Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1569/09.0TBFAF.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: INVENTÁRIO
ADJUDICAÇÃO
DIVISÃO DE COISA COMUM
VENDA A DESCENDENTES
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 11.º, 874.ºE SS., 877.º, 939.º, 1412.º.
Sumário :
Se num processo de inventário são adjudicados bens imóveis em comum ao conjugue sobrevivo e a alguns filhos e a outro apenas uma quantia em dinheiro a título de tornas, não é proibida como venda de pais e filhos a divisão posterior feita por aquele conjugue sobrevivo e filhos da qual resultou que aquele ficou com o usufruto dos imóveis e estes com a raiz dos mesmos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2009.08.24, AA instaurou a presente ação com processo ordinário contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II,JJ e KK.

 Pediu

 que fosse declarada a nulidade do contrato de divisão de coisa comum celebrado pelos réus sem o consentimento do autor, ou, em alternativa, declarar-se o mesmo nulo por simulação absoluta, declarando-se, se for o caso, o cancelamento dos registos nele baseados.

Alegou, em resumo, que

- correu os seus termos um processo de inventário por óbito do pai do autor, marido e pai/sogro dos réus, no âmbito do qual o autor recebeu as suas tornas em dinheiro, ficando os demais interessados com os prédios urbanos que compunham o quinhão hereditário, cada um na proporção do seu quinhão;

- posteriormente, em 16 de Setembro de 2008, os réus realizaram escritura pública de divisão de coisa comum dos mencionados prédios, ficando a primeira ré com o usufruto e os outros outorgantes com a raiz dos prédios;

- mais identificaram as tornas que teriam de ser pagas, tendo declarado a reposição e respectivo recebimento.;

- para além do autor não ter prestado o seu consentimento no aludido contrato, este é simulado, tendo sido realizado com o intuito de prejudicar o autor, pois nem a mãe dele (primeira ré) nem os demais réus quiseram realizar e entre si convencionar qualquer divisão, o mesmo sucedendo quanto a tornas, que não foram efetivamente convencionadas, pagas e recebidas;

- ao realizar o negócio em causa, os réus quiseram antecipar a partilha dos bens da primeira ré em prejuízo dos futuros direitos sucessórios do autor.

Citados, os réus apresentaram contestação, na qual aceitaram a matéria concernente à partilha em inventário e à realização da escritura pública de divisão, impugnando o demais por falsidade; entre os réus foi efetivamente querida e celebrada uma divisão de coisa comum, que não é um contrato de compra e venda nem a ele se equipara, pelo que não necessitava do consentimento do autor.

Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Em 2001.11.11, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.

O autor apelou, com êxito, pois a Relação de Guimarães, por acórdão de  2012.06.12, julgou a ação procedente  e anulou a divisão de coisa comum.

Inconformados, os réus deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

O recorrido não contra alegou.

 Cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

a única questão proposta para resolução consiste em saber se a proibição de venda de pais a filhos se aplica à divisão de coisa comum.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

 1. Autor e réus foram os únicos interessados na partilha por óbito do pai do autor, efetuada no processo de inventário que, sob o nº 2370/05.5TBFAF, correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal de Fafe.

2. A autor é filho da ré BB e irmão e cunhado dos demais réus e, por isso, a ré BB é mão do autor e desses réus, que entre si são irmãos, bem como sogra dos respectivos cônjuges.

3. Nesse processo de inventário o autor recebeu apenas tornas dos demais interessados, no total de €16.670,88, e assim ficou pago. 4. Os réus receberam, em pagamento dos seus quinhões, os prédios urbanos que compunham o património hereditário.

5. Em consequência das adjudicações, foram atribuídos à primeira ré, BB, 451/576 avos, e aos demais réus 25/576 avos dos seguintes prédios, sitos na Rua da............., freguesia de S. Romão de Arões desta comarca:

- casa de habitação com logradouro, descrita na C. R. Predial de Fafe sob o nº0000000000000, inscrita na matriz urbana sob o art. 919, com o valor patrimonial e o atribuído de €124.840;

- casa de habitação com logradouro, descrita na Conservatória do Registo Predial de Fafe sob o nº 0000000000, inscrita na matriz urbana sob o art. 683, com o valor patrimonial e atribuído de €108.150;

- casa de habitação com logradouro, descrita na Conservatória de Registo Predial desta comarca sob o nº 000000000000, inscrita na matriz urbana sob o art. 1846, com o valor patrimonial e atribuído de €33.670.

6. Os réus vêm ocupando, usando, fruindo, conservando e pagando as contribuições e impostos que respeitam aos prédios referidos em 5), por si e ante possuidores, há mais de 20,30 e 50 anos, posse essa adquirida sem violência, na convicção de não serem lesados direitos de outrem, e sempre exercida à vista de toda a gente, incluindo dos mais diretamente interessados, tais como os vizinhos, sem oposição de ninguém, sem interrupção e com ânimo de quem usa e frui coisas próprias e no próprio nome dos exercitantes.

7. Em 16 de Setembro de 2008, os réus, por escritura pública, declararam que, sendo donos e possuidores dos referidos prédios, pretendiam, por acordo e por essa escritura, com consentimento dos respectivos cônjuges, proceder à divisão de coisa comum desses mesmos prédios, por forma a que os mesmos fossem adjudicados:

a)- em usufruto, todos eles à ré BB;

b)- em raiz, o prédio da verba nº 1 supra referida aos réus HH e JJ, em comum.

c)- em raiz, o prédio da verba nº 2 supra referida aos réus EE e JJ, em comum;

d)- em raiz, o prédio da verba nº 3 supra referida ao réu CC.

8. Mais declararam os réus, para efeitos de pagamentos que declararam ter efetuado, que o valor global desses três prédios era de €266.660, do qual à ré BB pertenciam €208.791,08, e €11.573,78 a cada um dos demais réus, dizendo terem sido repostas as tornas devidas.

9. Por todos os réus foi declarado que à ré BB era adjudicado o usufruto desses imóveis no valor de €53.332.

10. Aos réus HH e JJ caberiam, conforme as declarações efetuadas, bens no valor de €99.872.

11. Aos réus EE e GG, teriam cabido bens no valor de €86.520.

12. Ao réu CC, adjudicatário da raiz da verba nº 3, à qual atribuíam o valor de 26.936, porque tal valor excedia o do seu quinhão em €15.362,22, declarou o mesmo que de tornas repôs essa diferença.

13. O autor não prestou o seu consentimento ao contrato referido em 7), nem tal consentimento lhe foi pedido.

14. Os réus não pagaram tornas entre si conforme convencionado na escritura.

Os factos, o direito e o recurso

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que a proibição de venda de pais a filhos estabelecida no artigo 877º do Código Civil “não inclui a divisão de coisa comum, pois esta não se configura como um contrato oneroso de alienação de bens”.

No acórdão recorrido entendeu-se que “numa divisão de coisa comum se pode vir a concretizar a venda de uma parte de uma ou de várias coisas” pelo que a essa venda “serão aplicáveis as regras do contrato de compra e venda, quando compatíveis com a natureza do negócio” e assim, a proibição contida no referido artigo 877º “abrange a transmissão onerosa de mãe a filhos da parte daqueles bens de que com estes é comproprietária, em escritura de divisão de coisa comum, sem o consentimento de um outro filho”, como aconteceu no caso concreto em apreço.

Os recorrentes entendem que “o contrato de divisão de coisa comum, ao contrário do que sucede no contrato de compra e venda, não configura um contrato oneroso de alienação de bens, pois que aqui todos os intervenientes já são titulares de uma quota-parte do direito de propriedade, apenas transmutando a situação para a de uma titularidade única (ou mais reduzida) e exclusiva, com as correspondentes contrapartidas”.

Cremos que tem razão.

Face ao disposto no nº1 do artigo 877º do Código Civil “os pais (…) não podem vender a filhos (…) se os outros filhos não consentirem na venda (…)”.

Trata-se de uma restrição do poder de disposição inerente ao direito de propriedade que se justifica como modo de evitar que, sob a capa da compra e venda, se efetuassem doações simuladas a favor de algum ou alguns dos descendentes, com o fim de evitar a sua imputação nas respetivas quotas legitimárias, assim se se prejudicando os restantes.

Em processo de inventário ocorrido por morte do marido da ré  BB e pai e sogro dos restantes réus, foram adjudicados a todos e em comum três prédios.

Por escritura pública, procedeu-se à divisão da compropriedade que incidia sobre os prédios, sendo adjudicados o usufruto à viúva e a raiz aos filhos.

Podemos daqui concluir que houve uma transmissão da propriedade dos prédios da viúva para os filhos?

Cremos bem que não.

Na verdade, o que ocorreu foi uma divisão dos bens adjudicados em comum aos réus, divisão esta a que tinham direito, face ao disposto no artigo 1412º do Código Civil, ainda que por força de tal divisão os interessados recebam tornas.

Com efeito, o contrato de compra e venda é caracterizado pela transmissão da propriedade da coisa  ou direito do vendedor para o comprador mediante determinada quantia , a qual constitui o preço – cfr. artigos 874º e seguintes do Código Civil.

Ora é evidente que na divisão de coisa comum não existe comprador nem vendedor, nem existe preço.

Os comproprietários acordam  em que os bens ou direitos constituídos em compropriedade sejamos divididos de determinada forma, acordando também que as diferenças de valor dos bens atribuídos pela divisão sejam corrigidas através de importâncias em dinheiro.

Não existe qualquer intenção dos proprietários de  transmitir os bens, a não ser que haja simulação, de que adiante falaremos.

Assim, não se verifica qualquer transmissão de bens ou direitos entre os comproprietários, nem a determinação do preço em referência a tal transmissão, o que afasta decisivamente qualquer possibilidade da divisão ser considerada como uma compra e venda.

E também a aplicação do disposto no artigo 939º do Código Civil, uma vez que não há aqui, como se disse, qualquer alienação de bens.

Concluímos, pois, que a divisão de coisa comum feita pelos réus não poder ser considerada como uma venda e, portanto, sujeita ao regime do artigo 877º, acima transcrito.

É claro que mesmo não constituindo uma divisão de coisa comum em si um negócio de transmissão de bens, sempre poderia haver a hipótese de  se demonstrar que, através do negócio formalizado, pretenderem as partes, em desvio da vontade que realmente declararam, transmitir os bens a alguns dos filhos, com exclusão dos outros, prejudicando-os.

No caso concreto apreço, o autor alegou isso mesmo, ou seja, que a divisão foi feita simuladamente, como propósito de o prejudicar.

Mas vertidos os respectivos factos para a base instrutória, os mesmos foram todos dados como não provados – cfr. respostas aos pontos 2º  a 6º da base instrutória.

Assim, nem por este meio é de considerar ter havido um negócio dissimulado de transmissão de bens.

Como se disse, a norma do artigo 877º do Código Civil comporta uma limitação ao poder de disposição inerente ao direito de propriedade.

Trata-se, pois, de uma norma excecional.

Sendo assim, não pode ser aplicada por analogia - artigo 11º do memso diploma – ou seja, a contratos que não sejam de compra e venda.

Concluímos, pois, ser de censurar  o acórdão recorrido.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em conceder a revista, revogando-se  o acórdão recorrido e, julgando a ação improcedente, absolver os réus dos pedidos.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 11  de Dezembro  de  2012

Oliveira Vasconcelos (Relator)

Serra Baptista

Álvaro Rodrigues