Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3126
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: SJ200311270031267
Data do Acordão: 11/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 318/03
Data: 03/31/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - Dado que configura uma contra-acção do réu contra o autor por virtude da qual a relação processual adquire um conteúdo novo, só há lugar a reconvenção quando o pedido formulado for um pedido substancial (não apenas formal) e autónomo, isto é, que transcenda a simples defesa conducente à improcedência da pretensão do autor, algo efectivamente acrescentando à matéria da defesa deduzida.
II - O nexo ou ligação que a al. a) do nº do art.274° c PC exige pressupõe, por definição, dois distintos termos, ficando, sem essa distinção, logicamente impedida a consideração de ligação ou nexo.
III - É, pois, despropositado falar de reconvenção quando o pedido formulado a esse título se destina apenas a excluir a existência do direito que se quis fazer valer na acção, não constituindo mais que pura consequência da defesa oposta.
IV - A reconvenção pode ser deduzida condicionalmente para a hipótese de procedência da acção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 17/11/2000, "A" intentou acção com processo comum na forma sumária contra "B" , que foi distribuída ao 1º Juízo da comarca de Ovar.

Invocando o disposto nos arts. 1565º, 1568º, n.º 1, e 1572º C.Civ., e os pertinentes factos, pediu a condenação da demandada a demolir os degraus construídos no meio de caminho de servidão confiante, a sul, com o prédio do A. sito na Rua Dr. Cunha, ...., em Ovar, e os dois muros por ela construídos paralela e perpendicularmente ao muro desse prédio, tudo por forma a permitir ao A. o exercício pleno do seu direito de passagem a pé e de carro por aquele caminho. Cumulou pedido de indemnização de, no mínimo, 250.000$00, pelos danos morais sofridos com os incómodos e trabalhos que teve que enfrentar devido às obras referidas, que obstruíram a passagem de carro para aceder à garagem sita no logradouro do seu aludido prédio.
Contestando, a Ré excepcionou a extinção da servidão invocada pelo seu não uso desde 1970 até Outubro de 1992, e, em defesa por impugnação (motivada), contrariou, em outrossim indicados termos, a alegada extensão e conteúdo da mesma.
Em reconvenção, expressamente condicionada nesta 1ª parte (al.b) - i) e ii) - do pedido reconvencional a fls.31 dos autos) ao pedido de reconhecimento da servidão em referência, pediu a condenação do A. a reconhecer, por sua vez, que o direito de passagem, somente a pé, termina no lugar que, por seu turno, indica. Cumulou (subsequente al. c)) pedido de indemnização no montante de 500.000$00 por arguidos danos patrimoniais e não patrimoniais.
Atribuído à reconvenção o valor de 2.250.000$00, a acção passou a seguir a forma ordinária, tendo havido réplica.
Dispensada audiência preliminar, foi lavrado saneador tabelar, em que se admitiu a reconvenção, com seguida indicação da matéria de facto assente e fixação da base instrutória.

No início da audiência de discussão e julgamento, foi indeferida reclamação da Ré relativa à al. d) da matéria de facto assente.

Após julgamento, foi proferida sentença do Exmo Juiz do Círculo Judicial de Santa Maria da Feira, que julgou improcedente a acção, com a consequente absolvição da Ré do pedido contra ela deduzido pelo A..

Julgou, porém, procedente a reconvenção, pelo que condenou o A. a reconhecer que: a) - a servidão que onera o prédio da Ré é a que tem na sua face frontal um portão que dá acesso directo à referida Rua Dr. Cunha e se prolonga desde esse portão até, pelo menos, ao limite poente de um outro portão, com 1,5 m de largura, existente no muro lateral das traseiras do prédio sito na Rua Dr. Cunha, ...., da cidade de Ovar e que dá acesso ao logradouro desse prédio; b) -essa servidão só permite o seu uso a pé, para acesso ao logradouro do respectivo prédio.

O A. foi, bem assim, condenado, por essa decisão, em indemnização pelos prejuízos causados à Ré, a liquidar em execução de sentença.

Dado que a reconvenção fora, em parte, deduzida condicionalmente, para a hipótese de reconhecimento da existência do caminho de servidão a que aludia o articulado inicial, uma vez que esse pedido do A. não foi atendido, o pedido reconvencional devia, no entender da Ré, ter sido considerado prejudicado naquela parte.

Conhecendo, apesar disso, daquele pedido, nessa parte, a sentença proferida declarou a existência da nela descrita servidão, a onerar o prédio da Ré.

A Ré apelou, por isso, dessa decisão - cfr. arts. 691º e 733º CPC, a que pertencem todas as disposições citadas ao diante sem outra indicação.

Invocado, na alegação respectiva, o disposto no art. 668º, n. 1 als. d) (parte final) e e), foi observado o prescrito nos arts. 668º, n. 4 e 699º.
Tendo o autor da sentença recorrida considerado não ocorrerem as nulidades arguidas, a Relação do Porto, concedendo provimento à apelação, revogou essa sentença na parte impugnada.

É dessa decisão que vem interposto, pelo A., este recurso, cuja espécie houve que alterar, de revista para agravo.
Em fecho da alegação respectiva, o recorrente formula, na verdade, as conclusões seguintes, delimitativas do âmbito ou objecto deste recurso (arts. 684º, ns. 2 a 4, e 690º, ns 1 e 3, CPC):
1ª - O Mmo. Juiz a quo, ao decidir como decidiu, conheceu de questões de que podia tomar conhecimento e condenou dentro do objecto do pedido, não havendo causa de nulidade de nenhuma parte da sentença nos termos do art. 668º, n. 1, als. d) e e).
2ª - A sentença da 1ª instância, onde diz "julgar a acção improcedente..." deverá, então, dizer, face ao conteúdo que vem a seguir "julgar a acção parcialmente procedente...".
3ª Deve, em consequência, ser confirmado e reconhecido que a servidão que onera o prédio da Ré é a que tem na sua face frontal um portão que dá acesso directo à referida Rua Dr. Cunha, prolonga-se desde esse portão até, pelo menos, ao limite poente de um outro portão com 1,5m de largura existente no muro lateral das traseiras do prédio do A., e dá acesso ao logradouro desse prédio.
4ª - Deve ser reconhecido ainda que essa servidão só permite o seu uso a pé, para acesso ao logradouro do respectivo prédio.

Não houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Remete-se, ao abrigo dos arts. 713º, n. 6, e 726º, para a matéria de facto fixada pelas instâncias.

Os factos com interesse para a decisão deste recurso são, em todo o caso, os seguintes (em resumo dos pedidos principal e reconvencional e da decisão apelada, transcritos no acórdão sob recurso) :

- O pedido deduzido pelo A. foi formulado, antes de mais, nestes termos: " (...) deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e em consequência: a) - Ser a Ré condenada a reconhecer o direito de passagem do A., a pé e de carro, pelo caminho de servidão atrás referido".
- Seguem-se os pedidos de condenação na demolição dos degraus ditos construídos no meio desse caminho e dos dois muros por igual construídos pela demandada, e de indemnização por alegados danos morais.
- Em reconvenção, a Ré pediu a condenação do A. a reconhecer que o direito de passagem que invoca, somente a pé, termina no lugar que, por sua vez, indica - al. b) - i) e ii) - da reconvenção.
- O pedido reconvencional foi, nessa parte, deduzido, expressamente, para o caso de ser considerada procedente a al. a) do pedido do A., atrás transcrita.

- A Ré pediu ainda a condenação do A a pagar-lhe a quantia de 500.000$00 por arguidos danos patrimoniais e não patrimoniais - idem, al.c).
- A sentença apelada absolveu a Ré do pedido principal, e julgou a reconvenção procedente, relegando, embora, a liquidação da indemnização para execução de sentença.

É na sequência do tão só formal "pedido" de reconhecimento da existência do caminho de servidão que confina a sul com o prédio do A. que vem deduzida a efectiva, substancial, pretensão do mesmo, de condenação da Ré na demolição dos degraus e muros.

Com cumulada indemnização por danos morais (cumulação real - cfr. art. 470º, n. 1), é esse, na realidade, o efeito prático que essencialmente se teve em vista com esta acção.

Vem, deste jeito, a lume a consideração - elementar, é certo - de que, nas acções de condenação, como é o caso, não pode haver condenação sem prévia apreciação e declaração do direito em questão.

Nessa espécie de acções - que é a desta - , prevista no art. 4º, n. 2, al.b) a declaração do direito e do que dele resulta, ou do que determina, funciona como meio ou pressuposto da condenação que constitui o fim que é próprio de tais acções (1).

Daí que o "pedido" de reconhecimento - de declaração, enfim - da existência do caminho de servidão que confina a sul com o prédio do A., subordinado à al. a), só formalmente, que não substancialmente, como tal possa ser efectivamente considerado: antes, com evidência, constituindo fundamento da acção, e, assim, nos factos em que concretamente se firma, parte da respectiva causa de pedir (v. nº 4 do art. 498º; cfr. também arts. 483º, n. 1, 562º, e 566º, n. 1, C.Civ.).

Nada, em bom rigor, o preceito do art. 661º, n. 1, tem que ver com tal "pedido", sendo, ao fim e ao cabo, no âmbito da causa de pedir - no plano dos fundamentos da acção - que a existência de tal caminho na realidade, se situa.

A outro tempo:

Não tem sofrido dúvida que a reconvenção pode, como é o caso, ser deduzida condicionalmente, para a hipótese de procedência da acção (2).

Dado, porém, que configura uma contra-acção do réu contra o autor por virtude da qual a relação processual adquire um conteúdo novo, só há lugar a reconvenção quando o pedido formulado for um pedido substancial (não apenas formal) e autónomo, isto é, que transcenda a simples defesa conducente à improcedência da pretensão do autor, algo efectivamente acrescentando à matéria da defesa deduzida (3).

Nomeadamente, o nexo ou ligação que a al. a) do n.2 do art. 274º exige pressupõe, por definição, dois distintos termos (ficando, sem essa distinção, logicamente impedia a consideração de ligação ou nexo).

Revela-se, nesta conformidade, despropositado falar de reconvenção quando o pedido formulado a esse título se destina apenas a excluir a existência do direito que se quis fazer valer na acção, não constituindo mais que pura a consequência da defesa oposta (4).

Quando, à luz do que vem de deixar-se notado, impropriamente deduzida (pseudo-) "reconvenção", deve, logo no despacho saneador, ser julgada inadmissível.

No caso ocorrente, a reconvenção, foi no saneador, expressamente, julgada admissível.
Esse despacho transitou em julgado.

Por simples obiter dictum vale, pois, dizer, à luz do que vem de expor-se, ser porventura susceptível de dúvida, na parte (5) em que a reconvenção foi deduzida condicionalmente.

Foi, com toda a probabilidade, em vista do prescrito nos arts. 462º, n. 1, e 678º, n. 1, que, no fito óbvio de beneficiar-se do disposto no art. 308º, n. 2, se deduziu reconvenção, só na realidade tal na parte desligada da, condicionada, que a precede - em que configura (contra) - acção de condenação (em indemnização) enxertada no processo movido pelo demandante, e que foi julgada procedente.

Vale, no que se refere a essa acção da demandada contra o demandante, o já exposto relativamente àquela espécie de acções.

É, em todo o caso, certo poder proceder esse pedido (reconvencional) de indemnização ainda quando não provada a situação configurada no pedido condicional que o precede: tanto, na verdade, valendo para aquele efeito que exista servidão com o conteúdo e extensão condicionalmente referidos em "reconvenção", como que nenhuma efectivamente exista.

Não admirará, nessa conformidade, que ela tenha, nessa 1ª parte, sido deduzida condicionalmente à procedência da acção - rectius, de "pedido", de natureza, em acção de condenação, tão só formal, deduzido no articulado inicial.

Ora, esse "pedido" não foi, de facto, - nem tinha que ser - objecto de pronúncia na parte decisória da sentença, que, como emerge claro do já adiantado, só tinha de pronunciar-se sobre o pedido efectiva ou substancialmente deduzido, e não sobre todos e cada um dos elementos da respectiva causa de pedir.

Como assim, respeitando, posto que se trata de relação jurídica disponível, a vontade da reconvinte, o tribunal só podia, em vista do disposto nos arts. 660º, n. 2 e 661º, n. 1 (ne eat iudex ultra vel extra petita partium) pronunciar-se sobre a reconvenção, na parte em que foi deduzida condicionalmente, uma vez preenchida a condição a que estava subordinada.

Pretendia-se, na verdade, que uma vez efectivamente reconhecida a existência da servidão arguida, outrossim se declarasse ser apenas de pé e com indicada extensão; na falta dessa declaração - que não consta, nem, como visto, tinha que constar, da parte decisória da sentença apelada, a pronúncia, nessa sentença, sobre o conteúdo e extensão da servidão nos termos só condicionalmente concedidos na reconvenção integra, na realidade, as nulidades que o acórdão sob recurso reconhece, prevenidas nas als. d) (parte final) e e) do n. 1 do art. 668º.

Contra o menos inspiradamente alegado pelo recorrente, nada o acórdão recorrido esqueceu ou ignorou. O mesmo se não poderá porventura dizer do próprio recorrente, dado que, como resulta da conclusão 2ª da alegação respectiva, não terá atentado em que, só objecto de recurso de apelação a decisão relativa à reconvenção, no que à acção (pedido principal) se refere, a decisão da 1ª instância transitou em julgado.

Alicerça quando vem de expor-se a seguinte decisão:
Nega-se provimento a este recurso.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27 de Novembro de 2003
Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) V.Reis, "Anotado", I, 22, 1º par., e "Comentário", 3º, 148, e Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil Declaratório", I, 102, 110, e 127. Se a finalidade da acção fosse, apenas, a declaração da existência do caminho estar-se-ia perante acção confessória de servidão, isto é, de simples apreciação positiva, a coberto do art. 4º, n. 2, al. a.).
(2) V. v.g., ARP de 19/10/89, CJ, XIV, 4º, 196-III. Não admira, no caso, a sua formulação nesses termos se se recordar ter sido excepcionada a extinção pelo não uso da servidão de passagem em questão.
(3) V., assim dizendo, Ac. STJ de 29/4//86, BMJ 356/310-2)-311.
(4) Tal é o que ensinam Alberto dos Reis, "Comentário", 3º, 102, Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil" (1976), 145, Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil Declaratório", I, 171, Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", II, 24, e Antunes Varela e outros, "Manuel de Processo Civil", 2ª ed., 323 e 324 (n. 104.).
(5) Independente (autonomizada) do pedido de indemnização, não condicionado.