Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1389/04.8TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
RENDA
FALTA DE PAGAMENTO
LOCAL DE PAGAMENTO
DOMICÍLIO
MORA
ENCERRAMENTO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
VÍCIOS DA COISA
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina: ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, pp. 378/379; ARAGÃO SEIA, Arrendamento Urbano, p. 191, 339/340, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume III, anotação ao artigo 1039.º, ANTUNES VARELA, RLJ 116, pp. 192 e 217,
Jurisprudência Nacional: AC. STJ DE 31.01.2002, PROCESSO N.º 00B190, ACÓRDÃOS DO STJ DE 21.01.1993, IN BMJ 423, P. 422; AC. STJ DE 27.11.2008,
Sumário :
I - Da leitura dos arts. 1.º do RAU e 1022.º e 1023.º do CC resulta que o contrato de arrendamento é um contrato temporário, sinalagmático, de execução temporária ou periódica e oneroso, sendo três os seus elementos essenciais: a) a obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa imóvel; b) assumida por prazo determinado; c) a obrigação de retribuição.
II - A falta de pagamento da renda não determina, sem mais, a resolução do arrendamento e subsequente despejo; é preciso, paralelamente, que o inquilino esteja em mora, i.e., que lhe seja imputável o retardamento da prestação – cf. art. 804.º, n.º 2, do CC.
III - Não resultando demonstrado, através de contrato escrito ou por outro meio, o local em que a renda deveria ser paga, deve aplicar-se a regra supletiva da 2.ª parte do n.º 1 do art. 1039.º do CC; nesta situação (lugar de pagamento no domicílio do locatário), não tendo sido feito o pagamento, presume-se (presunção não ilidida) que o locador não veio nem mandou receber (n.º 2 do mesmo normativo), o que se reconduz à mora do credor (art. 813.º do CC), com a consequente impossibilidade de este resolver o contrato com base na falta de pagamento.
IV - A resolução do contrato, com fundamento no encerramento do estabelecimento por mais de um ano (cf. art. 1093.º do CC, na redacção anterior à Lei n.º 6/2006, de 27-02), visa acautelar o interesse do senhorio em não ver desvalorizado o prédio com o seu encerramento e proteger o interesse mais geral de fomentar o aproveitamento efectivo de todos os espaços utilizáveis, dependendo da verificação de três pressupostos: a) o arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal; b) o encerramento por mais de um ano; c) não se dever o encerramento a caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, mas, se o for, que estas circunstâncias se prolonguem por mais de dois anos.
V - Decorre do disposto no art. 1031.º, al. b), do CC , que o locador está obrigado a assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina; nessa conformidade, tem de entregar o locado em condições de poder ser utilizado para o fim a que se destina, efectuar as reparações e pagar as despesas necessárias à sua conservação e uso e evitar a prática de actos que impeçam ou diminuam o respectivo gozo – cf. arts. 1032.º a 1034.º e 1037.º do CC.
VI - Tendo a coisa locada vício que a impeça de realizar os fins a que se destina, o locador não será responsável se o locatário conhecia o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa; o defeito já existia ao tempo da celebração do contrato e era facilmente reconhecível, a não ser que o locador tenha assegurado a sua inexistência ou usado de dolo para o ocultar; o defeito for da responsabilidade do locatário ou este não avisou o locador do defeito (cf. art. 1033.º do CC).
VII - Se o vício que impediu a apelada (locatária) de extrair do arrendado as utilidades pretendidas e contratadas – posto de recepção de leite – só surgiu quando a apelante (locadora) cortou o abastecimento de água, extraindo-se do contrato ser o locador o fornecedor de água, e provando-se que foi esse corte que inviabilizou a exploração do locado, está demonstrado não ter o locatário culpa no encerramento do estabelecimento, uma vez que esta situação foi criada pela apelante. Quem incumpriu foi a locadora, que não assegurou o gozo da coisa, o que, inclusive é, além do mais, fundamento de resolução do contrato por parte do locatário (cf. arts. 1083.º e 801.º do CC).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I ─ AA, intentou, no 1.º Juízo de Competência Cível do Tribunal da Comarca de Viseu, acção declarativa, com forma de processo sumário, contra BB – Cooperativa Agrícola de Viseu, CRL e contra CC, pedindo a declaração de nulidade do contrato de arrendamento ou, subsidiariamente, a sua resolução, sempre com a correspectiva condenação dos réus na entrega do espaço, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a condenação solidária dos réus no pagamento de uma importância mensal de € 50,00, desde 1997 e até efectiva entrega do espaço.

Para tanto alega, em síntese:

Por escritura de partilhas por óbito de DD, com quem foi casada, foi-lhe adjudicado o usufruto vitalício da uma casa de habitação com rés do chão e 1.º andar, sita ao Lameirinho, Casal, limite e freguesia de Torredeita, Viseu, inscrita na matriz urbana sob o artigo 1213.
Em data imprecisa de 1995, ao que supõe, o seu falecido marido, por contrato de arrendamento verbal, cedeu a utilização do rés-do-chão da dita casa à ré BB, mediante a renda mensal de 3.250$00, com a finalidade de aí ser instalado um posto de recepção de leite, renda que, no ano de 1996, era de 3.370$00.
O locado está licenciado, apenas, para habitação, o que acarreta a nulidade do contrato de arrendamento, o mesmo sucedendo, aliás, com a circunstância de o contrato não ter sido celebrado por escrito.
Por outro lado, desde o óbito do seu finado marido, ocorrido em 06.03.1997, que a arrendatária não paga a renda estabelecida.
Não é visto no local movimento algum de pessoas ou veículos relacionados com a ré BB, nem conhecida qualquer actividade desta conexionada com o comércio de leite. É o réu CC que abre e fecha as portas do local, que é visto neste e que aí se movimenta, como se fosse o titular do contrato de arrendamento, desconhecendo a autora qualquer cessão onerosa ou gratuita da posição da ré BB, que não lhe foi comunicada e, consequentemente, não foi autorizada.
O réu CC deixa, por vezes, detritos e sujidade na propriedade da autora, permite que dejectos das vacas conspurquem a entrada da sua habitação e passou, com habitualidade, a deslocar-se ao local a horas tardias da noite, onde faz barulhos que incomodam a autora e perturbam o descanso de quem reside na habitação; perante tal, pressionou-o para entregar livre e devoluto o espaço ocupado e deu conta à CM de Viseu e às entidades sanitárias e económicas das condições de funcionamento da actividade desenvolvida no referido rés-do-chão, vindo o Ministério da Agricultura a encerrar o local como posto de recepção de leite; não obstante, o réu CC continua a deslocar-se ao local e a manter em funcionamento uma máquina que é fonte de barulhos e incómodos para a autora.
Um espaço idêntico ao ocupado é susceptível de proporcionar uma renda mensal de € 50,00, montante esse de que deve ser compensado pela ocupação que vem sendo feita desde, pelo menos, o início de 1997 até efectiva entrega.

Devidamente citados, os réus contestaram, por excepção e por impugnação, tendo, ainda, a ré BB deduzido pedido reconvencional.

Por excepção, sustentaram a ilegitimidade do réu CC e da autora, aquele por não ter subscrito o contrato de arrendamento e esta por estar desacompanhada dos demais herdeiros de DD, tendo acrescentado, ainda, que a exigência de licença de utilização só entrou em vigor um ano depois da celebração do contrato em causa.
Por impugnação, negaram alguns dos factos alegados pela autora e declararam ignorar, sem obrigação de conhecer, outros.
Especificadamente, declarou o réu CC que deposita leite no arrendado, na qualidade de produtor de leite, como outros produtores já o fizeram, que não conspurca o local, que a autora cortou o fornecimento de água como forma de inviabilizar a utilização do locado e que não ocorreu o seu encerramento, mas, tão-só, a suspensão do levantamento do leite, por acto culposo daquela.
Disse, por sua vez, a ré BB que no arrendado está instalado um posto de recepção de leite, em virtude de contrato de arrendamento celebrado em 1 de Janeiro de 1991; as rendas mensais, sucessivamente actualizadas, sempre foram atempadamente pagas; é falso estar o local licenciado, apenas, para habitação; para instalação do posto de recepção de leite, foram feitos melhoramentos no locado, que descreve; depois da morte do marido da autora, por sugestão desta, foi acordado o pagamento semestral da renda, por forma a evitar transtornos do seu pagamento mensal, pelo que a alegada constituição em mora procede de culpa sua, uma vez que se recusou a receber a renda; a autora, unilateralmente, em 31 de Março de 2003, cortou o abastecimento de água, inutilizando o arrendado, contra o estipulado na cláusula oitava do contrato de arrendamento e apresentou uma queixa de salubridade que levou a Divisão de Intervenção Veterinária de Viseu a suspender o levantamento de leite até estar regularizado o abastecimento; a partir do corte da água, a autora recusou receber as rendas; mesmo depois da recusa da A. em receber as rendas, a ré continuou a proceder ao seu pagamento, mediante o respectivo depósito na CGD, para além de que efectuou o pagamento de todas as rendas em atraso nos termos e para os efeitos dos artigos 1041.º e 1048.º do Código Civil.

Reconvindo, mas, apenas, para o caso de não serem julgadas procedentes as excepções deduzidas e improcedente a acção, alegou a ré BB que levou a cabo no arrendado as obras necessárias ao normal desempenho da sua actividade, que orçaram em 1.617.000$00, e que, por causa do corte do abastecimento de água abusivamente levado a cabo pela autora, que provocou a suspensão do depósito e recolha de leite no arrendado, se viu obrigada a proceder à recolha de leite noutro local, distante mais de 15 Km daquele, desde 1 de Abril de 2003, calculando em € 12.750,00 os prejuízos advenientes das deslocações diárias e das distâncias percorridas.

Concluiram pela procedência das excepções deduzidas e pela improcedência da acção. Para o caso de assim se não entender, a ré BB sustenta a procedência da reconvenção, com a consequente condenação da autora no pagamento da importância de € 20.815,56, acrescida de juros comerciais moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal.

A autora apresentou articulado de resposta, onde rebateu as excepções deduzidas e impugnou os factos alegados em sede de reconvenção, cuja improcedência peticionou.

Admitido o pedido reconvencional e ordenada a conversão da forma processual de sumária para ordinária, por via do novo valor da acção, foi convocada audiência preliminar, que não surtiu efeitos práticos, mormente em termos de conciliação.

Na data designada para a audiência, foi apresentado pela ré BB articulado superveniente, onde alegou que, depois de notificada para a diligência, a autora vedou o acesso ao locado, fechando à chave o respectivo portão, sendo que no interior daquele funciona em permanência equipamento de refrigeração, propriedade da ré, o qual tem de ser vigiado permanentemente e carece de manutenção, sob pena de irreparáveis danos para o mesmo, cujo custo, em novo, foi de € 2.500,00, acrescentando, ainda, que a suspensão da recolha de leite apenas aconteceu por acto culposo da autora, por ter efectuado unilateralmente o corte de água, tanto mais que a licença sanitária tem validade até 31 de Dezembro de 2004.

Retorquiu a autora, dizendo que não realizou qualquer acto que impedisse o acesso ao locado e que o equipamento de refrigeração só teria de funcionar se houvesse leite, o que não acontece, pelo que o funcionamento do equipamento se destina, unicamente, a provocar barulhos que se repercutem na sua habitação dia e noite e perturbam o seu normal descanso; quanto ao corte da água, contrapôs que o mesmo já havia sido alegado, não havendo, por conseguinte, nesta parte, superveniência que justifique a repetição, tudo sem prejuízo de não terem sido observados os prazos do artigo 506.º, n.º 3, do C.P.C.

Subsequentemente, foi elaborado despacho de saneamento e selecção da matéria de facto, onde além do mais, foram apreciadas as excepções de ilegitimidade activa e passiva suscitadas – improcedendo a primeira e procedendo a segunda, com a consequente absolvição do réu CC da instância – e fixadas, sem reclamação, a matéria de facto assente e a que constitui a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, com observância do legal formalismo, tendo, no seu início, sido apresentado outro articulado superveniente, agora por parte da autora, que alegou estar o local encerrado há mais de um ano e requereu a resolução do contrato de arrendamento com base nessa circunstância.

Depois da resposta da ré, que afirmou dever-se o encerramento a acto da autora, ou seja, ao corte do abastecimento de água, foi o articulado admitido e a selecção da matéria de facto aditada dos factos considerados relevantes para a decisão do pleito,

Foram dadas as respostas à base instrutória, que não mereceram qualquer reclamação.

Na sentença foi a acção julgada improcedente, com, consequente, absolvição da ré BB dos pedidos contra ela deduzidos e declarada prejudicada a apreciação do pedido reconvencional.

Inconformada, a autora interpôs, sem êxito, recurso de apelação, uma vez que a Relação confirmou inteiramente a sentença, embora com diversa fundamentação.

De tal acórdão veio a A. interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.

A recorrente apresentou as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

1. A arrendatária não conseguiu provar que as rendas vencidas desde o óbito do DD até ao início dos depósitos à ordem dos autos tivessem sido pagas. Há, portanto, um período de cinco anos e dez meses que a ré/arrendatária não provou ter pago.
2. O ónus da prova do pagamento da renda cabe ao locatário, por se tratar de facto extintivo do direito do autor (Art.º. 342.º n.º 2 do CCv). À A. apenas cabia alegar o não recebimento da renda. À ré cabia fazer prova do pagamento ou, na falta deste, que não pagou porque, p. ex., o mesmo não lhe foi solicitado. Ou seja, era também ónus da arrendatária alegar que não pagou porque, eventualmente, a senhoria nunca lhe pediu a renda.
3. O que resulta dos autos, nomeadamente pelos documentos 14 e 15 juntos com a contestação, é que a arrendatária pagava a renda junto do domicílio da senhoria já que enviava por correio o montante das rendas! A carta e o cheque remetidos para a A. só não teriam o carácter de domicílio fixado se a Ré tivesse alegado algo em contrário; o que não fez.
4. Enviando a ré tal renda para casa da senhoria, necessariamente que se tem que concluir que o lugar de pagamento da renda era o domicílio da A. (art.º 236, n.º 1 CCv), se assim não fosse não tinha nenhum sentido a carta e o cheque remetidos à A.
5. Por outro lado, a Ré fez o depósito das rendas relativas aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos e à ordem do Tribunal Judicial de Viseu sem que tivesse depositado, e deveria tê-lo feito, a indemnização correspondente ao facto de estar a pagar em 09 de Setembro as rendas dos meses de Julho, Agosto e Setembro.
6. Quando estas rendas foram pagas já o foram fora de prazo, ou seja, depois do dia 08 de cada mês a que diziam respeito (artº.1041.º n.º 2 CCv). Assim, porque a Ré estava em mora para que este depósito valesse, tinha que ser acompanhado de uma indemnização igual a 50% do que era devido (art.º 1041 n.º 1 do CCv), indemnização que a Ré não depositou nem comprovou ter feito. A falta de pagamento desta indemnização só pode significar que tais rendas ainda são consideradas em dívida (Art.º. 1041 n.º 3 CCv).
7. Ou seja, também neste particular não houve pagamento de renda, o que é causa de resolução do arrendamento! É que nos termos do art.º. 58.º do RAU «na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais» isto é, incluindo a indemnização moratória igual a 50%, que não incluiu!
8. E com o devido respeito pelo entendimento da Relação, pelo menos neste particular, nem se punha em questão do lugar de pagamento da renda!
9. Acresce que o espaço destinado a posto de recepção de leite, tem licença caducada desde 31 de Dezembro de 2003. Tal facto está directamente relacionado pela ausência de água da rede pública.
10. É verdade que a A. cortou o abastecimento de água. Mas a água necessária para o funcionamento do posto de recepção de leite é água da rede pública. A água que a A. deixou de fornecer não tem nada a ver com esta exigência sanitária. Os serviços competentes exigem água da rede pública e os Serviços Municipalizados dizem que não há condições para tal ligação. Ora destas duas circunstâncias não há qualquer responsabilidade imputável à senhoria.
11. Não consta dos autos, de forma alguma, que a senhoria fornecesse água da rede pública à inquilina e é esta necessidade, posterior ao início do contrato, de funcionamento do posto de recepção de leite com um abastecimento de água da rede pública, bem como a recusa dos Serviços Municipalizados em proceder a tal ligação que levou ao abandono por mais de um ano, do arrendado pela inquilina; portanto sem culpa da senhoria.
12. O vício que impede o uso do arrendado não é uma qualquer atitude da A., é a falta de possibilidade de uso de água pública.
13. O espaço está ab initio, licenciado para habitação, vício que já era conhecido de todos, consta até do próprio contrato, pelo que não pode ser imputável à A. a circunstância dos Serviços Municipalizados invocarem tal licenciamento para habitação para a falta de ligação à rede publica.
14. Não há qualquer abuso de direito da A. Há isso sim, um encerramento por mais de um ano, por causa imputável à inquilina; o que é, também, causa de resolução do contrato.

Não houve contralegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação


II.A. De Facto

É a seguinte de facto fixada pelas instâncias:

1. No dia 1 de Janeiro de 1991 foi celebrado, entre DD e a aqui ré, um contrato de arrendamento, tendo por objecto a dependência nascente, r/c, sito em Casal, Torredeita, Viseu (documento de fls. 63).
2. O locado destinava-se a posto de recepção de leite.
3. No dia 17 de Março de 2000, no segundo cartório notarial de Viseu, foi declarado que no dia 6 de Março de mil novecentos e noventa e sete, faleceu na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, e natural da Freguesia de Torredeita, Concelho de Viseu, onde teve a sua última residência, no lugar de Casal, DD (documento de fls. 20).
4. Mais foi declarado ser adjudicado à aqui autora o usufruto vitalício da casa de habitação, com rés do chão e andar, com área coberta de 224 metros quadrados e área descoberta de 1286 metros quadrados, sita ao Lameirinho, casal, limite e freguesia de Torredeita, Viseu, inscrita na matriz urbana sob o artigo 1213 (documento de fls. 20).
5. No dia 24 de Setembro de 2003, o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas notificou a ré para suspender o levantamento de leite no Posto de Recepção licenciado em nome de DD, sito no lugar de Casal, freguesia de Torredeita, concelho de Viseu (documento de folhas 31).
6. No dia 3 de Junho de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito condicional posterior com indemnização das rendas relativas aos meses de Janeiro a Junho de 2003, na Caixa Geral de Depósitos de Viseu, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, para fazer cessar a mora e indemnizar pela mora (documento de folhas 81).
7. No dia 9 de Setembro de 2003, foi declarado que a ré fez o primeiro depósito definitivo das rendas relativas aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos de Viseu, à ordem do Tribunal Judicial de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada do recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 76).
8.No dia 7 de Outubro de 2003, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês Outubro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada do recebimento da renda pelo senhorio (documento de fls. 75)
9. No dia 7 de Novembro de 2003, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Novembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca se Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 74).
10. No dia 5 de Dezembro de 2003, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Dezembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca se Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 73).
11.No dia 6 de Janeiro de 2004, foi declarado que a ré fez o pelo depósito posterior da renda relativa ao mês de Janeiro de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda senhorio (documento de fls. 72).
12. No dia 6 de Fevereiro de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Fevereiro de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 71).
13. No dia 5 de Março de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Março de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 70).
14. No dia 6 de Abril de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Abril de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu (documento de fls. 69).
15. No dia 4 de Maio de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Maio de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 79).
16. No dia 3 de Junho de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Junho de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 80).
17. A ré BB requereu aos Serviços Municipalizados de Aguas e Saneamento (SMAS) a ligação da água da rede pública ao espaço identificado em 1, não tendo os referidos Serviços aceitado proceder a tal ligação de água da rede pública ao referido local.
18. A licença sanitária do posto de recepção do leite caducou a 31 de Dezembro de 2003.
19. Actualmente, e já há mais de um ano, que o espaço identificado em 1 se encontra encerrado e sem qualquer movimento, não retirando a R. do mesmo qualquer proveito.
20. No local referido em 1 não existe movimento de pessoas que tenham uma relação de trabalho com a ré.
21. Não é visto no local qualquer veículo (ligeiro ou comercial) com qualquer referência, como dizeres publicitários, à ré.
22. Até ao encerramento do espaço identificado em 1, aludido em 19, era o Sr. CC que abria e fechava as portas do mesmo e que era visto no local.
23. Não foi comunicada à A. qualquer cedência do gozo do local.
24. A autora não autorizou qualquer cedência.
25. Um espaço idêntico ao aludido em 1 é susceptível de proporcionar uma renda mensal de montante não concretamente apurado.
26. A autora, de forma unilateral e desde data não concretamente apurada, mas antes do encerramento do espaço aludido em 1, referido em 19, cortou o abastecimento de água ao referido espaço, facto que inviabilizou a utilização do mesmo.
27. A autora, a partir de data não concretamente apurada, recusou-se a receber as rendas.
28. Foram revestidos a cimento as paredes, o tecto e chão do imóvel.
29. Foram colocadas portas metálicas de exterior.
30. Foi colocada instalação eléctrica.
31. Foi implantado um sifão e um ralo.
32. Foi feita a ligação da fossa à rede de esgotos.
33. Obras necessárias ao normal funcionamento do posto de leite.
34. Tais obras custaram 1.617 000$00 (€ 8065,56).
35. Por causa do corte de abastecimento de água, a ré/reconvinte viu-se obrigada a proceder à recolha de leite num local que dista mais 15 quilómetros do local em apreço, desde o encerramento do espaço aludido em 1, referido em 19.
36. O que causou um prejuízo de montante não concretamente apurado relativo a deslocações e mão-de-obra.
37. Em data não concretamente apurada, mas posterior ao encerramento do espaço aludido em 1, referido em 19, a autora fechou à chave o portão de acesso ao referido espaço, impedindo o acesso ao mesmo.
38. A ré BB efectuou à ordem deste Tribunal e com referência aos presentes autos um depósito condicional, no montante de € 151,25, com vista à cessação da mora e relativo à indemnização pela mora, depósito que se mostra junto a fls. 81.
39. A ré BB efectuou os depósitos na Caixa Geral de Depósitos, a que se reportam os documentos juntos a fls. 192-206 e 273-298, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, referentes às rendas dos meses de Julho de 2004 a Novembro de 2007, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 80).


II.B. De Direito


II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (art.º 684.º, n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do CPC), importando ainda decidir as questões nela colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.

São as seguintes as questões suscitadas:

a) Falta do pagamento das rendas entre o momento da morte do marido e o momento em que as rendas passaram a ser depositadas.
b) Falta do pagamento da indemnização devida pelo pagamento tardio das rendas de Julho a Setembro de 2003
c) Encerramento do estabelecimento do estabelecimento por mais de um ano
d) Ausência de abuso de direito.


II.B.2. Antes de abordarmos as questões colocadas, começaremos pela referência às regras-base relativas ao arrendamento

Arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição (artigo 1.º do RAU, diploma de que serão as restantes normas legais a citar sem indicação de origem).

O preceito não passa, no fundo, da reprodução dos artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil, onde, respectivamente, se define locação (contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição) e se distingue o arrendamento do aluguer (o arrendamento é a locação sobre imóvel e o aluguer a locação sobre móvel).

Da leitura de tais normativos, resulta claro ser o contrato de arrendamento um contrato temporário, sinalagmático, de execução temporária ou periódica e oneroso, sendo, assim, três os seus elementos essenciais:

1) A obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa imóvel;
2) Assumida por prazo determinado;
3) A obrigação de retribuição.

A obrigação de proporcionar o gozo cabe, naturalmente, ao locador e a obrigação de pagar a retribuição, designada renda, ao locatário (artigos 1031.º e 1038.º, alínea a), do Código Civil).

Trata-se, como se vê destas disposições, de um contrato sinalagmático ou bilateral; não só gera obrigações para ambas as partes, como essas obrigações se encontram unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade ou interdependência: à obrigação do locador de proporcionar o gozo do prédio corresponde a obrigação de o locatário pagar a renda (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, pp. 378/379).

O pagamento da renda, caso outra coisa não seja estipulada, deve ser efectuado no momento da celebração do contrato (a primeira) e as restantes no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito (artigo 20.º).

O senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário não pagar a renda no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório — alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º.

O local do pagamento é aquele que as partes ou os usos fixarem; na falta de convenção ou de usos, deve ser feito no domicílio do locatário à data do vencimento (2.ª parte do n.º 1 do artigo 1039.º do C. Civil); nesta hipótese, se a renda não tiver sido paga, presume-se (presunção “juris tantum”) que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do vencimento (n.º 2 do mesmo artigo).

Com esta disposição, escreve ARAGÃO SEIA, foi posta de lado a presunção geral de culpa do devedor – n.º 1 do artigo 799.º do C. Civil –, passando a presumir-se a culpa do credor, quando este se não apresentar a receber a renda (Arrendamento Urbano, p. 191).

O senhorio pode, também, resolver o contrato se o arrendatário conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos – alínea h) do n.º 1 do artigo 64.º.

O preceito corresponde a idêntica alínea do artigo 1093.º do C. Civil, mas com a ablação do advérbio “consecutivamente”, antes inserto a seguir à expressão “por mais de um ano”.


II.B.3. Falta do pagamento das rendas entre o momento da morte do marido e o momento em que as rendas passaram a ser depositadas.

A recorrente retoma aqui esta questão colocada no recurso de apelação.

E, relativamente a ela o acórdão recorrido, reconheceu razão à A, relativamente ao entendimento de que era ao locatário que competia a prova de que pagara as rendas, para obstar ao despejo, com base na falta de pagamento das rendas.

E reconheceu-se que não fora produzida prova pela Ré de terem sido pagas as rendas.

Porém, “a falta de pagamento da renda não determina, sem mais, a resolução do arrendamento e subsequente despejo; é preciso, paralelamente, que o inquilino esteja em mora, isto é, que lhe seja imputável o retardamento da prestação (artigo 804.º, n.º 2, do Código Civil).”

Afirmou-se o que se deixou dito supra e tal afirmação não merece censura.

Com efeito, não resultou demonstrado nos autos, através do contrato escrito ou por outro meio, o local em que a renda deveria ser paga, o que implica que se deve aplicar a regra supletiva da segunda parte do n.º 1 do artigo 1039.º do C. Civil, atrás citada.

Nesta situação (lugar do pagamento no domicílio do locatário), não tendo sido feito o pagamento, presume-se (presunção não ilidida) que o locador não veio nem mandou receber (n.º 2 do mesmo normativo), o que se reconduz, afinal, à mora do credor (artigo 813.º do mesmo Código), com a consequente impossibilidade de este resolver o contrato com base na falta de pagamento (PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume III, anotação ao artigo 1.039.º).

Nada há, consequentemente, a censurar relativamente ao decidido no acórdão recorrido sobre esta questão.


II.B.4. Falta do pagamento da indemnização devida pelo pagamento tardio das rendas de Julho a Setembro de 2003

Esta questão não pode ser aqui apreciada. Não foi suscitada no recurso de apelação: neste a recorrente só atacou o decidido quanto às rendas vencidas desde a morte do marido e o momento em que passaram a ser depositadas e as rendas posteriores a Novembro de 2007.

Se apreciássemos essa questão naturalmente seria para não reconhecer razão à recorrente, uma vez que, como anteriormente se disse, não se configura mora do locatário mas do locador.

Mas, como se disse no Ac. do STJ, de 03.02.2004, Rel. Silva Salazar, em www.dgsi.pt, «Os recursos têm por função apenas a reapreciação de decisões tomadas na sentença ou no acórdão recorridos, e não a decisão de novas questões, a menos que as haja de conhecimento oficioso e tenham sido articulados factos que possibilitem tal conhecimento.» (vide, igualmente, o Ac. do STJ de 27.11.2008, Rel. Pires da Rosa, no mesmo sítio).


II.B.5. Encerramento do estabelecimento do estabelecimento por mais de um ano

Tal fundamento de resolução do contrato, que visa acautelar o interesse do senhorio em não ver desvalorizado o prédio com o seu encerramento e proteger o interesse mais geral de fomentar o aproveitamento efectivo de todos os espaços utilizáveis (PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, ob. cit., volume II, anotação ao artigo 1093.º), depende da verificação de três pressupostos: a) o arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal; b) o encerramento por mais de um ano; c) não se dever o encerramento a caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, mas, se o for, que estas circunstâncias se prolonguem por mais de dois anos (ARAGÃO SEIA, ob. cit., pp. 339/340).

O caso de força maior relaciona-se, de modo especial, com os impedimentos resultantes de forças de natureza (abalo sísmico, inundação grave, raio ou descarga eléctrica) ou de actos insuperáveis da autoridade ou, mesmo, de particulares (realização de obras públicas de demolição ou desaterro, ocupação militar de certa zona, revolução, guerra civil, etc.); a ausência forçada tem a ver com a pessoa do arrendatário, na medida em que existam factores que o impeçam de estar no arrendado e à frente da actividade visada pelo contrato (ANTUNES VARELA, RLJ 116, pp. 192 e 217).

Os factos que, neste particular, devem ser atendidos são estes: o arrendado destina-se a posto de recepção de leite; a autora, de forma unilateral, cortou o abastecimento de água ao espaço, facto que inviabilizou a sua utilização; a 24.09.2003, o Ministério da Agricultura ordenou a suspensão do levantamento do leite, devido à falta de condições de higiene e sanitárias correlacionadas com o corte da água; a ré requereu aos SMAS de Viseu a ligação da água da rede pública, mas o requerimento foi indeferido, com base no entendimento de só ser possível a ligação individualizada para o rés-do-chão se estivesse constituída a propriedade horizontal, o que não era o caso; por via da falta de água da rede pública, a licença sanitária do posto caducou em 31.12.2003; o espaço encontra-se encerrado, não retirando a apelada qualquer proveito do mesmo; depois do seu encerramento a A. fechou o portão que lhe dá acesso ao referido espaço, impedindo-o totalmente.

Defende a recorrente a tese de que não podem extrair-se quaisquer consequências do facto de ter cortado o abastecimento de água ao locado, considerando que não recai sobre ela a obrigação de fornecer a água.

Mas não parece que a razão esteja do seu lado.

Como decorre do disposto no artigo 1031.º, alínea b), do C. Civil, o locador está obrigado a assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina; nessa conformidade, tem de entregar o locado em condições de poder ser utilizado para os fins a que se destina, efectuar as reparações e pagar as despesas necessárias à sua conservação e uso e evitar a prática de actos que impeçam ou diminuam o respectivo gozo (artigos 1032.º a 1034.º, 1036.º e 1037.º do C. Civil).

Nas palavras de ARAGÃO SEIA, proporcionar o gozo implica uma prestação de conteúdo positivo e outra de sinal negativo; na primeira, cabe a entrega do arrendado em bom estado de conservação, a sua manutenção ao longo do tempo e o pagamento dos respectivos encargos; na segunda, a omissão de actos que conduzam a que o arrendatário não retire do locado as utilidades tidas em vista com a celebração do contrato (ob. cit., pp. 65 e seguintes).

Mas, tendo a coisa locada vício que a impeça de realizar os fins a que se destina, o locador não será responsável se o locatário conhecia o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa; o defeito já existia ao tempo da celebração do contrato e era facilmente reconhecível, a não ser que o locador tenha assegurado a sua inexistência ou usado de dolo para o ocultar; o defeito for da responsabilidade do locatário ou este não avisou o locador do defeito (artigo 1033.º dito Código).

O vício que impediu a apelada de extrair do arrendado as utilidades pretendidas e contratadas – posto de recepção de leite – só surgiu quando a apelante cortou o abastecimento de água. Até então, nada, que tenha sido alegado, pelo menos, impediu o exercício da actividade visada; e, no entanto, já tinham decorrido cerca de doze anos sobre a celebração do contrato de arrendamento.

Naturalmente, embora isso não venha referido, aquando da celebração, as circunstâncias que levaram os SMAS a recusar, mais tarde, à apelada a ligação ao locado da rede pública de água, já se verificavam. Todavia, nenhum problema se suscitou, porque, evidentemente, o arrendado estava já ligado à rede ou foi-o nessa altura. Como quer que seja, o primitivo locador entregou a coisa em bom estado de conservação e funcionamento, apto ao exercício da actividade a que se destinava, e nada impediu o seu gozo entre 1991 e 2003.

Do contrato escrito extrai-se ser o locador o fornecedor da água (vide cláusulas… ) e isso mesmo se pode inferir da matéria provada , uma vez que se provou que foi o corte de àgua que inviabilizou a exploração do locado, a qual não podia ocorrer sem água, sendo certo que igualmente se demonstrou não ter o locatário outro modo de se abastecer de àgua.

Ora, não pode perder-se de vista que os fundamentos de resolução do contrato têm por base o incumprimento da outra parte (artigo 1093.º do CC e 63.º, n.º 1 do RAU.

Ao contrário do que acontece relativamente aos contratos em geral, em que a resolução opera por declaração, o incumprimento das obrigações do locatário, tem que ser declarada pelo tribunal (art.º 1047.º do CC e 63.º, n.º 2 do RAU).

À resolução do contrato de locação aplicam-se também as regras dos artigos 432.º e ss. e 798.º e ss.

Designadamente, o incumprimento deve ser culposo, incumbindo ao devedor provar que não tem culpa (artigo 799.º).

No caso em apreço está demonstrado não ter o locatário culpa no encerramento do estabelecimento, uma vez que esta situação foi criada pela A.

Quem incumpriu foi o locador, que não assegurou o gozo da coisa, o que inclusive é, além do mais, fundamento de resolução do contrato por parte do locatário (artigos 1083.º e 801.º do CC).

O tribunal, apreciando o circunstancialismo dado como provado, terá que, considerar não verificados os requisitos do fundamento de resolução do contrato invocado.

Semelhantemente se decidiu no acórdão deste Tribunal de 31.01.2002, processo n.º 00B190, www.dgsi.pt. (ver também o acórdãos do STJ de 2 1.01.1993, in BMJ 423, p. 422)

Por isso se confirma, também neste segmento, a decisão recorrida, sem recurso ao abuso de direito que aqui se considera inaplicável.

De facto, o abuso de direito só existe quando à primeira vista existe um direito.

Dispõe o artigo 334.º do CC:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Ou seja, o abuso do direito (a terminologia já o indicia) pressupõe a existência de um direito e que o mesmo tenha sido exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça” ou em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante”.

No caso concreto não há direito, logo não há abuso.


II.B.6. Ausência de abuso de direito

Sobre este fundamento do recurso já tudo foi dito.

Apesar de a recorrente ter razão no que toca à invocada inexistência de abuso do direito, daí não colhe qualquer proveito, uma vez que como se disse a A. não tem direito à resolução do contrato de arrendamento com fundamento no enceramento do estabelecimento.


III. Decisão:

Nestes termos, em conformidade com o exposto, acorda-se em negar a revista, mantendo integralmente a decisão, embora com diversa fundamentação.

Custas da acção, da apelação e da revista pela A.


Lisboa, 27 de Janeiro de 2010

Paulo Sá (Relator)

Mário Cruz

Garcia Calejo