaineté d’une lésion».
Tudo para concluir que a noção de acidente de trabalho se reconduz a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho.
2.2. Perante o acervo factual dado como provado, não se pode deixar de concluir, como concluíram as instâncias, que estão reunidos os pressupostos para que se possa qualificar o sinistro dos autos como um acidente in itinere, considerado por lei como de trabalho.
Na verdade, o acidente que vitimou a sinistrada ocorreu trinta minutos após esta ter terminado o trabalho, quando regressava ao seu domicílio, pelo caminho mais directo, a pé e pelo passeio, como fazia habitualmente [facto assente h)].
A anterior Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, também contemplava expressamente o acidente in itinere, «ocorrido na ida para o local do trabalho ou no regresso deste», porém, de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 2 da sua Base V, para que tal acidente fosse qualificado como acidente de trabalho impunha-se que tivesse sido utilizado meio de transporte fornecido pela entidade patronal, ou que o acidente fosse consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras circunstâncias que agravassem o risco do mesmo percurso.
Essas condições foram eliminadas na actual LAT, diploma aplicável no caso e segundo o qual, como já se disse, para que se considere um acidente de trajecto como acidente de trabalho basta que ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo quando esse trajecto sofra interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
De facto, conforme se afirmou no acórdão recorrido, «[t]al significa que a demonstração da verificação dos pressupostos dos acidentes in itinere, ocorridos desde 2000-01-01, como sucede in casu, depende apenas da prova de que o trabalhador se deslocava para o trabalho ou regressava dele — independentemente de ir a pé, de utilizar meio de transporte público, próprio ou fornecido pela entidade empregadora — e de que no trajecto foi utilizado um percurso normal, sem desvios — elemento espacial — ou interrupções — elemento temporal — para além do legalmente consentido».
É, assim, despropositada a alusão que a recorrente faz ao decidido no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20 de Outubro de 1999, Revista n.º 183/99, da 4.ª Secção, já que o mesmo foi proferido no domínio de diferente legislação — a Lei n.º 2.127 que exigia que o acidente de trajecto fosse consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras circunstâncias que agravassem o risco do mesmo percurso, ao contrário do regime jurídico aplicável, a actual LAT — e reporta-se a uma situação que não apresenta identidade factual com o caso em apreciação.
2.3. Por outro lado, a circunstância do acidente de trabalho ter resultado de um roubo por esticão perpetrado por terceiro não exclui o direito à sua reparação.
O artigo 7.º da LAT dispõe que «[n]ão dá direito a reparação o acidente: a) que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; b) que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, ou for independente da vontade do sinistrado, ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o seu estado, consentir na prestação; d) que provier de caso de força maior».
Por sua vez, o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99 esclarece a noção de causa justificativa da violação das condições de segurança estabelecidas na lei ou pela entidade empregadora (n.º 1) e delimita o conceito de negligência grosseira (n.º 2).
Ora, é manifesto que, no caso em apreciação, não se verifica qualquer das situações enunciadas nos citados normativos, pelo que, não está excluído o direito à reparação do acidente de trabalho, genericamente conferido pelo artigo 1.º da LAT.
Acresce, tal como se decidiu no acórdão recorrido, que «a circunstância de o acidente ser imputável a facto de terceiro, não exclui a respectiva reparação, nem dispensa a entidade responsável, in casu, a seguradora, ora R., de indemnizar as suas consequências danosas e aquelas que derivam da lei, podendo apenas esta exercer o seu direito de regresso contra o referido terceiro, atento o disposto no artigo 31.º, n.os 1 e 4 da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro».
3. Resta examinar a argumentação deduzida na conclusão 5.ª da alegação do recurso, segundo a qual, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), das condições gerais da apólice, estão expressamente excluídos do âmbito da cobertura do contrato de seguro em causa «os acidentes devidos a assaltos ou actos caracterizáveis como distúrbios sociais», o que, segundo a recorrente, foi o que sucedeu, realmente, no presente caso.
A norma aduzida prevê que, «[a]lém dos acidentes excluídos pela legislação aplicável, não ficam, em caso algum, abrangidos pelo presente contrato: […]; b) os acidentes devidos a distúrbios laborais, tais como assaltos, greves e tumultos».
Como bem se extrai da formulação literal daquele preceito, os assaltos e os tumultos enunciados são tidos como distúrbios laborais do mesmo tipo da greve, o que implica a configuração do assalto como um distúrbio laboral no âmbito do qual surgisse um acidente que desse origem a responsabilidade da entidade patronal.
Ora, como também se afirma no acórdão recorrido, «um assalto por esticão, como sucedeu na hipótese vertente, não é configurável como um acontecimento anormal no local de trabalho, um distúrbio laboral, pois estamos perante um evento ocorrido na via pública, não compaginável com um assalto, uma greve ou uma alteração da ordem pública, no local de trabalho. Daí que, também por este lado, não esteja a R. dispensada de reparar o acidente dos autos, pois não há qualquer exclusão da cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho, que havia celebrado oportunamente com a entidade empregadora.»
Não há, pois, motivo para alterar o julgado.
III
Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 28 de Março de 2007

Pinto Hespanhol (relator)
Vasques Dinis
Fernandes Cadilha