Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2014/19.8T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO DE AGÊNCIA
PACTO DE NÃO CONCORRÊNCIA
COMPENSAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA PROIBIDA
NULIDADE
DANO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A omissão do pagamento de uma compensação no pacto de não-concorrência pós-contratual inserido num contrato de agência não tem reflexos na validade desse pacto, não deixando a compensação de ser devida por imposição legal, podendo o agente exigir o seu pagamento ao principal.

II. A circunstância da lei impor o pagamento de uma compensação para a limitação que resulte do pacto de não concorrência pós-contratual não impede a possibilidade de se prever uma cláusula penal que fixe uma indemnização para a hipótese do agente violar a obrigação de não concorrência, mesmo que não tenha sido convencionado o pagamento de qualquer compensação devida ao agente.

III. Num contrato de agência, sujeito ao regime das cláusulas gerais, são proibidas as cláusulas penais desproporcionais aos danos a ressarcir, não deixando esta proibição de abranger as cláusulas que visam a prévia fixação de montantes indemnizatórios.

IV. A consequência do desrespeito dessa proibição não é a mera redução do valor excessivo da cláusula penal para um valor razoável, mas sim a nulidade da própria cláusula, conforme determina o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, procurando-se com esta sanção drástica desincentivar os predisponentes a incorrerem em tais abusos.

V. A sanção escolhida para este tipo de cláusulas denuncia um vício genético do contrato, pelo que o juízo de valor sobre a proporcionalidade de uma cláusula penal deve ser reportado ao momento da celebração do contrato, comparando-se o valor indemnizatório estabelecido com o valor dos danos que normal e tipicamente resultam da insatisfação do direito do credor, dentro do quadro negocial padronizado em que o contrato se insere e não com o valor dos danos efetivamente ocorridos.

VI. Apesar de se abstrair das vicissitudes específicas do negócio realizado, esta avaliação, na definição do quadro negocial padronizado, não poderá deixar de ter em consideração todos os elementos que normativamente caraterizam o regulamento contratual predisposto, designadamente algumas particularidades do contrato em causa, as quais não poderão deixar de ser consideradas como auxiliares hermenêuticos no cálculo dos potenciais prejuízos.

Decisão Texto Integral:
Autora: Decisões e Soluções – Mediação Imobiliária, Limitada

Ré: AA

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I – Relatório

A Autora propôs ação declarativa, com processo comum, contra a Ré, alegando, em síntese, ter celebrado com esta em 18.10.2018 um contrato de subagência, com pacto de exclusividade e não concorrência, no qual acordaram na fixação de uma cláusula penal de 50.000,00€, pela sua violação, tendo a Ré em 18.03.2019 cessado, unilateralmente, o contrato e passado a prestar os mesmos serviços para outra rede imobiliária, violando a obrigação de não concorrência expressamente acordada.

Concluiu, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe € 50.000,00, acrescidos de juros de mora legais desde a citação.

A Ré contestou, alegando, em síntese, o seguinte:

- A Ré não teve qualquer intervenção na redação do contrato, tendo o mesmo lhe sido apresentado já redigido, pelo que se limitou a assiná-lo, sem que tenha sido informada do seu teor.

- Apesar de ter começado a trabalhar para outra agência imobiliária, após a cessação do contrato com a Autora, nunca tirou partido de qualquer know how adquirido quando trabalhava com a Autora, até porque não teve qualquer formação.

- A cláusula de não concorrência é nula, por violação do regime das cláusulas contratuais gerais e por não ter sido acordada qualquer compensação.

Concluiu pela improcedência da ação.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação improcedente, tendo absolvido a Ré do pedido formulado.

A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em Conferência, confirmando anterior decisão sumária do Desembargador Relator, revogou a decisão da 1.ª instância, tendo julgado a ação procedente e condenado a Ré no peticionado.

A Ré recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

A) O acórdão do Venerando Tribunal da Relação ... que confirmou o teor da decisão singular impugnada e que, consequentemente, decidiu revogar a douta sentença de 12-02-2020 do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Cível ... – Juiz ... que julgou improcedente a ação instaurada contra a aqui recorrida, substituindo-a por decisão que determina a validade da cláusula de não concorrência estipulada em contrato de agência, sem contrapartida de compensação a favor da agente/subagente e, consequentemente, condenando a mesma no pagamento à apelante de uma indemnização de 50.000,00€ (cinquenta mil euros), a título de cláusula penal, pela violação da obrigação de não concorrência, acrescida de juros de mora desde a sua citação, padece de grave erro de interpretação jurídica, não só a decorrente do regime jurídico do contrato de agência, como também do sistema jurídico, como um todo unitário e indivisível.

B) Salvo melhor opinião, o acórdão em causa viola a lei substantiva, na medida em que se traduz em flagrante erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis decorrentes do “Regime Jurídico do Contrato de Agência”, instituído pelo Decreto Lei nº 178/86 de 3 de Julho.

C) O erro de interpretação de tal regime consiste na não interpretação, de forma unitária e conciliadora, do disposto no artigo 9º e alínea g) do artigo 13º do Decreto-Lei nº 178/86, de 3 de Julho.

D) Acresce que a condenação no pagamento de uma indemnização, a título de cláusula penal, pela violação do pacto de não concorrência, deverá levar em linha de conta a verificação “in casu” das razões materiais subjacentes à mesma, sujeitas a um juízo valorativo de acordo com o sistema jurídico global, sujeito aos princípios jurídicos constitucionais de necessidade, adequação e proporcionalidade.

E) A falta de estipulação de uma compensação, pela obrigação de não concorrência após a cessação do contrato, desvirtua a natureza “onerosa e sinalagmática” do pacto de não concorrência, o que, salvo melhor opinião, deverá conduzir à nulidade do mesmo e, consequentemente, da cláusula penal a ele associado.

F) Acresce que independentemente da natureza do contrato, a génese ou razão de ser da fixação de cláusula penal para o caso de violação do pacto de exclusividade e/ou não concorrência, reside no ressarcimento do investimento formativo levado a cabo pela autora, com transmissão de “know-how” especializado, o que, no caso “sub judice” não resultou provado.

G) Atendendo aos princípios da boa fé negocial; necessidade; proporcionalidade e adequação, não se verificando “in casu” a motivação factual que legitima a razão ser do pacto de não concorrência, não poderá o mesmo ser invocado nem muito menos atendido, sob pena de se estar a cair no instituto jurídico do “abuso de direito”, mormente por não ter sido estipulado a favor da “parte contratualmente mais fraca” a devida compensação;

H) Que sentido tem afirmar que se está na presença de um contrato oneroso e sinalagmático, natureza jurídica que é pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência, se houve uma falta total de estipulação de compensação a favor do subagente, ora recorrido, à revelia do previsto na alínea g) do artigo 13º do Regime Jurídico do Contrato de Agência?

I) Configura ou não, tal omissão, um flagrante desequilíbrio na relação contratual, ofensivo aos básicos princípios de boa-fé, necessidade, adequação e proporcionalidade, que conduz à indeterminabilidade do objeto imediato do negócio jurídico e à consequente nulidade prevista no art. 280º nº 1 do Código Civil?

J) Ainda que não se entendesse dessa forma, a nulidade de tal cláusula impor-se-ia com fundamento na interpretação da lei conforme a Constituição da República Portuguesa, decisão que foi seguida pelo Tribunal da Relação do Porto e pelo Supremo Tribunal de Justiça (conforme, de resto, encontra-se referido na douta sentença proferida em 1ª instância) no âmbito do processo nº 2521/16.4T8STS.P1 no qual foi relatora a Meritíssima Juiz Desembargadora, Dra. Anabela Tenreiro, e que, pela sua importância, abaixo se reproduz:

“I – O subagente é o agente do agente, por ser contratado pelo agente, no âmbito da autonomia (elemento definidor do contrato de agência) que este dispõe nomeadamente no que se refere à organização da sua actividade.

II – A liberdade de trabalho, enquanto um direito fundamental do cidadão, implica que a sua compressão esteja sujeita a condicionantes legais, justificativas dessa limitação da liberdade de trabalhar.

III – O pacto de não concorrência, caracterizado como um acordo oneroso e sinalagmático, na medida em que restringe a liberdade de trabalhar, após a cessação do contrato, deve, como condição de validade, conter a fixação ex ante de uma compensação económica do agente, sob pena de nulidade.

IV – Não tendo sido estipulado no contrato de agência, celebrado entre as autoras e a ré, qualquer contrapartida pecuniária pela obrigação de não concorrência, não assiste ao principal o direito, em caso de violação do pacto de não concorrência, de exigir do agente a indemnização previamente fixada no contrato, para hipótese de incumprimento dessa cláusula”.

K) Uma decisão judicial que se limite a confirmar a validade jurídica e constitucional de tal pacto de não concorrência, por entender que não há limitação excessiva ou incomportável à liberdade de trabalho, após a cessação contratual, durante o período de doze meses, num âmbito territorial tão amplo como é o território nacional, e sem qualquer compensação pela obrigação de não concorrência (à revelia do disposto na alínea g) do artigo 13º do Regime Jurídico do Contrato de Agência) não faz, em nossa opinião, a correta interpretação de tal regime jurídico, enquanto regime unitário e integrado no sistema jurídico geral em vigor, no qual a liberdade contratual não poderá por em causa a observância de princípios básicos e basilares do nosso ordenamento jurídico, tais como os princípios da boa fé contratual, proporcionalidade, necessidade e adequação, princípios esses constitucionalmente consagrados;

L) Uma decisão que não leve em conta tal factualidade conduzir-nos-á a situações manifestamente injustas, como é o caso “sub judice” que, em termos práticos, impede a recorrida de exercer funções, em todo o território nacional, durante dois anos, e independentemente do vínculo (inclusive contrato individual de trabalho) nas seguintes áreas profissionais:

a) Instituições de crédito e consultadoria financeira; b) Seguradoras e medição de seguros;

c) Mediação imobiliária;

d) Construção e mediação de obras; e) Venda e mediação de veículos.

M) No caso “sub judice” a recorrida, na qualidade de subagente, desenvolvendo a sua actividade profissional essencialmente nos ..., mais especificamente na ... (local onde a oferta de emprego é escassa e que tem os maiores índices de desemprego a nível nacional), após a cessação dos contratos celebrados com o principal, durante 12 meses e em todo o território nacional, vê hipotecada, de uma forma excessiva e desproporcional, o seu futuro profissional, não podendo aceitar qualquer oferta de emprego/projeto nas áreas acima identificadas;

N) A recorrente, nas suas doutas alegações para o Venerando Tribunal da Relação ..., entende que a violação das normas constitucionais de liberdade de trabalho são conciliáveis com a existência de cláusulas de exclusividade e não concorrência, sem contrapartidas financeiras, porquanto não se revela em si uma violação intolerável dos valores constitucionais, na medida em que o agente/sub-agente não fica totalmente impedido do exercício de qualquer actividade remunerada.

O) Salvo o devido respeito, não se estará na presença de um caso onde existe, de facto, uma limitação abusiva e intolerável de valores constitucionalmente garantidos, que deva determinar, por razões de justiça e equidade, a nulidade de tal cláusula na medida em que não foi estipulada a compensação prevista e devida na alínea g), do artigo 13º do Decreto-Lei nº 178/86, de 3 de Julho?

P) A falta de estipulação contratual da compensação em causa não desvirtuará a natureza onerosa e sinalagmática de tais cláusulas, natureza essa unanimemente aceite pela doutrina e pela jurisprudência para tais pactos de não concorrência?

Q) Não obstante o legislador ordinário não ter previsto especificamente no artigo 9º do Regime de Contrato de Agência, a nulidade dos pactos de não concorrência quando estes não prevejam “ex ante” uma compensação ao agente, é esta a solução que se impõe em concreto quando se constata – como é o caso – que não só não se verificam os requisitos materiais para a sua existência; que os mesmos comportam uma flagrante violação do disposto na alínea g) do artigo 13º do referido regime jurídico (na redação dada pelo Decreto-Lei nº 118/93, de 13 de Abril; que violam o princípio geral da boa fé negocial, que deverá nortear todas as relações contratuais, com vista à obtenção de um equilíbrio contratual, justo e equitativo, e que, para além do mais, põem irremediavelmente em causa os princípios jurídicos constitucionais de necessidade, adequação e proporcionalidade.

R) No caso “sub judice”, e salvo melhor entendimento, somos do parecer que o Tribunal da Relação ... não fez a correta interpretação da disciplina jurídica imposta pelo Decreto-Lei nº 118/93, de 13 de Abril, nomeadamente na falta de conciliação entre o disposto no artigo 9º e o disposto na alínea g) do artigo 13º do mesmo diploma, que deveria conduzir à declaração de nulidade de tais cláusulas como, aliás, foi assim interpretado e decidido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo nº 2521/16.4T8STS.P1, no qual foi relatora a Meritíssima Juiz Desembargadora, Dra. Anabela Tenreiro, acórdão este que foi confirmado por esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça em sede de recurso de revista;

S) Salvo melhor opinião, deverá o douto acórdão do Tribunal da Relação ... ser revogado, na parte em que decidiu sobre a validade do pacto de não concorrência, não só por manifesto erro de interpretação das normas legais do Regime Jurídico do Contrato de Agência (artigo 9º e alínea g) do artigo 13º do Decreto Lei nº 178/86, de 3 de Julho), como também, no caso “sub judice”, pela clara violação dos princípios jurídicos da boa fé contratual; necessidade; adequação e proporcionalidade, princípios esses constitucionalmente consagrados, confirmando-se, no demais, a douta sentença proferida em 1ª instância pelo Tribunal Judicial ..., juízo Cível ....

T) Salvo melhor entendimento, deverá a matéria “sub judice” ser decidida por V.Exas., Venerandos Juízes Conselheiros, de igual forma como foi recentemente decidido por esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do recurso de revista (proc. 13603/16.2T8SNT.L1.S2), 1ª Secção, em acórdão datado de 05/05/2020, no qual foi sumariado o seguinte:

“I - A obrigação de não concorrência depois de cessado o contrato terá que ser vertida em documento escrito e o agente tem direito, designadamente, a uma compensação pela observância dessa obrigação de não concorrência após a cessação do contrato. A falta desta compensação poderá interpretar-se em pelo menos certa desconsideração da própria importância do cumprimento. E assim, também, em princípio (salvo se lesão enormíssima decorresse para a contraparte a par de vantagem descomunal para a que não cumprisse), não poderá prevalecer-se do incumprimento da obrigação de não concorrência a parte afetada pelo mesmo se não curou de prover a necessária compensação.

II – No caso vertente, não subsistem dúvidas de que a ponderação de valores, direitos e interesses em presença aproveita legitimamente ao recorrente. Não pode ele, a troco de nada, ficar amarrado a um compromisso sem limite. Seria situação semelhante a uma pena (ou a uma corveia, no mínimo) sem fim, ou a uma nova espécie de servidão da gleba.

III – Não será pela ideia de absoluto livre mercado (com a sua desregulação, por vezes) que se crê que o recorrente tem razão na questão da Formação. É que tem de haver um equilíbrio de prestações e compromissos. É a própria ideia de sinalagma (que funda o contrato em geral) que obriga a um equilíbrio e ajustamento. Procedem os argumentos não apenas da similitude do seu contrato com o contrato de trabalho, tendo a condição da recorrente semelhanças com as do normal trabalhador. Assim, o recurso é procedente na parte indicada pela Formação, e, nessa mesma parte, revogado parcialmente o acórdão do tribunal da Relação, absolvendo-se os réus do pagamento da indemnização pela violação do pacto de não concorrência à segunda autora. No mais, mantém-se o acórdão recorrido.”.

U) Não se julgando assim, o que se admite como hipótese, deverá ser o referido acórdão alterado no que diz respeito à pretensão deduzida pela autora, determinando-se uma redução substancial da indemnização devida pela violação do pacto de não concorrência, de acordo com um juízo de equidade e nos termos do disposto no nº 1 do artigo 812º do Código Civil e, consequentemente, determinando-se que sobre o quantum fixado haja lugar a uma compensação integral de créditos, nos termos do disposto no artigo 847º do Código Civil.

A Autora respondeu, pronunciando-se pela manutenção do decidido no acórdão recorrido.

As partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a eventual nulidade da cláusula penal inserida na cláusula 17.ª (e não 18.ª como, por lapso detetado pela Autora, constou deste despacho) do contrato outorgado entre as partes ser julgada nula, por aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais, constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, nomeadamente o disposto no artigo 19.º c), desde diploma, tendo a Autora se pronunciado pela validade da cláusula em questão.

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II – O objeto do recurso

Entre os fundamentos do recurso de revista a Ré, subsidiariamente, invocou a necessidade de redução da cláusula penal.

Na resposta ao recurso, a Autora alegou que esse fundamento não poderia ser conhecido, uma vez que se trata de uma questão nova que, pela primeira vez, era suscitada no processo.

Uma vez que a questão da redução da cláusula penal foi colocada apenas a título subsidiário, a possibilidade do seu conhecimento só se colocará caso o fundamento principal do recurso não proceda.

Assim, por ora, tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo do acórdão recorrido, cumpre apenas verificar a validade da cláusula penal que consta do ponto 17.º do contrato celebrado entre as partes

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III – Os factos

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade comercial, constituída em 26/09/2011, e que se dedica à mediação imobiliária, à compra, transformação e venda de bens imóveis e à revenda dos adquiridos para esse fim, à gestão e administração de bens imóveis, à mediação de obras de construção, alteração, ampliação, demolição e reconstrução de imóveis, incluindo a sua decoração, à mediação de veículos, sejam eles automóveis, motociclos ou outros e à prestação de serviços de consultoria financeira.

2. Para tanto, a Autora é titular da respetiva licença AMI nº ..., válida e em vigor desde 17/11/2011.

3. A Autora encontra-se presente no universo informático em www.decisoesesolucoes.com.

4. A Autora é uma empresa de dimensão nacional, que conta com várias agências distribuídas por todo o país, e que continua a promover a sua abertura, com o objetivo de estar representada em todas as capitais de distrito e nas principais cidades, assim como de aumentar o número de consultores imobiliários a nível nacional.

5. Desenvolve o seu negócio no ramo da mediação imobiliária inserida na rede “DECISÕES E SOLUÇÕES”, através de agentes e subagentes que, além do mais, exercem as suas atividades a partir de agências abertas ao público, ostentando a imagem e as marcas tituladas pela Autora.

6. Por escrito particular outorgado em 18/10/2018, a Autora, a sociedade do grupo da Autora, “DECISÕES E SOLUÇÕES – CONSULTORES FINANCEIROS, LDA” e a sociedade comercial por quotas sob a firma “RASCUNHOS DE VERÃO, UNIPESSOAL LDA”, celebraram com a Ré um contrato de subagência, através do qual:

a) As primeiras nomearam e reconheceram a Ré como sua subagente, encarregando-a de promover, de modo autónomo e independente, a celebração de contratos no âmbito da atividade por si desenvolvida, e para o que aqui releva, a atividade de angariação e mediação imobiliária, mediação de obras e construção de imóveis, tudo nos termos das Cláusulas 5ª, 8ª e 9ª do contrato;

b) A Ré obrigou-se a exercer essa atividade exclusivamente ao serviço das primeiras.

7. Ali também se acordou que a Autora facultaria o acesso da R. à sua base de dados informática, obrigando-se esta a guardar confidencialidade de toda a informação disponibilizada através da mesma (cláusula décima segunda).

8. Bem como que a Ré se obrigava a seguir e cumprir as normas, metodologias e orientações estratégicas da Autora, inerentes ao relacionamento com clientes e empresas protocoladas, modelo de funcionamento, a comparecer a todas as reuniões por ela marcadas e a frequentar as formações organizados pela Autora (cláusula décima).

9. O contrato foi celebrado pelo prazo inicial de 1 ano, com a possibilidade de renovação sucessiva por iguais períodos, desde que na vigência do período anterior o mesmo tenha garantido uma faturação mínima à primeira e segunda contraentes, aqui Autora, em conjunto, de pelo menos 15.000,00€, pois caso tal não se tenha verificado, aquelas poderiam denunciar o contrato para o fim do prazo em curso, bastando, para o efeito, uma comunicação, por carta registada, com a antecedência de 8 dias (cláusula décima sexta, parágrafo primeiro).

10. Foi ainda convencionado pelas partes que a Ré teria a faculdade de denunciar o contrato através de comunicação escrita à Autora, a efetuar com antecedência não inferior a 60 dias em relação à data de produção dos respetivos efeitos, e constituindo-se a mesma na obrigação a indemnizar a Autora pelo valor correspondente a 2.500,00€ (cláusula décima sexta, parágrafos segundo e terceiro).

11. A título de cláusula penal, as outorgantes fixaram ainda, cumulativamente, a indemnização devida à Autora, no caso de inobservância do prazo de aviso prévio no montante de 2.500,00€ (cláusula décima sexta, parágrafo quarto)

12. A Autora e a Ré convencionaram expressamente uma obrigação de exclusividade e não concorrência a impender sobre esta última, nos seguintes moldes:

a) Proibição de a Ré celebrar diretamente com clientes contratos para a prestação de serviços no âmbito da atividade de consultadoria financeira, contratos de mediação de seguros, mediação imobiliária, mediação de obras ou mediação de veículos, salvo autorização expressa dada por escrito pela Autora, durante o período de vigência do contrato, bem como nos 12 meses imediatamente seguintes à sua cessação (cláusula décima sétima, parágrafo segundo, alínea a) e parágrafo terceiro);

b) Proibição de a Ré assinar, em nome próprio ou em representação da Autora, qualquer contrato, acordo ou protocolo com Instituições de Crédito ou Financeiras, Empresas de Seguros ou de Mediação de Seguros e Empresas de Mediação Imobiliária para o exercício das atividades objeto daquele mesmo contrato, independentemente de aquelas terem, ou não, protocolos ou outros tipos de acordos celebrados com a Autora, não podendo a Ré negociar com elas qualquer tipo de contrato a celebrar pelos clientes, durante o período de vigência do contrato, bem como nos doze meses imediatamente seguintes à sua cessação [cláusula décima sétima, parágrafo dois, alínea b) e parágrafo terceiro];

c) Proibição do exercício, direta ou indiretamente, enquanto sócio, titular de participações sociais noutras sociedades, trabalhador, prestador de serviços, independentemente do regime laboral ou contratual, e por qualquer meio, atividade concorrente com a da Autora durante o período de vigência do contrato, bem como nos doze meses imediatamente seguintes à sua cessação [cláusula décima sétima, parágrafo segundo, alínea c) e parágrafo terceiro].

13. As contraentes acordaram, ainda, na fixação de uma cláusula penal para o caso de violação, pela Ré, do pacto de exclusividade e/ou não concorrência, obrigando-se a Ré a pagar uma indemnização à Autora no montante de 50 000,00€, sem prejuízo do dano excedente que se viesse a provar.

14. As contraentes acordaram, ainda, na fixação de idêntica cláusula penal para os casos em que a Ré praticasse atos suscetíveis de constituir a Autora no direito de resolver o contrato de subagência celebrado com justa causa.

15. A Autora facultou à Ré o acesso à sua base de dados informática, mediante criação de um login e uma password pessoais.

16. A Autora incluiu e disponibilizou a respetiva identificação e contactos no seu site www.decisoesesolucoes.com, permitindo que a Ré utilizasse igualmente em folhetos promocionais e merchandising publicitário a sua identificação, enquanto consultora e representante da marca e rede “DECISÕES E SOLUÇÕES”.

17. Ao longo do período compreendido entre o dia 18/10/2018 e o dia 18/03/2019, a Ré dedicou-se à atividade objeto dos contratos, enquanto consultora imobiliária e financeira, mediante vínculo com a Autora e estando integrada na Agência da rede “DECISÕES E SOLUÇÕES” sita em ..., Avenida..., ...

18. Por carta datada de 18/03/2019, a Ré tomou a iniciativa de fazer cessar, unilateralmente, o contrato de subagência celebrado com a Autora.

19. Aí tendo solicitado a dispensa do período de 60 dias de aviso prévio convencionado contratualmente, referindo que teria interesse na sua desvinculação imediata.

20. Em resposta a tal manifestação de vontade, e por carta datada de 18/06/2019, a Autora considerou cessado o contrato em vigor, mas apenas a partir do dia 18/05/2019, de modo a considerar-se cumprido o período de 60 dias de aviso prévio.

21. Em tal comunicação, a Autora frisa que, não obstante tenha cessados os contratos, mantinha-se a obrigação de não concorrência que impende sobre a Ré, pelo período de 12 meses subsequentes à data dessa cessação.

22. Desde a denúncia do contrato celebrado com a Autora, a Ré vem-se dedicando à prospeção e angariação de clientes com vista à celebração de contratos de mediação Imobiliária, gestão da carteira de clientes e celebração de contratos de mediação imobiliária.

23. Em representação de outra rede de consultores imobiliários (I…), a Ré participou na Feira …, em ..., desempenhando funções profissionais no respetivo stand entre os dias 24 a 30 de maio de 2019.

24. Antes da celebração do contrato, e no âmbito do processo de recrutamento levado a cabo, a Autora e o seu Agente informaram a Ré do seu teor e respetivo alcance.

25. A Ré tomou conhecimento do mesmo e deu a sua anuência expressa a todas e cada uma das disposições clausuladas.

26. A Ré não teve qualquer intervenção na redação do contrato.

27. A Ré celebrou, a 04/04/2019, um contrato de prestação de serviços com a I…., S.A., que tem por escopo lucrativo a angariação e promoção de negócios de compra, venda e arrendamento de imóveis.

28. A partir de tal data, a Ré passou a desempenhar funções de consultora imobiliária, a título profissional e remunerado, integrada naquela rede imobiliária, e na mesma área geográfica que o vinha fazendo enquanto vinculada à Autora (.../...).

29. A denúncia do contrato teve por base alterações unilaterais realizadas pelo agente de ... na política de pagamento de comissões, o que levou a que vários colaboradores solicitassem a cessação da relação profissional.

30. No dia seguinte à apresentação da carta de denúncia, a Ré ficou sem qualquer acesso à base de dados da Autora, emails profissionais e demais instrumentos de trabalho que até então dispunha.

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IV - O direito aplicável

1. Da qualificação do contrato

As partes outorgantes denominaram como contrato de subagência o acordo outorgado em 18.10.2018, por escrito particular, pela Autora, pela sociedade do grupo da Autora, “Decisões e Soluções – Consultores Financeiros, Limitada”, e pela sociedade comercial por quotas “Rascunhos de Verão, Unipessoal Limitada”, por um lado, e a Ré, como contraparte.

Contudo, dos termos deste contrato e das partes nele intervenientes, evidencia-se que não nos encontramos apenas perante o estabelecimento de uma relação contratual, em que um agente acorda com um subagente a promoção por este da celebração dos contratos que aquele se obrigou a promover por conta dos principais em anterior contrato-base de agência.

No contrato que integra a causa de pedir nesta ação, os principais (a Autora e “Decisões e Soluções – Consultores Financeiros, Limitada”) intervieram, não só autorizando a utilização de um subagente na persecução da atividade agenciada, mas também estabelecendo relações diretas, típicas de um contrato-base de agência, com a própria “subagente”, obrigando-se esta a promover a atividade agenciada, não só para com a agente “Rascunhos de Verão, Unipessoal Limitada”, mas também perante as próprias sociedades principais, assumindo diretamente para com elas todos os deveres inerentes à sua posição contratual (já a obrigação do pagamento das remunerações devidas pela sua prestação ficou, exclusivamente, a cargo da sociedade “Rascunhos de Verão, Unipessoal Limitada”).

Estamos, pois, perante um negócio complexo, em que, além do estabelecimento de uma relação contratual subordinada (entre “Rascunhos de Verão, Unipessoal Limitada” e a Ré), típica de um subcontrato de subagência (previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho), também se estabeleceram relações diretas de agência entre as principais e a Ré.

Estando em causa na presente ação a violação de um pacto de não concorrência estabelecido neste contrato entre a Autora e a Ré, estará em jogo a aplicação das regras do regime do contrato de agência e não de um contrato de subagência, pese embora, esta distinção não assuma particular relevância prática, uma vez que o artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, determina que à subagência é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime legal do contrato de agência.

3. Do pacto de não-concorrência pós-contrato

No referido contrato em que intervieram a Autora e a Ré estabeleceu-se a proibição da Ré exercer, direta ou indiretamente, enquanto sócia, titular de participações sociais noutras sociedades, trabalhador, prestadora de serviços, independentemente do regime laboral ou contratual, e por qualquer meio, atividade concorrente com a da Autora, durante o período de vigência do contrato, bem como nos doze meses imediatamente seguintes à sua cessação (cláusula décima sétima, parágrafo segundo, alínea c) e parágrafo terceiro).

Provou-se que a Ré, por carta datada de 18.03.2019, tomou a iniciativa de fazer cessar, unilateralmente, o contrato celebrado com a Autora, tendo solicitado a dispensa do período de 60 dias de aviso prévio convencionado contratualmente, referindo que teria interesse na sua desvinculação imediata. Apesar de, em resposta a tal manifestação de vontade e por carta datada de 18.06.2019, a Autora ter considerado cessado o contrato em vigor, mas apenas a partir do dia 18.05.2019, de modo a considerar-se cumprido o período de 60 dias de aviso prévio, conforme resulta do disposto no artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, o desrespeito pelos prazos de pré-aviso da denúncia do contrato de agência, não tem como consequência nem a ineficácia da denúncia, nem o diferimento da eficácia da denúncia. A falta de cumprimento do pré-aviso tem como única consequência o pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados (n.º 1, do artigo 29.º), pelo que a comunicação da desvinculação imediata à Autora determinou o termo da relação contratual entre esta e a Ré naquele mesmo momento.

Assim, o desenvolvimento da atividade profissional concorrente com a da Autora pela Ré, após esta ter comunicado a denúncia do contrato, constitui uma violação do pacto não concorrencial pós-contrato e não uma violação do dever de exclusividade contratual.

Conforme consta da matéria de facto provada (pontos 1 a 5), a Autora é uma sociedade comercial de dimensão nacional que se dedica à mediação imobiliária, à compra, transformação e venda de bens imóveis e à revenda dos adquiridos para esse fim, à gestão e administração de bens imóveis, à mediação de obras de construção, alteração, ampliação, demolição e reconstrução de imóveis, incluindo a sua decoração, à mediação de veículos, sejam eles automóveis, motociclos ou outros e à prestação de serviços de consultoria financeira, desenvolvendo o seu negócio no ramo da mediação imobiliária inserida na rede “DECISÕES E SOLUÇÕES”, através de agentes e subagentes que, além do mais, exercem as suas atividades a partir de agências abertas ao público, ostentando a imagem e as marcas por ela tituladas.

A Ré obrigou-se a promover, de modo autónomo e independente, a celebração de contratos no âmbito da atividade desenvolvida pela Autora, e para o que aqui releva, a atividade de angariação e mediação imobiliária, mediação de obras e construção de imóveis, tudo nos termos das Cláusulas 5ª, 8ª e 9ª do contrato, constando do n.º 5 da cláusula 5.ª que a actividade da Ré abrangia todo o território nacional.

As caraterísticas tipológicas de um contrato de agência conduzem a que, na vigência do vínculo contratual, o agente fique acessoriamente obrigado ao não desenvolvimento de atividades concorrentes com aquelas que realiza por conta do principal [1]. No entanto, cessado o vínculo, no espírito de uma economia de mercado, na qual nos movemos, o agente, em princípio, recupera a sua liberdade de atuação, podendo rivalizar com o seu antigo parceiro, em nome dos valores da livre concorrência e da liberdade de empresa, apesar de se reconhecer que poderemos estar perante uma concorrência diferencial, atento o risco potencial deste especial competidor desviar clientela do ex-principal, assim como a utilização, em seu proveito, de conhecimentos e informações reservadas sobre a atividade deste último.

Daí que a própria lei (artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho) tenha previsto a possibilidade de as partes estipularem pactos de não-concorrência pós-contratuais, com limitações de forma e de conteúdo [2].

Foi um desses pactos que as partes acordaram na cláusula 17.ª do contrato sub iudice, obrigando-se a Ré, além do mais, a não exercer, direta ou indiretamente, enquanto sócia, titular de participações sociais noutras sociedades, trabalhador, prestadora de serviços, independentemente do regime laboral ou contratual, e por qualquer meio, atividade concorrente com a da Autora, durante os doze meses imediatamente seguintes à cessação do contrato.

Tendo presente que o estabelecimento deste tipo de pactos redundava numa significativa limitação à liberdade de exercício duma atividade profissional, o legislador impôs que essa limitação fosse compensada com o pagamento de uma contrapartida (artigo 13.º, g), do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho).

Não constando o pagamento dessa compensação do pacto de não-concorrência, como ocorre no contrato sob análise, essa omissão não tem, porém, reflexos na validade do pacto, não deixando de ser devida por imposição legal, podendo o agente exigir o seu pagamento ao principal [3]. Contrariamente ao que sucede no regime dos pactos de concorrência celebrados no âmbito de um contrato de trabalho, em que essa estipulação é requisito de validade do pacto (artigo 136.º, n.º 2, do Código do Trabalho), o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, não a exige, apenas prevendo a constituição do respetivo direito no seu artigo 13.º, g), pelo que a falta dessa estipulação não determina a nulidade do pacto de não concorrência, sem que isso afete a constituição do direito do agente a receber uma compensação, o qual, não existindo acordo entre as partes sobre o seu montante, terá que ser reclamada judicialmente pelo agente.

4. Da validade da cláusula penal

Mas no contrato em que intervieram a Autora e a Ré, não só não se estabeleceu a compensação a pagar pela Autora, “em troca” das limitações impostas à Ré durante o ano seguinte ao termo do contrato, como se clausulou o pagamento de uma quantia fixa (€ 50.000,00), a pagar pela Ré à Autora, a título de indemnização, no caso desta violar o pacto de não-concorrência  sem prejuízo do dano excedente que se viesse a provar (cláusula 17.ª).

A circunstância da lei impor o pagamento de uma compensação para a limitação que resulte do pacto de não concorrência pós-contratual não impede a possibilidade de se prever uma cláusula penal que fixe uma indemnização para a hipótese do agente violar a obrigação de não concorrência, mesmo que não tenha sido convencionada a compensação devida ao agente [4]. O incumprimento da obrigação, livremente assumida pelo agente, de não se dedicar a uma atividade concorrente com a do principal, após o termo do contrato, é potencialmente criadora de prejuízos para este, sendo o valor desses prejuízos, pela sua incerteza, de difícil apuramento, pelo que nada obsta a que as partes, hipotisando esse incumprimento, acordem desde logo no valor de uma quantia indemnizatória dos prejuízos causados com a atividade concorrente pós-contrato [5].

No presente caso há, porém, que não esquecer que a Ré não teve qualquer intervenção na redação do contrato, tendo apenas antes da assinatura do mesmo sido informada pela Autora e pelo agente do seu teor e respetivo alcance, após o que deu a sua anuência expressa a todas e cada uma das disposições clausuladas, conforme consta dos pontos 24, 25 e 26 da matéria de facto provada, pelo que estamos perante uma relação contratual sujeita ao regime das cláusulas gerais, contante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (artigo 1.º).

Dispõe o artigo 19.º, c), deste diploma, relativamente aos contratos estabelecidos entre empresários, como ocorre no presente caso, que são proibidas as cláusulas penais desproporcionais aos danos a ressarcir, não deixando esta proibição de abranger as cláusulas que visam a prévia fixação de montantes indemnizatórios[6]

Com esta proibição pretende-se evitar o aproveitamento por parte daquele que concebe e predispõe o contrato para nele inserir cláusulas exageradamente favoráveis aos seus interesses, em detrimento da contraparte aderente, que, ao não ter participado na inclusão e redação dessas cláusulas, poderá não se ter apercebido do desequilíbrio contratual que elas encerram. Visa-se impedir que o predisponente abuse da sua posição privilegiada de relator do contrato. E a consequência desse abuso não é a mera redução do valor excessivo da cláusula penal para um valor razoável, como sucede no regime geral das cláusulas penais (artigo 812.º do Código Civil), mas sim a nulidade da própria cláusula, conforme determina o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, procurando-se com esta sanção drástica desincentivar os predisponentes a incorrerem em tais abusos.

A sanção escolhida para este tipo de cláusulas denuncia um vício genético do contrato, pelo que o juízo de valor sobre a proporcionalidade de uma cláusula penal deve ser reportado ao momento da celebração do contrato, comparando-se o valor indemnizatório estabelecido com o valor dos danos que normal e tipicamente resultam da insatisfação do direito do credor, dentro do quadro negocial padronizado em que o contrato se insere e não com o valor dos danos efetivamente ocorridos [7]. Como explica SOUSA RIBEIRO [8], no cômputo dos danos deverá seguir-se critérios objetivos, numa avaliação prospetiva guiada por cálculos de probabilidade e por valores médios usuais, tendo em conta os fatores que, em casos daquele género, habitualmente revelam na produção e na medida dos prejuízos.

Apesar de se abstrair das vicissitudes específicas do negócio realizado, esta avaliação, na definição do quadro negocial padronizado, não poderá deixar de ter em consideração todos os elementos que normativamente caraterizam o regulamento contratual predisposto, designadamente algumas particularidades do contrato em causa, as quais não poderão deixar de ser consideradas como auxiliares hermenêuticos no cálculo dos potenciais prejuízos[9].

No presente caso estamos perante a previsão de uma cláusula penal no valor de € 50.000,00 que fixava a indemnização a pagar pela Ré caso incumprisse qualquer uma das obrigações de não concorrência assumidas pela subscrição da cláusula 17.ª do mesmo contrato.

Neste caso, a obrigação cuja violação foi imputada (e provada) à Ré foi a obrigação desta não exercer, direta ou indiretamente, enquanto sócia, titular de participações sociais noutras sociedades, trabalhador, prestadora de serviços, independentemente do regime laboral ou contratual, e por qualquer meio, atividade concorrente com a da Autora, durante os doze meses imediatamente seguintes à cessação do contrato.

Note-se, que a atividade proibida concorrente com a da Autora é apenas aquela que se circunscreve à zona ou ao círculo de clientes confiado ao agente, conforme expressamente exige o n.º 2, do artigo 9.º, do Decreto-lei n.º 178/86, de 3 de julho, assim como ao tipo de bens para os quais a Ré angariava clientes[10].

Provou-se que a Ré ao longo do período compreendido entre o dia em que celebrou o contrato com a Autora e o dia em que dele se desvinculou unilateralmente, se dedicou à atividade de consultora imobiliária e financeira, circunscrita à área geográfica de .../..., apesar do âmbito geográfico mais alargado que o contrato previa, pelo que a proibição contratualmente assumida apenas a impedia de desenvolver igual atividade naquela zona geográfica.

Ora, no mesmo contrato, ao estipular-se o seu prazo, acordou-se que o mesmo vigoraria pelo prazo inicial de 1 ano, com a possibilidade de renovação sucessiva por iguais períodos, desde que na vigência do período anterior o mesmo tenha garantido uma faturação mínima à Autora e à sociedade do grupo da Autora, “Decisões e Soluções – Consultores Financeiros, Limitada”, em conjunto, pelo menos € 15.000,00, pois, caso tal não se verificasse, aquelas poderiam denunciar o contrato para o fim do prazo em curso.

Admitia-se, pois, como adequada, uma execução do contrato de agência, o qual previa uma atuação da Ré a nível nacional (cláusula 5.ª, n.º 5) que proporcionasse, em conjunto, às duas sociedades principais, uma faturação anual no valor mínimo de € 15.000,00.

Ora, apesar de estarmos perante a exigência de um valor mínimo, não existindo outros dados que atenuem a relevância deste nível de faturação, a previsão de que a continuação do desenvolvimento de igual atividade pela Ré, no ano seguinte à cessação do contrato, mas circunscrita à zona geográfica de .../..., era suscetível de causar, unicamente à Autora, uma quebra de faturação no montante de € 50.000,00 é manifestamente exagerada.

Se o valor mínimo admissível de faturação das duas sociedades principais, por ação da Ré em todo o território nacional, tinha sido contratualmente previsto no montante anual de € 15.000,00, a avaliação prospetiva da quebra de faturação anual, apenas da Autora, naquele restrito espaço geográfico, em € 50.000,00, revela-se um cálculo exorbitante.

Daí que o montante da cláusula penal estabelecida no contrato em que intervieram a Autora e a Ré, na dimensão abrangente da violação do pacto de não-concorrência pós-contratual constante da cláusula 17.ª, é manifestamente desproporcionado, relativamente ao valor dos prejuízos previsíveis no momento da celebração do contrato, pelo que, nos termos do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, essa cláusula, naquela dimensão, é nula[11].

Ao concluir-se pela nulidade da cláusula penal que a Autora pretendia acionar, fica prejudicada a questão sobre o conhecimento da possibilidade da sua redução.

Tendo a Autora, na presente ação, se limitado a acionar a cláusula penal, não intentando demonstrar o valor real dos prejuízos sofridos com a violação do pacto de não concorrência pós-contratual, e sendo essa cláusula nula, a ação tem que improceder, pelo que o recurso interposto deve ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a Ré do pedido formulado.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de revista, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, julga-se improcedente a ação, absolvendo-se a Ré do pedido formulado.

                                               *

Custas do recurso e nas instâncias pela Autora.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa, 12 de janeiro de 2022

João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha


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[1] FERREIRA PINTO, Contratos de Distribuição. Da tutela do distribuidor integrado em face da cessação do vínculo, Universidade Católica Editora, 2013, pág. 443-44, e PINTO MONTEIRO, Contrato de Agência, 9.ª ed., Almedina, 2021, pág. 85.
[2] Sobre a constitucionalidade desta permissão, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2020, de 3 de março.
[3] FERREIRA PINTO, ob. cit., pág. 456, JANUÁRIO GOMES, Apontamentos sobre o Contrato de Agência, Tribuna da Justiça, 3/28, MENEZES LEITÃO, A Indemnização de Clientela no Contrato de Agência, Almedina, 2006, pg.32, e os Acórdãos do S.T.J. de 18.03.2021, Proc. 2017/19 (Rel. Olindo Geraldes), e de 28.10.2021, Proc. 6287/18 (Rel. Vieira e Cunha).
 [4] Neste sentido se pronunciaram os acórdãos citados na nota anterior.
[5] Nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.05.2020, Proc. 13.603/16 (Rel. Paulo Ferreira da Cunha) e de 07.09.2021, Proc. 3066/18 (Rel. Fátima Gomes), porém, perante contratos idênticos ao que aqui analisamos, proferiram decisões em que, ponderando o especial circunstancialismo do caso concreto, entenderam que a exigência do pagamento do valor indemnizatório convencionado para o incumprimento de um pacto de não-concorrência, sem estipulação de compensação, se traduzia numa ofensa dos valores da justiça e da boa-fé, que obstava à operacionalidade dessa cláusula.
 [6] JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS, Cláusulas Contratuais Gerais. D.L. n.º 446/85 Anotado, Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, 2010, pág. 232-235.
[7] Neste sentido, SOUSA RIBEIRO, Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais, em “Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, 2007, pág. 139-140, PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pág. 593, nota 1409, NUNO PINTO OLIVEIRA, Cláusulas Acessórias ao Contrato. Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar. Cláusulas penais, pág. 117 e seg., JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS, Cláusulas Contratuais Gerais. D.L. n.º 446/85 Anotado, Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, 2010, pág. 237, PESTANA VASCONCELOS, Direito Bancário, Almedina, 2019, pág. 314, e exemplificativamente de uma jurisprudência consolidada os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2017, Proc. 2042/13 (Rel. Nunes Ribeiro), de 28.03.2017, Proc. 2041/13 (Rel. Roque Nogueira), de 17.12.2019, Proc. 323/15 (Rel. Maria João Vaz Tomé) e de 10.09.2020, Proc. 127735/16 (Rel. Ferreira Lopes).
  Defendendo, contudo, que a comparação deve ser efetuada com o valor dos prejuízos efetivamente causados, ANA PRATA, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina, 2010, pág. 417 e seg.
 [8] Ob. cit., pág. 140
[9] ALMENO DE SÁ, Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, 2.ª ed., Almedina, 2005, pág. 259-261
 [10] Neste sentido, FERREIRA PINTO, ob. cit., pág. 451-453, e PINTO MONTEIRO, Contrato de Agência, cit. pág. 98.
[11] Face à manifesta desproporção, não se coloca a questão de saber se esta, para ser causa da sua nulidade, tem que ser sensível, como defendem ALMEIDA COSTA e MENEZES CORDEIRO, Cláusulas Contratuais Gerais. Anotação ao Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de outubro, Almedina, 1986, pág. 47, PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, cit., pág. 599-600, PESTANA DE VASCONCELOS, ob. cit., pág. 314, CALVÃO DA SILVA, Banca, Bolsa e Seguros, tomo I, “Direito europeu e português”, 4.ª ed., Almedina, 2013, pág. 202, ou se é suficiente qualquer grau de desproporção, como sustentam SOUSA RIBEIRO, ob. cit., pág. 142-144, JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS, ob. cit., pág. 236, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IX, 3.ª ed., Almedina, 2019, pág. 502-503, e ANA PRATA, ob. cit., pág. 4219