Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1225/20.8YRLSB.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DECISÃO ARBITRAL
DIREITOS INDISPONÍVEIS
DIREITOS DE PERSONALIDADE
EFEITOS PATRIMONIAIS
DIREITO AO NOME
TUTELA DA PERSONALIDADE
EXECUÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PROPRIEDADE PRIVADA
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
ARBITRAGEM INTERNACIONAL
ARBITRAGEM
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
O direito ao título nobiliárquico submete-se, em primeira linha, ao regime dos direitos de personalidade, particularmente no tocante à defesa, não podendo ser reconhecida a sua atribuição por arbitragem, pelo que também não pode a decisão arbitral ser reconhecida.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA, de nacionalidade ..., com domicílio em ... n,° 5, …, veio, ao abrigo do art.° 978, do Código de Processo Civil, instaurar acção de revisão e confirmação da sentença proferida no Tribunal Arbitral em 18/7/1995 na qual ficou julgado que "...cabe a AA o título de Príncipe de ... - Duque de ... e que com base nesse estatuto e qualidade cabe ao mesmo o tratamento de Sua Alteza Real bem como o título de pretendente ao Trono de Portugal e de Chefe da Casa Real de Portugal com direito de usar o escudo de armas o direito de transmitir o título de casa real de Portugal e com todos os direitos de usar o escudo de armas o direito de transmitir o título e com todos os direitos ligados ao magistério das ordens dinásticas da casa real de Portugal. Cabe na qualidade acima referida a S.A.R o Príncipe Dom AA o direito à concessão de títulos nobiliárquicos, das distinções honoríficas da casa real de Portugal conforme fons honor um".

2. Alegou, em síntese, que, em 9/7/1997, o Tribunal de Bucareste exarou sentença na qual decretou reconhecer efeitos jurídicos sobre o território da Roménia da sentença arbitral pronunciada a 18/7/1995 na República de San Marino pelo árbitro único tornada definitiva e executiva com a decisão n.° 463 de 19/12/1995 pelo Tribunal de Urbino da República Italiana; tudo se iniciou com uma questiúncula travada entre o requerente e um jurista ... BB onde colocava em dúvida os títulos a que o requerente dizia ter direito, viu-se o requerente na necessidade de recorrer a Tribunal Arbitral onde pediu que fosse declarado "ser ele o da ... Titular da Real Casa de Portugal pretendente ao trono de Portugal e que por conseguinte tem o direito de usar o Escudo de Armas e teria o direito de transmitir o Título bem como ao tratamento de Sua Alteza Real e de Grão Mestre das Ordens de Cavalaria Dinástica e da Coroa; b) AA seria pretendente ao trono de Portugal no seu estatuto e qualidade de Titular da Real Casa de Portugal, linha constitucional descendente de D. Carlos I e de D. Manuel II; c) AA teria o direito de usar o escudo de Armas e teria o direito de transmitir o título e ao tratamento de Alteza Real"; o Autor tem interesse em ter a sentença arbitral devidamente revista e confirmada em Portugal em razão de defender os seus direitos nomeadamente no âmbito do Direito Industrial relativamente a marcas e patentes; a lei substantiva permite que os particulares submetam os seus litígios a um Tribunal Arbitral conferindo ampla liberdade no que diz respeito à selecção de normas procedimentais aplicandas, a sentença arbitral foi revista e conformada pelo Tribunal de Urbino em Itália e pelo Tribunal de Bucareste, os requisitos previstos na Convenção sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras celebrada em Nova Iorque em 10/6/1958 encontram-se completamente preenchidos

3. Citado o requerido, veio o mesmo dizer conforme original de fls. 129 e tradução de fls. 126 que "... a pedido do referido e na sequência da sua comunicação postal que por graves motivos de saúde não pode retirar informe que não pretendo opor-me ao processo de revisão/confirmação do julgamento do processo 1225/20.8yrlsb em trâmite neste Tribunal", documento apostilhado com data de 27/5/2021.

O Requerente produziu alegações, reiterando a sua posição inicial.

4. O Ministério Público, a fls. 156/159, atento o art 982° CPC referiu o seguinte: “poderá admitir-se correndo porém o risco de forçar a natureza pura dos conceitos estarmos perante um litígio relativo a direitos de personalidade na sua vertente de direito ao nome e à honra - cfr. António Menezes Cordeiro, "Títulos Nobiliárquicos e Registo Civil- a inconstitucionalidade da reforma de 2007" Portal da Ordem dos Advogados, pág, 2, nesta hipótese está em causa a capacidade de gozo de direitos indisponíveis os quais não podem ser objecto de transacção - cfr art.° 289/1 do Código de Processo Civil e Carlos Alberto A Mota Pinto, "Teoria Geral do Direito Civil", Coimbra Editora 1976, pág. 227; o reconhecimento em Portugal de decisões arbitrais estrangeiras depende da verificação das condições estabelecidas pela LAV e pela Convenção de Nova Iorque sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras celebrada em Nova Iorque em 10/6/1958 conforme art.º 55 da LAV e dispõe o art.º 56/b/i) da LAV que o reconhecimento de sentença arbitral estrangeira pode ser recusada se o objecto do litígio não foi susceptível de ser decidido mediante arbitragem de acordo com o direito português; por sua vez a mesma LAV no seu art.º 1.° faz depender a possibilidade de submeter a arbitragem voluntária da circunstância de o litígio respeitar a direito patrimoniais (n.° 1) ou, tratando-se de direitos não patrimoniais da possibilidade das partes puderem celebrar transacção sobre o direito controvertido (n.° 2); Já a Convenção de Nova Iorque estabelecem no seu art.° V n.°s 1 e 2, alínea a) que o reconhecimento e execução de decisões será recusado em primeira linha se o litígio em causa não for susceptível de ser resolvido por via arbitral de acordo com a lei do país do reconhecimento e como dissemos o pretenso direito objecto do litígio que constitui o caso base respeita a direitos de personalidade não patrimoniais nem suscetíveis de transacção de acordo com o direito português e por isso estamos perante um caso de manifesta inarbitrabilidade face à lei do estado do reconhecimento que obsta à revisão e reconhecimento da decisão revidenda. O reconhecimento da decisão dada à luz pela pena do árbitro CC na Sereníssima República de São Marino conduziria a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português: Portugal é um república soberana de acordo com o art.° 1.° da Constituição e o art.° 3/1 estatui que a soberania é una e indivisível reside no povo que a exerce segundo as formas previstas na Constituição, a forma republica e a sua natureza soberana são princípios basilares e inderrogáveis da estrutura política do Estado Português, as normas que os corporizam concretiza princípios estruturantes da ordem jurídica portuguesa indiscutivelmente a ordem pública internacional do Estado Português, a pretensão do requerente no sentido de impor na ordem jurídica portuguesa uma fantasiosa restauração monárquica produzida por cidadãos estrangeiros num tribunal arbitral estrangeiro e em benefício exclusivo do cidadão ... AA traduzir-se-ia se obtivesse vencimento num resultado intolerável e mesmo repugnante face ao sentimento ético-jurídico dominante no nosso país e violaria gravemente os valores essenciais para a gida colectiva da sociedade portuguesa a soberania e a forma republicana do estado, e tal resultado é manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português pelo que não poderá deixar se se recusar o reconhecimento.”

 5. Em resposta o Autor em suma diz: “In causa, não está em conflito qualquer direito de personalidade (quer na vertente direito ao nome que na vertente da honra). O novel príncipe, a República, aboliu todos os títulos honoríficos ou nobiliárquicos em 1910 em conformidade com o princípio da igualdade pois que desse modo todo o povo era visto como o conjunto de cidadãos em pé de igualdade entre-si sem distinção de foros ou outros privilégios perante a lei. Contudo, até ao ano de 1995, existindo ordenamento jurídico português uma certa permissividade a que o legislador pôs finalmente termo através de decreto-lei. Se tal matéria fosse conforme a natureza dos direitos de personalidade, ela nunca poderia ser validamente abolida pelo legislador porquanto a mesma é relativa à pessoa humana, logo um autêntico direito natural superior às humanas leis como ensinou Sófocles na sua imortal Antígona... A matéria dos direitos de personalidade vem expressamente consagrada no art.70° do CC sob a epígrafe tutela geral da personalidade e, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra em parte alguma uma restea de letra da lei que se refira a títulos nobiliárquicos. Pelo que pretender incluir essa matéria no rol legal dos direitos de personalidade é de uma violência interpretativa que viola não só as regras legais da hermenêutica jurídica como, também, o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado. A apologética apresentada, salvo o devido respeito, não passa de um flatus voeis destituído de qualquer suporte popular. Podemos ver que o denominado representante da monarquia portuguesa é convidado para toda a sorte de eventos nacionais constando, portanto, do protocolo da república portuguesa e, nem por isso, alguma vez a sua presença foi considerada um perigo para a estabilidade da actual forma de Estado. Sendo certo que, no espectro partidário existem vários partidos monárquicos regularmente instituídos e um até já fez parte do Governo da República participando, também, regularmente em eleições. Não merece o mínimo de base dizer que a «...pretensão do requerente no sentido impor na ordem jurídica portuguesa uma fantasiosa "restauração monárquica"...» pois que a questiúncula (pequeno conflito, pois que envolve meros interesses de natureza privada) se resume ao reconhecimento de sentença que já anteriormente até fora reconhecida em outro Estado da União Europeia não tendo a sentença revidenda qualquer potencialidade de actuar na forma do Estado”!

6. O Tribunal da Relação ao conhecer do pedido formulado elencou como questões a resolver:

A - Se o litígio se mostra susceptível de ser dirimido por arbitragem;

B - Se a sentença arbitral reconhecenda contraria a ordem pública internacional do Estado português.

7. E decidiu que não devia rever e confirmar a decisão arbitral porque a mesma versava sobre problemática não susceptível de ser resolvida por arbitragem e não porque a decisão revidenda violasse a ordem pública internacional do Estado Português.


8. Não se conformando com a decisão, o recorrido apresentou recurso de revista, onde figuram as seguintes conclusões:

I. O ora Recorrente interpôs a competente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira.

Pois que,

II. O ora  Recorrente, em 18/07/1995 recorrera a Tribunal Arbitral e, nesta instância, foi a sentença foi proferida em 18/07/199. Posteriormente,

III. A sentença arbitral sub judice foi revista e confirmada por dois competentes tribunais estrangeiros:

a) Tribunal de Urbino (Con.7793 Rif.463), Itália;

b) Tribunal de Bucareste (autos 4085/97, sentençanº478) reconheceu a sentença arbitral proferida.

Ora,

IV. Não se está perante situações fantasiosas de contos de fadas e cavaleiros pois na História das sociedades civilizadas, estas tem-se organizado politicamente em duas formas de Estado: Monarquia ou República…

V. Sendo portanto, a forma estatal um incidente histórico da sociedade política.

VI. Durante séculos, a sociedade lusa nasceu, cresceu e consolidou-se na forma monárquica e somente através do golpe militar de 5 de Outubro de 1910 foi instituída manu militari o formato republicano. Contudo,

VII. Passando da I República, ao Estado Novo até ao actual regime, a liberdade de expressão da ideologia monárquica sempre foi permitida manifestar-se publicamente,

VIII. Aliás, post 25 de Abril, Partidos de inspiração monárquica tem participado na vida pública portuguesa e, até, um partido político fez parte de um Governo Constitucional.

IX. Para além que em todas as cerimónias públicas portuguesas Duarte Pio de Bragança (descente de D. Miguel, que foi o destinatário directo da Lei do Banimento) é convidado para estar presente na mesa de honra ou em lugar de destaque reservado pelo protocolo, como é do conhecimento público e notório.

Pelo que,

X. Salvo o devido respeito, não pode proceder o fundamento da pretensa violação de princípio fundamental da Ordem Pública Interna…

Por outro lado,

XI. O Tribunal a quo considerou que nos termos da Convenção Internacional de Nova Iorque (de 10 de Junho de 1958, LAV), ao Tribunal Arbitral estava subtraído competência material nos termos da al.c), nº1, art.56º LAV, porquanto se tratava de um direito de personalidade em litígio.

Ora,

XII. In casu, o direito em causa tem a potencialidade de se quantificar patrimonialmente, melius, pode ser objecto de comércio, pelo que não é um direito de natureza absolutamente pessoal.

Mas mais,

XIII. O elemento patrimonial esteve sempre presente no fenómeno aquisitivo dos títulos, como se pode ver através destes valores monetários:

«O título de Duque com o imposto de selo de 500$000 reis;

O de Marquês com 400$000 reis;

O de Conde com 300$000 reis;

O de Visconde com 200$000 reis;

O de Barão com 100$000 reis;

O título de Dom com 100$000 reis;» (Decreto de 24 de Maio de 1902)

E,

XIV. Mesmo aquando da I República, foi legislada matéria relativa à manutenção dos títulos e o respectivo ónus fiscal.

Aliás,

XV. Em Portugal, post 25 de Abril de 1974, houve um determinado período em que os «novos-ricos» e os «yuppies» buscaram, através de aquisição onerosa, ascender a patamares sociais por via de títulos nobiliárquicos: uns por vias autênticas e outros por vias fraudulentas.

Ou seja

XVI. A matéria dos títulos nobiliárquicos não se tange meramente no âmbito do direito ao nome como, se alarga, para a figura da transmissão onerosa até ao mundo do direito industrial. Como,

XVII. Aliás, esta suprema instância já julgou em 15 de Maio do ano de 2014 e, aqui, referiu expressamente «…o CRgC permitia referências honoríficas ou nobiliárquicas, antecedidas do nome civil dos interveniente nos actos de registo…»,

E,

XVIII. Como tal, passível de tutela jurídica no âmbito da al.c), art.239º do CPI, Em suma,

XIX. Nomen e título são passíveis de beneficiar protecção jurídica no ramo do Direito Industrial.

Pelo que,

XX. A interpretação e aplicação feita pelo Tribunal a quo da al.c), nº1, art.56º LAV é inconstitucional por ser violadora do direito de propriedade do ora Recorrente.

XXI. Devendo o Tribunal a quo interpretar a al.c), nº1, art.56º LAV da seguinte forma:

Os títulos nobiliárquicos são passíveis de serem dirimidos em Tribunal Arbitral.

In fine,

XXII. Até ao ano de 1995, existiu no ordenamento jurídico português uma certa permissividade a que o legislador pôs finalmente termo através de decreto-lei.

Ora,

XXIII. Se tal matéria fosse conforme a natureza dos direitos de personalidade, ela nunca poderia ser validamente abolida pelo legislador porquanto a mesma é relativa à pessoa humana, logo um autêntico direito natural superior às humanas leis como ensinou Sófocles na sua imortal Antígona…

Termina pedindo que se revogue o acórdão recorrido.


9. No Tribunal Recorrido o recurso foi recebido com o seguinte despacho:

Admito o recurso que antecede, interposto pelo requerente que decaiu, é de revista (art.º 985/1) e tem efeito meramente devolutivo (art.º 676/1 a contrario sensu). Notifique e oportunamente subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

10. São os seguintes os factos que, decorrendo dos documentos juntos e, pontualmente, da admissão por acordo foram considerados pelo Tribunal recorrido como revestindo interesse para a decisão da causa:

10.1. Por sentença proferida pelo árbitro único CC no Tribunal Arbitral da Sereníssima República de San Marino em 18/7/1995 "na controvérsia entre os senhores ...AA ...e o Notário BB...era solicitado ao árbitro para apurar e estabelecer se ...AA seria Príncipe de ... e Grão Mestre das Ordens de Cavalaria Dinásticas e da Coroa de Portugal; ... seria pretendente ao Trono de Portugal no seu estatuto e qualidade de Titular da Real Casa de Portugal, linha constitucional descendente de Dom Carlos I e Dom Manuel II e se teria o direito de usar o escudo de armas o direito de transmitir o título e ao tratamento de Alteza Real" ficou julgado que "...cabe a AA o título de Príncipe de ... e que com base nesse estatuto e qualidade cabe ao mesmo o tratamento de Sua Alteza Real bem como o título de pretendente ao Trono de Portugal e de Chefe da Casa Real de Portugal com direito de usar o escudo de armas o direito de transmitir o título de casa real de Portugal e com todos os direitos de usar o escudo de armas o direito de transmitir o título e com todos os direitos ligados ao magistério das ordens dinásticas da casa real de Portugal. Cabe na qualidade acima referida a S.A.R o Príncipe Dom AA o direito à concessão de títulos nobiliárquicos, das distinções honoríficas da casa real de Portugal conforme fons honorum ".

10.2. AA nasceu aos .../.../1941 em ... conforme resulta do assento de nacimento em língua ... de fls. 147 traduzido a fls. l47/v.° e 148 cujo teor aqui na íntegra se reproduz.

De Direito

11. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

A questão suscita no recurso é, assim, em parte a mesma que havia sido colocada na apelação: saber se a decisão estrangeira era susceptível de ser dirimida por arbitragem, uma vez que o tribunal recorrido não considerou que, se reconhecível, a decisão não violaria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

12. A questão suscitada prende-se com a natureza dos títulos nobiliárquicos, a sua inserção nos direitos indisponíveis e sua não sujeição a arbitragem, nacional ou estrangeira.


13. Antes de nos debruçarmos sobre a questão indicada impõe-se tecer algumas considerações introdutórias sobre as decisões arbitrais estrangeiras, nomeadamente sobre a necessidade do seu reconhecimento em Portugal, para o que convocamos a jurisprudência deste STJ, através do acórdão Ac. STJ de 18-02-2014, relativo ao processo 1630/06.2YRCBR.C2.S1, onde se afirma:

“A decisão arbitral estrangeira é uma decisão arbitral[5] que, à luz do Direito Internacional Privado de um determinado Estado, apresenta conexão com uma ordem jurídica externa, carecendo de ser reconhecida, na ordem jurídica interna, para produzir o mesmo efeito de caso julgado de uma decisão nacional e ter eficácia executiva[6].

No Acórdão do STJ, de 19/03/09, indicado pela recorrente, considerou-se, em epítome, que sendo Portugal signatário na Convenção de Nova Iorque de 1958, e apontando esta, no seu art. III, que as sentenças arbitrais estrangeiras não estejam submetidas a condições de execução mais exigentes que aquelas que são impostas às decisões arbitrais nacionais, então, sendo dispensado o processo de reconhecimento prévio para estas decisões, também as decisões arbitrais estrangeiras devem estar isentas do processo de reconhecimento[7].

Que saibamos, a jurisprudência perfilhada neste aresto é isolada, não teve nem precedentes nem sucessores conhecidos, indo contra a doutrina e a jurisprudência maioritárias (e consolidadas) sobre este assunto, conforme se demonstrará.

A Convenção de Nova Iorque de 1958, como ressuma do seu art. I, n.º 1, aplica-se ao reconhecimento e à execução de sentenças arbitrais estrangeiras, tendo Portugal, a par de outros países como a França, Reino Unido e Estados Unidos da América, feito a reserva prevista na 1.ª parte do n.º 3 daquele preceito I, por força da qual aquele pacto internacional apenas é aplicável ao reconhecimento das sentenças proferidas no território de outro Estado contratante – cf. art. 2.º da Resolução da Assembleia da República n.º 37/94, de 10/03[8].

A respeito das formas de concessão de eficácia executiva às sentenças arbitrais, existem dois modelos: um que sujeita qualquer decisão arbitral, independentemente da sua origem nacional ou estrangeira, a um procedimento de concessão de exequatur, não a equiparando a decisão judicial; outro, que equipara as decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais nacionais às decisões judiciais desse mesmo Estado, sujeitando as decisões arbitrais estrangeiras aos procedimentos a que são submetidas as decisões exaradas por tribunais judiciais estrangeiros[9] – Portugal segue este segundo modelo, tal como resulta dos arts. 48.º, n.º 2, e 1094.º e segs. do CPC, do art. 26.º, n.º 2, da antiga Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 31/86), e, agora, do art. 55.º da nova Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011).

Ou seja, em Portugal, as decisões arbitrais estrangeiras, à semelhança das decisões proferidas por tribunais judiciais estrangeiros, estão submetidas a um procedimento de revisão e confirmação, para, subsequentemente, poderem ser executadas[10].

Detendo-nos na análise do art. III da Convenção de Nova Iorque – relativo ao procedimento de reconhecimento e concessão de execução às sentenças arbitrais estrangeiras –, é relevante dar por reproduzidos os ensinamentos de Luís de Lima Pinheiro: “Os trabalhos preparatórios da Convenção demonstram que a intencionalidade normativa não é a de assegurar uma equiparação das sentenças estrangeiras às sentenças nacionais mas a de garantir que o processo de reconhecimento das sentenças estrangeiras não é sensivelmente mais oneroso que o estabelecido para as sentenças nacionais. Ora, isto pressupõe que o reconhecimento das sentenças “nacionais” depende de um processo prévio e não é aplicável quando tal não se verifica.

Quando atribui às sentenças arbitrais “nacionais” a mesma eficácia que a sentença de um tribunal judicial de 1.ª instância, o legislador português pressupõe que a arbitragem, porque realizada em Portugal, está sujeita às directrizes da ordem jurídica portuguesa sobre o regime jurídico da arbitragem. Isto não se verifica com as sentenças arbitrais “estrangeiras”, razão por que o seu reconhecimento deve depender de um controlo prévio por um tribunal judicial português.

Portanto, segundo a interpretação correcta do preceito, um Estado que não sujeita o reconhecimento das sentenças “nacionais” a um processo prévio não está impedido de sujeitar o reconhecimento das sentenças arbitrais “estrangeiras” a um regime processual especial ou ao regime processual aplicável em geral ao reconhecimento das sentenças estrangeiras. Uma vez que o legislador português não fez acompanhar a ratificação da Convenção de Nova Iorque de qualquer indicação sobre o regime processual aplicável, o reconhecimento fica sujeito ao regime processual dos arts. 1094.º e segs. do CPC.

A segunda parte do art. 3.º, porém, tem um sentido útil mesmo nos Estados contratantes em que o reconhecimento das sentenças “nacionais” não depende de um processo prévio. Com efeito, o preceito determina também que à execução das sentenças arbitrais abrangidas pela Convenção não serão aplicadas quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas, nem custas sensivelmente mais elevadas. Estes Estados contratantes tanto podem reconhecer automaticamente os efeitos de decisões arbitrais “estrangeiras” nos mesmos termos que as “nacionais”, como subordinar o reconhecimento de efeitos e/ou a força executiva a um processo prévio, estabelecido exclusivamente para as sentenças estrangeiras”[11].

O mesmíssimo entendimento foi suportado por Maria Cristina Pimenta Coelho: “Apesar de o art. 1094.º do CPC ressalvar o que se ache estabelecido em tratados, não me parece crível que o Estado português aceitasse que as sentenças arbitrais objecto da Convenção fossem executadas tal como uma sentença nacional. Penso, no entanto, que o art. III não impõe uma solução tão radical: o que se pretende é que no seu conjunto o reconhecimento e execução de uma sentença arbitral estrangeira não sejam sensivelmente mais dificultados do que o reconhecimento e execução de uma sentença nacional, o que leva a crer que o artigo foi pensado para situações em que se exige também para as sentenças nacionais um processo de reconhecimento. Se, porém, não se exige tal processo para que as sentenças nacionais tenham força executiva não devemos retirar do art. III que igual tratamento deve ser dado às sentenças estrangeiras. Penso, assim, que o processo especial de revisão de sentenças estrangeiras poderá aplicar-se às sentenças arbitrais abrangidas pela Convenção tanto mais que o art. III remete para as regras de processo do país onde se pretende obter o reconhecimento e execução”. [12]

Já mais recentemente, em expressa anotação ao supramencionado Acórdão do STJ, de 19/03/09, José Miguel Júdice e António Pedro Pinto Monteiro registam: “Entendemos que uma sentença arbitral estrangeira – proferida ou não ao abrigo da CNY – não é automaticamente exequível em Portugal. Será sempre necessário um processo prévio de revisão e confirmação (nos termos dos artigos 1094.º e ss. do CPC), de forma a poder ser executada no nosso País. (…) [N]ão devemos cingir-nos apenas à letra do artigo III da CNY.

No fundo, deparamo-nos aqui, em última análise, com um problema de interpretação. A este propósito, e como se sabe, a interpretação “não deve cingir-se à letra da lei” (artigo 9.º do Código Civil). Com efeito, além do elemento gramatical (texto ou letra da lei), teremos de ter sempre em conta o elemento racional ou teleológico (ou seja, a razão de ser da lei, a ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), o elemento sistemático (o contexto da lei, devendo ter-se em atenção as outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda) e o elemento histórico (compreende toda a matéria relacionada com a história do preceito).

Ora, atendendo a todos estes elementos, não temos dúvidas em afirmar que o artigo III da CNY não dispensa um processo prévio de revisão e confirmação da sentença arbitral estrangeira, de forma a poder ser executada em Portugal“[13].

Também a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal milita no sentido da necessidade de reconhecimento das sentenças arbitrais estrangeiras, incluindo as subsumíveis na Convenção de Nova Iorque, para terem plena validade no ordenamento jurídico nacional (cf., entre outros, os Acórdãos de 09/10/03, Proc. n.º 03B1604, 22/04/04, Proc. n.º 04B705, 02/02/06, Proc. n.º 05B3766, e de 14/03/13, Proc. n.º 7328/10.0TBOER.L1.S1[14]).

Ou seja, é pacífico que uma sentença arbitral estrangeira não é automaticamente exequível em território nacional português (isto é, não constitui título executivo), sem que previamente seja submetida ao processo de revisão e confirmação pelo tribunal competente, à luz do ordenamento jurídico indígena, independentemente de estar abrangida pela Convenção de Nova Iorque de 1958.

Acresce, também, que é este o sentido que agora decorre, inequivocamente, do art 55.º da nova Lei da Arbitragem Voluntária (inserido no Capítulo X – Do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras) (Lei n.º 63/2011), ao dispor: “Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei”.

Nas palavras de Sofia Martins e João Vilhena Valério: “Contrariamente ao que acontecia com a LAV, a qual não fazia qualquer referência ao reconhecimento das sentenças arbitrais estrangeiras, a nova LAV vem prever regras específicas relativas ao processo de reconhecimento, retirando assim a aplicação do art. 1094.º e ss. do Código de Processo Civil ao reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras e dedicando todo o seu Capítulo não só ao reconhecimento mas também à execução de sentenças estrangeiras”[15].

Resumindo, é incontestável que, em correspondência com o regime que decorre para as decisões judiciais estrangeiras, também as decisões arbitrais estrangeiras estão submetidas ao sistema de revisão e confirmação pelos tribunais estaduais nacionais – sendo o regime processual previsto para a revisão destas decisões, até à aprovação da nova LAV, pela Lei n.º 63/2011, além do mais, o previsto nos arts. 1094.º e segs. do CPC[16] e após essa aprovação o previsto nos arts. 55.º e segs. da nova LAV –, o que denota que é sempre exigível o reconhecimento judicial de qualquer decisão arbitral estrangeira, designadamente se proferida nos termos da Convenção de Nova Iorque de 1958, para que a mesma possa ser executada em Portugal.

14. Avançando agora para a questão suscitada.

14.1. O Tribunal recorrido disse:

(cópia)

III. 11. Começaremos por dizer que o ora requerido que era a parte contra a qual a sentença foi invocada não forneceu nenhum das provas a que o n.° 1 do art.° 56 se refere, de modo que resta apreciar os fundamentos de recusa do art.0 56/1/b i) e ii), seja a inarbitrabilidade e a alegada ofensa à ordem pública internacional do Estado Português.

111.12. A arbitrabilidade objetiva diz respeito à susceptibilidade de determinada questão controvertida ser solucionada por meio de juízo arbitral. Em outras palavras, inquire-se, por meio da análise da arbitrabilidade objetiva, se a natureza do objeto do litígio é compatível com a resolução pela via arbitral. Influenciado pelo direito suíço e pelo direito alemão, sobretudo deste último, Portugal editou a Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.° 63/2011, de 14 de dezembro), na qual afastou o tradicional critério da disponibilidade do direito para aderir ao critério da natureza patrimonial do interesse controvertido O art. l.°, n.° 1, da nova Lei de Arbitragem Voluntária portuguesa estabelece que "qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros". Assim como sucedeu no direito alemão, o art. Io, n.° 2, da nova Lei de Arbitragem Voluntária previu a incidência subsidiária do critério da transigibilidade. Com isso, no direito português vigente podem ser submetidos à arbitragem tanto os direitos patrimoniais quanto os não patrimoniais, sendo que estes devem ser necessariamente passíveis de transação; o direito português, ao adotar do critério da transigibilidade de forma subsidiária ao critério da patrimonialidade da pretensão, acabou por não abandonar por completo o antigo critério da disponibilidade do direito, uma vez que o art, 1.249 do Código Civil português estabelece que "as partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor". Nas palavras de José Manuel Sérvulo Correia, "o critério da disponibilidade saiu pela porta para operar um regresso parcial pela janela". António Sampaio Caramelo destaca que, mesmo em ordenamentos jurídicos em que as leis prevêem textualmente o critério da disponibilidade do direito, tem sido comum que a definição dos litígios passíveis de serem submetidos à arbitragem seja feita, em boa medida, mediante recurso ao critério da patrimonialidade da pretensão1. O n.° 2, do art.° 1, da LAV, mitiga o critério da patrimonialidade ao estabelecer que o objecto da convenção pode incidir sobre interesses não patrimoniais desde que as partes possam celebrar transacção sobre o direito em litígio; o art.0 1249, do CCiv, por seu turno, estatui que as partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor (indisponibilidade) nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos. Já o Professor Raul Ventura no seu estudo sobre a Convenção de arbitragem publicado em 1986 criticara a equiparação entre a transacção e convenção de arbitragem que por vezes encontrava na doutrina exprimindo a dúvida de que o julgamento por um tribunal arbitral de litígio sobre o direito disponível afecte a disponibilidade de direito".2 Essa assimilação é herdeira da ultrapassada conceção contratual da arbitragem, a arbitragem não tem uma natureza puramente contratual sendo antes uma instituição e feição mista, tem um fonte contratual na medida em que se funda no reconhecimento da autonomia privada (é por convenção das partes quê se atribui aos árbitros o poder de resolver um litígio) mas tem um carácter substancialmente jurisdicional porque a função dos árbitros consiste em julgar um litígio e a sua decisão reveste de obrigatoriedade e força executiva idênticas às que têm as sentenças estrangeiras, como refere Dário Moura Vicente (in Da Arbitragem Comercial Internacional, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, pp 64-68); assim sendo, se a arbitragem é uma modalidade de jurisdição é errado ver na convenção de arbitragem algo semelhante a uma transação na qual as partes por si ou através de mandatários que para o efeito designam, põem termo a um litígio que as divide através de abandonos ou concessões recíprocas. Nessa medida Autores há que defendem que nenhuma razão válida existe para se exigir a disponibilidade ou a transigibilidade dos direitos que são objecto do litígio.3

III. 13. Volvendo ao caso concreto. Ministério Público sustenta que o pretenso direito objecto do litígio que constitui o caso base respeita a direitos de personalidade, não patrimoniais não sendo suscetíveis de transação. Já no despacho do relator de 14/7/2021 se entendeu que a questão objecto da decisão arbitral se refere a direitos da personalidade. O artigo 13.° da Constituição vigente consagra o princípio da igualdade. Trata se de um postulado básico do constitucionalismo: ele remonta aos artigos 9°, 12.° e 15.° da Constituição de 1822, reaparecendo, sucessivamente, nos artigos 14.°, § 12.° e 145.°, §§ 12.°, 13.° e 16.° da Carta Constitucional de 1826, nos artigos 10.°, 20.°, § único e 30.° da Constituição de 1838, no artigo 3.72 e 3 da Constituição de 1911 e no artigo 5.° da Constituição de 1933. Segundo o preceito em causa, particularmente no seu n.° 2, "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, designadamente, da ascendência ou do sexo". Precisamente: os títulos nobiliárquicos, em razão da sua hereditariedade e da regra de transmissão preferencial por via masculina, não preencherão a proibição constitucional? A grande projecção da regra da igualdade é a proibição do arbítrio há que tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença. Os títulos nobiliárquicos são distinções tradicionais que têm, na origem, funções militares. A sua presença primacial no elemento masculino da família advém daí. Quanto à hereditariedade: ela é reconhecida constitucionalmente: pense se na garantia da propriedade (62.71, da Constituição), que envolve a sua transmissibilidade, em vida ou por morte. Nada tem, em si, de inconstitucional. Perante estas considerações, o problema desloca se para as consequências: os títulos nobiliárquicos provocam ou originam "privilégios", "benefícios", "privações de direitos" ou "isenções de deveres"? Tem sido entendido que a resposta é claramente negativa.4 Já no período do constitucionalismo monárquico, os títulos nobiliárquicos apenas traduziam distinções e honrarias. Após a proclamação da República, assim é, por maioria de razão. Pela sua natureza puramente honorifica e tradicional, não há, aqui, qualquer quebra de igualdade. O cidadão titular tem, perante o sistema jurídico vigente, precisamente os mesmos direitos e os mesmos deveres de qualquer cidadão que o não seja. na União Europeia, regimes monárquicos, em cujo quadro continuam a ser atribuídos títulos nobiliárquicos: Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido e Suécia, além dos casos especiais do Lichtenstein, do Mónaco e do Vaticano. Como defende o ilustre jurista, seria totalmente absurdo questionar, nesses Estados, a igualdade, a democracia ou os direitos humanos, por essa via. Além disso, os títulos são preservados, conforme vimos, em sólidos regimes republicanos, como a Alemanha, a França ou a Itália, a questão já foi discutida, por exemplo, no Tribunal Constitucional Espanhol e no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O primeiro, questionado por causa do problema da transmissibilidade dos títulos por linha preferencial masculina, explicou que se tratava de uma pura regra tradicional, que remonta às Siete Partidas (século XIII) e que não implica direitos ou deveres suplementares: o título é puramente honorífico, traduzindo a memória histórica da sua atribuição. Numa decisão conjunta, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que não havia discriminação, uma vez que os títulos em jogo, sendo meras distinções honoríficas tradicionais, não dão nem representam direitos ou deveres, nem implicam, por si, vantagens económicas susceptíveis de protecção jurídica. Como refere o insigne jurista o primeiro fundamento do reconhecimento dos títulos nobiliárquicos é a honra.

III. 14. A honra constitui a consideração pela integridade moral de cada ser humano. Podemos distinguir a honra social ou exterior, que exprime o conjunto de apreciações valorativas ou de respeito e deferência de que cada um disfruta na sociedade e a honra pessoal ou interior, que corresponde à auto estima ou imagem que cada um faz das suas próprias qualidades A honra constitui uma base para juízos éticos dos seus semelhantes, juízos esses que se repercutem na auto estima de cada um. No seu conjunto, tudo isto dá corpo à integridade moral, formalmente referida no artigo 70.71, do Código Civil. Passando aos títulos nobiliárquicos: estamos perante sinais distintivos de famílias e das pessoas que as componham. Tais sinais são aprazíveis e traduzem, em regra, episódios históricos vividos, mais intensamente, pelos seus beneficiários. Pela natureza das coisas, eles vão compor o acervo de apreciações valorativas de quem deles disfrute, na sociedade, reflectindo se na sua própria auto estima. Trata se de um dado de fácil apreensão e que dispensa, ao nome, a tutela do artigo 26.71, da Constituição (bom nome). O segundo fundamento da tutela dos títulos nobiliárquicos no direito ao nome.

III. 15. Cada ser humano é uma individualidade autónoma. Apesar de gregário, o homem não perde nunca a sua autonomia como ente biológico, moral e social. Essa autonomia dá azo a uma designação também individual: cada pessoa dispõe de uma figuração vocabular, primeiro oral e, depois, também escrita, que permite identifica-la com facilidade e segurança: o nome. O nome poderá ser definido, sinteticamente, como a representação linguística de um ser humano. Tem uma função dupla: vocativa e distintiva. Vocativa, porquanto permite designar a pessoa que o use; distintiva por facultar destrinça-lo dos demais O direito ao nome tem um conteúdo que podemos analisar nos seguintes poderes ou pretensões:

o poder de usar o nome completo;

o poder de abreviar o nome;

o poder de usar o nome abreviado;

o poder de opor se a que outrem o use ilicitamente, para sua identificação ou outros fins;

o poder de, perante nomes total ou parcialmente idênticos, requerer ao tribunal providências conciliatórias.

III. 16. Segundo o mesmo Autor5, trata-se de matéria que podemos decompor do artigo 72.°, do Código Civil. O título nobiliárquico deve, tal como o nome, ser considerado um bem de personalidade. E o direito a ele relativo será um direito de personalidade, dotado do competente regime. O direito ao título nobiliárquico submete se, assim e em primeira linha, ao regime dos direitos de personalidade, particularmente no tocante à defesa. Há bens (coisas, direitos, interesses) que são "objectivamente indisponíveis" no contexto multifacetado das relações jurídicas, e o contrato de transacção não é excepção, a doutrina aponta, neste contexto, as coisas que se encontram fora do comércio - isto é as "coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual", conforme dispõe o art.0 202°, n.° 2 CC. A doutrina aponta os chamados direitos subjectivos de natureza pessoal onde se incluirão direitos como os de personalidade e os de família.6 Os direitos de personalidade e os de família, e também os direitos reais, serão direitos absolutos por oposição aos direitos subjectivos relativos ( como é o caso dos direitos obrigacionais). Os primeiros são direitos subjectivos que se impõem contra todos, embora absoluto "não signifique "ilimitado", ou "isento de vinculações e deveres", ou "incontrolado. São direitos tidos como necessários e irrenunciáveis, embora o art.0 81/1 do CCiv que comina com a nulidade a limitação voluntária ao seu exercício a admita se não for contrária aos princípios de ordem pública. Quando a razão da indisponibilidade, para além do bem intrinsecamente considerado e sob tutela, se funda numa especifica função em relação à pessoa que é titular do direito ao respectivo bem, então, a somar ao aspecto objectivo, teremos o concurso de um aspecto subjectivo da indisponibilidade, como acentua alguma doutrina.7

III. 17. O Autor ainda alega no seu art.0 9 da p.i., que tem interesse em ter a sentença arbitral devidamente confirmada em Portugal em razão se pretender defender os seus direitos no âmbito do Direito Industrial relativamente a marcas e patentes mas não concretiza essa alegação, como é seu ónus.

Porque as partes numa acção arbitral em Portugal não podem transigir sobre o direito ao uso de título nobiliárquico-entendido este como acima se disse como parte do direito ao nome e à honra que à pessoa é devida-, face ao disposto nos art.°s 1 e 56 da LAV acima transcritos essa matéria não pode ser objecto de acção arbitral em Portugal e não o podendo ser face ao disposto no Artigo V/2/a da CNI deve ser recusado o reconhecimento da decisão arbitral ora em causa.”


14.2. O recorrente entende que a situação dos autos é susceptível de ser dirimida por arbitragem e reconhecida pela ordem jurídica portuguesa, procurando demonstrar que não se trata de um mero direito personalista – no âmbito da hora e tutela da personalidade – mas, ao invés, de um direito de cariz patrimonial e não excluído do comércio jurídico, pois tem valor monetário e pode até conferir-se-lhe a tutela do direito de propriedade industrial, tutela que a ser negada violaria o preceito constitucional do art.º 62.º da CRP.


14.3. Cremos que não lhe assiste razão na qualificação geral do direito em causa, o que não implica excluir que existam efeitos patrimoniais da sua atribuição, por não serem problemas que se coloquem em oposição. Ser um direito de personalidade na sua essência não exclui uma dimensão económica, nem implica que os mesmo esteja a ser violado ou interpretado de modo contrário ao regime constitucional. O que certamente não se pode afirmar sobre este direito é ser um direito de natureza primordialmente patrimonial, como indica o recorrente, pois o mesmo assume uma feição de distinção e honraria, já com raízes históricas consolidadas, e por isso deve ser qualificado com um direito de personalidade. Subscreve-se, assim, a fundamentação do acórdão recorrido quando aí se diz “O título nobiliárquico deve, tal como o nome, ser considerado um bem de personalidade. E o direito a ele relativo será um direito de personalidade, dotado do competente regime. O direito ao título nobiliárquico submete se, assim e em primeira linha, ao regime dos direitos de personalidade, particularmente no tocante à defesa. Há bens (coisas, direitos, interesses) que são "objectivamente indisponíveis" no contexto multifacetado das relações jurídicas, e o contrato de transacção não é excepção, a doutrina aponta, neste contexto, as coisas que se encontram fora do comércio.”

Estamos perante um direito da personalidade, associado ao direito ao nome, e objecto de uma tutela específica no nosso ordenamento jurídico, que não se compadece com o seu reconhecimento por via de decisão arbitral, nem no quadro das arbitragens internacionais, nem das estritamente nacionais, nomeadamente por força da Convenção sobre Reconhecimento e Execução de sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque a 10/6/1958 – ou sentença proferida em arbitragem localizada no estrangeiro, ou pelo regime da LAV, dos quais resulta que tais decisões/sentenças/acórdãos só têm eficácia em Portugal, qualquer que seja a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual (art.º 55.º, n.º1 da LAV), reconhecimento que, in casu, não poderia ocorrer por estarmos perante matéria não susceptível de ser regulada por arbitragem.

Convocamos aqui, de novo, a jurisprudência deste STJ, através da citação dos acórdãos do STJ:

- de 30/5/2019, relativo ao processo 336/18.4T8OER.L1.S1, onde se diz:

Como é do conhecimento geral, os direitos de personalidade (cfr. arts. 70.º e s. do CC) são direitos gerais (de que todos os sujeitos gozam[1]), absolutos (que se impõem ao respeito de todos os outros), “incindindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da sua personalidade”[2].

- 31-03-2009, relativo ao processo 09B0523 (revista 523/09), onde se diz:

Desta resenha completada, se necessário, pelo exame mais detalhado dos referidos diplomas, emerge uma ideia segura: Na concessão das ordens honoríficas está presente, primacialmente, o valor imaterial da distinção conferida ao agraciado. A redacção dos referidos artigos 1.º, o demais constante de vários outros preceitos, tudo até corroborado pelo ataque de que foram alvo nos primórdios da República e da Revolução do 25 de Abril, encerra, necessariamente, a ideia de distinguir pessoas, de as afastar do comum das outras. Mais emergindo daí, que as insígnias, distintivos ou condecorações valem enquanto elementos da distinção acabada de referir. Os direitos a estas inerentes, mormente o direito de propriedade que passa a assistir ao agraciado, deve ser considerado obnubilado pelo contexto, muito mais vasto, do que o correspondente à materialidade deles.

Decerto que, ou pelo decurso do tempo, com concomitante esquecimento, ou por outra razão, pode perder relevância o agraciamento, passando a assumir foros de autonomia, os ditos objectos e vindo, então, ao de cima, o seu valor enquanto tais, nomeadamente o seu valor de troca. Em vendas de antiguidades, p. ex., podem-se comprar “condecorações” sem se saber sequer quem foi o condecorado. Vale ali apenas o valor venal ou de colecção. No nosso caso, não teve lugar qualquer desligamento entre as condecorações (em sentido material) e as distinções que foram concedidas a PB. Com a entrega, o réu colocou-as num lugar próprio, (uma vitrine à vista de toda a gente), integrando uma colecção particular de objectos, valiosos ou não, ligados à vida de gente famosa. E a autora pretende-as, não para usufruir do seu valor material, ou para as expor em qualquer exposição de objectos de ourivesaria, mas para as fazer exibir no Museu do Teatro. Ali não estarão, essencialmente, peças de ouro e outros metais valiosos, mas antes, nelas, estará a memória da grande actriz que foi PB.

Cremos, então, que a presente causa não poderá ser resolvida com recurso às regras próprias da propriedade, da posse, da sucessão em geral, do comodato ou de outras afins.
Louvamo-nos, antes, no pensamento de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, I, Tomo III, 180) já, por sua vez, recolhido de Paulo Cunha, de que os títulos honoríficos integram direitos de personalidade. Assim como no de Capelo de Sousa (O Direito Geral de Personalidade) que, depois de considerar que o artigo 50.º, n.º2 do Código de Registo Civil admite, nos actos de registo, a referência aos títulos honoríficos, fundamentalmente, aos relativos às ordens honoríficas (página 251, nota dede página 574), escreve, agora a páginas 301: “Entre os bens mais preciosos da personalidade moral tutelada no artigo 70.º Código Civil figura também a honra, enquanto projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal. Repare-se que o bem da personalidade ora referido reside na aludida projecção e de certo modo na respectiva titularidade.” Para, novamente em nota dede página, esclarecer: “Projecção essa que, partindo do ser e do comportamento do indivíduo alcança uma intelecção e uma atitude comportamental sociais de respeito, de apreço, por vezes objectivada, v.g. em prémios, medalhas, diplomas, ordens e condecorações, pese embora a relatividade destes símbolos.”
É, pois, nos direitos de personalidade que temos de nos situar.”


A mesma ideia é assumidamente reconhecida na doutrina, abundantemente citada em Maria de Fátima Ribeiro, Anotação ao Artigo 70.º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p.170 e ss, nomeadamente na p. 172, ao afirmar “ Mas não se discute são direitos de personalidade, objeto da tutela conferida pelo art.º 70.º, (…) entre outros:  (…) (o direito) à honra (incluindo, nomeadamente algumas manifestações objectivas de reconhecimento e respeito sociais, como é o caso de condecorações e títulos honoríficos)…”.

- e na p. 173 – “Apesar de os direitos da personalidade serem direitos de carácter não patrimonial…


Destacamos aqui Menezes Cordeiro[3],

“Em segundo lugar, deparamos com uma questão jurídica. Os títulos nobiliárquicos prendem se, tecnicamente, com o direito ao nome e com o direito à honra. Ambos são direitos de personalidade, dobrados por direitos fundamentais. Pode se mexer nesta matéria à socapa? O que manda a Constituição e que margem têm os direitos fundamentais perante o arbítrio do legislador?”

(…)

O título nobiliárquico é uma designação atribuída ou reconhecida a certas pessoas, com fins de distinção, de acordo com um corpo de regras jurídicas. O Direito português comporta os títulos de duque, marquês, conde, visconde e barão.

Historicamente, o título nobiliárquico traduzia uma função militar do agraciado. Como tal, comportava um acervo significativo de direitos e de deveres. Ao longo da História, a dimensão militar veio a ceder o lugar a funções civis. Após o liberalismo, o título nobiliárquico passou a ter um mero papel honorífico, como tal se mantendo, sob a República.

II. O título nobiliárquico não se confunde com a qualidade de nobre(5) ou membro da nobreza(6) (o segundo estado, na tradição francesa). Basta adiantar dois traços de distinção: o título é uma designação formal, que carece de um processo de atribuição ou de reconhecimento, enquanto a qualidade de nobre pressupõe, apenas, o acto de nascimento, sendo inerente a quem dela disfrute; o título compete ao agraciado ou, por morte deste e em certos casos, ao seu primogénito, enquanto a qualidade de nobre ocorre, automática e imediatamente, em toda a sua geração. Há titulares sem nobreza (tradicional) e nobres (tradicionais) sem títulos.

III. O título nobiliárquico tão pouco implica aristocracias ou aristocratas. Aristocracia(7) é, etimologicamente, o governo dos mais poderosos ou dos mais nobres. O termo caracterizava os regimes políticos modernos pré liberais, que assentavam num papel político privilegiado da nobreza de sangue. A titularidade nobiliárquica pode não ter qualquer alcance político. Assim sucede nos regimes democráticos, particularmente após a implantação do liberalismo. E assim sucede, hoje, na generalidade das repúblicas europeias, que foram monarquias.

IV. Ao longo da História, as três noções adiantadas (título nobiliárquico, nobreza e aristocracia) apresentaram múltiplas relações de implicação. Além disso, todas elas tiveram origem moderna nas sociedades ocidentais cristianizadas, após o Império Carolíngio (séc. IX)(8). Mau grado a cepa comum, as regras aplicáveis são diferentes, nos diversos espaços que constituiriam as várias nacionalidades. As diversidades do início complementaram se com evoluções distintas e com múltiplas situações de recepção(9). Em suma: não se pode falar, rigorosamente, em títulos, em nobreza ou em aristocracia, sem situar concretamente as questões, no espaço e no tempo.”


E neste escrito o autor também alude à jurisprudência, referindo-se a um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 Set. 1997:

“III. Também o Código da Propriedade Industrial, adoptado pelos Decreto Lei n.° 36/2003, de 5 de Março, a propósito do registo das marcas, vem dispor que o mesmo é ainda recusado — 239.° — quando contenha, em todos ou alguns dos seus elementos,
a) Brasões ou insígnias heráldicas, medalhas, condecorações, apelidos, títulos e distinções honoríficas a que o requerente não tenha direito ou, quando o tenha, se daí resultar o desrespeito e o desprestígio de semelhante sinal.

Ficam, neste caso, os títulos nobiliárquicos. O Tribunal da Relação de Lisboa, em excelente acórdão de 25 Set. 1997, fez aplicação de regra equivalente, à luz do Código da Propriedade Industrial de 1940. Tratava se da marca Marquês de Marialva, que uma sociedade de vinhos pretendia fazer registar. Todavia, o título Marquês de Marialva, concedido de juro e herdade por D. Filipa de Gusmão, como regente por menoridade de D. Afonso VI, em 11 Jun. 1661, a D. António Luís de Menezes, 3.° Conde de Cantanhede, cabia, na altura, a D. Lopo de Bragança, 7.° Marquês de Marialva (hoje, é 8.° Marquês de Marialva D. Diogo de Bragança), que se opôs à pretensão. Diz o acórdão, entre outras passagens de interesse(56):

(…) o nome e os títulos (académicos, profissionais ou nobiliárquicos) sendo uma dimensão da identidade pessoal, encontram, em Portugal, tutela constitucional e legal (…)

(…) a protecção que aí se dá aos títulos nobiliárquicos não abrange a sua dimensão honorífica uma vez que esta, como acima se referiu, não cabe no princípio republicano que informa a nossa Constituição, mas abrange apenas a sua dimensão identificadora e histórica (…)

(…) os títulos nobiliárquicos, para além de poderem constituir um elemento identificador de uma família ou pessoa, podem ter um significado importante no aspecto cultural e memória de um povo e fornecer indicações consideráveis para a sua reconstituição.

III. Em suma: o Direito português vigente continua, para determinados efeitos, a considerar os títulos nobiliárquicos, de acordo com as suas próprias regras republicanas, dispensando lhes protecção.”


E situando os títulos nobiliárquicos no quadro da tutela da honra e do bom nome:

“I. O primeiro fundamento do reconhecimento dos títulos nobiliárquicos é a honra.

A honra constitui a consideração pela integridade moral de cada ser humano. Podemos distinguir a honra social ou exterior, que exprime o conjunto de apreciações valorativas ou de respeito e deferência de que cada um disfruta na sociedade e a honra pessoal ou interior, que corresponde à auto estima ou imagem que cada um faz das suas próprias qualidades(60). A honra constitui uma base para juízos éticos dos seus semelhantes, juízos esses que se repercutem na auto estima de cada um. No seu conjunto, tudo isto dá corpo à integridade moral, formalmente referida no artigo 70.°/1, do Código Civil.

A honra social comunica se, necessária e automaticamente, às representações verbais de cada pessoa, isto é: ao seu nome. A consideração de que cada um disfrute, na sociedade, exprime o seu bom nome; este, na razão directa das valorações positivas que concite, dá azo à reputação do sujeito. A reputação pode, por seu turno, abranger os mais diversos sectores; teremos a reputação pessoal, quando envolva juízos valorativos positivos quanto à integridade, à seriedade e à moralidade do sujeito; a reputação familiar; a reputação profissional; a reputação cívica; a reputação política e assim por diante.”

(…)

V. Passando aos títulos nobiliárquicos: estamos perante sinais distintivos de famílias e das pessoas que as componham. Tais sinais são aprazíveis e traduzem, em regra, episódios históricos vividos, mais intensamente, pelos seus beneficiários. Pela natureza das coisas, eles vão compor o acervo de apreciações valorativas de quem deles disfrute, na sociedade, reflectindo se na sua própria auto estima.

Pois bem: permitir que um título legítimo seja postergado, vilipendiado ou indevidamente apropriado atentaria, efectivamente, contra a honra do titular legítimo e da sua família. Trata se de um dado de fácil apreensão e que dispensa, ao nome, a tutela do artigo 26.°/1, da Constituição (bom nome).

(…)

I. O desenvolvimento anterior permite considerar os títulos nobiliárquicos como figuras equiparadas ao nome. De resto, é essa a inserção que lhe é dada pelos actuais tratadistas do Direito civil(100) e, em geral, pelos estudiosos da matéria(101). Basta ver que o Código Civil alarga a tutela do nome ao próprio pseudónimo (artigo 74.°): por maioria de razão a irá estender ao título nobiliárquico legítimo.

II. Daí resulta que o titular possa, por via do artigo 72.° do Código Civil:— usar o próprio título nobiliárquico;— opor se a que outrem o use ilicitamente.

Um aparente embaraço poderia advir do facto de os títulos nobiliárquicos não se transmitirem de acordo com as regras do direito ao nome mas, sim, segundo as regras anteriores a 5 Out. 1910 e, designadamente: por linha masculina preferencial e de acordo com a primogenitura. Todavia, como vimos, não é violentado o artigo 13.° da Constituição (princípio da igualdade): os títulos são meras designações históricas que não atribuem nem direitos nem privilégios. Paralelamente, a pessoa não titular não é, por isso, prejudicada em nada: nem na sua dignidade, nem no seu património.
III. Esta aproximação ao nome permite nos determinar a actual natureza jurídica dos títulos nobiliárquicos ou do direito a usá los. De acordo com a posição hoje pacífica, o direito ao nome é apresentado como um
direito de personalidade[4].

Pois bem: o título nobiliárquico deve, tal como o nome, ser considerado um bem de personalidade. E o direito a ele relativo será um direito de personalidade, dotado do competente regime.”


Também no quadro da União Europeia também não encontramos óbice à referida qualificação, o que nos parece ter suporte – indirecto, no mínimo – no ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção), 22 de Dezembro de 2010, quando este declara “O artigo 21.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que as autoridades de um Estado-Membro possam, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, recusar reconhecer, em todos os seus elementos, o apelido de um nacional desse Estado, nos termos determinados num segundo Estado-Membro, no qual o referido nacional reside, aquando da sua adopção na idade adulta por um nacional deste segundo Estado-Membro, quando este apelido engloba um título nobiliárquico que não é admitido no primeiro Estado-Membro por força do seu direito constitucional, desde que as medidas tomadas por estas autoridades neste contexto sejam justificadas por razões de ordem pública, isto é, sejam necessárias para a protecção dos interesses que visam garantir e proporcionadas ao objectivo legitimamente prosseguido.”[5]


15. Não procede igualmente o argumento do recorrente do sentido de a interpretação realizada pelo tribunal recorrido do art.º 56.º da LAV ser violadora do preceito constitucional relativo ao direito de propriedade privada (art.º 62.º).

E não procede desde logo porque o direito de que estamos a falar não incide sobre uma coisa corpórea em termos de sobre ele incidir um direito de propriedade, tal como a lei o configura, e ainda porque o recorrente não interpretou o acórdão recorrido no sentido mais consentâneo com o que aí vem referido, que é o de colocar a título nobiliárquico como um direito relativo ao nome e no quadro dos direitos da personalidade[6], com um tutela específica, que no quadro do direito civil, quer no quadro do direito constitucional – art.º 26.º CRP, como resulta do seu teor, que aqui se transcreve:


Artigo 70.º CC - (Tutela geral da personalidade)

1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.



Artigo 72.º CC- (Direito ao nome)

1. Toda a pessoa tem direito a usar o seu nome, completo ou abreviado, e a opor-se a que outrem o use ilicitamente para sua identificação ou outros fins.

2. O titular do nome não pode, todavia, especialmente no exercício de uma actividade profissional, usá-lo de modo a prejudicar os interesses de quem tiver nome total ou parcialmente idêntico; nestes casos, o tribunal decretará as providências que, segundo juízos de equidade, melhor conciliem os interesses em conflito.

………………


Artigo 26.ºCRP - (Outros direitos pessoais)

1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.

3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.

4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.

16. Não temos, assim,  dúvidas em acompanhar a posição de António Pinto Monteiro, quando afirma “o legislador optou por consagrar um direito geral de personalidade (inspirado no “allgemeines Persönlichkeitsrecht” da doutrina germânica 5 ), no art. 70º, nº 1, que constitui um direito à pessoa no seu ser e no seu ser em devir e que abrange todas as manifestações previsíveis e imprevisíveis – físicas, intelectuais e morais – da personalidade humana” – in “A Tutela dos Direitos de Personalidade no Código Civil”, Revista Jurídica Portucalense, N.º 29 | 2021, p. 11, disponível em https://doi.org/10.34625/issn.2183-2705(29)2021.ic-01, a partir da definição dada por ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, (sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2º ano, 1ª turma, do Curso Jurídico de 1980/81), pol., Centelha, Coimbra, 1981, p. 90 – e concluir que o título nobiliárquico invocado pelo A. é uma manifestação de personalidade humana, a integrar, se existente, o seu direito geral à personalidade, definível como “direito subjetivo que tem como fim a defesa da dignidade humana de cada uma das pessoas singulares, integra no seu conteúdo um número, em princípio, não limitado de poderes, que constituem a sua estrutura. Estes poderes são aqueles que forem necessários, ou mesmo apenas convenientes, ou simplesmente úteis, para que o fim do direito de personalidade seja realizado com êxito” (Pedro Pais de Vasconcelos/ Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 9ºed, pp. 39 e ss), com componente objectiva e subjectiva e que podem ser descritos como extrapatrimoniais, inalienáveis, impenhoráveis, imprescritíveis, irrenunciáveis, indisponíveis, inatos, absolutos, necessários e vitalícios, pelo menos na vertente objectiva.

Nesta linha cf. ainda Luís de Lima Pinheiro – “Convenção de arbitragem (aspectos internos e transnacionais)”, in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), Ano 2004, , disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2004/ano-64-vol-i-ii-nov-2004/artigos-doutrinais/luis-de-lima-pinheiro-convencao-de-arbitragem-aspectos-internos-e-transnacionais:

A controvérsia é arbitrável quando pode ser submetida a arbitragem voluntária.

Quando se fala em arbitrabilidade tem-se geralmente em vista a natureza do objecto do litígio. Trata-se, então, de uma arbitrabilidade objectiva.

(…)

Segundo a lei portuguesa é arbitrável todo o litígio que não esteja submetido por lei especial exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária e que não respeite a direitos indisponíveis (art. 1.°/1 LAV).

Perante a lei portuguesa, à semelhança do que se verifica face aos outros sistemas consultados, a arbitrabilidade não se limita a matéria civil e comercial. A supressão da referência a “matéria cível ou comercial” feita no art. 1.° da Proposta de lei n.° 34/IV torna claro que são, em princípio, arbitráveis litígios noutras matérias disponíveis, designadamente no âmbito de outros Direitos privados especiais e do próprio Direito público (dentro dos limites que adiante serão referidos com respeito à arbitrabilidade subjectiva).

São indisponíveis os direitos que as partes não podem constituir ou extinguir por acto de vontade e os que são irrenunciáveis (84). Por exemplo, os direitos familiares pessoais, os direitos de personalidade e o direito de alimentos são indisponíveis.”

A própria LAV no seu art.º1º, em conjugação com o art.º 56.º, n.1, al. b), reforça este entendimento, o que é também sufragado pela doutrina, na qual cumpre aludir à recentemente publicada  - AA.VV., Lei da arbitragem Voluntária anotada, 5º Ed, revista e actualizada, 2021, nomeadamente na anotação ao art.º1º, por DÁRIO MOURA VICENTE, p. 38-39, explicitando a susceptibilidade de direitos indisponíveis serem sujeitos a arbitragem quando revistam natureza exclusivamente patrimonial, o que interpretado a contrario sensu excluiria, segundo a referida lógica, direitos da personalidade com componente não exclusivamente patrimoniais, sobretudo se reportados a essas vertentes personalistas, como no caso dos autos.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 21 de Abril de 2022

Fátima Gomes (relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira

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[1] Este é um “postulado axiológico do jurídico” (cfr. Paulo Mota Pinto, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no Direito português”, in: Ingo Wolfgang Sarlet / José Luís Bolzan de Morais, A Constituição concretizada: construindo pontes com o publico e o privado, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p. 61).
[2] Cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, cit., p. 208 (sublinhados do autor).
[3] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Os Direitos de personalidade na civilística Portuguesa”, in ROA, Ano 61, vol. III, Dezembro de 2001, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Be1ee299b-5174-4e50-9b0b-c8d97c0c6d3b%7D.pdf.
[4] Negrito nosso.
[5] https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=83459&doclang=pt e https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=pt&num=C-208/09.
[6] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Os Direitos de personalidade na civilística Portuguesa, obra citada.