Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2769/17.4T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
USUCAPIÃO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
UNIDADE DE CULTURA
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
POSSE
NULIDADE
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS / SANÇÕES.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 671.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1379.º.
DECRETO N.º 16.731, DE 13-04-1929: - ARTIGO 107.º.
LEI N.º 2.116, DE 18-04-1962.
DECRETO-LEI Nº 384/88, DE 25-10, REVOGOU A LEI N.º 2.116, DE 18-04-1962.
DECRETO-LEI N.º 103/90, DE 22-03: - ARTIGO 47.º.
PORTARIA N.º 202/70, DE 21-04.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-11-2018, PROCESSO N.º 6000/16.1T8STB.E1.S1.
Sumário :
I. De acordo com jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal “a justificação notarial constitui um mero instrumento jurídico através do qual, por via da invocação de razões de ciência, se obtém um título justificativo da aquisição do direito real por usucapião”, pelo que “Não é o referido ato que traduz o fracionamento do prédio, o qual deve corresponder ao ato de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião”.

II. No caso dos autos, entende-se que o acto de fraccionamento da parcela de terreno em causa teve lugar aquando da desanexação material do mesmo, ocorrida “no decurso do ano de 1960”, ano em que vigorava o regime do artigo 107.º do Decreto n.º 16.731, de 13 de Abril de 1929, que proibia a divisão de prédios rústicos de que proviessem novos prédios de menos de meio hectare (5.000 m2). Assim, tendo a parcela de terreno a área de 8.471 m2, conclui-se que o acto de fraccionamento não desrespeitou as regras legais aplicáveis.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. O Ministério Público intentou, em 11 de Abril de 2017, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e mulher, BB, pedindo a “anulação do negócio” constante da escritura de justificação, outorgada no dia 15 de Maio de 2015 no cartório notarial da Licenciada CC, em …, referente à aquisição, por usucapião, de uma parcela de terreno rústico, com a área total de 8.471,00 m2, composta de terra de semeadura, a confrontar a norte com DD, a sul com REFER e Câmara Municipal de … e a nascente com herdeiros de EE, sita em …, freguesia da …, concelho de Palmela, a destacar da parte rústica do prédio misto, com a área total de 60.750 m2, compondo-se a parte rústica por terras de semeadura e vinha, inscrita na matriz predial rústica, sob o artigo 19, da secção S, da União das freguesias de …, e a parte urbana, por rés-do-chão, para habitação, com 57 m2, inscrita na matriz predial urbana, sob o artigo 1319 da União das mesmas freguesias, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº 833/freguesia da ….

       Os RR. contestaram.

  Por sentença de fls. 43, considerando-se preenchidos os pressupostos da aquisição por usucapião, entendeu-se sanado o vício do fraccionamento do prédio rústico dos autos em violação das regras legais aplicáveis (no caso, a terreno que se apreciou ser predominantemente de sequeiro). Em consequência, a acção foi julgada improcedente.

Interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal da Relação de …, pedindo a revogação da decisão recorrida e a anulação do negócio titulado pela escritura pública de justificação notarial.

Por acórdão de fls. 68, considerando-se que a aquisição por usucapião ocorreu “cerca de 1960” e que, antes do regime da Portaria nº 202/70, de 21 de Abril, a área mínima de cultura para a divisão de que provenham novos prédios era de meio hectare, entendeu-se ficar prejudicado o conhecimento da questão da prevalência ou não da aquisição por usucapião sobre as normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos, julgando-se improcedente o recurso e mantendo-se a decisão recorrida.


2. Vem o Ministério Público interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“I - O acórdão ora recorrido confirmou a sentença proferida em 1ª instância "ainda que por outro fundamento", como expressamente reconhece, pelo que não ocorre uma situação de dupla conforme, sendo o mesmo recorrível nos termos do art° 671° n° 1 do NCPC.

II - O momento da celebração da escritura de justificação constitui o momento relevante para efeitos da impugnação da usucapião e do fracionamento que da mesma resulta, atenta a redacção da norma constante do art° 1379° n° 3 do CC - porque só então é possível ter acesso a um documento escrito onde fica demonstrada a violação das regras impeditivas do fracionamento e só nesse momento o Estado, a quem incumbe velar pelo cumprimento do disposto no art° 1376° do CC, toma conhecimento do acto violador das regras de fracionamento.

III - Enquanto que a usucapião representa um "castigo" para o proprietário particular que se manteve inactivo e não cuidou de defender a sua posse, no caso do Estado, inexiste qualquer inacção, uma vez que não é ele o titular da posse anterior e lhe é absolutamente inexigível que possa ter conhecimento de uma nova posse não titulada, resultante de um acto nulo de doação verbal, que não respeitou a forma legal da escritura pública - pelo que o Estado só pode "defender-se" perante um fracionamento ilegal a partir do momento em que é celebrado um documento público que torna "visível" esse fracionamento, ao qual devem assim ser aplicáveis as regras legais vigentes no referido momento.

IV - Uma adequada interpretação do art° 1379° n° 3 do CC, quando dispõe que "A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto..." leva a concluir que o único acto "celebrado", a partir do qual começa a correr o prazo para anulação do fracionamento, só pode ser o da "celebração" da escritura de justificação onde é invocada a usucapião, dado que no início da posse não houve qualquer acto "celebrado", mas apenas uma divisão material e uma doação verbal.

V - Deve, por isso entender-se que, na realidade, o fracionamento só se tornou operante com a escritura de justificação, uma vez que só nesse momento os justificantes obtiveram título jurídico válido do fracionamento realizado.

VI - Ao acto de fracionamento resultante da escritura de justificação em causa nos autos é aplicável o regime de proibição de fracionamento que se encontrava vigente na data da sua realização, ou seja, o disposto nos art°s 1376° n° 1 e 3 do CC e na Portaria n° 202/70, de 21/4 - que, para terrenos de sequeiro, fixou a unidade de cultura no distrito de Setúbal em 7,5 hectares - pelo que se mostra violada a unidade de cultura relativamente à parcela fraccionada, que tem a área de 8 471 m2.

VII - Dispondo o art° 1287° do CC, que a usucapião opera, "salvo disposição em contrário", deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art° 1376° do CC, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

VIII - Tal entendimento mostra-se reforçado quando se compara tal norma com a correspondente disposição do Código Civil de 1867, em cujo art° 530° se estabelecia o seguinte: "As disposições dos artigos antecedentes, com relação à prescrição de direitos imobiliários, só podem ter excepção nos casos em que a lei expressamente o declarar."

IX - O Código Civil vigente deixou de exigir para exclusão da usucapião uma excepção expressamente declarada, bastando-se com a existência de uma "disposição em contrário", o que, manifestamente ocorre com a existência do art° 1376°.

X - As regras de ordenamento do território, nelas se incluindo tanto as respeitantes a loteamentos e destaques, como as de proibição de fracionamento, por revestirem inequívoca natureza pública, devem prevalecer sobre as normas de direito privado relativas à usucapião, sob pena de, assim não se entendendo, se estar a deixar sem qualquer protecção o ordenamento do território nacional.

XI - Mesmo que se entenda que também a usucapião tem subjacente um interesse de ordem pública, de estabilidade e certeza das relações jurídicas, o interesse público do correcto ordenamento do território é de grau superior, devendo prevalecer sobre a usucapião, conforme dispõe o art. 335.° do Código Civil."

XII - Ao alterar a redacção do disposto no artº 1379° n° 1 do CC, passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei n° 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no artº 1376° do CC e confirmou, sem qualquer dúvida, a prevalência das regras legais de proibição de fracionamento sobre a usucapião.

XIII - O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei n° 111/2015, que pretendeu intervir "através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias."

XIV - Assim, é de acolher, no caso dos autos, a posição jurisprudencial que decorre dos Acórdãos do STJ de 30/4/2015 e de 26/1/2016 (Procs. n° 10495/08.9TMSNT.L1.S1 e n° 5434/09.2TVLSB.L1.S1), bem como dos acórdãos da Relação de Évora de 25/5/2017 e 26/10/2017 (Procs. n° 1214/16.7T8STB.E1 e n° 7859/15.5T8STB.E1), tendo estes últimos decidido, em situação absolutamente idêntica, no sentido de que as regras de proibição do fracionamento prevalecem sobre a usucapião.”

XV - Uma vez que, na presente acção, a parcela fraccionada tem a área de 8 471 m2, inferior à unidade de cultura de 7,5 ha prevista na Portaria n° 202/70 para terrenos de sequeiro no distrito de Setúbal, não pode a usucapião ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre as normas imperativas de proibição de fracionamento, contidas no art° 1376° n°1 e n°3 do C. Civil.

XVI - Não tendo assim decidido violou o douto acórdão recorrido o disposto nos art°s 286°, 294°, 1287°, 1376° e 1379° do Código Civil, devendo ter interpretado os mesmos com o sentido que decorre das conclusões que antecedem.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue inteiramente procedente a presente acção”


      Os Recorridos não contra-alegaram.


3. Tendo o acórdão da Relação confirmado a decisão da 1ª instância com fundamentação essencialmente diferente, fica descaracterizado o obstáculo da dupla conforme (cfr. art. 671º, nº 3, do Código de Processo Civil), sendo o recurso admissível.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1 - No dia 11 de maio de 2015, por escritura pública celebrada, o cartório notarial da lic. CC, em …, os Réus AA e BB justificaram a posse de uma parcela de terreno, com a área de 8.471 m2, sita em …, freguesia de …, concelho de Palmela, composta de terras de semeadura, confrontando a norte com DD, sul e poente com a Refer e o Município de … e nascente com herdeiros de EE;

2 - Tal parcela foi, assim e naquela data, desanexada do prédio rústico, composto de terras de semeadura e vinha, inscrito na matriz sob o artigo 19 da secção S das freguesias do …;

3 - A totalidade do prédio pertencia aos pais do Réu AA, EE e FF, que, no decurso do ano de 1960, dividiram, verbalmente, a área do prédio inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção S, e doaram aos Réus AA e BB a parcela de terreno acima identificada;

4 - Essa doação, meramente verbal, não chegou a ser formalizada em vida dos pais do justificante marido;

5 - Desde cerca de 1960 que os Réus AA e BB têm possuído aquela parcela em nome próprio, sem interrupção ou oposição de ninguém, respeitando as suas estremas, com total exclusividade e independência;

6 - Na parcela têm vindo, desde aquela altura e até ao presente, praticando todos os atos de posse, inerentes aos de propriedade, na convicção de exercerem um direito próprio, realizando culturas, sementeira, trabalhos agrícolas e colhendo os respetivos frutos, à vista de toda a gente;

7 - Têm limpado a parcela de matos e lixos, lavraram, cultivaram e plantaram o mais diverso tipo de culturas, fazendo à vista de toda a gente e de forma continuada.


5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo. Assim, no presente recurso estão em causa as seguintes questões:

- Saber se o momento relevante em que opera o acto de fraccionamento dos prédios rústicos é o da outorga da escritura pública de justificação e não o da divisão material dos prédios;

- Saber se as normas limitativas do fraccionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura prevalecem sobre a aquisição por usucapião.


Assinale-se que se afigura que, mais rigorosamente, esta segunda questão consiste em saber se, decorrido o prazo de caducidade para arguição da anulabilidade do acto de fraccionamento de prédios rústicos em violação das regras legais aplicáveis, tal violação deixa de ser relevante para efeitos de impedir a aquisição por usucapião.


6. Antes de mais, há que ter presente que o regime legal dos limites ao fraccionamento de prédios rústicos tem variado ao longo das últimas décadas (acompanhamos em seguida a síntese do recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 8 de Novembro de 2018, proc. nº 6000/16.1T8STB.E1.S1, ainda não publicado, votado pela relatora do presente acórdão como 2ª adjunta).

Dispunha o art. 107º do Decreto nº 16.731, de 13 de Abril de 1929, que era “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare”.

Este regime foi genericamente mantido pela Lei nº 2.116, de 18 de Abril de 1962, cuja Base I, nº 1, previa que “os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada pelo Governo para cada zona do País”. O nº 2 determinava a “nulidade” dos actos de divisão contrários ao disposto no nº 1.

Na vigência deste diploma mantiveram-se as áreas mínimas previstas no art. 107º do Decreto nº 16.731 para aferir da validade dos actos de fraccionamento de prédios rústicos (cfr. Base XXXIII, nº 2, da Lei nº 2.116).

Tal regime sofreu uma modificação parcial com o Código Civil de 1966, cujo art. 1379º, nº 1, passou a estabelecer que “são anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º ”. Sendo que, no art. 1376º, se consagrou a regra segundo a qual “os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País ”).

O Decreto-Lei nº 384/88, de 25 de Outubro, revogou a Lei nº 2.116, de 18 de Abril de 1962, e procurou “aperfeiçoar e ampliar os mecanismos reguladores do fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas”, estabelecendo no art. 19º, nº 1, que “ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos arts. 1376º e 1379º do CC, as disposições da presente lei”. No art. 20º, nº 1, previa-se que “a divisão em substância de prédio rústico ou conjunto de prédios rústicos que formem uma exploração agrícola e economicamente viável só poderá realizar-se” se da “divisão resultarem explorações com viabilidade técnico-económica” (al. c)) e se “do fraccionamento não resultar grave prejuízo para a estabilidade ecológica” (al. d)).

Complementarmente, o Decreto-Lei nº 103/90, de 22 de Março, veio estatuir no art. 47º que:

1 – São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal que contrariem o disposto no art. 20º do DL nº 384/88, de 25-10.

2 – Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público, a DGHEA ou qualquer particular que goze de direito de preferência no âmbito da legislação sobre o emparcelamento ou fraccionamento.

3 – O direito de acção de anulação caduca decorridos três anos sobre a celebração dos actos referidos no nº 1.

4 – A DGHEA tem igualmente legitimidade para a acção de anulação a que se refere o art. 1379º do CC”.


Na nova redacção do art. 1379º do CC, introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto, prevê-se que “são nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º” .


Quanto à área da unidade de cultura, relevante para efeitos daqueles preceitos, também se verificou uma evolução legislativa.

O mencionado art. 107º do Decreto nº 16.731, de 13 de Abril de 1929 (nos termos do qual era “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare”), continuou a vigorar até à data da entrada em vigor da Portaria nº 202/70, de 21 de Abril.

Com tal Portaria nº 202/70 foi fixada, para a zona dos prédios em causa nos presentes autos, a área de 7,5 hectares como área mínima para a unidade de cultura de terras de sequeiro.

Temos assim que:

a) Até à entrada em vigor da Portaria nº 202/70, eram anuláveis os actos de fraccionamento de prédios rústicos de área inferior a 1 hectare (10.000 m2) ou de que proviessem novos prédios de menos de ½ hectare (5.000 m2);

b) A partir da entrada em vigor da Portaria nº 202/70, até à entrada em vigor da Portaria nº 219/16, de 9 de Agosto, passou a valer para a zona em causa nos autos a área de 7,5 hectares (75.000 m2) para terrenos de sequeiro;

c) A partir da entrada em vigor da Portaria nº 219/16, para a mesma zona foi fixada a área mínima de 48 hectares (48.000 m2) para terrenos de sequeiro.


7. Para a resolução das questões objecto do presente recurso, importa ter em conta a seguinte cronologia dos factos provados relevantes:

- A desanexação material do prédio dos autos ocorreu “no decurso do ano de 1960”;

- A parcela de terreno em causa tem a área de 8.471 m2;

- A escritura de justificação notarial foi outorgada em 11 de Maio de 2015;

- A presente acção de impugnação da justificação notarial foi interposta em 11 de Abril de 2017, invocando-se a anulabilidade do “negócio jurídico” que operou o fraccionamento do prédio inicial, com fundamento no facto de a área do prédio destacado ser inferior à unidade de cultura (art. 1376º, nº 1, do CC), tal como definida pela Portaria nº 202/70, de 21 de Abril.


     A 1ª instância entendeu que “a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04, prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº 1 do art. 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08).”

      Por sua vez, o acórdão recorrido considerou que “a desanexação não ocorreu na data da escritura de justificação, como se menciona, no ponto nº 2 dos factos provados, menção esta que se considera não escrita, por constituir uma questão de direito, sem lugar no rol dos factos assentes” e que a separação material do terreno ocorreu sim “no decurso do ano de 1960”, sendo, por isso, aplicável o regime anterior à Portaria nº 202/70, de 21 de Abril, de acordo com o qual a área de cultura mínima era de meio hectare (5.000 m2). Em consequência, concluiu não existir no caso violação das regras legais relativas ao fraccionamento dos prédios rústicos, considerando prejudicada a questão “de saber se a usucapião prevalece ou não sobre as normas que proíbem o fraccionamento dos prédios rústicos”.


8. Relativamente à questão de saber qual o momento relevante em que opera o acto de fraccionamento dos prédios rústicos, alega o Recorrente que tal momento é o da outorga da escritura pública de justificação (no caso, 11 de Maio de 2015) e não o da divisão material dos prédios. Na p. i. invocara a anulação do “negócio jurídico” que operou o fraccionamento do prédio inicial; e agora, em sede de recurso, alega que a escritura de justificação “constitui o momento relevante para efeitos da impugnação da usucapião e do fracionamento que da mesma resulta, atenta a redacção da norma constante do art° 1379° n° 3 do CC - porque só então é possível ter acesso a um documento escrito onde fica demonstrada a violação das regras impeditivas do fracionamento e só nesse momento o Estado, a quem incumbe velar pelo cumprimento do disposto no art° 1376° do CC, toma conhecimento do acto violador das regras de fracionamento.”

     A questão foi objecto de apreciação pelo supra indicado acórdão deste Supremo Tribunal, proferido nesta mesma Secção, em 8 de Novembro de 2018, nos termos que aqui se reproduzem:


“O Ministério Público pugna por que se considere que a data do fracionamento corresponde à data em que foram outorgadas as escrituras de justificação notarial. Alega que só com a justificação notarial se tornou pública a invocação da usucapião sustentada na posse e só nesse momento o fracionamento se materializou num documento, através do qual se pôde verificar a infração das regras a que o mesmo obedeceu, para efeitos de invocação da anulabilidade referida na anterior redação do art. 1379º, nº 1, do CC.

Não cremos que tal argumento proceda, na medida em que a justificação notarial constitui um mero instrumento jurídico através do qual, por via da invocação de razões de ciência, se obtém um título justificativo da aquisição do direito real por usucapião.

Não é o referido ato que traduz o fracionamento do prédio, o qual deve corresponder ao ato de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião.

Posto que a usucapião, como forma de aquisição originária de direitos reais, careça de ser invocada (art. 303º, ex vi art. 1284º do CC), quando tal ocorra e quando se reconheça a verificação dos correspondentes requisitos legais (posse prolongada no tempo por período suficiente), essa aquisição retrotrai-se à data do início da posse (art. 1288º do CC).”


Aplicando esta orientação ao caso dos autos, entende-se que o acto de fraccionamento da parcela de terreno dos autos teve lugar aquando da desanexação material do mesmo, ocorrida “no decurso do ano de 1960”, ano em que vigorava o regime do art. 107º do Decreto nº 16.731, de 13 de Abril de 1929, que proibia a divisão de prédios rústicos de que proviessem novos prédios de menos de meio hectare (5.000 m2).

Ora, tendo a parcela de terreno em causa a área de 8.471 m2, conclui-se que o acto de fraccionamento em causa não desrespeitou as regras legais aplicáveis.


9. Fica assim prejudicado o conhecimento da questão objecto do presente recurso de saber se as normas limitativas do fraccionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura prevalecem ou não sobre a aquisição por usucapião; questão que, em termos mais rigorosos do que os formulados pelo Recorrente, consistiria em saber se, decorrido o prazo de caducidade para arguição da anulabilidade do acto de fraccionamento de prédios rústicos em violação das regras legais aplicáveis, tal violação deixaria de ser relevante para efeitos de impedir a aquisição por usucapião. Em qualquer das formulações, a questão fica prejudicada pela solução dada à primeira questão recursória.


10. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.


Lisboa, 15 de Novembro de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)


Maria Rosa Tching


Rosa Maria Ribeiro Coelho