Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1211/19.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APÓLICE DE SEGURO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

I - O Supremo Tribunal de Justiça não pode apreciar a matéria de facto julgada na 2.ª Instância, limitando-se na sua intervenção a conhecer da observância das regras de direito material probatório ou determinar a ampliação da decisão sobre a matéria de facto, nos estritos termos dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.


II - O risco coberto para efeitos do contrato de seguro de acidentes de trabalho é o que resulta dos termos da apólice de seguro, nela devendo mencionar-se as exclusões, designadamente, por referência a condições particulares ou especiais.


III - São abrangidos pela apólice de seguro, conforme o artigo 2.º, n.º 2 da Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho, as situações de sinistros ocorridos fora do tempo de trabalho, enquadráveis nas alíneas b) e h) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.

Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 1211/19.0T8GMR.G1.S1


Recursos de Revista


Relator: Conselheiro Domingos José de Morais


Adjuntos: Conselheiro Mário Belo Morgado


Conselheiro Ramalho Pinto


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - AA intentou acção especial emergente de acidente de trabalho, contra


Ageas Portugal Companhia de Seguros, S.A., e Telas Design, Lda., pedindo:


Deve a presente ação ser considerada procedente, por provada, e em consequência serem as demandadas na medida da responsabilidade que se vier a apurar, condenadas a:


1. A realizar a intervenção cirúrgica destinada à necessária colocação de nova prótese testicular direita e tratamento que se revele eficaz e adequado à lesão do tendão do calcanhar e tornozelo direitos.


2. A prestar ao demandante toda a assistência e tratamento médico que a sua reabilitação funcional exija, nomeadamente acompanhamento em consulta de combate à dor e prescrição e realização de tratamento fisiátrico


3. A pagar ao demandante as seguintes prestações:


a) Indemnização pelo período de ITA, no valor de €11.188,48, vencida até à data da alta em 16 fevereiro de 2019, acrescida de juros legais a contar do seu vencimento e até integral e efetivo pagamento;


b) Pensão anual e vitalícia, eventualmente remível, que lhe for devida de acordo com a retribuição declarada e o grau de incapacidade parcial permanente para o trabalho que lhe vier a ser fixado em junta médica, acrescida de juros legais a contar da data do seu vencimento;


c) Despesas médico-medicamentosas no valor de €199,00, acrescidas de juros legais a contar da citação;


d) Despesas com transportes no valor de €264,00, acrescida de juros legais a contar da citação;


e) No que vier a liquidar-se em execução de sentença, relativamente a despesas que venha a efetuar, com honorários médicos, medicamentos, meios de diagnóstico, despesas hospitalares e taxas moderadoras e quaisquer outras relacionadas com o acidente em causa.


2. - A Ré seguradora contestou, por excepção – “exclusão dos factos das garantias da apólice e desqualificação do evento como legal “acidente de trabalho”” – e por impugnação, concluindo pela sua absolvição do pedido.


3. - A Ré patronal contestou, concluindo: “Cabendo, apenas à Ré AGEAS a obrigação de reparar os danos sofridos pelo A. em virtude do acidente de trabalho aqui em causa, deve a presente ação ser julgada inteiramente improcedente no que diz respeito à Ré TELAS DESIGN, LDA.


4. - A Ré seguradora respondeu, concluindo como na sua contestação.


5. - Na sentença da 1.ª Instância foi decidido:


“(J)ulgo a ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente:


I - Absolvo a ré seguradora, “Ageas Portugal- Companhia de Seguros, SA.” da totalidade do pedido formulado pelo autor, AA;


II - Condeno a ré empregadora, “Telas Design, Lda.”, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho), a pagar ao autor, AA:


- capital de remição correspondente à pensão anual, devida desde 13.12.2018, no valor de €3.041,56;


- a indemnização no valor de € 7.933,60 pelo período de ITA;


- a quantia de €36,00 a título de despesas de transporte;


- e os juros de mora, à taxa legal, sobre todas essas quantias pecuniárias a contar da data do respetivo vencimento, à taxa legal e até efetivo pagamento.


III - do mais peticionado pelo autor se absolve a ré empregadora “Telas Design, Lda.”.”.


6. - O Tribunal da Relação acordou:


Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão e condenando-se a seguradora nos termos em que o foi a recorrente.”.


7. - A Ré seguradora interpôs recurso de revista, concluindo:


1) No alcance da limitação de sindicância e definição de competências jurisdicional própria prevista no artigo 674o, n° do C.P.C, ao reger que cabe restritivamente a este S.T.J. pronunciar-se sobre "questões de direito", tal não significa de per si que esta instância máxima seja truncado o poder-dever de criticamente aferir do sano e cabal exercício jurisdicional que se mostre ante exercitado pelas precedentes instâncias, nos termos e para os efeitos previstos, conjugadamente, nos artigos 152o, n° 1 e 607, n° 3 do C.P.C, e 20o da C.R.P.;


2) Esse peculiar exercício crítico amplo acometido ao S.T.J. significa o autorizado poder censório relativo á que se lhe deparar ter sido a arrumação da "matéria de facto" tal qual o fizeram as antecedentes instâncias jurisdicionais, dado que tal constitui efectivo exercício de sindicância das "questões de direito" (in acórdão deste S.T.J datado de 11.11.1997 proferido sob Acórdão da revista n° 10180/95);


3) O caso sub judice enuncia decisão advinda do douto tribunal "a quo" enquanto 2a instância decisória que, em acolhimento e procedência ao recurso deduzido pela ora Recorrida Empregadora, decide da ampliação da "matéria de facto" ao agregar ao conjunto dos "factos provados" que fixara a 1a instância outros (2, dois) que sustentam, em exerça fundamentação, a reversão da decisão daquela 1a instância, de molde a proferir que cabe nas garantias da apólice de seguro do "risco de seguro de acidentes de trabalha, trabalhadores por contra doutrem" firmado entre Recorrente e Recorrida Empregadora um dado "acidente de trabalho" sofrido pelo Recorrido sinistrado e que se verificou "a um sábado", sob enquadramento temporal que a Recorrida defendia não caber no risco de actividade transferido, porque a exclusão de transferência para esses concretos dias ("sábados") fora prévia e expressamente comunicada pela transferente e Recorrida Empregadora.


4) Enquanto esteios que usa e expressa na decisão de alargamento da "matéria de facto" e, a isso invocando, da reversão da decisão de mérito proferida pelo tribunal de 2a instancia, "a quo", este exercita o recurso aos mecanismo de interpretação da vontade que remete previstos nos artigos 236o e 238o do Código Civil, e conclui que precisas e concretas respostas que a outros tantos quesitos constantes no formulário-"proposta" de "identificação de risco" que foi preenchida e enviada pela Recorrida Empregadora à Recorrente cabe a inclusão de "trabalhos prestados aos sábados";


5) Todavia, esse sustentado exercício colide no iter axiológico-normativo do enunciado no n° 2 do artigo 90 do mesmo Código Civil, ao balizar in ius et de lure que rege que "não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso", porquanto


6) A simplicidade das singulares perguntas constantes no formulário-"proposta" in casu apresentada pela Recorrente, a par da demostrada clareza, inequivocidade e objectividade das dadas concretas respostas pelo legal representante da Recorrida Empregadora à Recorrente, aquando e ainda em "fase pré-contratual", inequivocamente demostram que na "dentificação do risco de actividade", a Recorrida Empregadora comunicou não dar "trabalho aos sábados", o que a Recorrente excluiu das garantias da apólice de seguro entre ambos firmada, tudo na concatenação do casuisticamente verificado e s subsunção no regime, conjugado, dos artigos 223o, n° 1 e 224o, n° 1 do Código Civil, nos artigos 1o, 24o, n°s 1 e 2 e 32o, n° 2 da LC.S./lei do contrato de seguro aprovado pelo Dec.-lei n° 72/2008, no artigo 80o, n° 2 da LA.T../lei dos acidentes de trabalho aprovado pelo Lei n° 98/2009 e, remissivamente a este, pelo regulamente "anexo" à Portaria n° 256/2011;


7) Donde, aquele exercitado recurso de interpretação da vontade usado pelo Mmo. Tribunal "a quo" mostra-se desadequado, mesmo injustificado, e com isso despropositada a por si efectuada ampliação da "matéria de facto", impondo-se a repristinação aos exactos termos fixados na primitiva "decisão da matéria de facto" oriunda da 1a instância, tudo porque


8) Aquela decisão assumida pelo pelo Mmo. Tribunal "a quo" congrega em si mesmo notório desrespeito ao poder-dever de bem decidir ínsito no artigo 607o, n° 3 e 5 do C.P.C, a par de evidenciar um injustificado atropelo ao dever de bem administrar a justiça ao caso concreto imposto pelo artigo 152o, n° 1 do mesmo diploma, vícios que configuram a situação elencada no n° 1 do artigo 674o ainda do C.P.C;


9) Por isso, bem andará este Mmo tribunal de instancia máxima superior ao determinar a
manutenção tal quaie da decisão à "matéria-de-facto" fixada pela 1a instancia e a coerência desse
ante factum para a decisão de direito igualmente dessa emanada, repondo que, por se ter
verificado a um "sábado", em dia que a Recorrida Empregadora expressamente excluiu da
cobertura do risco por si identificado no objecto da apólice de seguro, cabe-lhe só a si a
reparação do evento, por ineficácia das garantias do apólice de seguro firmada entre Recorrente
e a Recorrida Empregadora.”.


9. - A Ré empregadora contra-alegou, concluindo que “deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido”.


10. - O M. Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso de revista.


11. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.


II. - Fundamentação de facto:


O Tribunal da Relação decidiu sobre a matéria de facto:


FACTOS PROVADOS


A. A sociedade “Telas Design, Lda.” celebrou com a seguradora “Ageas Portugal- Companhia de Seguros, SA”, um contrato de seguro, da modalidade de seguro de acidentes de trabalho, trabalhadores por conta de outrem, titulado pela apólice nº 0010.07.382659, sendo que relativamente ao A. estava transferida a responsabilidade infortunística pela retribuição anual de € 28 727,80.


B. Na “proposta do seguro” referida na alínea anterior (junta aos autos a fls. 8 e cujo teor se dá por integralmente reproduzida) a R. "Telas Design, Lda.” declarou que: "natureza dos trabalhos a segurar / atividade predominante (?): design têxtil"; “risco in itinere; qual o meio de transporte utilizado com maior frequência na ida para o local e trabalho e no regresso deste (?): automóvel". "dá trabalho: aos sábados (?): não; fora das horas normais? sim (ocasionalmente); “Há deslocações ao estrangeiro: sim; com que frequência? 6 x por ano;” "Declaração: respondi de forma exata e completa a esta proposta, sabendo que, em caso contrário, fico sujeito às normas legais e contratuais aplicáveis";


C. O A. auferia uma remuneração mensal de €1.950,00 por 14 meses/ano, acrescido de subsídio de alimentação de €5,37 x 22dias x 11 meses (o que perfaz uma remuneração anual de €28.727,80).


D. O horário de trabalho normal da R. “Telas Design, Lda.” e o do A. era de 2ª a 6ª feira, com entrada às 8 horas e saída às 17,00, com intervalo para o almoço ao longo desses cinco dias úteis.


E. O dia 21 de julho de 2018 coincidiu com um sábado.


F. A R. seguradora pagou ao A. todos os medicamentos, consultas, exames e tratamentos realizados até 22 de novembro de 2018.


G. O A. nasceu no dia ... de ... de 1977 (cfr. documento de fls. 78).


H. Frustrou-se a tentativa de conciliação pelos fundamentos constantes do auto de conciliação de 08.07.2019:


A entidade seguradora aceitou a existência de uma apólice de acidentes de trabalho em que se mostra transferido para a responsabilidade da sua representada a retribuição de anual ilíquida de € 28.727,80, mas não aceitou a responsabilidade do acidente porque o trabalho aos sábados não se encontra garantido pela apólice, pelo que o acidente em questão não é enquadrável nas garantias da apólice de acidentes de trabalho existentes.


I. A entidade empregadora aceitou, o acidente e a sua caracterização como de trabalho, bem como as lesões e o nexo causal com o mesmo; o resultado da perícia médica; que o sinistrado auferia a retribuição suprarreferida que se mostrava devidamente transferida para a entidade seguradora, não aceita qualquer responsabilidade pela reparação do acidente dos autos uma vez que a mesma se mostra devidamente transferida para a entidade seguradora.


J. No dia 21 de julho de 2018, pelas 07H00 da manhã, o A. deslocava-se, conduzindo um motociclo, da sua habitação para a Rua ..., sede da ré Telas Design, Lda. e seu local de trabalho;


K. (…) o autor sofreu um despiste quando circulava na Rua ..., de modo não concretamente apurado, vindo a ficar tombando sob o seu lado esquerdo na estrada.


L. O A. tinha a categoria profissional de designer.


M. O A. exerce também a sua atividade ocasionalmente e sempre que a R. empregadora necessita, fora do horário de trabalho normal.


N. O A. desloca-se em média seis vezes por ano ao estrangeiro para assistir a feiras internacionais e visitar clientes;


O. (…) para estar presente nessas feiras o trabalho do A. pode ser prestado durante os fins de semana.


P. O A. presta também, trabalho ocasional, na medida em que se afigura necessário a R. entidade empregadora, serviços fora do horário de trabalho.


Q. O A. em consequência dos factos descritos I) e J) sofreu trauma testicular direito com hematoma intraparenquimatoso, e lesão no tendão do calcanhar e tornozelo direito;


R. (…) deu entrada no SU do Hospital da ..., tendo sido encaminhado para o Hospital de ..., especialidade urologia;


S. (…) onde efetuou uma ecografia que denunciou forte hematoma testicular direito, que obrigou ao seu internamento para observações até ao dia 24 de julho.


T. Sofreu, ainda, agravamento da lesão por intercorrência infeciosa.


U. Recorreu ao SU de ..., onde foi submetido a cirurgia orquidectomia direita em 29 de julho de 2018.


V. Em 8 de novembro de 2018 foi submetido a nova cirurgia para colocação de prótese testicular direita;


W. (…) a qual ocorreu com autorização da R. seguradora.


X. A 22 de Novembro de 2018 o A. foi submetido a nova cirurgia para remoção da prótese por rejeição.


Y. Provado apenas que do acidente dos autos resultou para o autor:


a) entorse do tornozelo direito;


b) traumatismo da região genital, com perda do testículo direito.;


c) apresenta como sequelas dor residual do tornozelo direito, sem edema crónico ou instabilidade e com mobilidades conservadas, e


d) orquidetomia direita ( cfr.exame médico referª 173539214- apenso A)


Z. O A. esteve afetado de incapacidade temporária absoluta no período compreendido entre 22.07.2018 a 12.12.2018.


AA. Após a remoção da prótese testicular, em 22 de novembro de 2018, a R. seguradora deixou de liquidar as despesas com exames, médicas e medicamentosas.


BB. O autor despendeu a quantia de €24,00 em deslocações obrigatórias ao Tribunal.


CC. O A. gastou €199,00 em exames, despesas médicas e medicamentosas;


DD. (…) em deslocações em veículo próprio o autor despendeu a quantia total de €160,00, correspondente às deslocações entre a sua residência e os hospitais de ... e ... (4 x 32kms + 4 x 10kms);


EE. (…) em transporte entre a sua residência e o Centro de Saúde ... na Rua ..., Urgezes, e o Hospital da ... em ..., o autor despendeu quantia total de €80,00 (4 x 10kms + 4 x 7kms)


Aditados:


FF. A Ré AGEAS tem conhecimento porque também consta da proposta de seguro- que, a Ré TELAS DESIGN, participa, ano após ano, em várias feiras têxteis internacionais.


GG. Participações, essas, que obrigam, por vezes, os colaboradores da Ré a trabalhar, aos sábados, aos domingos ou nos feriados.


(resulta de prova documental)


Consta da apólice emitida em 2002 (Doc. Junto a 12/4/2019):


“Este contrato de seguro é constituído pelas condições gerais e cláusulas especiais anexas e pelas presentes condições particulares.


condições especiais aplicáveis - 01 (seguro de prémio variável -).


- Consta da ata adicional nº 31 (de 8/21/2018):


“este contrato de seguro é constituído pelas condições gerais e especiais e pelas presentes condições particulares e demais informação complementar que lhe serviu de base.


condições especiais aplicáveis - 01”


*


Factos considerados não provados na primeira instância:





2. o trabalho ocasional referido em O) seja realizado em regra ao sábado;


3. a realização das feiras referidas em M), impliquem “obrigatoriamente” trabalho do autor ao sábado;





17. As participações da ré empregadora nas feiras referidas em M), cerca de 6 por anos, obrigam os colaboradores da R. “Telas Design, Ld.ª” a trabalhar aos sábados, domingos ou feriados;


18. (…) e de 2ª a 6ª feira antes das 8 horas e depois das 17,00 horas.”.


III. – Fundamentação de direito


1. - Do objeto do recurso de revista.


A primeira questão é a da reapreciação da matéria de facto feita pelo Tribunal da Relação de Guimarães e a segunda é a de saber se a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho cabe à Ré seguradora, como foi decidiu no acórdão recorrido, ou se é da Ré empregadora, como decidido na sentença da 1.ª instância.


2. - Da alteração da decisão sobre a matéria de facto na 2.ª instância.


2.1. - No recurso de apelação, a Ré empregadora impugnou a decisão sobre matéria de facto proferida na 1.ª instância e o acórdão recorrido, apreciando tal impugnação, acordou:


Considerando a prova, o teor das declarações resultantes da proposta de seguro, atendendo sobretudo às declarações de BB, que referiu que ainda hoje preenche assim as propostas, é de considerar provado:


FF. A Ré AGEAS tem conhecimento porque também consta da proposta de seguro- que, a Ré TELAS DESIGN, participa, ano após ano, em várias feiras têxteis internacionais.


GG. Participações, essas, que obrigam, por vezes, os colaboradores da Ré a trabalhar, aos sábados, aos domingos ou nos feriados.”.


No recurso de revista, a Ré seguradora pretende que este Supremo Tribunal determine “a manutenção tal qual da decisão à “matéria-de-facto” fixada pela 1a instância”.


2.2. - É entendimento pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que o Supremo Tribunal de Justiça não pode apreciar a matéria de facto julgada na 2.ª Instância, dado que a sua intervenção no âmbito do erro de julgamento na matéria de facto é meramente residual, pois, tem como finalidade exclusiva apreciar a observância das regras de direito material probatório ou determinar a ampliação da decisão sobre a matéria de facto, nos estritos termos dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.


No dizer de António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pp. 325 e 326, o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar “erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento da revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixa a respectiva força probatória.”


Na jurisprudência, pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de junho de 2023, proc. n.º 1136/17.4T8LRA.C2.S1: “E não se tratando de prova tabelada ou legalmente tarifada, mas de prova sujeita à livre apreciação das instâncias está vedado a este Supremo Tribunal de Justiça alterar a factualidade dada como assente (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/11/2020, processo n.º 288/16.5T8OAZ.P1.S1, Relator Conselheiro Chambel Mourisco). Com efeito, resulta do n.º 3 do artigo 674.º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.”.


[cfr., ainda, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 17.03.2022, proc. 6947/19.3T8LSB.L1.S1; de 17.01.2023, p. 286/09.5TBSTS.P1.S1; e de 04.07.2023, proc. 2991/18.6T8OAZ.P1.S1, todos in www.dgsi.pt].


No caso dos autos, a Ré seguradora não só não alegou ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, como não questionou a credibilidade dos depoimentos que fundamentaram o aditamento à matéria de facto dada como provada.


Improcede, assim, nesta parte, o recurso de revista.


3. - Da responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho


3.1. - No acórdão da Relação foi consignado:


“O contrato de seguro consiste num acordo através do qual uma parte, contra retribuição, suporta o risco económico da outra parte ou de terceiro.


Trata-se de um contrato típico, oneroso, aleatório, não dependendo da observância de forma especial, mas obrigatoriamente reduzido a escrito, num instrumento denominado “apólice de seguro” - (artº 426º do C. Comercial e artºs 32º nºs 1 a 3 e 34º nºs 1 e 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Dec. Lei nº 72/2008 de 16/04).


O segurador garante a reintegração do segurado relativamente a danos provocados por um determinado risco, o previsto no contrato.


Quais os riscos abrangidos é questão relativa à interpretação da vontade das partes plasmada no contrato, de acordo com o previsto nos artigos 236º ss do CC.


O artigo 236º do CC, consagra um critério objetivo de determinação do sentido juridicamente relevante (teoria da impressão do destinatário), mitigado embora com concessões subjetivistas – parte final do nº 1 e nº 2 do normativo –. Visou-se com a consagração de um critério objetivo proteger a “legítima confiança do declaratório e os interesses gerais do comércio jurídico” - Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Almedina, 1974, Vol. II, pág. 312 -.


Tratando-se de negócios formais, nos termos do artigo 238º do CC., o sentido juridicamente relevante que resulte da aplicação das regras do artigo 236º do CC, não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, a menos que corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.


A vontade juridicamente decisiva deve procurar-se mediante um processo hermenêutico que partindo da letra da declaração, e levando em consideração todo um material de factos circunstanciais, evidencie o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, e é, conhecedor de todos esses factos, deduziria do comportamento do declarante.


No que respeita aos elementos a atender e à sua interpretação, deve o intérprete pautar-se pela “capacidade e diligência” de um declaratário normal, de um homem de mediana instrução, sagacidade e diligência, conhecedor dos concretos factos circunstanciais. Deve atender-se à totalidade da declaração, o fim ou objeto tido em vista, entre outras circunstâncias.


Só se após tal processo interpretativo não se lograr saber qual o sentido preciso, porque ainda restam alguns sentidos possíveis, deve então intervir o critério do artigo 237º do CC. - RP de 14/10/82, Col. Jur., T. IV, 239; RP de 25/9/95, Col. Jur., T. IV, 182 -. Quanto às cláusulas contratuais gerais, veja-se o Ac. RP de 19/12/2012, Pº 144/11.3TTLMG.P1, www.dgsi.pt.


A seguradora escuda-se nos termos das declarações da empregadora constantes da proposta de seguro. Tais declarações importam para interpretar a apólice, os termos do contrato, não constituindo em si mesmas o contrato.


(…).


A exclusão de um determinado dia da semana sempre teria que resultar claro das negociações, e sempre implicaria incumprimento de transferência da responsabilidade imposta pelo artigo 79º da LAT por parte da empregadora, já que se impõe a transferência a responsabilidade “pela reparação prevista na presente lei”; e, a abranger o trabalho excecional em dia que não é dia de trabalho, igualmente incumprimento por parte da seguradora, já que tal implicaria restrição ao conceito de sinistro abrangido, resultante da norma do artigo 9º da LAT e 2º da apólice uniforme.


Ora, esta norma é imperativa para seguros de acidentes de trabalho, como resulta do artigo 2º, nº 2 da portaria n.º 256/2011, de 05 de julho, que aprova a apólice uniforme, só admitindo convenção mais favorável ao tomador do seguro, à pessoa segura ou ao beneficiário da prestação de seguro.


Ao contratar, a seguradora e agindo de boa-fé deve ter estas circunstâncias em consideração.”.


E concluiu: “Não se encontra respaldo para considerar excluído um acidente ocorrido na prestação de um serviço fora do horário, de forma excecional”.


3.2. - Decorre das respectivas conclusões que a Ré seguradora sustenta todo o seu recurso na discordância quanto à decisão do Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto fixada na 1.ª instância.


No entanto, improcedendo o recurso, nessa parte, nos termos que antecedem, deixa de ter qualquer sentido toda a argumentação apresentada pela Ré seguradora na revista.


O artigo 9.º - Extensão do conceito - da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro (LAT), determina:


1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:


a) (…);


b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;


(…)


h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.”.


Por sua vez, o artigo 2.º - Valor da disposição imperativa ou supletiva da parte uniforme -, n.º 2, da Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho, prescreve que “O previsto na cláusula preliminar, n.os 4 e 5, e nas cláusulas 1.ª, alíneas d), e) e i), 2.ª, 3.ª, excepto o n.º 2, 4.ª, 6.ª, n.os 2 a 5, 7.ª a 12.ª, 18.ª, n.º 1, 1.ª parte, 19.ª, n.os 1, 1.ª parte, 3, 1.ª parte, e 4, 2.ª e 4.ª partes, 20.ª, n.os 1, 2.ª parte, 2, 1.ª parte, e 4, 21.ª, n.os 2 a 7 e 9, 23.ª, 25.ª, n.os 1 e 3 a 5, 27.ª, n.os 2 a 4, 28.ª, n.os 1, alíneas a) a c), e 2, 30.ª, 31.ª, 33.ª e 34.ª, n.º 2, só admite convenção mais favorável ao tomador do seguro, à pessoa segura ou ao beneficiário da prestação de seguro.”


Como bem refere o Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu Parecer, “um acidente ocorrido num sábado, não obstante não ser um dia normal de trabalho, integra o conceito de acidente de trabalho previsto quer na LAT/97 quer na LAT/2009.


E, como também é sabido, o regime de reparação de acidentes de trabalho é imperativo, sendo nula a convenção contrária aos direitos nele previstos e nulos os contratos que visem a renúncia a esses direitos (art.º 34.º da LAT/97 e art.º 12.º da LAT/2009).


A Apólice Uniforme, prevendo, como não podia deixar de ser, em virtude da sua natureza regulamentar da Lei, essa imperatividade, admite, no entanto, a consagração de condições mais favoráveis ao trabalhador segurado relativamente a determinadas matérias (cfr. o n.º 5 do art.º 2.º da Apólice Uniforme de 2009 e o n.º 2 do art.º 2.º da Portaria n.º 256/2011, de 5 de julho).


Além de que se deve também ter presente que a celebração do contrato de seguro de acidente de trabalho é obrigatória para a entidade empregadora – n.º 1 do art.º 37.º da LAT/97 e n.º 1 do art.º 79.º da LAT/2009.


Pelo que, o seguro de acidentes de trabalho que a entidade empregadora tem obrigatoriamente de celebrar não pode ter uma cobertura inferior à que resulta da LAT que é, como se disse, imperativa. O que, também, decorre do regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril.”


Ora, estando provado que o sinistrado tinha o “horário de trabalho normal (…) de 2.ª a 6.ª feira, com entrada às 8 horas e saída às 17,00, com intervalo para o almoço ao longo desses cinco dias úteis.” (facto D.); que “exerce também a sua atividade ocasionalmente e sempre que a R. empregadora necessita, fora do horário de trabalho normal” (facto M.); que sofreu um acidente de trajeto num sábado, o dia 21 de julho de 2018 (factos E. e J.); e que “A Ré AGEAS tem conhecimento porque também consta da proposta de seguro que a Ré TELAS DESIGN, participa, ano após ano, em várias feiras têxteis internacionais” (facto FF.), “Participações, essas, que obrigam, por vezes, os colaboradores da Ré a trabalhar, aos sábados, aos domingos ou nos feriados.” (facto GG.), nada a censurar quanto ao bem decidido pelo Tribunal da Relação relativamente à responsabilidade da Ré seguradora pela reparação de todos os danos sofridos pelo sinistrado na sequência do acidente de trabalho, ocorrido no dia 21 de julho de 2018.


IV. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar improcedente o recurso de revista da Ré seguradora e manter o acórdão recorrido.


Custas a cargo da Ré seguradora.


Lisboa, 06 de março de 2024


Domingos José de Morais (Relator)


Mário Belo Morgado


Ramalho Pinto