Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8476/03.8TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
ACTUAÇÃO DO MEDIADOR
ILICITUDE
RESPONSABILIDADE DA MEDIADORA
RESPONSABILIDADE CIVIL
RISCO
AUXILIAR DO DEVEDOR
SEGURO OBRIGATÓRIO
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO IMOBILIÁRIO - ACTIVIDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA / RESPONSABILIDADE E GARANTIAS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, p.102, em comentário ao art. 800º do Código Civil.
- Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, págs. 248 a 256.
- Carlos Lacerda Barata, no Estudo “Contrato de Mediação”, publicado no volume I da obra “Estudos do Instituto de Direito do Consumo” – Julho de 2002 – pp. 192, 202/203.
- Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Colecção Teses, Almedina, pp. 656-657.
- Menezes Cordeiro, “Do Contrato de Mediação”, Revista “O Direito”, Ano 139º, 2007, III, pp.516 a 554.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. I, em anotação ao citado normativo, pp. 509/510.
- Vaz Serra, na RLJ, 100-343.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 500.º, 800.º, N.º1.
D.L. N.º77/99, DE 16-3: - ARTIGOS 23.º, 24.º, N.º2, ALÍNEA C).
Sumário :

1. A responsabilidade objectiva dos auxiliares do devedor – art. 800º, nº1, do Código Civil – havendo incumprimento da obrigação, superada a construção jurídica que radicava tal responsabilidade na teoria da culpa “in eligendo”, ou na “culpa in vigilando”, inscreve-se, hoje, com mais propriedade nos princípios tutela da aparência e da confiança, segundo os quais, quem incute, pela sua actividade e comportamento nas relações jurídicas, expectativas de confiabilidade e segurança, deve arcar com as consequências da frustração desses valores.

2. No contrato de mediação, a relação de confiança entre o mediador e os seus auxiliares dependentes ou independentes é particularmente estimulada pelos contactos existentes entre alguém que tem por objectivo aproximar os interessados num certo negócio.

3. Não pode a mediadora imobiliária pretender exonerar-se de responsabilidade, por prática de actos ilícitos, praticados pelos seus agentes, colaboradores ou auxiliares, desde que tais actos se emoldurem no quadro do exercício profissional da sua actividade e exprimam actuação ilícita.

4. Esse risco corre, objectivamente, por conta do comitente, desde que a actuação do comitido/auxiliar se inscreva no quadro funcional daquele e exista actuação sua ilícita, culposa, bem como dano resultante da actuação ilícita e danosa.

5. Tendo um funcionário de empresa mediadora imobiliária recebido, com autorização desta, uma quantia a título de sinal no contexto de contrato promessa de compra e venda de três fracções prediais, quantia que descaminhou, desconhecendo-se até o seu paradeiro, é a sociedade mediadora imobiliária responsável objectivamente pelo prejuízo que, no caso, é a perda do sinal pelos promitentes compradores.

6. Sendo as sociedades mediadoras imobiliárias obrigadas por lei a prestar caução e a celebrar contrato de seguro obrigatório como garantia de ressarcimento dos danos patrimoniais causados aos interessados decorrentes de acções ou omissões, quer das empresas, quer dos seus representantes, ou do incumprimento de “outras obrigações resultantes do exercício da sua actividade”, os lesados podem lançar mão do seguro obrigatório, sem terem que, previamente, accionar a caução.
Decisão Texto Integral:

Proc.8476/03.8TBCSC.L1.S1.

R-446[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA e BB instauraram, em 21.10.2003, no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais – 3º Juízo Cível – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

 Companhia de Seguros “CC, S.A.

 Pedindo que a Ré seja condenada no pagamento do valor por eles entregue e do lucro que deixaram de obter, além dos juros, por ser a Ré seguradora da sociedade de mediação imobiliária.

Para fundamentarem a sua pretensão alegam, em síntese, que acordaram com a sociedade de mediação imobiliária “DD, Lda.”, através do seu empregado EE, um negócio de investimento que consistiu na celebração de três contratos promessa de compra e venda de fracções de um imóvel em construção, que aquela sociedade se comprometeu depois a comercializar com um lucro, para os AA., de € 10.000,00 por fracção.

Assim, os AA. entregaram, ao referido empregado da mediadora, um cheque no valor de € 56.862,96 de sinal referente aos três contratos, que foram também subscritos em momentos diferentes e através da mediadora, pela construtora do imóvel, a sociedade “FF, Lda.”.

Vieram depois a saber que esse cheque não foi entregue à construtora do imóvel, tendo sido levantado pelo referido empregado da mediadora.

Regularmente citada, veio a Ré contestar, referindo que poderá estar em causa apenas o cumprimento dos contratos promessa e não qualquer responsabilidade derivada da actividade da sua segurada.

A Ré veio requerer a intervenção principal das sociedades “DD, Lda.” e “FF, Lda.”, e ainda de EE.

O pedido foi deferido em relação às duas sociedades e indeferido quanto ao último.

A Ré Companhia de Seguros “CC, S.A.”, inconformada com a decisão que indeferiu a intervenção principal de EE, dela interpôs recurso de agravo.

 

A interveniente “DD, Ldª” apresentou contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação.

Em sede de excepção, invocou a incompetência territorial do Tribunal, em virtude da existência de uma queixa-crime.

Em impugnação, alegou que o EE não era seu empregado, que desconhece os factos e que não fez suas as quantias indicadas pelos Autores.

Os AA. replicaram, mantendo a posição já defendida na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador a julgar improcedente a excepção de incompetência do Tribunal e a seleccionar a matéria de facto provada e a provar.


***

            A final foi proferida sentença que decretou:

“Nestes termos e com os fundamentos mencionados, julga-se a acção parcialmente procedente por provada e condenam-se as Rés Companhia de Seguros CC e “DD” no pagamento aos Autores da quantia de € 56.862,96, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até pagamento, absolvendo-se do restante pedido. […].


***

 

A Ré Companhia de Seguros “CC, S.A.” apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 29.10.2013 – fls. 420 a 439:

- Negou provimento ao agravo interposto pela Ré Companhia de Seguros “CC, S.A.”, confirmando a decisão recorrida.

- Negou provimento ao recurso de apelação interposto pela Ré Companhia de Seguros “CC, S.A.”, confirmando na íntegra a Sentença recorrida.


***

De novo inconformada, a Ré seguradora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e a, alegando, formulou as seguintes conclusões:

a) O negócio celebrado entre a segurada da ora recorrente e os ora recorridos não foi de mediação imobiliária, tendo em consideração a definição legal e os requisitos da actividade de mediação dada pela doutrina.

 b) Tal negócio traduziu-se, como se diz no Acórdão recorrido, num investimento, traduzido no pagamento de uma quantia por cada fracção a construir num certo prédio, com posterior recebimento, pelos ora recorridos, dos valores assim investidos acrescidos de uma margem de lucro e quando as mesmas fracções fossem vendidas a outrem.

c) Tal negócio não tem os contornos da prática de actos materiais com vista ao encontro de vontades entre eventuais contraentes com vista à celebração de um negócio entre ambos.

d) Porque assim é, o contrato de seguro dos autos não abrange os danos eventualmente causados pela DD na concretização de tal negócio, visto que aquele apenas garante os danos emergentes da actividade de mediação imobiliária.

e) Porque os alegados danos dos AA. não resultaram do exercício pela DD de uma actividade classificável como de mediação imobiliária, aqueles não estão garantidos pelo contrato de seguro ajuizado.

f) Os ora recorridos celebraram, porém, três contratos-promessa de compra e venda, cada um relativo a uma fracção a constituir num prédio ainda em construção. Ora,

g) Ou tais contratos são válidos — e os ora recorridos não podem, ou não podiam, deixar de os cumprir — ou tais contratos não são válidos pela exclusiva razão de terem sido celebrados com reserva mental pelos ora recorridos.

h) No primeiro caso — serem os contratos válidos —, deveriam os AA. ter promovido o seu cumprimento, marcando as respectivas escrituras e convocando a FF para nestas comparecer e celebrar os negócios prometidos.

i) Se o não fizeram, tornaram-se os AA. os incumpridores, já que a eles cabia a marcação das escrituras.

j) De qualquer modo, não se alegou nem demonstrou nos autos que os ora recorridos tivessem pretendido cumprir os contratos — e que os mesmos não foram cumpridos pela FF — do que resulta que estes ainda podem ser cumpridos ou, não o podendo, tal só pode dever-se à conduta dos próprios recorridos por não terem cumpridos as obrigações que para si decorriam desses contratos-promessa, como a de marcar as escrituras e convocar a promitente-vendedora para as mesmas.

k) Numa situação como noutra, os AA. não têm o direito de repetir o que prestaram.

l) Se os contratos-promessa são inválidos face à reserva mental dos próprios AA. — e outra causa não se vislumbra — então não se vê porque haja dano por parte de quem deu causa a essa invalidade.

m) Com o que, também por abuso de direito, não teriam os ora recorridos direito a qualquer indemnização.

n) O Acórdão recorrido, como já o fizera a sentença recorrida, não enumera quais os actos ou omissões concretamente praticados pela DD e que possam ter sido geradores de responsabilidade sua e, menos ainda, que a mesma estivesse transferida para a ora recorrente.

o) A menção ao art. 24°, n°2, alínea c), do Decreto-Lei n° 77/99, de 16 de Março, não supre essa falta, já porque aí se definem garantias de responsabilidades dos mediadores imobiliários — e não a génese de tais responsabilidades —, já porque tais actos ou omissões estão tipificados no art. 18° desse diploma, aí se definindo as obrigações que, violadas por actos ou omissões, geram as responsabilidades a garantir nos termos das normas citadas.

p) Ora, não se vislumbra que actos ou omissões foram praticados pela DD de forma a gerarem uma responsabilidade civil desta.

q) Até porque não resulta dos factos assentes quem realmente recebeu os sinais prestados — se a DD, se o EE, se o sócio-gerente da FF em nome de quem os cheques estavam endossados, ou até mesmo se as quantias não foram recebidas pela FF, já que a única coisa que ficou demonstrada foi que esta nunca pediu a entrega de tais quantias — facto 22°.

r) E não se podendo afirmar que a DD ou o EE se apoderaram desses valores, não há como responsabilizar a primeira e, menos ainda, a ora recorrente pela devolução dessas quantias.

s) Como quer que seja, a garantia dessa eventual responsabilidade da DD, a enquadrar então na violação da alínea f) do n° 1 do art. 18° do diploma aqui em causa, só subsidiariamente, e no que excedesse a caução necessária ao exercício da actividade de mediação imobiliária, seria o seguro de responsabilidade civil ajuizado.

t) Isto é, a garantia dessa eventual responsabilidade estaria prevista, não na alínea c), mas na alínea a) do n° 2 do art. 24° do diploma em causa, pelo que os ora recorridos apenas teriam direito a ser ressarcidos por força do contrato de seguro ajuizado após e se se esgotasse a caução prestada pela DD.

u) Com o que, também com estes fundamentos a acção teria de improceder.

v) Foram violadas as normas dos arts. 244°, 334°, 410° e seguintes, 483° e seguintes, 562° e seguintes e 879°, todos do Código Civil, e 3°, 18°, 19°, 23° e 24° do Decreto-Lei n° 77/99, de 16 de Março.

Termos em que deve ser revogado o Acórdão recorrido e, julgando-se a acção improcedente por não provada, deve a ora recorrente ser absolvida do pedido.

Não houve contra-alegações.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) - A Ré celebrou com a Associação Portuguesa GG um contrato de seguro titulado pela apólice nº …, cuja cópia consta de fls. 60, com o limite de 50.000.000$00 por período de seguro e sinistro, ao qual aderiu a Ré “DD – …, Lda.”, seguro regulado pelas condições da “Apólice Uniforme de Responsabilidade Civil das Entidades Mediadoras Imobiliárias”.

2) - Nos primeiros meses do ano de 2000, nos escritórios da Ré “DD, Lda.”, em ..., foi promovida, sob orientação de EE, a captação de interessados num investimento, que consistia na entrega da quantia de 3.800.000$00 por fracção de um prédio a construir/ou em construção, pela sociedade “FF, Lda.”, em 18 meses, com posterior recebimento, na ocasião da venda das fracções a outrem, da mesma quantia acrescida de uma percentagem de lucro.

3) - Para o efeito, EE contratou com aquela sociedade em que aqueles escritórios ficavam com o exclusivo das vendas dos andares.

4) - E seriam assinados contratos de compra e venda, onde as quantias entregues constavam como sinal, comprometendo-se os colaboradores dos mesmos escritórios perante os interessados, a que, finda a construção, os mesmos escritórios tratariam da respectiva venda.

5) - Por volta de Outubro de 2002, os AA. entraram em contacto com a construtora.

6) - Tendo sido informados pela mesma que não havia recebido nenhum pagamento de sinal referente aos contratos.

7) - O que efectivamente correspondia à realidade.

8) - Os AA. exigiram ser indemnizados pela “DD, Lda.” o que a mesma recusa.

9) - EE utilizava as instalações da “DD, Lda.”.

10) - Encontrando-se colectado como empresário em nome individual para o exercício da actividade de comissionista, venda de imóveis.

11) - No dia 9/5/2000, foram celebrados três contratos promessa de compra e venda, entre a “FF, Lda.” e os A.A., referentes às fracções autónomas “AA”, “AB” e “D”, do imóvel sito no ..., ..., ..., Oeiras.

12) - Esses contratos foram assinados pelos AA. nos escritórios da “DD, Lda.”, em ..., tendo sido entregue, por cheque, nesse mesmo dia e depois daquela assinatura, ao chefe do escritório, EE, o montante de 11.400.000$00 (56.862,96 €), referido como sinal nos contratos.

13) - O cheque foi emitido à ordem do sócio-gerente da construtora, HH.

14) - Os AA. não assinaram os contratos em simultâneo com o gerente da “FF, Lda.”.

15) - Os AA. receberam uma cópia de cada contrato, com a assinatura do gerente desta sociedade reconhecida notarialmente.

16) - EE era o responsável pelo referido escritório da “DD, Lda.”.

17) - Onde permanecia e exercia actividade.

18) - Recebia orientações da “DD, Lda.” sobre o exercício da actividade de mediação imobiliária que a mesma desenvolvia e transmitia-as aos colegas.

19) - Recebia clientes, efectuava apresentações e celebrava contratos.

20) - Uma parte da comissão das vendas conseguidas ficava para a Agência e a outra parte para o vendedor.

21) - As referidas instruções eram-lhe transmitidas em reuniões regulares que tinham lugar nos escritórios da “DD, Lda.” em Lisboa.

22) - A “FF, Lda.” nunca solicitou à “DD, Lda.” a entrega das quantias acima referidas.

23) - EE ausentou-se para parte incerta.

Fundamentação:

            Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a recorrente, na veste de seguradora da “DD”, tendo em conta a actuação de EE, é responsável pela indemnização peticionada pelos AA.

            Os AA. celebraram três contratos-promessa de compra e venda de três fracções autónomas, tendo acertado os termos do negócio com EE, ao tempo trabalhador da “DD”, a quem entregaram a título de sinal € 56 862,96, sendo as fracções prediais propriedade de FF, promitente-vendedora.

            O montante do sinal foi apropriado pelo EE que, entretanto desapareceu, isto apesar do cheque no referido montante ter sido emitido à ordem do sócio-gerente da construtora FF, HH.

           

            A “DD” dedica-se a actividade de mediação imobiliária como, desde logo, resulta do contrato de seguro referido em 1) dos factos provados.

            EE era comissionista da DD e foi ele quem promoveu a aproximação dos AA. interessados compradores de fracções que a FF iria vender-lhes.

Não há dúvida que EE era comissionista da DD, trabalhando sob a orientação dela, sendo o responsável pelo escritório onde permanecia e exercia actividade.

 Recebia orientações da “DD, Lda.” sobre o exercício da actividade de mediação imobiliária que a mesma desenvolvia e transmitia-as aos colegas.

 Recebia clientes, efectuava apresentações e celebrava contratos. Uma parte da comissão das vendas conseguidas, ficava para a Agência e a outra parte para o vendedor. As referidas instruções eram-lhe transmitidas em reuniões regulares que tinham lugar nos escritórios da “DD, Lda.” em Lisboa.

Temos assim que a DD, como mediadora através do seu empregado EE celebrou três contratos-promessa, sendo o montante recebido destinado à promitente vendedora FF. Todavia, não ingressou no património desta já que dele se apossou o agora desaparecido EE, colaborador da DD, que “recebia clientes, efectuava apresentações e celebrava contratos”, auferindo parte de comissão pelas vendas.

Ao tempo vigorava o DL. 77/99, de 16.3 sobre o contrato de mediação. 

O Professor Menezes Cordeiro, no estudo “Do Contrato de Mediação”, publicado na Revista “O Direito”, Ano 139º, 2007, III, págs.516 a 554, dá a noção básica de tal contrato nos seguintes termos – pág. 517:

 “Em sentido amplo, diz-se mediação o acto ou efeito de aproximar voluntariamente duas ou mais pessoas, de modo a que, entre elas, se estabeleça uma relação de negociação eventualmente conducente à celebração de um contrato definitivo.

 Em sentido técnico ou estrito, a mediação exige ainda que o mediador não represente nenhuma das partes a aproximar e, ainda, que não esteja ligado a nenhuma delas por vínculos de subordinação”.

Essa actividade pode ter sido acordada num contrato que implica a prática pelo mediador de actos materiais e, por isso, se distingue do contrato de mandato. No citado estudo – pág. 545 – distinguindo-se a mediação da figura afim do contrato de mandato pode ler-se:

“A mediação pressupõe, por parte do obrigado, uma actuação material.

 Além disso, configura-se como um contrato aleatório, só dando azo a retribuição quando tenha êxito.

 A sua distinção perante o mandato fica facilitada:

 - o mandato pressupõe uma actuação jurídica por conta do mandante; a mediação conduz a condutas materiais;

- o mandatário age por conta do mandante; o mediador actua por conta própria;

 - o mandato pode ser acompanhado por poderes de representação; a mediação, a sê-lo, será uma mediação imprópria.”

O mesmo tratadista refere que, na tradição portuguesa, a figura actual do mediador era incluída na de corretor que foi regulada, desde as Ordenações até ao Código Comercial de 1883 de Ferreira Borges, que, no seu art. 102º afirmava – “ O officio de corretor é viril e publico. O corretor e ninguém mais, póde intervir e certificar legalmente os tractos e negociações mercantis”.

 

O artigo 103.° estatuía:

 “As operações dos corretores consistem em comprar e vender para seus committentes mercadorias, navios, fundos públicos, e outros créditos, letras livranças, letras da terra, e outras obrigações mercantis: - em fazer negociações de descontos, seguros, contractos de risco, fretamentos, empréstimos com penhor ou sem elle; — e em geral em prestar o seu ministério nas convenções e transacções commerciaes”. 

Nos arts. 64º a 80º do Código Comercial de 1888 de Veiga Beirão era regulada a matéria atinente aos corretores[2] sendo de realçar que a profissão do corretor “correspondia à de mediador público encartado pelo Estado para o exercício de certas funções” – obra citada – pág. 519.

A figura do contrato de mediação já era, pois, conhecida da doutrina e tinha tratamento jurídico, ainda que num enquadramento que se distancia do vigente enquadramento legal e conceitual.

 Todavia, o elemento essencial do contrato já era perspectivado por Vaz Serra, na RLJ, 100-343, quando definia a mediação como “Um contrato pelo qual uma das partes se obriga a conseguir interessado para certo negócio e a aproximar esse interessado da outra parte”.

Assim, ao tempo da relação estabelecida entre os Autores e EE, este enquanto empregado da DD, “primeiros meses do ano de 2000”, vigorava o DL. 77/99, de 16.3. Antes, vigoraram o DL. nº43.767 de 30.6.1991 até à publicação do DL. 285/92, de 19.12, revogado pelo antes citado DL.77/99.

O nº1 daquele normativo de 1991 estabelecia:

“A actividade comercial de mediador na compra e venda de bens imobiliários e na realização de empréstimos com garantia hipotecária, mobiliária ou imobiliária, só pode ser exercida por pessoas singulares ou sociedades de reconhecida idoneidade, que tenham obtido autorização prévia do Ministro das Finanças, mediante portaria”.  

O diploma de 1991 vigorou por cerca de trinta anos até á publicação do DL. 285/92, de 19.12 que no seu art. 2º definiu – “ (…) Entende-se por mediação imobiliária a actividade comercial em que, por contrato, a entidade mediadora se obriga a conseguir interessado para a compra e venda de bens imobiliários ou para a constituição de quaisquer direitos reais sobre os mesmos, para o seu arrendamento, bem como na prestação de serviços conexos”.

O art. 10º daquele diploma de 1992, além do mais, estabeleceu que o contrato está sujeito a forma escrita – omissão que acarretava a nulidade, que só podia ser invocada pelo comitente [nulidade atípica] – definia a forma de remuneração e a duração do prazo por que vigorava.

Sempre visando a transparência e a protecção do comitente, foram posteriormente publicados os Decretos-Lei 77/99, de 16.3 e 211/2004, de 20.10.

 Para existir mediação imobiliária importa que haja um contrato de natureza civil ou comercial, que o mediador tenha sido, expressa ou tacitamente incumbido pelo comitente, que só fica constituído na obrigação de remunerar o mediador se o negócio incumbido for concretizado em virtude da actividade do mediador, ou seja, a obrigação de meios que lhe incumbe há-de desembocar no resultado pretendido – a celebração do negócio para que foi mandatado o mediador – sob pena de se considerar que o negócio não almejou perfeição e, não surtindo efeito útil a actividade do mediador – o risco, a álea negocial – apenas sobre si impende, pelo que, a menos outra coisa tenha sido convencionada, não há lugar à remuneração (comissão) nem ao pagamento de despesas.

Carlos Lacerda Barata, no Estudo “Contrato de Mediação”, publicado no volume I da obra “Estudos do Instituto de Direito do Consumo” – Julho de 2002 – pág. 192 – define contrato de mediação como o – “Contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover, de modo imparcial, a aproximação de duas ou mais pessoas, com vista à celebração de certo negócio, mediante retribuição”.

Afirmando ainda – “Da noção proposta, decorrem cinco elementos, caracterizadores do contrato: - obrigação de aproximação de sujeitos; - actividade tendente à celebração de negócio; - ocasionalidade; - retribuição”.  

Mais adiante – págs. 202/203:

  “O direito à retribuição depende da celebração do contrato prometido embora seja independente do cumprimento do mesmo.

Só com a verificação de um “resultado útil” – a realização do negócio – da actuação do mediador, este ganha o direito à retribuição.

 Está em causa mais do que a mera exigibilidade; é da própria constituição do direito que se trata.

Pode-se, assim, afirmar que o direito à retribuição está sujeito a condição suspensiva: a celebração do negócio.

 Naturalmente, que só o negócio cuja celebração advenha (exclusivamente ou não) da actuação do mediador relevará, para este efeito.

 A prestação do mediador terá de ser causal, em relação ao negócio celebrado entre o comitente e o terceiro…

Em matéria de direito à retribuição, o momento relevante é o da constituição do contrato promovido, pelo que as ocorrências supervenientes que incidam sobre a execução ou o conteúdo do contrato serão, em regra, indiferentes”.

No caso dos autos, sendo indisputada a actuação da DD como mediadora imobiliária e a de EE como comissionista, com as competências próprias de quem actua por conta do comitente, avulta o facto deste, como se provou, celebrar contratos.

Se o mediador através dos seus empregados apenas exerce por regra actos materiais, visando a aproximação entre os clientes (angariados) e a mediadora/incumbente, no caso, e com particular relevo para as expectativas induzidas pelo comportamento de EE avulta o facto dele celebrar contratos e receber quantias a título de sinal que deveria entregar à mediadora DD ou à promitente vendedora FF.

 EE praticou actos jurídicos do ponto em que recebeu dos AA. um cheque emitido pelo valor do sinal prestado, actuando no contexto das suas funções, sendo que esse acto jurídico se pode até conceber no contexto de representação ou de mandato.

Tendo-se o EE apossado da quantia entregue, por esse facto não é responsável a “DD” e, por via do contrato de Seguro, a recorrente?

Tendo os AA. entregue ao colaborador da “DD” a quantia do sinal destinada à promitente vendedora, e não tendo esta ingressado no seu património existiu um dano patrimonial para os AA. Estão desapossados da quantia que entregaram no cumprimento de um contrato, sem possibilidades de a reaverem, em função do desaparecimento de EE e do facto de poder ser-lhe oposto pela promitente vendedora que não recebeu a quantia a que tinha direito.

Com efeito, a prestação a que se vincularam de pagarem o preço, fazendo a entrega de sinal não teve a contrapartida da celebração do contrato-prometido, sendo indiferente a consideração de saber se a promitente vendedora está ou não interessada na celebração do contrato. A recorrente percute esta tecla para sustentar que os AA. não tiveram prejuízo e actuam até com abuso do direito – art.  334º do Código Civil – quando peticionam o valor que entregaram à DD através de EE.

Sendo o EE, senão representante (já vimos que celebrava contratos com os por si angariados em nome da “DD”, o que pode conduzir à ponderação de actuação sua como mandatário sem representação), ao menos como auxiliar daquela mediadora, a sua actuação, exorbite ou não as funções para que foi contratado pela “DD”, está abrangida pela norma do art. 800º, nº1, do Código Civil que dispõe:

O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.”

 Este normativo consagra previsão de responsabilidade objectiva ou pelo risco, sendo, no caso EE comitido da DD.

O art. 500º do Código Civil estabelece:

“1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

3...”

           

            Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, em anotação ao citado normativo, págs. 509/510 escrevem:

  “A orientação preferível consistirá, pois, em responsabilizar o comitente pelos factos ilícitos do comissário que tenham com as funções deste uma conexão adequada.

Trata-se, afinal, de aplicar, também aqui, num problema de responsabilidade pelo risco, a teoria da causalidade adequada. Sempre que as funções do comissário, segundo um critério de experiência, favoreçam ou aumentem o perigo da verificação de certo dano, deverá o comitente arcar com a respectiva responsabilidade.

            Por outras palavras: deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos actos de que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objectos que lhe foram confiados, ele se encontre numa posição especialmente adequada à prática de tal facto […]. Por consequência, a nota mais característica da situação do comitente é a sua posição de garante da indemnização perante o terceiro lesado.

E não a oneração do seu património com um encargo definitivo (Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, 5ª ed., vol. I, nº 161)”.

            Brandão Proença, in “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações”, págs. 248 a 256, sobre o art. 800º,nº1, do Código Civil, escreve:

 “O devedor, pelo menos quando escolha e dê instruções a pessoas que o coadjuvam no cumprimento, como que garante ao credor que esses auxiliares serão diligentes no adimplemento do dever assumido e, caso não o sejam, responderá pessoalmente pelos prejuízos causados sem poder desculpar-se com a conduta desses “estranhos”. Não se trata, aqui, de o devedor ser substituído no cumprimento (de uma prestação fungível) por um terceiro, interessado ou não, nem sequer de, com a devida autorização, ser substituído por sua iniciativa, mas do próprio devedor ser auxiliado, material ou juridicamente, no cumprimento de prestações fungíveis ou infungíveis (por ex., “dívidas de entrega” ou de “envio”) […]. A responsabilidade do devedor está dependente de o acto danoso ter ocorrido no “cumprimento da obrigação” existente.”.

            Mais adiante, pág.255, escreve – “Relativamente à culpa dos auxiliares, e para afastar a sua responsabilidade objectiva, caberá ao devedor provar que não tiveram culpa ou que, por ex., o dano foi devido unicamente a um comportamento do credor.

Para afastar uma responsabilização directa, baseada, por ex., numa culpa in instruendo, o devedor terá, igualmente, de demonstrar a sua falta de culpa.”

             Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, pág.102, em comentário ao art. 800º do Código Civil, escreve:

            “A responsabilidade lançada sobre o devedor abrange ainda os actos dos seus auxiliares (mandatários, procuradores, comissários, depositários, etc.), contanto que o sejam no cumprimento da obrigação.

 Trata-se de uma verdadeira responsabilidade objectiva, na medida em que para ela se não exige culpa do devedor (na escolha das pessoas, nas instruções para a sua colaboração ou na fiscalização da sua actividade).

Os termos em que a responsabilidade é definida logo mostram, no entanto, quais são os seus limites. O devedor responde, como se os actos dos representantes legais ou dos auxiliares (quer eles sejam meramente culposos, quer sejam mesmo dolosos) fossem praticados por ele próprio (the servant’s act is the master’s act) …

[…] Esta fonte de responsabilidade objectiva do devedor não exprime, porém, nenhum princípio de ordem pública…”.

A responsabilidade objectiva dos auxiliares do devedor, havendo cumprimento defeituoso da obrigação, superada a construção jurídica que radicava tal responsabilidade na teoria da culpa “in eligendo”, ou na “culpa in vigilando”, inscreve-se, hoje, com mais propriedade nos princípios tutela da aparência e da confiança, segundo os quais quem incute, pela sua actividade e comportamento nas relações jurídicas, expectativas de confiabilidade e segurança, deve arcar com as consequências da frustração desses valores.

Carneiro da Frada, in “Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil” – Colecção Teses – Almedina – págs. 656-657, depois de dissertar acerca da responsabilidade pela confiança, imputação e responsabilidade indemnizatória, escreve:

“A doutrina mais autorizada distingue em geral entre uma imputação a título de culpa ou de risco. Não obstante, esta última especificação — de recorte técnico preciso, e a implicar também referentes valorativos bem distintos — apresenta-se radicalmente inadequada quando confrontada com a diversidade da responsabilidade pela confiança em relação à infracção de regras de comportamento.

Se provocar a confiança de outrem não é em si contrário ao Direito e, se, como dissemos, também o defraudar da confiança escapa, em princípio, à ilicitude, não faz summo rigore sentido aplicar à imputação o pensamento da culpa: a censurabilidade predica-se necessariamente de condutas ilícitas, pois o Direito só reprova quem comete estas.

 Porque independente de culpa, a responsabilidade pela confiança é portanto essencialmente uma responsabilidade objectiva, derivada da perturbação de uma relação de coordenação de comportamento que o próprio sujeito originou.” (destaque e sublinhado nosso)

            No contrato de mediação, a relação de confiança entre o mediador e os seus auxiliares dependentes ou independentes é particularmente estimulada pelos contactos existentes entre alguém que tem por objectivo aproximar os interessados num certo negócio.

Não pode a mediadora imobiliária pretender exonerar-se de responsabilidade, por prática de actos ilícitos, praticados pelos seus agentes, colaboradores ou auxiliares, desde que tais actos se emoldurem no quadro do exercício profissional da sua actividade e exprimam actuação ilícita.

Esse risco corre, objectivamente, por conta do comitente, desde que a actuação do comitido/auxiliar se inscreva no quadro funcional daquele, e exista actuação sua ilícita, culposa, bem como dano resultante da actuação lesiva.

            Os AA., imbuídos de boa-fé, tinham fundadas razões para confiarem na actuação de EE, já que este era o responsável pelo escritório da DD, aí exercendo a sua actividade, recebendo instruções da empresa, recebendo clientes, efectuando apresentações e celebrando contratos. Os contratos em causa foram assinados pelos Autores, nos escritórios da “DD”, em ..., tendo sido entregue, por cheque, nesse mesmo dia e depois daquela assinatura, ao chefe do escritório, EE, o montante de 11.400.000$00 (56.862,96 €).

Os Autores não assinaram os contratos em simultâneo com o gerente da “FF”.

            Assente que a “DD” responde pelos actos praticados pelo seu trabalhador, seja ela um auxiliar dependente ou independente por actos praticados no contexto das suas funções, ainda que estranhos a ela mas com ela conexionados, a responsabilidade pelo danos decorrentes da actuação ilícita deste responsabilizam objectivamente a incumbente mediadora imobiliária “DD”.

           

            Quanto à responsabilidade da recorrente.

            O art. 23º estatui:

 “1 — As empresas de mediação são responsáveis pelo pontual cumprimento das obrigações resultantes do exercício da sua actividade.

2 — São ainda solidariamente responsáveis pelos danos causados a terceiros, para além das situações já previstas na lei, quando se demonstre que actuaram, aquando da celebração e execução do contrato de mediação imobiliária, em desrespeito ao disposto nas alíneas a) a e) do n.° 1 e na alínea c) do n.° 2 do artigo 18º.

3 — Consideram-se interessados, para efeitos do presente capítulo, todos os que, em resultado de um acto de mediação, venham a sofrer danos patrimoniais, ainda que não tenham sido parte no contrato de mediação imobiliária.

            O art. 24º:

“1 — Para garantia da responsabilidade emergente da sua actividade perante os interessados, as empresas devem prestar uma caução e realizar um contrato de seguro de responsabilidade civil.

2 — As garantias destinam-se:

a) Ao reembolso dos montantes de que se tenham apropriado em violação do disposto nas alíneas a) e d) do n.° 2 do artigo 18.°;

b) Ao reembolso dos montantes que tenham recebido em violação do disposto no n.°3 do artigo 19.°, sem prejuízo do disposto no n.°2 do mesmo artigo;

c) Ao ressarcimento dos danos patrimoniais causados aos interessados, decorrentes de acções ou omissões das empresas e seus representantes, ou do incumprimento de outras obrigações resultantes do exercício da actividade.”

            Inquestionavelmente que a obrigação da Recorrente decorre da previsão do art. 24º, nº2, c) do DL.nº77/99, de 16.3.

Com efeito, sendo o acto do seu colaborador, ficcionado legalmente como se por si tivesse sido praticado, tratando-se de responsabilidade objectiva, a Recorrente seguradora deve indemnizar os danos patrimoniais causados aos interessados, decorrentes de acções ou omissões dela e seus representantes, ou do incumprimento de outras obrigações resultantes do exercício da sua actividade societária.

Não decorre da lei que os lesados pela actuação da mediadora imobiliária devam recorrer à caução que os mediadores imobiliários são obrigados a prestar – art. 24º – as empresas que se dedicam à mediação imobiliária estão obrigadas a prestar caução e celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil.

O nº2 do referido artigo estabelece que “as garantias” se destinam aos reembolsos a que aludem as als. a) e b) (que aqui não estão em causa) e, ainda, ao ressarcimento dos danos patrimoniais causados aos interessados decorrentes de acções ou omissões quer das empresas, quer dos seus representantes ou do incumprimento de “outras obrigações resultantes do exercício da sua actividade”.

A exigência legal cumulativa da prestação de caução e de seguro de responsabilidade civil às empresas de mediação imobiliária não impõe que os lesados, por actos resultantes da actividade da mediadora ainda que perpretados por seus auxiliares, estejam impedidos de actuar o seguro de responsabilidade civil e não a caução.

Como bem acentua o Acórdão recorrido:

“À data dos factos em causa nos presentes autos, as condições mínimas do contrato de seguro obrigatório estavam fixadas na Portaria nº 371/93, de 1.4, por não ter ainda sido publicada a Portaria aludida no art. 29º do Decreto-Lei nº 77/99 de 16.3 (que veio a ser a Portaria 32/2002 de 9.1).

Ora, nos termos da Portaria nº371/93 de 1.4:

“1º- As entidades mediadoras imobiliárias possuem obrigatoriamente um seguro, destinado a garantir a responsabilidade por danos causados no exercício da sua actividade, (…).

2º- O contrato de seguro garante, no mínimo, o pagamento de indemnizações para ressarcimento dos danos patrimoniais causados ao cliente por acções, omissões ou incumprimento de obrigações da entidade mediadora no exercício profissional da sua actividade (...).

(…)

10º- O conteúdo mínimo obrigatório do seguro (…) deverá constar de apólice uniforme (…).

A apólice uniforme a que se reporta a Portaria 371/93 de 1.4 foi aprovada pela NR 4/96, de 1.2, publicada no D.R. nº 56, III Série, de 6.3.1996.

 Diz-se no art. 2º das condições gerais daquela apólice que o contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade civil profissional emergente da actividade do segurado, na sua qualidade de mediador imobiliário, nos termos da legislação específica aplicável.

E reitera-se no art. 3º, nº1, das condições gerais que o contrato tem por objecto a garantia das indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado, pelos danos patrimoniais que sejam causados aos clientes, decorrentes exclusivamente de acções, omissões ou incumprimento das obrigações do segurado no exercício profissional da actividade de mediação imobiliária, conforme definido na legislação em vigor.

Por seu turno, o art. 1º das mesmas condições gerais define terceiro como o cliente que, em consequência de um sinistro coberto pelo contrato, sofra um dano patrimonial susceptível de, nos termos da apólice, ser reparado ou indemnizado”.

                Decorre, não só da referida Portaria referida, como dos preceitos citados da Lei aplicável ao caso em apreço, que um terceiro lesado, pela actuação da sociedade mediadora imobiliária pode exigir pela via do contrato de seguro de responsabilidade civil o ressarcimento dos danos sem ter que excutir ou sequer actuar, primeiramente, a caução.

            Por quanto dissemos o Acórdão não merece censura.

            Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

1. A responsabilidade objectiva dos auxiliares do devedor – art. 800º, nº1, do Código Civil – havendo incumprimento da obrigação, superada a construção jurídica que radicava tal responsabilidade na teoria da culpa “in eligendo”, ou na “culpa in vigilando”, inscreve-se, hoje, com mais propriedade nos princípios tutela da aparência e da confiança, segundo os quais, quem incute, pela sua actividade e comportamento nas relações jurídicas, expectativas de confiabilidade e segurança, deve arcar com as consequências da frustração desses valores.

2. No contrato de mediação, a relação de confiança entre o mediador e os seus auxiliares dependentes ou independentes é particularmente estimulada pelos contactos existentes entre alguém que tem por objectivo aproximar os interessados num certo negócio.

3. Não pode a mediadora imobiliária pretender exonerar-se de responsabilidade, por prática de actos ilícitos, praticados pelos seus agentes, colaboradores ou auxiliares, desde que tais actos se emoldurem no quadro do exercício profissional da sua actividade e exprimam actuação ilícita.

4. Esse risco corre, objectivamente, por conta do comitente, desde que a actuação do comitido/auxiliar se inscreva no quadro funcional daquele e exista actuação sua ilícita, culposa, bem como dano resultante da actuação ilícita e danosa.

5. Tendo um funcionário de empresa mediadora imobiliária recebido, com autorização desta, uma quantia a título de sinal no contexto de contrato promessa de compra e venda de três fracções prediais, quantia que descaminhou, desconhecendo-se até o seu paradeiro, é a sociedade mediadora imobiliária responsável objectivamente pelo prejuízo que, no caso, é a perda do sinal pelos promitentes compradores.

6. Sendo as sociedades mediadoras imobiliárias obrigadas por lei a prestar caução e a celebrar contrato de seguro obrigatório como garantia de ressarcimento dos danos patrimoniais causados aos interessados decorrentes de acções ou omissões, quer das empresas, quer dos seus representantes, ou do incumprimento de “outras obrigações resultantes do exercício da sua actividade”, os lesados podem lançar mão do seguro obrigatório, sem terem que, previamente, accionar a caução.

            Decisão:

            Nega-se a revista.

            Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Abril de 2014

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

               

___________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] O Código Civil brasileiro de 2002 mantém a designação de contrato de corretagem [considerando a doutrina que a corretagem e a mediação são “semelhantes espécies contratuais” – “O corretor é obrigado a executar a mediação com a diligência (…)”], definindo-o, no seu art. 722º – “Pelo contrato de corretagem, uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas” – site brasileiro Jus Navigandi – “Contrato de corretagem ou mediação”, texto in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7410