Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3762/12.9TBCSC-B.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO FUNDAMENTO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REQUISITOS
PENHORA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
BENS IMPENHORÁVEIS
DIREITO DE HABITAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREEITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PENHORA / RECURSOS.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “ Constituição da República Portuguesa” Anotada, Volume I, p. 835.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “ Constituição Portuguesa” Anotada , Volume I, pp. 665 a 666.
- Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I, pp. 390 a 391.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 824.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 821.º, 822.º, 825.º, 834.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 629.º, N.º 2, AL. D), 671.º, N.ºS 1 E 3, 672.º, N.ºS 1 E 2, 735.º, 736.º, 740.º, 741.º, 751.º, N.º 3, ALS. A) E B), 853.º, N.º1, 854.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 65.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 4-12-14, PROCESSO Nº 1647/11.5TBVRL-B.G1.
Sumário :
I - Pese embora o acórdão invocado como fundamento da oposição de julgados haja sido prolatado com base na Lei n.º 35/81, de 27-08 (que antecedeu o regime do art. 28.º-A do CPC e do art. 34.º do NCPC (2013)) e o regime da penhora de bens comuns do casal haja sido alterado posteriormente, tal não obsta a que se tenha por verificada a contradição pressuposta pelo art. 629.º, n.º 2, al. d), do NCPC (2013) para a admissão de um recurso de revista.

II - A casa de morada de família não consta actualmente do elenco dos bens impenhoráveis do art. 822.º do CPC e deve ter-se como um bem sujeito a penhora de acordo com a regra enunciada no art. 821.º do mesmo diploma.

III - O direito à habitação do cidadão e da família, consagrado no art. 65.º da CRP, não se confunde com o direito a ter casa própria, sendo que o legislador ordinário, não obstante estar ciente da sua importância, não estabeleceu, em homenagem àquele direito, a impenhorabilidade da casa de morada de família, mas apenas algumas defesas (art. 834.º, n.º 2, do CPC e actual art. 751.º, n.º 3, als. a) e b), do NCPC (2013)).

IV - Posto que a penhora, por si só, não priva de habitação quem na casa possa habitar, há que concluir que aquela não atenta contra o direito constitucional à habitação, sendo certo que este não tem cariz absoluto nem se sobrepõe a qualquer outro, nomeadamente o direito de propriedade, como decorre do art. 824.º, n.º 2, do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


1 - Na execução movida em 2012-11-07 por Banco AA, S.A., veio BB, na qualidade de cônjuge do executado CC, apresentar oposição à penhora, pedindo a procedência e em consequência seja ordenado o levantamento da penhora que recaiu sobre o imóvel que constitui a casa de morada de família da oponente e caso assim não se entenda, sempre deverá ser reconhecido, para todos os efeitos legais, o direito de habitação (direito real de gozo) vitalício que a oponente detém sobre o imóvel penhorado, restringindo-se a penhora efectuada à nua propriedade do imóvel.



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2 - Para tanto e em síntese alegou que o imóvel penhorado nos autos constitui a sua casa de morada de família não podendo ser penhorado.


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3 - A exequente contestou, defendendo a improcedência da oposição deduzida.


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4 - Foi proferida decisão que julgou improcedente a oposição à penhora, determinando-se o prosseguimento dos autos ( cfr. fls. 162 a 174 ).


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5 - Inconformada apelou desta decisão a oponente.


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6 - A Relação, por unanimidade e sem divergência de fundamentação, confirmou o julgado.

7 - É desta decisão que em 2014-07-11 - foi interposta revista com as seguintes conclusões:

A.   Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 03.06.2014, que julgou improcedente a apelação tendo considerado que:

I - Não existe impenhorabilidade relativamente à casa de morada de família, o que igualmente não afronta qualquer imperativo constitucional.

II - Não há fundamento legal para proceder à redução da penhora concretamente efectuada, limitando-a à nua propriedade do imóvel pertencente ao cônjuge do executado.

III - Não há que reconhecer qualquer ónus sobre o prédio penhorado, correspondente ao direito de habitação da recorrente sobre a casa de morada de família na medida das suas necessidades."

B. A Recorrente não se conforma com esta decisão, por entender que:

(i) por um lado, viola lei substantiva, através de errada interpretação dos artigos 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.°e 1490.° do Código Civil,

(ii) por outro lado, viola direitos fundamentais da Recorrente e, finalmente,

(iii) encontra-se em contradição com outros Acórdãos proferidos pela Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Vejamos,

C. Entende a Recorrente que se verificam todas as situações elencadas no n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil, sendo, portanto, todas elas, fundamento do presente recurso de revista excepcional.

D. Ora, no recurso sub judice estão em causa questões de manifesta complexidade, de difícil resolução e para cuja subsunção jurídica se impõe, pela sua relevância, um detalhado exercício de exegese e interpretação claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

E. Neste sentido, a questão fundamental que aqui se discute é a de saber se o direito constituído a favor da Recorrente, por acordo celebrado na vigência do matrimónio entre a Recorrente e o seu Marido Executado que teve por objecto a utilização do imóvel penhorado e a fixação no mesmo da casa de morada de família de ambos, destinando-se esta à habitação da Recorrente tendo em conta as suas necessidades e da sua família, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação, nos termos e para os efeitos dos artigos 1673.°,1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil. E, nessa sequência, saber se o número 2 do artigo 1682.°-A do Código Civil e a alínea a) do artigo 784.° do Código de Processo Civil limitam, de alguma forma, a extensão com que foi realizada a penhora da casa de morada de família da Recorrente.

F. Em causa está uma questão largamente debatida na doutrina e na jurisprudência, de manifesta complexidade, e sendo certo que as opiniões que sobre esta matéria têm sido veiculadas não são coincidentes. Com efeito, repare-se que contrariamente ao Acórdão aqui recorrido, sufragam a tese da Recorrente os seguintes acórdãos:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 08.05.2013, que concluiu que:

I - O direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo consentimento entre a ré e o seu ex-marido que teve por objecto a utilização da casa de morada de família, destinando esta à habitação da ré tendo em conta (e por medida) as suas necessidades e da sua família ao tempo em que o divórcio foi decretado, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação (arts. 1484°, 1485.° e 1490.° CC).

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.03.1997, no qual se considerou que:

"Porque, assim é, e porque o princípio geral é o referido no artigo 601° do Código Civil, já acima transcrito, segundo o qual todos os bens do devedor respondem pelo cumprimento da obrigação, a restrição resultante da aplicação do regime do n.° 2 do artigo 1682ºA  deve limitar-se ao necessário para a defesa daquele direito de habitação. (...)

11. Assim, nada impede, pois, a manutenção da penhora reduzida à raiz da propriedade ou, por outras palavras a penhora com o reconhecimento do referido ónus. Assim se obtém uma equitativa conciliação de interesses coincidentes."

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 31.10,1991, no qual se considerou que:

"Como casa de família o bem está na posse efectiva dos dois cônjuges, que ê o conteúdo material, prático, efectivo e concreto do disposto nos artigos 1682.°-A e 1682.°-B do Código Civil.

É que o cônjuge não vive aí por favor de quem quer que seja, nem em nome de outrem.

Aí vive por direito próprio, derivado do matrimónio, como se pode ver através dos artigos 1671.° a 1674.° do Código Civii e ainda dos seus artigos 2003.° e 2195.° como conteúdo do direito a alimentos.

O cônjuge nessa casa se manterá como todo seu integral direito, (...)."

G. Também ao nível da doutrina, a resolução da questão aqui em apreço não é de todo pacífica, entre muito outros, refere Marco Filipe Carvalho Gonçalves, defendendo a posição da Recorrente, que:

"De igual maneira, se o imóvel penhorado em acção executiva movida contra um dos cônjuges constituir a casa de morada do seu cônjuge, este pode deduzir embargos de terceiro com vista à protecção do seu direito de habitação que onera esse imóvel quando não tenha sido citado nos termos e para os efeitos do disposto nos arts 825.° e 864.°-A do CPC. Ora, tal direito fica devidamente protegido e salvaguardado se for reconhecido ao cônjuge do executado o direito de permanecer no imóvel penhorado enquanto precisar dele para morar. Na verdade, do art. 1682°-A do CC emerge um verdadeiro direito de habitação a favor do cônjuge do executado, pelo que nada obsta à manutenção da penhora que reconheça a existência desse ónus, ou seja, desde que seja reduzida à propriedade da raiz ou à nua propriedade, garantindo-se, assim, uma conciliação justa e equitativa entre os interesses conflituantes/'

H. Face ao exposto, e porque aqui se pretende, de uma vez por todas, obter um consenso que sirva de orientação na interpretação do disposto nos artigos 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil e na alínea a) do artigo 784.° do Código de Processo Civil, entende a Recorrente que o presente recurso de revista excepcional se funda, desde logo, na alínea a) do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil, motivo pelo qual deverá ser admitido o presente recurso.

I. Por sua vez, inequívoco é também que no presente recurso estão em causa interesses de particular relevância social, porquanto a questão fundamental que aqui se coloca prende-se com a circunstância de a Recorrente Oponente e o seu cônjuge Executado: (i) terem 66 e 75 anos de idade, respectivamente;

(ii) sofrerem ambos de doenças graves que aliadas à sua idade os impossibilitam de obter meios de subsistência; (iii) viverem os dois com parcos rendimentos, resultantes exclusivamente da pensão do Executado no valor de cerca €650,17 mensais,

(iv) não disporem de qualquer outro imóvel, à excepção do penhorado nos presentes autos,

(v) nem terem possibilidades de arrendar outro imóvel com vista a garantirem o seu direito à habitação.

J. Mas principalmente, o que está em causa são os "Efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges" previstos no Código Civil, nomeadamente a eficácia do direito à habitação constituído a favor dos cônjuges sobre a "Residência de família".

K. Ora, um Estado de Direito democrático não pode permitir tamanhas ofensas aos valores sócio-culturais que fundam a nossa democracia, i.e., não pode permitir que os efeitos de uma relação jurídica estabelecida entre duas partes (Executado e Recorrida, AA) venha a ter efeitos sobre uma terceira parte (a aqui Recorrente e cônjuge do Executado), atentando contra os seus direitos fundamentais de habitação, subsistência e sobrevivência.

L A verdade é que a particular situação social da Recorrente não foi tida em conta pelo Tribunal a quo, não tendo o mesmo sequer reconhecido o direito de habitação da Recorrente sobre a sua casa de morada de família.

M. Pelo que, se impõe por motivos de particular relevância social que o presente recurso seja admitido, por se encontrar verificado, também, o pressuposto da alínea b), do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil.

N. Deve o presente recurso ser ainda admitido, porquanto o Acórdão recorrido se encontra em oposição com outros proferidos pela Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, como acima vimos, não tendo sido ainda fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência conforme.

O. Nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.03.1997 (BMJ, n.° 465.°, pág. 498) no qual se considerou que:

"(...) Emerge, pois, dos referidos dispositivos legais combinados o reconhecimento de um vero direito de uso e habitação, nos termos do artigo 1484.° do Código Civil.

11. Assim, nada impede, pois, a manutenção da penhora reduzida à raiz da propriedade ou, por outras palavras a penhora com o reconhecimento do referido ónus. Assim se obtém uma equitativa conciliação de interesses colidentes." E se decidiu:

"Reconhecer à recorrente o direito a permanecer nos bens penhorados e que servem de morada de família, sem prejuízo da execução prosseguir quanto à raiz da propriedade, ou seja, com o reconhecimento do referido ónus"

P. Razão pela qual, o presente recurso deve ser admitido, por se encontrar verificado, também, o pressuposto da alínea c), do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil.

Q. Vejamos então, por referência às alíneas do n.° 1 do artigo 672.° do CPC, as razões que impõem a apreciação do presente recurso e, consequente, a revogação do Acórdão recorrido substituindo-se o mesmo por outro que reconheça o direito real de habitação da Recorrente sobre o imóvel penhorado e que, em consequência, determine a redução da penhora efectuada à nua propriedade do imóvel.

R. Conforme resultou provado, o imóvel penhorado nos autos constitui a casa de morada de família do casal composto pela Recorrente e pelo Executado CC, tendo sido escolhido por ambos para ser a sua residência e da família que constituíram (Cfr. pontos 15 a 22 dos factos provados),

S. Assim o convencionaram, Recorrente e Executado, na vigência do matrimónio e em respeito pelo acordo previsto no artigo 1673.° do Código Civil, através do qual se constituiu o direito da Recorrente à habitação, gozo, posse e fruição da casa de morada de família na medida das suas necessidades, com a inerente faculdade de impedir ou limitar a penhora sobre o imóvel.

T. Este direito da Recorrente foi adquirido através do acordo que determinou que o imóvel, como casa de família, apesar de ser um bem próprio do Executado, ficaria na posse efectiva dos dois cônjuges não podendo ser alienado, onerado, arrendado sem o consentimento de ambos, tal como resulta dos artigos 1682.°-A e 1682.°-B do Código Civil (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.10.1991). Este acordo constituiu o ónus correspondente ao direito de habitação da Recorrente que limitou desde logo o direito de propriedade do Executado, não podendo aquele usar a referida casa para outro fim que não seja a habitação do casal ou que contenda com o direito à habitação da Recorrente.

U. A limitação constante do artigo 1682°-A do Código Civil pressupõe e constitui a salvaguarda do direito de habitação da Recorrente, sendo a posse da casa pelo cônjuge do proprietário que ali vive com o seu agregado familiar, uma posse material e tão legítima como a do proprietário (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.11.1981).

V. De facto, e por força do exposto, não temos senão como concluir que o acordo celebrado, nos termos do artigo 1673.° do Código Civil, entre a Recorrente e o Executado quanto à fixação da casa de morada de família no imóvel penhorado confere à Recorrente um verdadeiro e próprio direito real de habitação (arte. 1484.°, 1485.° e 1490.° CC),

W. De acordo com a argumentação tecida supra, não há dúvidas de que o Tribunal a quo deveria ter reconhecido à Recorrida o direito de habitação que esta detém sobre o imóvel penhorado, e consequentemente, deveria ter ordenado a redução da penhora efectuada limitando-se à nua propriedade do imóvel.

X. Decisão que se impunha para uma melhor aplicação do direito e, em especial, para uma melhor aplicação dos preceitos a que se reportam os artigos 1673.°, 1484.°, 1485 °, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil e na alínea a) do artigo 784.° do Código de Processo Civil, corroborando, aliás, o entendimento da doutrina e vasta jurisprudência acima referidas.

Y. A tudo isto acresce que tal direito à habitação, constituído pelo acordo de fixação da residência familiar, foi também conferido à Recorrente pelo próprio casamento celebrado com o Executado (em 1974) como conteúdo do direito a alimentos (nos termos dos artigos 1671.° a 1676.°, 2003.° e 2015.° do Código Civil), tendo assim o direito a habitar, usar, gozar e fruir da casa de morada da família na medida das suas necessidades pessoais (1486.° do Código Civil) e das necessidades da sua família (1487.° do Código Civil), tal como dispõe o artigo 1484.° n.° 2 do Código Civil. Ora, a cedência do uso do imóvel dos autos à Recorrente, como casa de morada de família, é uma forma de prestação da obrigação de alimentos que impende sobre o Executado, na qualidade de cônjuge e nos termos do artigo 2015.° do Código Civil.

Z. Deste modo, em causa estão dois direitos fundamentais adquiridos pela Recorrente ao abrigo do artigo 1676.° do Código Civil: direito real de habitação sobre a casa de morada de família e direito a alimentos do cônjuge, que apenas se extinguem com a morte (cfr. artigos 1485.°, 1476.°, 2003.°, 2013.° e 2015.° do Código Civil).

AA. Para que dúvidas não restem quanto aos direitos adquiridos pela Recorrente BB através do casamento, importa não esquecer que à data em que a Recorrente casou com o Executado, 16.12.1974, incumbia-lhe por força da lei, a obrigação do "governo doméstico" que actualmente se qualifica como "trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos", trabalho, esse, que implicou que a Recorrente renunciasse "de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes".

BB. Como se disse e provou, a Recorrente (com 67 anos de idade) não dispõe de rendimentos nem tem condições de os obter, porque renunciou a uma vida profissional em favor da vida em comum com o marido, em prol do trabalho no lar e educação dos filhos (Cfr. pontos 4 a 8 e 13 a 15, 37 e 38 dos factos provados), pelo que ao Executado CC sempre competiu e competirá a "afectação dos seus recursos àqueles encargos", i.e., a obrigação de prestar de alimentos à Recorrente uma vez que esta, pelo trabalho prestado em favor da vida comum, renunciou à sua vida profissional e, por este motivo, actualmente, não dispõe de rendimentos nem tem condições de os obter - como ficou demonstrado.

CC. Ora, também como se demonstrou e resulta da matéria de facto provada, nem a Recorrente nem o Executado CC (a quem, ademais e como se viu já, foi movida a presente execução no valor de €2.048.923,64) dispõem de rendimentos ou condições para actualmente obter/prestar os referidos alimentos (Cfr. pontos 22, 37, 38 e 40 dos factos provados e §12 da página 17 do Acórdão recorrido).

DD. No caso concreto, e recordando o que ficou provado acerca do casamento, da família, da habitação, da parca economia e estado de saúde da Recorrente BB e do Executado CC, ressalta clara a absoluta necessidade da Recorrente e da sua família se servirem do imóvel penhorado e haver os respectivos frutos, nos termos e para os efeitos do artigo 1484.° do Código Civil (Cfr. pontos 13 a 22 e 37 a 49 dos factos provados).

EE. Fazendo tábua rasa do exposto, considerou o Acórdão Recorrido que "Não foi penhorado qualquer direito a alimentos de que seja titular o cônjuge do executado".

FF. Ora, salvo o devido respeito, o direito de habitação da Recorrente decorre, ainda que sobre outra perspectiva, do conteúdo do direito a alimentos. Aliás, neste sentido esclarecedor é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima referido datado de 31.10.1991 que, em relação à casa de morada de família, refere que o cônjuge "Aí vive por direito próprio, derivado do matrimónio, como se pode ver através dos artigos 1671,° a 1674° do Código Civil e ainda dos seus artigos 2003° e 2195.° como conteúdo do direito a alimentos."

GG. Uma vez que estão em causa são os "Efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges" previstos no Código Civil, nomeadamente a eficácia do direito à habitação constituído a favor dos cônjuges sobre a "Residência de família", resulta óbvio que, face aos interesses em jogo, a questão cuja apreciação se requer é, atenta a sua relevância jurídica, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

HH. Razão pela qual, se impõe, nos termos previstos na alínea a) do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil, a apreciação da presente questão e a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo e a sua substituição por outra que reconheça que sobre o imóvel penhorado impende um ónus correspondente ao direito de habitação da Recorrente sobre a sua casa de morada de família enquanto precisar da mesma para morar e, em consequência, declare inadmissível a extensão com que a penhora foi realizada e ordene a sua redução à "raiz" da propriedade.

II. A Recorrente adita ainda que, com base na argumentação expendida, é possível concluir a particular situação social da Recorrente não foi tida em conta pelo Tribunal a quo nem mesmo para efeitos de reconhecimento do seu direito à habitação sobre o imóvel, do que resulta que no caso em apreço, considerando as especificidades e necessidades já descritas, que estão em causa "interesses de particular relevância social”.

JJ. A Recorrente BB e o Executado casaram em 18 de Dezembro de 1974 (Cfr. Ponto 3 dos factos provados).

KK. De acordo com o regime legal então vigente e os costumes e tradições de então, a Recorrente, enquanto mulher (i) adoptou a residência do marido (o Executado CC) tal como assim obrigava o artigo 1672.° do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47344, de 25 de Novembro de 1966, que, sob a epígrafe "Residência da mulher", dispunha no seu n.° 1 que "A mulher deve adoptar a residência do marido" e (ii) tomou-se responsável, durante a vida em comum, pelo governo doméstico, tal como estipulava o artigo 1677.° do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47344, de 25 de Novembro de 1966, que, sob a epígrafe "Governo Doméstico", dispunha no seu n.° 1 que "Pertence à mulher, durante a vida em comum, o governo doméstico, conforme os usos e a condição dos cônjuges" (Cfr. Pontos 4 a 8,12 a 14, 27 e 37 dos factos provados).

LL. Acresce que à data da celebração do casamento da Recorrente com o Executado, a casa de habitação/morada de família era protegida pelo Decreto n° 7033, de 16 de Outubro de 1920, reformulado pelo Decreto n.° 18551, de 3 de Julho de 1930, que determinava "O Casal de Família sendo inalienável, não é susceptível de penhora ou arresto (art. 19.°)".

MM. Todavia, ainda que se admita, que por força da disposição conjugada dos artigos 13.°, 36.° n.°s 3 e 4, e 293.°, n.° 1 (actual 290.° n.° 2) da CRP de 1976, se tenha operado a revogação parcial do Decreto n.° 18 551, pelas discriminações em razão do sexo e do nascimento nele vertidas, razão alguma existe para que se considere igualmente revogada por contrariar a Constituição a protecção conferida à casa de morada de família, quando a Lei Fundamental de 1976 visou proteger o direito à habitação (cfr. artigo 65.°), e o próprio Código Civil reforçou tal protecção, limitando-se a alargá-ia a ambos os cônjuges em nome do princípio da igualdade (1682.°-A n.° 2).

NN. Deste modo, não obstante estes normativos terem (aparentemente) caído no esquecimento da Doutrina e Jurisprudência, os mesmos não poderão deixar de ser tomados em devida conta - porque de normas legais se tratam - embora devam ser alvo de uma interpretação actualista e devidamente adaptada aos nossos dias.

OO. Facto é que o Acórdão recorrido olvidou os interesses de particular relevância social que se impõem no presente caso concreto desconsiderando por absoluto a época a que respeitam os factos,

PP. Desconsiderou (i) o papel da Recorrente mulher (na sociedade) ao longo de toda a sua vida (Cfr. pontos 6 a 8, 37 e 38 dos factos provados), (ii) toda a dedicação, trabalho e esforço desenvolvido pela Recorrente em relação ao casamento, à família e ao lar que constituiu e construiu com o Executado (Cfr. pontos 12 a14,19, 20, 26 a 34 dos factos provados), (iii) as obrigações de "governo doméstico" que competiam à Recorrente na vigência do casamento celebrado com o Executado em 1974 (Cfr. pontos 6 a 8 dos factos provados), (iv) a -consequente - insuficiência económica da Recorrente, que não dispõe de bens ou rendimentos susceptíveis de assegurar o seu direito à habitação (Cfr. pontos 37, 38 e 40 dos factos provados), bem como (v) as condições de saúde em que se encontra a Recorrente que, aliadas à sua idade, a impossibilitam de exercer uma actividade com vista à obtenção de rendimentos que garantam a sua subsistência e sobrevivência (Cfr. pontos 41 a 49 dos factos provados).

QQ. Olvidando os interesses de particular relevância social aqui em causa, o Acórdão recorrido socorre-se de jurisprudência onde se concluiu pela não impenhorabilidade da casa de morada de família. Sucede que os doutos arestos de que se socorreu o Acórdão ora posto em crise, não se debruçam sobre a factualidade aqui em causa, a qual reveste particular relevância social.

RR. Não esqueçamos que tal como provado, (i) "BB e CC contraíram casamento civil, com convenção antenupcial, no regime da separação de bens, no dia 16 de Dezembro de 1974"; (ii) "Após esse casamento e de acordo com os costumes, tradições e regime legal da época, a Oponente BB adoptou a residência do marido"; (iii) "A Oponente sempre contribuiu em espécie para o matrimónio e para a economia comum do casal, através do trabalho que prestou a favor da sociedade familiar resultante do casamento (...)"; (iv) "Ao longo de toda a vigência do casamento sempre foi a Oponente que tratou das lides domésticas"; (v) "A Oponente dedicou todo o seu tempo e vida não só a tratar das actividades e economia domésticas, como a cuidar dos filhos do casal (...)"; (vi) "A Oponente teve um papel fundamental na aquisição, manutenção, conservação e melhoramento do imóvel dos autos (...)"; (vii) "Actualmente, é no imóvel objecto de penhora, habitação única, própria e permanente do casal, que a Oponente dorme, come, pratica a sua higiene pessoal diária (....)"; (viii) "A Oponente BB nunca exerceu uma actividade remunerada, não auferindo, no presente momento, qualquer rendimento, pensão ou apoio social"; (ix) "A Oponente conta como única fonte de subsistência com a pensão de reforma do marido"; (x) "A Oponente não dispõe de qualquer outro imóvel onde o casal possa habitar"; e que (xi) "A Oponente, com 66 anos de idade, sofre de doença óssea degenerativa, "osteoporose e "Haliux" que começou a demonstrar sinais no ano de 2002".

SS. É evidente que o caso dos presentes autos não se pode confundir com um caso típico, dos dias de hoje, em que é penhorada uma casa destinada a habitação, razão pela qual, não se podem colher os argumentos constantes do Acórdão recorrido que tratam da mera penhorabilidade (total) da casa de morada de família e não da sua extensão.

TT. Contrariamente, no presente caso, a Recorrente não põe em causa a penhorabilidade da casa de morada de família mas antes a sua extensão. Ou seja, a Recorrente apenas pretende que a penhora efectuada respeite o seu direito à habitação sendo reduzida à nua propriedade do imóvel. Redução essa que se impõe face aos interesses de particular relevância social que aqui estão causa.

UU. E não se diga, como o fez o Acórdão Recorrido que "A (eventual) procedência desta pretensão redundaria, como é óbvio, no esvaziamento prático do processo executivo, constrangendo intoleravelmente os legítimos direitos do exequente à efectiva satisfação do seu crédito, assim tão drasticamente amputado da sua garantia processual"

VV. Pois que, a este respeito, cumpre referir que sempre foi público e notório, tal como sempre soube a Exequente, que o Executado é casado e que o imóvel penhorado constitui a residência familiar do Executado e da Recorrida, razão pela qual, não temos senão como concluir, sufragando o Douto entendimento do Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão datado de 08.05.2013, que,

"Sendo assim, nada impede que a ré oponha triunfantemente aos autores o seu direito de habitação, apesar de não o ter registado: é que, quanto a ele, a posição jurídica dos recorrentes coincide totalmente com a do ex-marido da recorrida, a quem sucederam na titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel já limitado pelo direito de habitação anteriormente constituído (são parte, no sentido visado pelo art° 4º, n° 1, do CRP, acima citado)."

WW. E quanto ao argumento do "esvaziamento prático do processo executivo", cumpre realçar a Douta consideração que o Tribunal Constitucional fez a este respeito no Acórdão n.° 127/13, no qual considerou que:

"Não se trata de um sacrifício imposto ao titular em nome de uma genérica hipoteca sociai da propriedade, mas de manter uma situação emergente dos efeitos do casamento e que vai para além dele. (...)

8. Assim, encontrando legitimação na defesa de um elemento constitucionalmente proclamado como elemento fundamental da sociedade, sendo meio idóneo a prosseguir essa finalidade e de modo algum podendo ser acusada de "reduzir a nada" os poderes de disposição, fruição e utilização, a solução normativa questionada não viola a garantia constitucional do artigo 62.° da Constituição. É uma norma de vinculação da propriedade, mas enquanto incidente sobre um bem em especial e de um tipo de proprietário e beneficiário: a casa de morada de família e o ex-cônjuge relativamente ao outro. Cabe, atendendo à imposição constitucional de protecção da família, nos poderes de determinação legislativa do conteúdo da propriedade "nos termos da Constituição".

XX. Aqui chegados, em face dos argumentos expendidos e nos termos previstos na alínea b) do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil, impõe-se a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo e a sua substituição por outra que conheça dos fundamentos invocados pela Recorrente e julgue procedente o presente recurso.

YY. A tudo isto acresce o facto de a decisão proferida pelo Venerando Tribunal a quo se encontrar em contradição com várias decisões proferidas pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça acima referidas), em particular, com a decisão constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.03.1997 - BMJ, n.° 465.°, pág. 498,

ZZ. Acórdão este que se junta e se dá por reproduzido e que, para todos os efeitos, deverá ser considerado como Acórdão-fundamento. Vejamos,

AAA. No que concerne ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.03.1997, o mesmo foi proferido no âmbito de um incidente de embargos de terceiro deduzido por DD contra o Banco EE, S.A., na sequência da penhora efectuada a favor do referido Banco sobre fracções que são propriedade do seu marido na medida em que estas constituem a casa da morada de família da Embargante.

BBB. Alegou a Embargante, cônjuge do executado, que os referidos bens são bens próprios do executado, seu marido, e que os mesmos constituem a casa de morada de família que os referidos cônjuges escolheram, de comum acordo, logo após o casamento, para a residência de família.

CCC. Pronunciando-se sobre a questão, entendeu o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça o seguinte:

"In casu, os bens penhorados, que constituem a casa de morada de família, são, como constatámos, propriedade exclusiva do marido da embargante. (...)

8. Estamos perante uma penhora levada a efeito por um credor do marido da embargante. (...).

De qualquer modo, a penhora atinge o mencionado direito de habitação do cônjuge não devedor, está em causa a manutenção da residência da família.(...)

10. Só que, conforme a própria recorrente reconhece, «o direito à casa de morada de família,tal como aparece definido na lei, nada mais representa do que o direito de habitação da embargante sobre as mesmas fracções»

Porque, assim é, e porque o princípio geral é o referido no artigo 601° do Código Civil, já acima transcrito, segundo o qual iodos os bens do devedor respondem pelo cumprimento da obrigação, a restrição resultante da aplicação do regime do n.° 2 do artigo 1682.°-A deve limitar-se ao necessário para a defesa daquele direito de habitação. Assim, este direito fica salvaguardado pelo reconhecimento da faculdade de permanência nos bens penhorados, enquanto a embargante precisar deles para morar, isto é, da faculdade de se servir deles na medida das suas necessidades próprias e dos filhos. Emerge, pois, dos referidos dispositivos legais combinados o reconhecimento de um vero direito de uso e habitação, nos termos do artigo 1484.° do Código Civil.

11. Assim, nada impede, pois, a manutenção da penhora reduzida à raiz da propriedade ou, por outras palavras a penhora com o reconhecimento do referido ónus. Assim se obtém uma equitativa conciliação de interesses colidentes."

DDD. Em face do exposto, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no referido acórdão: "Reconhecer à recorrente o direito a permanecer nos bens penhorados e que servem de morada de família, sem prejuízo da execução prosseguir quanto à raiz da propriedade, ou seja, com o reconhecimento do referido ónus"

EEE. Considerando que no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ora recorrido, o Tribunal a quo concluiu que: "Não há que reconhecer qualquer ónus sobre o prédio penhorado, correspondente ao direito de habitação da recorrente sobre a casa de morada de família na medida das suas necessidades".,

FFF. E sendo a factualidade em apreço totalmente idêntica em ambos os Arestos, não há dúvidas que é manifesta a contradição existente entre ambos que foram proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contradição essa que importa ao Supremo Tribunal de Justiça afastar, nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil.

GGG. Em face do exposto, impõe-se a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo e a sua substituição por outra que, nos termos do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, reconheça o direito real de uso e habitação que a Recorrente detém sobre a casa de morada de família, direito esse vitalício, uma vez que a Recorrente necessita da mesma para morar, e ordene a redução da penhora efectuada à "raiz da propriedade" mantendo-se a mesma onerada com o direito real da Recorrente à habitação do imóvel na medida das suas necessidades, afastando como tal a contradição de acórdãos.

HHH. Por último, importa ainda em última linha, referir que mal andou o Tribunal a quo quando se debruçou sobre a "inconstitucionalidade da penhora" tendo-se limitado a referir que "este norma constitucional [artigo 65.° da Constituição], de cariz marcadamente programático, não obriga o legislador ordinário a estabelecer a impenhorabilidade da casa de morada de família onde o executado reside".

III. Note-se, por um lado, que nos presentes autos não se defende a impenhorabilidade da casa de morada onde o executado reside, mas antes onde o cônjuge do executado reside e, por outro lado, não se defende uma impenhorabilidade em termos absolutos, mas antes uma impenhorabilidade relativa.

JJJ. É que conforme menciona o próprio Acórdão "Referem, a este propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa anotada", Volume I, pág. 835, "como direito de defesa, o direito á habitação justifica medidas de protecção contra a privação da habitação (limites à penhora da morada de família, limites mais ou menos extensos aos despejos)."

KKK. In casu, o que está em causa são esses limites - os da penhora, e não a impenhorabilidade, em absoluto (num juízo lógico-valorativo de "tudo ou nada"), da casa de morada de família.

LLL. Como se viu acima, o cerne da questão decidenda - e que não foi, de facto, apreciada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa nos termos em que foi formulada - é o de saber se a nossa Lei Fundamental impõe ou não que existam limites à extensão com que pode ser efectuada a penhora de um Imóvel sempre que o mesmo constitua a casa de morada de família do cônjuge do Executado. Pelo que, a jurisprudência citada no Acórdão recorrido nada tem que ver com o presente caso concreto.

MMM. Razão pela qual, a Recorrente não pode aceitar a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo. Na verdade, deve ser declarada inconstitucional a interpretação que o Tribunal de Segunda Instância faz dos artigos 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil, ao extrair dos mesmos o sentido normativo de que não assistirá ao cônjuge,não proprietário, nenhum direito real de habitação sobre a sua casa de morada de família na medida das suas necessidades e da sua família porquanto, conforme se arguira em momento oportuno se vier a ser esse o caso, tal interpretação viola os direitos fundamentais à habitação, à família e ao casamento consagrados nos artigos 65.°, 67.° e 37.° da Constituição da República Portuguesa.

NNN. Nestes termos, suscita-se a citada inconstitucionalidade requerendo-se que este Supremo Tribunal profira uma interpretação conforme à Constituição dos aludidos normativos, reconhecendo que o direito à habitação que a Recorrente detém sobre o imóvel penhorado (que decorre de tais normas legais e que é corolário dos direitos fundamentais consagrados na nossa Lei Fundamental) impõe que a extensão com seja realizada uma penhor sobre um imóvel que constitua casa de morada de família, seja reduzida à nua propriedade do mesmo, mantendo-se e reconhecendo-se como verdadeiro direito real de habitação o direito do cônjuge do Executado a manter no imóvel penhorado a sua residência.

OOO. Acresce que a interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo viola ainda os princípios da igualdade e da proporcionalidade previstos nos artigos 13.° e 18.° da Constituição, porquanto não se pode conceber que as medidas respeitantes à "casa de morada de família" que respeitam à "política de família com carácter global e integrado" que ao Estado incumbe executar para protecção da família [alínea g) do n.° 2 do artigo 67.° da CRP], apenas visem defender a estabilidade da habitação familiar no interesse dos cônjuges e dos filhos, nas situações de crise provocadas, quer pelo divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens, quer pelo falecimento de algum dos cônjuges e não no próprio decurso da vida conjugal.

PPP. Com efeito, inaceitável seria entender-se que o legislador ordinário apenas pretendeu proteger o direito à habitação do cônjuge não proprietário sobre a casa de morada de família em caso de divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens (artigos 1105.°, 1775.° n.° 1, al. d), 1793.° e 1794.° do Código Civil) ou em caso falecimento de algum dos cônjuges (artigos 2103.°-A, n.° 1 do Código Civil), não o protegendo no próprio decurso da vida conjugal (artigos 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil), permitindo que o direito de habitação do cônjuge não proprietário possa ser violado caso o mesmo permaneça casado ou o seu cônjuge não tenha falecido, pelos credores exclusivos do seu cônjuge.

QQQ. Termos em que se impõe a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo e a sua substituição por outra que, em respeito por uma aplicação e interpretação conforme à Constituição dos artigos 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil, reconheça o direito real de uso e habitação que a Recorrente detém sobre a casa de morada de família, direito esse vitalício, uma vez que a Recorrente necessita da mesma para morar, e ordene a redução da penhora efectuada à "raiz da propriedade" mantendo-se a mesma onerada com o direito real da Recorrente à habitação do imóvel na medida das suas necessidades, afastando como tal a contradição de acórdãos.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão,

Deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Revista Excepcional e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra decisão que reconheça, por provado, o direito real de habitação que a Recorrente detém sobre o imóvel penhorado e que, em consequência, ordene a redução da penhora à nua propriedade do imóvel.

Deverá ser declarada inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, bem como dos direitos fundamentais à habitação, à família e ao casamento, todos consagrados, respectivamente, nos artigos 13.° e 18.° 65.°, 67.° e 37.° da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.° e 1490.° do Código Civil, no sentido de que não assistirá ao cônjuge, não proprietário, nenhum direito real de habitação sobre a sua casa de morada de família na medida das suas necessidades e da sua família.


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8. Foram apresentadas contra-alegações com as seguintes conclusões:

A. O Acórdão do Tribunal a quo — como sucedia com a Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância — não merece qualquer reparo, constituindo a melhor fundamentação que, nesta sede, se pode oferecer.

B. Pese embora a Oponente, finalmente, ter admitido que está errado o entendimento de que a casa de morada de família é impenhorável, certo é que a Oponente parece sugerir que o (mais do que extinto) regime do casal de família ainda está em vigor no Direito português.

C. E manifesto que o regime legal relativo ao casal de família não está em vigor, não havendo registo de Jurisprudência ou Doutrina que defendam o contrário, e que, ainda que assim não fosse, o Executado e a Oponente não demonstraram tê-lo instituído, como era seu ónus.

D. A Oponente não é titular de qualquer direito real sobre o imóvel em causa conforme resulta da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da mais autorizada Doutrina —, pelo que, consequentemente, não pode aquela pretender que a penhora se cinja à "raiz da propriedade".

E. A proceder a tese da Oponente, tal esvaziaria, de modo insuprível, o processo executivo de eficácia, desse modo prejudicando, irreparavelmente, a posição ocupada pelo exequente, num procedimento cuja finalidade é a de alcançar o pagamento coercivo pela parte que voluntariamente não acedeu a satisfazer o direito que assiste a outrem.

F. Se não assiste à Oponente qualquer direito real de uso e habitação, ou outro, sobre o imóvel, por maioria de razão, não é exigido qualquer consentimento seu para a penhora, e tão-pouco se pode afirmar que é inadmissível a extensão com que foi realizada a penhora da casa de morada de família.

G. A irrelevância do consentimento da Oponente, ou do Executado, para a penhora do imóvel, sempre decorreria da não aplicação, ao caso dos autos, do artigo 1682.°- A do Código Civil.

H. A Jurisprudência dos Tribunais Superiores é apta a dissipar quaisquer dúvidas sobre a inaplicabilidade do artigo 1682.°-A do Código Civil, e consequente irrelevância do consentimento da Oponente, ou do Executado, para a constituição da penhora.

I. A tese da Oponente, baseada no suposto acordo previsto no artigo 1673.° do Código Civil, ao abrigo do qual o cônjuge não proprietário adquiriria o direito à habitação na casa de morada de família, não só é desprovida de qualquer sustentação legal, jurisprudencial ou doutrinária, como, além do mais, os exemplos listados pela Oponente dizem respeito a situações que nenhuma conexão apresentam com o caso dos autos.

J. Como bem refere o Tribunal a quo, não se entende «o argumentaria girado pela apelante no sentido de que "a cedência do uso do imóvel dos autos à sua esposa, como casa de morada de família, é uma forma de prestação da obrigação de alimentos que impende sobre o executado, na qualidade de cônjuge e nos termos do artigo 2015. ° do Código Civil, o qual é irrenunciável ou penhoráveis, uma vez que «.não foi penhorado qualquer direito a alimentos de que seja titular o cônjuge do executado».

K. Aliás, como é dito pelo Tribunal a quo, «desconhece-se se foi efectivada entre os cônjuges (executado e esposa) qualquer obrigação de alimentos, em que circunstâncias», pelo que se trata de «uma alegação que não faz pura e simplesmente, sentido».

L. Nestes termos, conclui-se, por um lado, que é admissível a penhora da casa de morada de família, e, por outro, que não é «excessiva» a extensão com que foi efectuada a penhora.

M. A arguição de inconstitucionalidade constante da Alegação de Recurso é despropositada, carecendo de fundamento.

N. As normas constantes dos artigos 1682.°~A, 1673.°, 1484.°, 1485.°, 1486.°, 1487.°, 1490.°, 2003.° e 2015.°, todos dos Código Civil, e do artigo 784.° do Código de Processo Civil, interpretadas, conjugadamente, no sentido de que assiste ao cônjuge não proprietário um direito real de habitação, ou outro, sobre a sua casa de morada de família na medida das suas necessidades e da sua família, que implique que a penhora da casa de morada de família seja circunscrita à raiz da propriedade, é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.°, 9.°, 13.°, 18.°, 20.°, e 202.°, todos da Constituição da República Portuguesa, o que se invoca para todos os efeitos legais.

O. Em face do exposto, deve o Tribunal ad quem julgar improcedente o presente Recurso de Revista Excepcional e confirmar a decisão recorrida.

NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEL, DEVE O PRESENTE RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL SER JULGADO IMPROCEDENTE, COMAS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS,



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9 - Matéria de facto:

1. BB nasceu em 14 de Outubro de 1947.

2. O Executado CC nasceu em 8 de Agosto de 1938.

3. BB e CC contraíram casamento civil, com convenção antenupcial, no regime de separação de bens, no dia 16 de Dezembro de 1974.

4. Após este casamento e de acordo com os costumes, tradições e regime legal da época, a Oponente BB adoptou a residência do marido.

5. O Executado CC contribuía com os seus rendimentos e proventos para as despesas domésticas correspondentes à condição económica e social da família.

6. A Oponente sempre contribuiu em espécie para o matrimónio e para a economia comum do casal, através do trabalho que prestou a favor da sociedade familiar resultante do casamento.

7. Ao longo de toda a vigência do casamento sempre foi a Oponente que tratou das lides domésticas, nomeadamente da limpeza, organização e arrumação da casa, solicitando e coordenando a construção, arranjo e manutenção do imóvel onde o casal habitava e habita, dos respectivos bens móveis e consumos domésticos (electricidade, canalização, telefone, gás, vidros, portas, máquinas e aparelhos domésticos).

8. De igual modo, sempre foi à Oponente que foram cometidas e sempre foram por ela desempenhadas as tarefas de organização e realização de eventos familiares e sociais, confecção de alimentação, costura, lavagem e tratamento de roupa, tratamento de correspondência de cariz social ou familiar, realização de compras relativas ao vestuário, alimentação, aquisição de presentes para ocasiões festivas e demais actividades relacionadas com a vida económica e social da família.

9. Em 8 de Julho de 1976, a Oponente BB e o Executado CC tiveram a sua primeira filha, de seu nome FF.

10. Em 17 de Julho de 1977, nasceu a segunda filha do casal constituído pela Oponente e pelo Executado, de seu nome GG.

11. Em 2 de Abril de 1982, a Oponente e o Executado tiveram o seu terceiro e último filho, de seu nome HH.

12. Na sequência do nascimento dos filhos do casal, a Oponente passou a ter a seu cargo a responsabilidade de tratar também dos filhos do casal, nomeadamente da alimentação (confecção e preparação de refeições), educação (acompanhamento escolar, educação moral e social, transporte escola-casa), aquisição e tratamento de vestuário, higiene, saúde (marcação de consultas e análises, vacinas, acompanhamento e tratamento de doenças, transporte médico-casa) e demais tarefas inerentes às competentes responsabilidades parentais.

13. A Oponente dedicou todo o seu tempo e vida não só a tratar das actividades e economia domésticas, como a cuidar dos filhos do casal, desde que nasceram até que saíram de casa na década de 2000.

14. A Oponente teve um papel fundamental na aquisição, construção, manutenção, conservação e melhoramento do imóvel dos autos, impedindo a sua desvalorização.

15. O imóvel penhorado nos autos constitui a casa de morada de família do casal composto pela Oponente e pelo Executado CC, tendo sido escolhido por ambos para ser a sua residência e da família que constituíram.

16. O Executado adquiriu o terreno onde hoje se erige o imóvel penhorado, terreno esse que foi escolhido quer pelo Executado, quer pela Oponente.

17. Posteriormente, em 1987, a Oponente e o Executado iniciaram a construção de uma casa que hoje se encontra incorporada no referido terreno e constitui o imóvel objecto de penhora.

18. Em 1991, a Opoente BB, o Executado e os três filhos do casal passaram a habitar o imóvel dos autos, onde sempre viveram, com os seus filhos (até à data em que cada um deles saiu de casa), dormiram, tomaram as suas refeições, receberam os seus amigos e familiares, a sua correspondência.

19. A referida casa destina-se e desde sempre se destinou a ser o centro da vida familiar, tendo sido construída para esse preciso efeito e adaptada pelo casal, ao longo dos tempos, às necessidades dos próprios e da sua família (filhos e netos).

20. O jardim da referida casa de morada de família foi também tratado pela Oponente, tendo no mesmo sido cultivada uma pequena horta e plantadas algumas árvores de fruto e plantas, servindo-se assim o jardim à economia doméstica, subsistência e alimentação da família constituída pela Oponente e pelo Executado.

21. Desde 1991 que a Oponente se serve, usa, frui e goza o referido imóvel, enquanto casa de morada de família, com vista à realização das suas necessidades pessoais e familiares.

22. Actualmente, é no imóvel objecto de penhora, habitação única, própria e permanente do casal, que a Oponente dorme, come, pratica a sua higiene pessoal diária, recebe a sua correspondência, telefonemas e faxes, realiza as lides domésticas, trata e cuida dos netos, recebe os seus familiares; recebe os seus amigos.

23. Hoje em dia, são os netos da Oponente BB e do Executado CC quem regularmente, e de acordo com as necessidades de seus pais, usufruem e pernoitam no imóvel dos autos.

24. A Oponente BB e o Executado CC têm três netos:

- II, nascido a 7 de Dezembro de 2004;

- JJ, nascida a 11 de Dezembro de 2007;

- KK, nascido a 19 de Dezembro de 2011;

25. Desde o nascimento do primeiro neto do casal, II, a Oponente BB e o Executado CC começaram a receber o seu neto diariamente na sua casa.

26. Oponente toma conta dos seus netos, uma vez que ambos os pais destes trabalham durante todo o dia.

27. A Oponente BB sempre assegurou e assegura a alimentação dos seus netos, durante o dia, colaborando na respectiva educação (indo buscá-los à escola e ajudando-os nos trabalhos escolares), prestando-lhes os mais elementares cuidados de higiene (mudança de fraldas, banho, etc) e de saúde (marcação de algumas consultas, análises e vacinas, acompanhamento e tratamento de doenças, transporte médico-casa) - o que faz no imóvel penhorado.

28. No caso do neto II, fê-lo a tempo inteiro desde o fim das licenças parentais de sua filha e genro e até ao ingresso deste no infantário (no ano de 2008), continuando actualmente a recebê-lo e cuidar dele diariamente, no imóvel onde vive com o Executado, após o fim das aulas.

29. No caso da sua neta JJ, fê-lo a tempo inteiro desde o fim das licenças parentais de sua filha e genro e até ao ingresso desta no infantário (no ano de 2011), continuando actualmente a recebê-la e cuidar dela diariamente, no imóvel onde vive com o Executado, após o fim das actividades do infantário.

30. No caso do seu neto KK, fá-lo actualmente desde o fim das licenças parentais de sua filha e genro.

31. A Oponente BB vai buscar, diariamente, II e JJ à escola recebendo-os na sua casa de morada de família até às horas em que os respectivos pais saem do emprego e os vão buscar, servindo-lhes lanche, dando-lhes banho e ajudando-os a fazer os trabalhos de casa.

32. Relativamente ao neto KK, este passa o dia completo ao cuidado dos avós, sendo que os pais o deixam no imóvel objecto de penhora, antes de irem trabalhar e vão buscá-lo após o trabalho.

33. Inúmeras são as vezes, que os netos da Oponente e do Executado jantam e pernoitam na casa de morada de família, atentas as indisponibilidades temporárias dos pais destes, justificadas por motivos profissionais, sendo certo que, por força de tais responsabilidades profissionais das filhas e genros, a Oponente BB recebe ainda os seus netos no imóvel objecto de penhora, não só durante os tempos livres, mas também durante as férias destes.

34. A Oponente BB e o Executado são os únicos avós com disponibilidade para cuidar dos netos, nos termos em que o fazem.

35. Os avós paternos de II e JJ residem a maioria do ano no Alentejo e as crianças em Cascais.

36. A avó paterna de KK tem problemas de saúde, não podendo tomar conta do neto, nem o avô paterno de KK, tem condições e capacidades para receber o neto diariamente em sua casa sita em Lisboa.

37. A Oponente BB nunca exerceu uma actividade remunerada, não auferindo, no presente momento, qualquer rendimento, reforma, pensão ou apoio social.

38. A Oponente conta como única fonte de subsistência com a pensão de reforma do marido.

39. No ano de 2011, o Executado auferiu a quantia bruta de € 14.075,74, tendo o casado recebido de reembolso de IRS a quantia de € 531,69.

40. A Oponente não dispõe de qualquer outro imóvel onde o casal possa habitar.

41. A Oponente, com 66 anos de idade, sofre de uma doença óssea degenerativa, "osteoporose" e "Hallux" que começou a demonstrar sinais no ano de 2002.

42. Desde 2002 que a Oponente é frequentemente sujeita a análises clínicas e consultas, onde são analisados os valores da mineralização óssea trabecular, sendo, por isso, regularmente sujeita a vacinação por forma a tentar protelar os nefastos efeitos degenerativos da referida doença óssea, que não raras as vezes impossibilitam e dificultam a sua locomoção e lhe provocam graves dores.

43. A Oponente sofre ainda de alta pressão arterial, sendo por isso também frequentemente sujeita a análises clínicas e consultas sendo-lhe regularmente medida a pressão arterial, e encontrando-se, desde há uns anos a esta data, sujeita a medicação diária para tratar a referida doença cardíaca.

44. O Executado CC sofre de uma insuficiência coronária que levou a que, em 1999, tivesse de ser alvo de uma intervenção cirúrgica ao coração designada de "Angioplastia Coronária".

45. Em Julho de 2003, o problema cardíaco do Executado agravou-se e este foi alvo de uma segunda cirurgia ao coração.

46. Em Julho de 2005, o Executado foi operado pela terceira vez ao coração.

47. Em 2006, foi detectado ao Executado um cancro na garganta, tendo o mesmo sido submetido a intervenção cirúrgica por carcinoma pavimento celular do palato mole em Março de 2006.

48. Em Janeiro de 2007, o Executado foi submetido a uma quarta cirurgia ao coração.

49. Em Junho de 2010, o Executado sofreu uma recorrência do cancro, tendo sido novamente alvo de uma intervenção cirúrgica, desta feita por esvaziamento ganglionar cervical.


10 - O mérito da causa:

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil.


As questões a resolver são as seguintes:

A. Admissibilidade do recurso- artº 629º,nº 2,d) do NCPC

B. Penhorabilidade da casa de morada de família



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A - Admissibilidade do recurso- artº 629º,nº 2,d) do NCPC

Como a Formação faz ressaltar por expressa determinação do art. 854° do NCPC, tal como do art. 922°-C que anteriormente lhe correspondia, encontra-se vedado o recurso de revista do acórdão da Relação proferido em, apelação que conheça da oposição contra a penhora, enquanto incidente de natureza declaratória (art. 853°-l), salvo se, no caso, for sempre admissível recurso para o STJ.. Com efeito, em processo de execução, apenas é admissível revista, nos termos gerais, nos procedimentos declarativos de liquidação, de verificação e graduação de créditos e de oposição à execução.

Não sendo a revista admissível nos termos gerais, também o não poderá ser como revista excepcional, por isso que, como é sabido, a admissibilidade desta pressupõe que o único impedimento à reapreciação da decisão seja a confirmação pela Relação, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, da decisão da Ia instância (dupla conforme) - art. 671o-1 e 3 CPC.

Resulta, deste modo, afastada que está a possibilidade de recurso de revista excepcional, prejudicada a necessidade de apreciação da verificação dos pressupostos aludidos nos n.°s 1 e 2 do art. 672°, à luz do alegado pela Recorrente.”

Deste modo importa agora debruçarmo-nos sobre a admissibilidade do recurso por via do artº 629º, nº 2 d) do NCPC.

No caso está em apreciação saber se o imóvel penhorado que constitui a casa de morada de família não pode ser penhorado ou, caso assim não se entenda, se deverá ser reconhecido o direito de habitação (direito real de gozo) vitalício que a oponente detém sobre o imóvel penhorado, restringindo-se a penhora efectuada à nua propriedade do imóvel.

A recorrente considera que há contradição com o acórdão do STJ proferido em 13-03-1997 no Processo n.º 970/96 - 2.ª Secção :

I - De acordo com a regra do art.º 833 do CPC/62, o executado tem a faculdade de indicar os bens sobre os quais a penhora há-de recair. Afigura-se evidente a necessidade do consentimento do cônjuge do executado para o exercício dessa faculdade, nomeadamente se existirem outros bens no património do executado. 

II - O mesmo regime é de aplicar à hipótese de, não sendo exercida aquela faculdade, o direito de nomear bens à penhora se devolver ao exequente. 

III - Para serem atingidos os bens penhorados, perante a falta do referido consentimento, a embargante teria que ser convencida em processo próprio, conforme resulta do disposto no art.º único da Lei n.º 35/81, de 27-08. 

IV - O direito à casa de morada de família, tal como aparece definido na lei, nada mais representa do que o direito de habitação do cônjuge embargante sobre a casa penhorada. Assim, a restrição resultante da exigência legal do consentimento, nos termos do n.º 2 do art.º 1682-A do CC, deve limitar-se ao necessário para a defesa daquele direito de habitação. 

V - Este direito fica salvaguardado pelo reconhecimento da faculdade de permanência nos bens penhorados, enquanto a embargante precisar deles para morar, isto é, da faculdade de se servir deles na medida das suas necessidades próprias e dos filhos. 

VI - Emerge, pois, dos referidos dispositivos legais combinados, o reconhecimento de um vero direito de uso e habitação, nos termos do art.º 1484 do CC. 

VII - Assim, nada impede a manutenção da penhora reduzida à raiz da propriedade ou, por outras palavras, a penhora com o reconhecimento do referido ónus. Assim se obtém uma equitativa conciliação de interesses colidentes. 

O quadro legal que esteve na base deste acórdão do STJ de 1997 modificou-se. Nele faz-se referência à Lei n.º 35/81, de 2708 a qual antecedeu o regime do anterior artigo 28.ºA do CPC respeitante ao litisconsórcio dos cônjuges, correspondente ao actual 34.º do CPC.

Para além disso, todo o regime da penhora de bens comuns do casal conheceu alterações posteriores, regulando o artigo 825.º do anterior CPC a penhora de bens comuns do casal, o qual foi recentemente desenvolvido e aperfeiçoado nos artigos 740.º e 741.º do actual CPC.

Afigura-se-nos no entanto que estas alterações não obstam a que se dê por verificado o pressuposto contradição no domínio da mesma legislação imposto pelo referida alínea d) nº 2 do artº 629º.



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B- Penhorabilidade da casa de morada de família

Debate-se na situação em apreço, por um lado os direitos das pessoas que fazem parte do agregado familiar do devedor executado, correlacionados com a dignidade humana, com o direito à habitação, que lhes é reconhecida constitucionalmente e por outro lado os direitos do credor .

O imóvel em referência constitui um bem penhorável, nos termos gerais do artº 821º, nº 1, do Código de Processo Civil (artº 735º do NCPC), segundo o qual : “ Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda. “.

O artº 822º do CPC (artº 736º do NCPC) identifica com clareza os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis. A situação ora em apreço não se subsume à impenhorabilidade prevista em qualquer das alíneas do referido normativo.

A recorrente sustenta a sua pretensão no facto do imóvel constituir a casa de morada de família. Como tal a manter-se a penhora do imóvel, como casa de morada de família, verifica-se uma violação do artº 65ºda Constituição da Republica que defende que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade da família. “.

É certo, como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “ Constituição da República Portuguesa Anotada “, Volume I, pag. 835 que “ O direito à habitação é não apenas um direito individual mas também um direito das famílias ( … ). Quanto ao seu objecto, como direito de defesa, o direito à habitação justifica medidas de protecção contra a privação da habitação ( limites à penhora da morada de família, limites mais ou menos extensos aos despejos ). Como direito social, o direito à habitação não confere um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação ( … ). “.

No entanto, não é menos certo que tal protecção do direito à habitação do cidadão e da família esgota-se nesse apoio, sendo que o legislador ordinário não obstante estar ciente da importância desse direito não consagrou como referimos, a sua impenhorabilidade. Não se pode confundir direito à habitação com direito a ter casa própria.

Bem clara nesse sentido é a posição expressa por Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “ Constituição Portuguesa Anotada “, Volume I, pags. 665 a 666 :

“ O direito à habitação não se confunde com direito de propriedade, mesmo na sua dimensão positiva enquanto direito à aquisição de propriedade. O direito à habitação, por si só, “ não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão “ . Daí que uma norma que admite a penhora de um imóvel onde se situe a casa de habitação do executado e seu agregado familiar não viole o direito que todos têm de haver, para si e para a sua família, uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, pois a habitação em causa, desligada da titularidade do direito real de propriedade sobre o imóvel onde essa habitação se situa, não é afectada, já que pela penhora o executado e a sua família não são privados da respectiva habitação, podendo, pois, manter-se no imóvel. “.

Neste mesmo sentido, referem Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, in “ Curso de Direito da Família “, Volume I, pags. 390 a 391 : “ No direito português actual - ao contrário do que se passava nos anos vinte e trinta, em que as leis estabeleciam a impenhorabilidade do “ casal de família “ - a casa de morada de família não está protegida contra uma penhora. “.

Como se salienta muito a propósito no Ac. da Relação de Guimarães proferido em 4-12-14 no processo nº 1647/11.5TBVRL-B.G1 “ também não constitui obstáculo á penhora o facto de os executados habitarem os imóveis. Não consta do elenco de bens impenhoráveis o imóvel “de habitação“ do executado.

A lei estabeleceu é certo algumas defesas em relação à habitação – vd. Artigo 834º nº 2 redacção da L. 60/2012 (actual 751º, nºs 3, als. a) e b)), estabelecendo só ser possível a penhora de imóvel, caso este seja a habitação permanente do executado, quando a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de doze meses, no caso de a dívida não exceder metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância, e de dezoito meses excedendo a dívida metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância. Mas a questão colocada no recurso não se prende com qualquer desaplicação deste normativo. No sentido da protecção da habitação vejam-se ainda e entre outros os artigos 839º, 1, a) e 930º, 6 do CPC, e no actual os artigos 704º, 4; 733º, 5; 861º, 6.

Por ultimo a admissibilidade da penhora não atenta contra o direito constitucional à habitação. “ O direito à habitação não se confunde com o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão, como porque a penhora, só por si, não priva de habitação quem na casa de morada de família possa habitar” – Vd. Ac. RG de 7/5/2003, www.dgsi.pt, processo nº 1267/06-1 e da mesma relação o de 25/3/2010, www.dgsi.pt, processo nº 1880/08.7TBFLG-B.G1. Vd. Ainda TC no processo nº 155/99.”

Acresce que o direito á habitação não é um direito absoluto que se sobreponha a qualquer outro, nomeadamente o direito de propriedade. O artº 824º, nº 2 do C. Civil é peremptório no sentido de que os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.

Deste modo não tem sustentação legal a pretensão da recorrente na manutenção da penhora reduzida à raiz da propriedade, não se descortinando, também , violação de qualquer preceito constitucional.


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Caixa de texto: 11 - DECISÃO:
Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento à revista confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Notifique.




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Lisboa, 2015-03-05                                                                                                                                     

João Trindade (Relator)

Tavares de Paiva

Abrantes Geraldes