Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A075
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO
Nº do Documento: SJ20080228000756
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA
Sumário :
I – O art. 1380º, nº1, do Código Civil confere um direito de preferência com eficácia “erga omnes”, aos donos de prédios rústicos confinantes, desde que um deles tenha área inferior à unidade de cultura – art. 18º do DL. 348/88, de 25.10.

II – Trata-se de um direito legal de aquisição que depende da verificação dos requisitos enunciados no citado artigo, cujo ónus da prova incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito – art. 342º, nº1, do Código Civil.

III – A lei civil não conhece o conceito de prédio misto. O prédio misto é um tertium genus, já que os prédios, devem sempre que possível ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.

IV – A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.

V – O núcleo essencial do “prédio misto”, [dos AA.], a sua destinação e afectação, são próprias de um prédio urbano e, assim sendo, o seu logradouro destina-se a proporcionar utilidade a esse prédio com tal natureza, em nada influindo a sua componente rústica, por não se ter provado que gozava de autonomia em relação à casa.

VI – Porque os fins para que o legislador consagrou o emparcelamento e o direito de preferência – arts. 1380º, nº1, a) e 1382º do Código Civil – não se alcançam quando o prédio confinante não se destina a cultura agrícola, e não relevando o facto de ter logradouro ou terrenos ainda que possam ser cultivados – dado que não estão afectos à rusticidade do prédio por ele se destinar a habitação – não existe o direito de preferência.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e marido, BB intentaram, em 28.1.2003, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Silves – 2º Juízo – acção declarativa de condenação, [inicialmente sob a forma de processo sumário], que, por via da alteração do valor passou a tramitar sob a forma ordinária, contra:

CC e DD, [julgados parte ilegítima por preterição de litisconsórcio necessário e, como tal, absolvidos da instância], ilegitimidade passiva essa sanada por via da intervenção provocada de EE e FF.

Visando o exercício judicial do direito de preferência, previsto no art. 1380º, n°1, do Código Civil, na venda do prédio rústico sito em Malhão, freguesia de Alcantarilha, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n°….., e inscrito na matriz sob o artigo 34 da Secção M, efectuada, em 8.08.2002, no Cartório Notarial de Silves, por EE e mulher FF a CC e a DD, em comum e partes iguais pelo preço de € 8.978,36.

Os RR. contestaram por impugnação, e deduziram reconvenção, pelo valor de benfeitorias efectuadas no prédio adquirido, no valor de € 6.542,30, acrescida de juros legais vencidos e vincendos até efectivo pagamento.

Os AA. responderam, designadamente, contestando a reconvenção.

Depois de alterado o valor da acção e a forma de processo e de proferido despacho saneador, que absolveu os RR. da instância, por ilegitimidade passiva, foi ordenado, a requerimento dos AA., o chamamento de EE e FF, em intervenção principal provocada como RR., o que foi efectuado.

A chamada não contestou.

Constatado o óbito de EE, foram habilitados como seus sucessores, FF, sua viúva, os filhos GG, casado com HH, e II, os quais citados, também não contestaram.

Saneado o processo, foi organizada a selecção fáctica relevante, discriminando os factos já assentes dos ainda controvertidos.

***

Foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu os RR. do pedido, não apreciando, por prejudicada, a reconvenção.

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Inconformados os AA. recorreram para o Tribunal da Relação de Évora, que, por, Acórdão de 20.9.2007, fls. 280 a 293 – julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida:

“a) Reconhecendo aos AA. AA e marido, BB, o direito de preferência na compra do prédio rústico sito em Malhão, freguesia de Alcantarilha, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n°…., e inscrito na matriz sob o artigo 34 da Secção M, adquirido em 8 de Agosto de 2002 por CC e DD, em comum e partes iguais, pelo preço de €8.978,36 (Oito mil novecentos e setenta e oito euros e trinta e seis cêntimos) e, consequentemente, substituir estes na titularidade do respectivo direito de propriedade, ordenando o cancelamento das inscrições prediais a favor dos RR.

b) Adjudicar a CC e DD a importância de € 8.978,36 (oito mil novecentos e setenta e oito euros e trinta e seis cêntimos) a sair do depósito obrigatório de fls. 24-26;

e) Condenar AA e marido, BB a pagarem a CC e DD, a quantia de € 3.842,30 (três mil oitocentos e quarenta e dois euros e trinta cêntimos), valor das benfeitorias que suportaram no prédio, acrescida de juros à taxa legal desde a benfeitorias que suportaram no prédio, acrescida de juros à taxa legal desde a notificação da reconvenção”. (sublinhámos).
***

Inconformados os RR. CC e DD recorreram para este Supremo Tribunal e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

a) O Tribunal de 1ª instância deu como assente que o prédio dos Autores ora recorridos era e é composto de cultura arvense, amendoeiras, alfarrobeiras e construções rurais com a área de 2.200 m2 onde se encontra implantada uma morada de casas com três compartimentos destinados à habitação e logradouro, tendo a área descoberta 430 m2 (o logradouro) e que os Autores não utilizam o seu prédio para qualquer actividade agrícola, mas apenas a casa nela implantada para habitação, pelo que os Autores usariam, com usam, o mesmo para fins habitacionais, sendo que a parte que poderia ser destinada à cultura, ou cultivo agrícola, não goza de autonomia funcional, estando ao serviço da parte urbana, ou seja, a utilidade económica principal do prédio alienado reside na casa existente e não no solo.

b) Dispõe a alínea a) do artigo 1381º do Código Civil que gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos constitui parte componente de um prédio urbano ou se destina a algum fim que não seja a cultura.

c) O prédio misto e não rústico dos AA. compõe-se para além da parte rústica, de uma morada de casas com vários compartimentos destinados a habitação e logradouro e nunca os ora recorridos afectaram a parte rústica à agricultura — como actividade geradora de rendimentos agrícolas — actividade que, aliás, o recorrido marido nunca exerceu, limitando-se estes, tão só, e em exclusivo, a ocuparem para habitação a sua parte urbana, destinando a parte rústica a logradouro.

d) Nunca os AA. ora recorridos exerceram qualquer actividade agrícola no seu prédio misto e, tão só, o destinaram durante muito tempo a morada de férias até que, há algum tempo atrás, por o recorrido marido se ter reformado passaram a ocupar a habitação por períodos maiores de tempo.

e) A parte principal do prédio misto, do ponto de vista económico, é a parte urbana e a parte rústica é meramente acessória, na qual os recorridos nunca exerceram qualquer actividade agrícola!

f) Ficou provado pelo depoimento das testemunhas arroladas que os recorridos só utilizam o seu prédio misto para fins habitacionais, sendo a parte que poderia ser destinada a cultura ou cultivo agrícola e que não goza de autonomia funcional, é utilizada como mero logradouro como se diz, e muito bem, na sentença do Tribunal de 1ª Instância, estando ao serviço da parte urbana.

g) A utilidade económica principal do prédio alienado reside na casa existente e não no solo pelo que, se conclui (e bem) na sentença do Tribunal de 1ª Instância, que o prédio dos AA. ora recorridos tem que ser considerado um prédio urbano para efeitos civis e isto por residir a actividade económica principal deste na edificação e não no solo.

h) Da resposta dada ao quesito 3º, o que se pode e deve extrair é que o prédio misto dos AA. ora recorridos nunca foi utilizado ou exercido nele qualquer actividade agrícola, e que estes só o utilizam para um fim, a sua habitação, sendo o terreno, de pequena dimensão, uma mera extensão do logradouro.

i) A classificação dos terrenos e o seu enquadramento tem que ter em conta as suas características físicas e químicas em concreto, a sua natureza, a aptidão para que são dotados e ainda a espécie de cultura “a que normal e predominantemente são destinados e lhes convém para o seu racional aproveitamento e eficiente exploração” (Ac. RC de 10.01.79, in CJ, IV, 1, pág. 16 e ss).

j) Não basta, até, dizer-se que um terreno tem aptidão agrícola porque, em abstracto, todos os terrenos rústicos têm aptidão agrícola, pois a vencer esta interpretação “liberal” de “aptidão agrícola” bastaria para tal, por ex., numa pedreira existir meio metro de terreno livre de pedras para o cultivo de um tubérculo e, estar-se já, perante um terreno agrícola com aptidão agrícola.

l) Não é esse o “ratio legis” da alínea a) do nº1 do artigo 1381º do Código Civil, no nosso modesto entendimento, já que para a classificação do terreno e a definição da sua aptidão agrícola é necessário que, no momento de venda, se determine qual a cultura aí praticada, ou seja, isto implica uma conclusão a retirar de factos materiais concretos que devem e foram alegados pela parte interessada e dados como provados.

m) Indesmentível é que a parte restante do prédio misto dos recorridos, ou seja cerca de 1.700 m2, nunca foi utilizada para exploração agrícola ou culturas, não goza de autonomia funcional e é mero logradouro por ser extensão do mesmo.

n) Nunca os recorridos o afectaram à agricultura, nunca forma agricultores, nem exerceram qualquer actividade agrícola enquanto actividade geradora de rendimentos agrícolas, ou seja, não teve nem tem aproveitamento ou ocupação agrícola, já que não lhe foi dada utilização agrícola.

o) A “ratio legis” do conceito de aptidão agrícola não é a “abstracta” aptidão de um terreno que, tradicionalmente, é classificado como terreno rústico ou prédio rústico, mas sim a natureza de culturas que nele existem (ou não) ou predominam por ocasião da venda, já que a simples aptidão em abstracto poderia levar à incerteza, dúvida e ao absurdo de se classificar qualquer parcela de terra com terreno apto para agricultura ou com aptidão agrícola por aí existirem umas simples e decrépitas árvores sem qualquer produção ou esporadicamente se plantarem uns “grizeus” para consumo ocasional do proprietário.

p) Com o artigo 1380º do Código Civil o legislador teve e tem como objectivo o aumento da produção agrícola, ou seja, uma mais eficaz exploração dos solos não aproveitados ou deficientemente cultivados, o emparcelamento do prédio com o fim de criar unidades de cultura de maiores dimensões e mais rentáveis e não permitir que proprietários confinantes de prédios que estão classificados como rústicos e nos quais não foi exercida qualquer actividade geradora de rendimentos agrícolas, ou seja, que nunca aproveitaram ou afectaram à agricultura possam, utilizando este mecanismo, preferir na compra de terrenos nunca explorados agricolamente e nos quais, também, não exercerão qualquer actividade agrícola ou, de outra forma, não os afectarão à agricultura, sonegando-os do sector primário.

q) O Tribunal da Relação de Évora ao não retirar as devidas ilações da matéria provada, nomeadamente quanto à afectação, destinação económica e até aptidão agrícola, fez incorrecta aplicação do direito e julgou procedente a acção de preferência quando deveria conduzir a decisão diversa, e que está, até, em oposição com a matéria de facto, mantendo-se na integra a da 1ª Instância.

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.
***


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

a) Por escritura pública celebrada em 8.08.2002 no Cartório Notarial de Silves, EE e mulher FF declararam vender a GG e a DD, em comum e partes iguais e estes declararam comprar, pelo preço de € 8.978,36 (oito mil novecentos e setenta e oito euros e trinta e seis cêntimos), o prédio rústico sito em Malhão, freguesia de Alcantarilha, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n°1.665, e inscrito na matriz sob o artigo 34 da Secção M.

b) O prédio referido em a) está descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves nos seguintes termos “Prédio Rústico – Malhão cultura arvense, amendoeiras, alfarrobeiras e oliveiras – 5.960 m2 — norte J. F. V. e outros – sul caminho – nascente M. G. e outro – e poente António dos Santos e outro”.

c) Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves, freguesia de Alcantarilha, sob o n°….., um prédio, nos seguintes termos:

Prédio Misto – Malhão – cultura arvense, amendoeiras, alfarrobeiras e construções rurais – 2.200 m2 – onde se encontra implantada uma morada de casas com três compartimentos destinados a habitação e logradouro – área coberta: 50 m2 – área descoberta: 430 m2 – norte A. C. – sul M. B. – nascente J. V. – e poente M. B.”, inscrito na matriz sob os artigos: Secção M – 0033, rústico e 102, urbano, e registadas as respectivas aquisições de 40/175, a favor do Autor e de 135/175 a favor da Autora (Ap. 03/970219 e Ap. 24/980504, respectivamente).

d) Os prédios referidos em b) e c) confrontam entre si.

e) À data da celebração do acordo referido em a) os Réus CC e DD não eram donos de qualquer prédio confinante com o prédio referido em b).

f) As partes no acordo referido em a) não deram a qualquer dos Autores prévio conhecimento do projecto de tal acordo, nomeadamente, da identidade do comprador, preço, prazo e condições de pagamento e data de tal escritura, só tendo os Autores tido conhecimento de tal transacção a posteriori.

g) Os Autores utilizam a casa implantada no prédio referido em c) para habitação.

h) Os Réus vedaram o terreno com cerca, um portão pequeno e um grande, em cujos trabalhos, materiais e mão-de-obra despenderam a quantia de € 3.842,30 (três mil oitocentos e quarenta e dois euros e trinta cêntimos).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se os AA. são titulares do direito de preferência que invocam, o que passa, essencialmente, por saber se o seu prédio é rústico.

O direito em disputa assenta nos arts.1380º, nº1, 1381º a), 1382º do Código Civil e DL.384/88, de 25.10.

Vejamos:

Dispõe o art. 1380º do Código Civil.

“1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
[…]

4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, com as necessárias adaptações.”


A Portaria 202/70, de 21.4 define as áreas de cultura para as diversas regiões do país.

A razão de ser do regime legal consagrado no art. 1380º, nº1, do Código Civil, ancora num propósito propiciador do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente – cfr. inter alia, Ac. deste STJ de 11.10.79, in BMJ 290-395; de 18.1.94, in CJSTJ, Tomo I, pág. 46 e, na doutrina, Antunes Varela, in RLJ 127-308 e segs e 365 e sgs.

O art. 1380º, nº1, do Código Civil confere um direito de preferência com eficácia “erga omnes”, que, segundo Henrique Mesquita, in “Obrigações Reais e Ónus Reais” (pág. 225):
“ Não pode qualificar-se como um puro e simples direito potestativo trata-se, antes, de uma relação jurídica complexa, integrada por direitos de crédito e direitos potestativos, que visam proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição, por via negocial, de certo direito, logo que se verifiquem os pressupostos que condicionam o exercício da prelação”.

Trata-se de um direito legal de aquisição que depende da verificação dos seguintes requisitos:

- “ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura;
- que o preferente seja dono de prédio confinante com o alienado;
- que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura;
- que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante” – cfr. “Código Civil Anotado”, dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, vol. III, págs. 270-271.

O ónus da prova de tais requisitos incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito – art. 342º, nº1, do Código Civil.

Dos requisitos legais citados apenas está em causa a natureza e qualificação do prédio dos AA.

Como se sabe o direito de preferência em apreço é concedido aos donos de prédios rústicos confinantes, desde que um deles tenha área inferior à unidade de cultura – art. 18º do DL. 348/88, de 25.10 “Os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no art. 1380° do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura”. , já que o objectivo da lei é fomentar o emparcelamento com que é melhorada a rendibilidade fundiária.

O prédio que foi vendido tem natureza rústica, mas o prédio dos AA. está descrito na Conservatória competente como prédio misto:

Prédio Misto – Malhão – cultura arvense, amendoeiras, alfarrobeiras e construções rurais – 2 200 m2 – onde se encontra implantada uma morada de casas com três compartimentos destinados a habitação e logradouro – área coberta: 50 m2 – área descoberta: 430 m2 – norte A. C. – sul M. B. – nascente J. V. – e poente M. B.”.

Como resulta da descrição nele existe implantada uma morada de casas, cultura arvense, amendoeiras e alfarrobeiras, construções rurais e um logradouro.

Na sentença de 1ª instância, depois de se abordar a problemática da qualificação dos prédios rústicos e urbanos, concluiu-se que o critério rector para efeito do direito de preferência relativamente a tais prédios é o da utilidade económica principal, da afectação ou destinação económica, devendo ponderar-se se tal destinação ou afectação económica reside no solo ou na edificação.

Residindo no solo o prédio é rústico, residindo na edificação é urbano.

Considerou-se que o prédio dos AA. é urbano porque: (fls. 220):

“…O prédio dos Autores é essencialmente usado para fins habitacionais, sendo que a parte que poderia ser destinada à cultura, ou cultivo agrícola, não goza de autonomia funcional, estando ao serviço da parte urbana.
Ou seja, a utilidade económica principal do prédio alienado reside na casa existente e não no solo.
Ou seja, de acordo com o critério que supra se referiu como aquele a que se deve atender – o critério da afectação ou destinação económica – o prédio dos Autores tem que ser considerado um prédio urbano para efeitos civis”.

Assim, e com fundamento na al. a) do art. 1381º do Código Civil Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes… Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura., a acção foi julgada improcedente, já que de harmonia com tal normativo não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum deles constituir parte componente de prédio urbano, ou se destine a algum fim que não seja a cultura.

Antes de prosseguirmos importa dizer que a Relação alterou a resposta ao quesito 3º.

A formulação de tal quesito é a seguinte – “Os autores não utilizam o prédio referido em C) para qualquer actividade agrícola, mas apenas a casa nele implantada para habitação?

A resposta foi – “Provado”.

A Relação alterou tal resposta para – “Provado apenas que os autores utilizam a casa implantada no prédio referido em C) para habitação”.
Aquele Tribunal, tendo em conta esta alteração ao quesito 3º, considerou, além do mais:

“O que releva para a eficácia impeditiva prevista no n°1 a) do art. 1381° do Código Civil é a subordinação funcional do terreno rústico ao prédio urbano ao qual adjaz.
Não tendo sido demonstrada essa dependência funcional ou afectação da parte rústica do prédio à sua parte urbana – ou, nas palavras do art. 1381°, n°l, a) do Código Civil, que o terreno que constitui essa parte rústica seja parte componente do prédio urbano – nada impede o reconhecimento do direito de preferência”.

Assim foi revogada a decisão e a acção julgada procedente.

Salvo o devido respeito, mesmo após a alteração do quesito, o que avulta como relevante é a consideração de que o prédio dos AA. é urbano, já que, agora, nem sequer há que considerar a componente rústica do imóvel, descrito na Conservatória do Predial como misto.

Nos termos do nº2 do art. 204º do Código Civil:

Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.

Em anotação ao citado normativo Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume I, pág. 196, escrevem:

“Em conformidade com o critério legal, não devem considerar-se prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as edificações destinadas às alfaias agrícolas, etc., assim como não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os jardins, pátios ou quintais.
Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do edifício a que está ligado, designadamente para efeito determinação do seu valor, em caso de expropriação por utilidade pública […] para efeito de averiguar se, em caso de alienação, se verificam os pressupostos do exercício de algum dos direitos de preferência previstos na lei…”. (sublinhámos).

A lei civil não conhece o conceito de prédio misto.

Tal conceito está definido no art. 5º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis – aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003, alterado pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro.

1- Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.
2 – Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto”.

Na definição fiscal do conceito consagra-se, a nosso ver, um critério de predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável o prédio é considerado misto.

Temos, assim, que o prédio misto é um tertium genus, já que os prédios, devem sempre que possível ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.

A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.

Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Parte Geral”-Tomo II – págs. 121 e segs., debruçando-se sobre a questão de saber qual a natureza de um prédio que contenha construções, refere que a doutrina portuguesa mais recente aponta quatro teorias: “Teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social”.

Depois de escrever ser de sua autoria uma proposta de distinção, “segundo a qual os prédios são rústicos ou urbanos consoante, na comunidade jurídica, sejam havidos por terrenos ou por construções” – “Direitos Reais”, 274 – e analisar aquelas teorias, escreve – págs. 123 e 124:

Ficam-nos, pois, as noções do Código Civil: o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício, com o logradouro.
Vamos avançar a partir da fórmula do artigo 204º… na linha da teoria da afectação económica.
Duas precisões prévias devem ser feitas: para efeitos de qualificação civil, é indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a especialidade dos critérios fiscais…, bem como o tipo de descrição predial…; além disso, a lei não admite, aqui, o qualificativo de “prédio misto”…
Temos, depois, os núcleos dos conceitos de prédios rústicos e urbanos: um terreno não construído é rústico; o terreno totalmente coberto por um edifício é, seguramente, urbano.
E como a construção é obra humana, podemos concluir que o proprietário pode, por essa via e dentro da lei, transformar o prédio e logo determinar a sua natureza rústica ou urbano.
Finalmente e ainda em pano de fundo: por defeito, os prédios são rústicos.
Não sendo possível qualificá-los como um edifício (ainda que com logradouro), impõe-se a rusticidade”.

O critério da afectação económica como ponto de partida para a qualificação dos prédios, foi seguido no Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.1.1991, in BMJ 403, 416:

“I – Os prédios mistos são uma verificação de facto que não jurídica porque a lei civil não autonomiza tal categoria.
II – O prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação.
III – Não se pode dizer que um prédio tenha deixado de ser um prédio rústico porque não perdeu a sua destinação autónoma para fins agrícolas com a construção de uma habitação que constitui não uma alteração da destinação económica do prédio mas antes a conjugação dos interesses habitacionais dos proprietários com os interesses económicos da exploração agrícola do prédio”.

Importa, ainda, porque no prédio considerado misto existe um logradouro, conceito que a lei não define, afirmar que este Supremo Tribunal, em Acórdão de 25.03.1993, CJ-STJ, I, considerou:

“I – A parcela de terreno, contígua a casa de habitação, tanto pode ser considerada como terreno rústico, como logradouro da casa.
II – Na ausência de definição legal, por logradouro pode entender-se o terreno contíguo a prédio urbano que é ou pode ser fruído por quem se utilize daquele, constituindo um e outro uma unidade”.

“Um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial” – Ac. deste Tribunal de 6.7.1993, in BMJ, 429-761 Mais desenvolvidamente pode ler-se no citado Acórdão – “Quanto à expressão “logradouro”, civilisticamente, ela tem assento no nº2 do artigo 204° do Código Civil; aí se diz que se entende por “prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”. Daqui decorre que o logradouro sendo, basicamente, terreno, não é edifício; juridicamente, faz parte da unidade predial mas, fisicamente, tem diferença e autonomia; serve o edifício, ou seja, é complementar e serventuário do edifício. Logradouro é uma palavra, semanticamente, decorrente de “lograr”, isto é, “gozar, fruir, desfrutar” (Dicionário Enciclopédico, Koogan Larousse, I, pág. 516); é, na circunstância, essencialmente, “fruir”. Portanto, logradouro, é o que pode ser logrado ou fruído por alguém; ou seja e fazendo apelo ao seu cariz complementar, em princípio por quem fruir o edifício correspondente”. .

Partindo da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, importa considerar que, com a alteração da resposta ao quesito 3º, é inescapável considerar que, tendo sido eliminada a expressão - “Os AA. não utilizam o prédio referido em C) para qualquer actividade agrícola” - ficando como definitiva a resposta – “Provado apenas que os AA. utilizam a casa implantada no referido prédio para habitação”, temos de convir, à luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais citados, que tal prédio não pode ser considerado prédio rústico, pelo fenecendo um dos requisitos do art. 1380º, nº1, do Código Civil, o direito de preferência teria de ser recusado.

O núcleo essencial do “prédio misto”, [dos AA.], a sua destinação e afectação, são próprias de um prédio urbano e, assim sendo, o seu logradouro destina-se a proporcionar utilidade a esse prédio com tal natureza, em nada influindo a sua componente rústica, por não se ter provado que gozava de autonomia em relação à casa.

Concluindo:

Porque os fins para que o legislador consagrou o emparcelamento e o direito de preferência – arts. 1380º, nº1, a) e 1382º do Código Civil – não se alcançam quando o prédio confinante não se destina a cultura agrícola, e não relevando o facto de ter logradouro ou terrenos ainda que possam ser cultivados – dado que não estão afectos à rusticidade do prédio por ele se destinar a habitação – não existe o direito de preferência.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, para ficar a valer o sentenciado na 1ª Instância.

Custas pelos recorridos.


Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2008

Fonseca Ramos
Rui Mauricio
Cardoso de Albuquerque