Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
611/21.0T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
GRAVIDEZ
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
DEVER DE INFORMAÇÃO
ILICITUDE
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO MORTE
DANOS REFLEXOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Perante a prova feita, segundo a qual a morte prematura da filha da autora foi causada por grave patologia congénita, o réu, na qualidade de médico que acompanhou a gravidez da autora, não pode ser responsabilizado por tal morte, nem pelos sofrimentos da filha da autora que antecederam a morte, nem tampouco pelo sofrimento da autora pela perda da vida da filha.

II. Encontrando-se, porém, provada a violação ilícita e culposa do dever de informação por parte do réu, considera-se que são indemnizáveis os danos não patrimoniais que decorrem directamente da falta de informação e respeitam ao carácter inesperado do conhecimento da grave patologia congénita da criança.

III. Não vindo posto em causa o montante indemnizatório (€ 25.000,00) fixado pela sentença da 1.ª instância para ressarcir esses danos, repristina-se a mesma decisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. AA propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe:

a) A quantia de cinquenta mil euros (€ 50 000,00) pelo dano morte sofrido pela filha CC;

b) A quantia de cinquenta mil euros (€ 50 000,00) a título de danos não patrimoniais sofridos por ela, autora, tudo conforme referido sob os artigos 159.º a 177.º da petição;

c) A quantia de dois mil cento e trinta e quatro euros e um cêntimo (€ 2 134,01) pelos danos patrimoniais conforme referido sob os artigos 178.º e 179.º da petição;

d) Juros de mora à taxa legal calculados sobre as referidas quantias desde a data da sua liquidação até ao efectivo e integral pagamento.

Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte:

- Que engravidou na sequência de fertilização in vitro realizada no Hospital da Universidade de ..., tendo, a partir da consulta realizada no dia 7 de Maio de 2018 no consultório onde o réu exerce a sua actividade de médico ginecologista-obstetra, decidido ser acompanhada pelo mesmo;

- Que, no decurso das várias ecografias realizadas, o réu sempre lhe transmitiu que a gravidez e o feto evoluíam normalmente e que estava tudo bem;

- Que, no dia ... de Dezembro de 2018, nasceu uma menina a quem a autora e o seu ex-marido (pai da criança) deram o nome de CC;

- Que, poucos dias após o nascimento, foi diagnosticada à criança, no Hospital Pediátrico de ..., uma cardiopatia complexa cianótica;

- Que a criança foi submetida a múltiplos tratamentos, exames e várias intervenções cirúrgicas, vindo a falecer no dia ... de Maio de 2019;

- Que caso o réu tivesse identificado a cardiopatia nas sucessivas ecografias que fez à autora, sobretudo as que realizou após as 12 semanas de gestação, teria sido possível corrigi-las cirurgicamente durante a gestação ou eventualmente logo a seguir ao parto e teria sido, assim, possível à CC ter sobrevivido ou, pelo menos, teria francas chances de sobrevivência, mesmo que estivesse condicionada a futuras cirurgias e a um modo de vida também condicionado;

- Que mesmo que a sobrevivência/tratamento da CC fosse uma incógnita, não foi dada à autora qualquer outra opção, como por exemplo a interrupção da gravidez, o que ponderaria caso fosse informada, juntamente com o pai da CC, das consequências da dextrocardia, pois seguramente não teria permitido que a sua filha fosse sujeita, como foi, a um tão grande calvário;

- Que o réu omitiu o dever objectivo de cuidado a que estava contratualmente vinculado nomeadamente à obrigação de efectuar o diagnóstico que se impunha em face do caso concreto, resultando a sua omissão na ofensa do direito e interesse legalmente protegido de a CC ser devidamente tratada;

- Que o réu é responsável pela morte da CC e por danos não patrimoniais sofridos pela autora (depressão, tristeza e amargura e dor causadas tanto pelo sofrimento como pela morte da filha); deve ainda ressarcir a autora de todas as despesas que teve de fazer com os tratamentos de sua filha, incluindo viagens, e restituir-lhe os honorários que pagou ao réu, pelas consultas, exames e ecografias.

2. O R. contestou a acção, defendendo-se por excepção e por impugnação. Em matéria de excepção alegou, em síntese, o seguinte:

- Que a autora não tinha legitimidade para, desacompanhada do ex-marido, reclamar indemnização pela perda da vida da filha CC;

- Que o pedido constante da alínea c), ao tratar-se de despesas pagas com bens comuns do extinto casal, não pode ser reclamado isoladamente por um dos ex-cônjuges por se desconhecer se lhe foi atribuído em sede de partilha tal direito e acção;

- Que o réu é parte ilegítima na presente acção desacompanhada da seguradora, pois transferiu a sua responsabilidade civil profissional da sua actividade de médico para a seguradora Ageas Portugal Companhia de Seguros.

Em sede de impugnação alegou que o falecimento da CC não resultou de qualquer acto médico dele, réu, nem este levou a qualquer tipo de doença e que faleciam os requisitos legais da responsabilidade civil por factos ilícitos sobre a qual a autora alicerçava a demanda.

3. A autora, na resposta à matéria das excepções, sustentou a sua improcedência.

4. Por despacho saneador, o Tribunal da 1.ª instância julgou improcedentes as excepções invocadas pelo réu.

5. Por sentença de 21.12.2022 foi decidido:

«1. Condenar o réu a pagar à autora a quantia de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença até integral pagamento;

2. Absolver o réu do pedido de pagamento das restantes quantias peticionadas.».

6. Inconformado, interpôs o réu recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 30.05.2023, que manteve a decisão relativa à matéria de facto, veio a ser proferida a seguinte decisão:

«Julga-se procedente o recurso e, em consequência:

1. Revoga-se a sentença na parte em que condenou o réu, ora recorrente, a pagar à autora a quantia de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença até integral pagamento;

2. Substitui-se esse segmento da sentença por decisão a absolver o réu do pagamento à autora a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da sentença até integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais.».

7. Vem a autora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A.- A recorrente dá aqui, por desnecessidade de repetição, por reproduzidas toda a factualidade constante da sua motivação, designadamente art.º 159.º a 177.º e pedido constante da al. b), da p.i. matéria julgada provada em sede de 1.ª Instância e sua fundamentação relativamente à decisão e fundamentação relativamente à decisão da 2.ª Instância (acórdão recorrido);

B.- O conhecimento do presente recurso tem por objecto único saber se o nexo de causalidade entre o facto danoso e co-respectivo dano indemnizatório pelos danos não patrimoniais em que o recorrido foi condenado a pagar à recorrente € 25.000,00 se encontra verificado ou não, sendo esta a única questão que se submete ao superior conhecimento de Vossas Senhorias;

C.- É doutrina e jurisprudência pacíficas que o art.º 563.º do CPC, consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, além de que também a Jurisprudência deste Venerando Supremo Tribunal tem vindo a admitir a causalidade indirecta, no sentido que o facto ilícito pode desencadear indirectamente outros danos relacionados quer com facto ilícito quer com o pedido principal;

D.- A 1.ª instância considerou verificado aquele nexo de causalidade com fundamento em que o recorrido omitiu a obrigação contratual que sobre si impendia, quando podia e devia ter visualizado as malformações nos exames morfológicos do 2.º trimestre efectuados à recorrente entre as 20 e 24 semanas, não ilidindo assim a sua responsabilidade, conforme factos assentos sob pontos 16 e 17;

E.- Por esta circunstância a douta decisão da 1.ª Instância julgou que o recorrido omitiu com grave culpa esta sua obrigação da qual resultaram danos estes que são ainda consequência daquela omissão e que se consubstanciam em danos indirectos causando à recorrente enorme e inesperada surpresa o que contribuiu reflexamente para um sofrimento acrescido e autónomo relativamente aos demais danos peticionados e cuja ressarcibilidade é secundada pela Jurisprudência transcrita e também doutrina;

F.- Pois não obstante a conduta anti-jurídica praticada pelo recorrido não ter causado à CC a sua morte, contribuiu com culpa grave para o agravamento do sofrimento da recorrente, não só pela perda da vida da sua filha, mas também pelo facto de o conhecimento daquelas malformações só ter ocorrido após o seu nascimento e não como era imposto ao recorrido pois podia e deveria tê-las detectado a meio da gravidez, conforme factos assentes sob os pontos 38, 80; 82, 83; 87; 88; 96 e 97;

G.- Ora de acordo com factualidade assente, sobre a actuação do recorrido impende um juízo de presunção de culpa o que inverte o ónus da prova nos termos dos art.ºs 798.º, 799.º e 344.º/1, todos do CC;

H.- Também de acordo com a Jurisprudência transcrita e de acordo com a matéria de facto julgada assente (provada), a recorrente beneficia de uma presunção legal de incumprimento por parte do recorrido, ex. vi., art.º 799.º do CC, pelo que não tem que provar os factos que a ela conduzem, invertendo-se quanto a esses factos, se constitutivos do direito do demandante, o encargo da não prova para a contraparte, cfr. art.º 344.º/1, do CC;

I.- No entanto o recorrido não demonstra ter ilidido a não prova desses factos que indirectamente originaram a sua condenação limitando-se unicamente a censurar a decisão alegando, concretamente sob o art.º 35.º das suas alegações, que: “Na tese defendida pelo tribunal “a quo” a indemnização é devida pelo impacto e surpresa de após o nascimento serem confrontados com a cardiopatia complexa. Sucede que os factos provados em que o tribunal alicerça os danos morais sofridos pela A. nada tem a ver com a surpresa, antes sim com o dano vida da filha, o qual nestes autos não pode ser considerado. Nenhuma ligação têm com a surpresa derivada do falso positivo relatado pelo R.”;

J.- Como se demonstra o recorrido ignora completamente a possibilidade de ressarcibilidade dos danos indirectos conforme é aceite pela doutrina e jurisprudência, na medida em que exista conexão entre o facto ilícito e culposo e o dano;

L.- E essa ligação resulta desde logo da causa de pedir e pedido bem como da designadamente os art.ºs 168.º; 169.º; 170.º; 173.º e 177.º, da p.i., e da matéria assente sob os pontos 16; 17; 38; 80; 81; 82; 85; 86; 87; 88; 94; 95; 96 e 97 da douta Sentença proferida pela 1.ª Instância que traduzem inequivocamente o sofrimento da recorrente relativamente à falta de informação e que se concretiza no pedido genérico constante da al. B), da p.i.;

M.- Não obstante a referida presunção e matéria de facto assente o Acórdão recorrido desconsiderou toda esta factualidade considerando e julgando que: “…A conclusão a retirar da matéria de facto é a que a autora, ora recorrida, não demonstrou, como lhe cabia (n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil), o nexo de causalidade entre a omissão ilícita e culposa imputada ao réu, ora recorrente, e os danos não patrimoniais que foram objecto de indemnização. Visto que tal nexo de causalidade era condição necessária da obrigação de indemnizar tais danos, a decisão conforme à lei era a improcedência do pedido de condenação na indemnização de tais danos. Há, assim, fundamento para revogar a sentença e substituí-la por decisão que absolva o réu de tal condenação…”

N.- Todavia, salvo sempre o devido respeito pelo superior e mais sábio conhecimento de Vossas Senhorias, prova-se, ainda que de forma indirecta, que o nexo de causalidade que originou a decisão da 1.ª instância na condenação do recorrido nos danos não patrimoniais atribuídos, se encontra preenchido quer enquanto causa de pedir, pedido e matéria assente como supra se reproduziu;

O.- Com efeito neste pedido genérico de danos não patrimoniais está compreendido não só o sofrimento da recorrente relativamente à morte da CC (para cujo dano não concorreu a conduta ilícita do recorrido), como também todos os demais danos sofridos em consequência desta conduta nomeadamente a enorme surpresa de só ter tido conhecimento das malformações após o nascimento desta, quando o recorrido estava obrigado a dar-lhe essa informação a meio sensivelmente da sua gravidez o que provocou à recorrente um enorme e inesperado sofrimento (dano), para o qual não se encontrava preparada/avisada!;

P.- Ou seja seguindo a Jurisprudência transcrita provando-se a culpa e ilicitude do agente resultante da violação de uma obrigação contratual, como resulta dos autos relativamente ao recorrido, basta a verificação que desta actuação omissiva e culposa resultam danos indirectos para que se encontre verificado o nexo de causalidade, sempre que a contraparte (recorrido), não demonstre, como se prova, que aqueles danos não tenham resultado do seu facto culposo, ilícito e omissivo;

Q.- Logo o Acórdão ora recorrido interpretou erroneamente quer o pedido quer a causa de pedir bem como a matéria julgada assente pela 1.ª Instância violando concomitantemente as disposições legais dos art.ºs 563.º, 798.º, 799.º, 342.º e 344.º, todos do Cód.º Civil;

R.- Naturalmente que a recorrente pugna pela integralidade da brilhante douta Sentença cuja fundamentação e decisão igualmente aqui se dá integralmente por reproduzida;

S.- Em face do exposto deve a presente Revista ser julgada procedente e em consequência ser o Acórdão ora recorrido revogado.».

8. O Recorrido veio aos autos declarar prescindir de apresentar contra-alegações.

9. Em 08.11.2023, o réu, ora Recorrido, veio requerer a junção de documento certificativo da decisão do Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos, datada de 19 de Outubro de 2023, de «declarar extinta a responsabilidade disciplinar» do aqui réu no processo disciplinar contra o mesmo instaurado com base em participação da aqui autora relativa aos factos por si alegados nos presentes autos.

Notificada, a autora não se pronunciou.

Estando em causa documento que preenche a previsão dos arts. 425.º e 651.º, n.º 1, primeira parte, do CPC, e não se tendo a autora oposto, admite-se a junção do mesmo. Contudo, na medida em que a responsabilidade disciplinar do réu se situa em âmbito distinto do âmbito da responsabilidade civil do réu que é apreciado na presente acção, a decisão de extinção do processo disciplinar do réu fica a constar apenas a título informativo.

III – Fundamentação de facto

Vem provado o seguinte:

1. No dia ... de ... de 2014 a autora AA casou com DD.

2. O casamento da autora foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento no dia ... de ... de 2020.

3. A autora AA e o seu marido DD tinham o desejo de ter filhos.

4. Em concretização do desejo de ambos, e na sequência de fertilização in vitro realizada nos Hospitais da Universidade de ..., a autora engravidou.

5. O réu é médico de profissão, com a especialidade de ginecologia-obstetrícia.

6. À data dos factos a que se reportam os presentes autos, o réu exercia a sua actividade em prática privada, no seu consultório situado em ..., o que acumulava com o cargo de ... do Serviço de Obstetrícia/Ginecologia do Hospital de ..., encontrando-se actualmente aposentado destas funções públicas.

7. Atendendo às boas referências que tinha do réu, a autora marcou uma consulta que se realizou no consultório do mesmo no dia 23 de Abril de 2018 para vigilância, tendo nesse mesmo dia, correspondente às cinco semanas de gestação, sido realizada uma ecografia onde só era possível verificar o saco gestacional.

8. No dia 7 de Maio de 2018, às sete semanas de gestação, a autora deslocou-se ao consultório do réu, onde foi realizada nova consulta e nova ecografia que permitiu percepcionar os batimentos cardíacos do embrião, tendo o réu dito à autora e ao seu marido que estava tudo a correr normalmente.

9. A partir dessa consulta, a autora decidiu ser acompanhada pelo réu durante a gravidez.

10. No dia 25 de Maio de 2018, na sequência da realização de mais uma consulta, foi efectuada nova ecografia, na qual foi possível visualizar o embrião em formação e ouvir os seus batimentos cardíacos, tendo o réu referido uma vez mais que estava tudo bem.

11. Nessa ocasião o réu referiu também que, possivelmente, teria visualizado uma onfalocele.

12. Às nove semanas foram realizados exames para despiste de trissomia, indicando os mesmos que o risco era reduzido para a síndrome de Down, para a trissomia 18 e para a trissomia 13.

13. No dia 14 de Junho de 2018, às doze semanas de gestação e no decurso de nova consulta, foi realizada nova ecografia através da qual foi possível visualizar o corpo do feto, as mãos, os pés, a cabeça, a translucência nucal e os batimentos cardíacos, mantendo o réu que tudo decorria normalmente.

14. No dia 19 de Julho de 2018 foi realizada uma nova ecografia, tendo o réu verificado o comprimento do fémur, o perímetro cefálico e também os batimentos cardíacos do feto, mantendo que tudo corria normalmente.

15. A autora, que não percebia as imagens das ecografias e não possuía conhecimentos médicos, confiava no Réu.

16. No dia 8 de Agosto de 2018, às vinte semanas de gestação, foi efectuada uma nova ecografia, na qual foi visualizada a coluna, o perímetro cefálico, os batimentos cardíacos, a placenta e o colo do útero, tendo o réu confirmado, mais uma vez, que estava tudo bem.

17. No dia 5 de Setembro de 2018, por volta das vinte e quatro semanas, foi realizada a ecografia referente ao segundo trimestre, através da qual o réu visualizou o perímetro cefálico e os batimentos cardíacos, referindo, mais uma vez, que estava tudo bem.

18. No dia 1 de Outubro de 2018 a autora realizou análises de hematologia geral, hemóstase, química clínica geral (creatinina, ureia, ácido úrico, TGO, TGP, urina tipo II), serologia (reação de VDRL), infeciologia (hepatite B, AC Anti-HCV, AC AntiHIV 1+2/Ag.p24, AC Anti-citomegalovírus (CMV) IgG, AC anti-citomegalovírus (CMV) IgM, AC anti-toxoplasma IgG, AC anti-toxoplasma IgM).

19. As referidas análises apresentaram resultados normais e revelaram que a autora não era imune relativamente à toxoplasmose, o que a levou a ter cuidados redobrados durante a restante gestação.

20. No dia 11 de Outubro de 2018, por volta das vinte e nove semanas, o Réu procedeu à realização de uma nova ecografia em que mediu o perímetro cefálico, o comprimento do fémur e o peso do feto.

21. No dia 9 de Novembro de 2018, às trinta e três semanas, o réu procedeu à realização da ecografia referente ao terceiro trimestre.

22. Nesta ecografia foi possível visualizar o perímetro cefálico, o comprimento do fémur e os batimentos cardíacos, tendo o réu referido que tudo decorria normalmente.

23. No dia 21 de Novembro de 2018, a autora realizou novas análises ao chamado tempo de protrombina, o qual apresentou resultados normais, bem como pesquisa de streptococcus grupo B, exsudado vaginal e rectal, ambos com resultado negativo.

24. No dia 3 de Dezembro de 2018, às trinta e sete semanas de gestação, foi realizada uma nova ecografia, tendo sido visualizado o cérebro, perímetro cefálico, comprimento do fémur, coração e retornos venosos e batimentos cardíacos, tendo o réu referido que tudo estava a correr bem.

25. No mesmo dia 3 de Dezembro de 2018, na consulta da autora, foi registado pelo réu: Colo adormecido com 30% de apagamento dilatado a 01 dedo franco, apresentação cefálica baixa com ecografia em todos os parâmetros avaliados normais; Feto percentil 50 e peso de 2551g, fez CTG no Hospital; Líquido amniótico normal; Placenta posterior grau 1,2; Frequência cardíaca 153; Doppler à artéria umbilical e cerebral média com resultados normais.

26. No dia 10 de Dezembro de 2018, às trinta e oito semanas de gestação, mantinha-se a situação ginecológica e obstétrica, tendo o réu registado peso estimado de 2.995 gramas, placenta grau 02 e colocado a hipótese de internamento no dia 18 de Dezembro de 2018.

27. No dia 17 de Dezembro de 2018, às trinta e nove semanas de gestação, foi realizada uma nova ecografia, na qual foi visualizado o coração e batimentos cardíacos, tendo o réu referido, mais uma vez, que estava tudo bem.

28. No mesmo dia 17 de Dezembro de 2018, na consulta da autora, foi registado pelo réu: Colo dilatado a 02 cm, apagado a 60%; Líquido amniótico normal; Placenta grau 02; Doppler normal; Frequência cardíaca 138; Apresentação cefálica; Peso estimado 3100g.

29. Nesse dia, o réu, após constatar que a autora já estava com 2 cm de dilatação, decidiu que se iria provocar o parto no dia seguinte.

30. No dia ... de Dezembro de 2018 a autora deu entrada no serviço de obstetrícia do Hospital ... em ....

31. Nesse dia, pelas 22h15, nasceu, de cesariana, uma menina com 3.220 gramas, 49,7 cm e índice de Apgar de 9/10/10, parâmetros estes normais, à qual a autora e o seu marido decidiram chamar CC.

32. A CC nasceu sem sinais de sofrimento respiratório, apresentando auscultação cardíaca sem sopros.

33. A CC encontrava-se hemo-dinamicamente estável após o parto, sendo os sinais cardíacos normais após o nascimento.

34. No dia 20 de Dezembro de 2018, à hora do banho, a médica pediatra que se encontrava de serviço constatou que a CC apresentava cianose peri bucal e das extremidades, tendo a mesma sido, de imediato, transferida para a UCERN do Hospital ....

35. Seguidamente, foram realizados exames e análises complementares, tendo a pediatra que se encontrava de serviço entrado em contacto, por videoconferência, com a equipa médica do Hospital Pediátrico de ....

36. A ecocardiografia então realizada à CC foi inconclusiva, tendo sido realizado um RX ao tórax que revelou dextrocardia.

37. Por ter surgido a suspeita de que a CC apresentava uma cardiopatia congénita cianótica, foi a mesma transferida para o Hospital Pediátrico de ... ainda no dia 20 de Dezembro de 2018.

38. No Hospital Pediátrico de ... foi efectuado um primeiro diagnóstico de cardiopatia cianótica complexa, tendo a autora e o pai da CC sido informados de que a mesma tinha uma cardiopatia congénita que lhe provocava uma hipoxemia grave e que tinha também um diagnóstico de asplenia (ausência de baço).

39. Ainda no Hospital Pediátrico de ... foi realizada investigação não invasiva que confirmou o diagnóstico inicial, tendo a CC iniciado terapêutica com prostaglandina ev e fármacos anti congestivos (furosemida e espironolactona).

40. Da investigação realizada no Hospital Pediátrico de ... resultaram os seguintes diagnósticos:

• Isomerismo direito, dextrocardia com dextroapex;

• Malposição das grandes artérias, com comunicação interventricular grande;

• Atresia da válvula pulmonar. Ramos da artéria pulmonar confluentes, hipoplásicos e com origem no canal arterial. Estenose do ramo esquerdo da artéria pulmonar;

• Retorno venoso pulmonar anómalo total (RVPAT) supra-cardíaco, com coletor à direita, drenando na veia cava superior esquerda através da veia vertical;

• Anomalia retorno venoso sistémico, com veia cava superior direita a drenar na aurícula esquerda. Persistência da veia cava superior esquerda;

• Comunicação interauricular tipo ostium secundum (CIA-OS) grande.

41. Durante o internamento no Hospital Pediátrico de ... foi realizado o rastreio neonatal (teste do pezinho), não tendo o mesmo revelado qualquer patologia referente às doenças rastreadas.

42. Aos vinte e um dias de vida a CC foi transferida para o Hospital de ... para avaliação diagnóstica e terapêutica cirúrgica.

43. Nessa altura foi confirmada à autora e ao pai da CC a gravidade e complexidade da sua cardiopatia.

44. No Hospital de ... foram efectuados os seguintes diagnósticos concomitantes: Asplenia, sob profilaxia com amoxicilina; Hipogamaglobulinemia, com infeções de repetição por organismos multirresistentes; Anemia hemolítica, com necessidade de suporte transfusional frequente; Hipotiroidismo central, medicado.

45. A equipa médica do Hospital de ... informou a autora de que a CC teria que ser submetida a uma cirurgia, não garantindo que a mesma resultasse numa melhoria, e que provavelmente seriam necessárias outras cirurgias paliativas.

46. No dia 17 de Janeiro de 2019, a CC foi submetida à realização de cirurgia cardíaca para correcção do retorno venoso pulmonar anómalo total, implantação de shunt Sano (5mm), plastia dos ramos da artéria pulmonar, encerramento da comunicação interauricular tipo ostium secundum e laqueação do canal arterial.

47. O período pós-operatório foi complicado de: síndrome da veia cava superior, resolvido após revisão cirúrgica; hemorragia pulmonar, resolvida medicamente; taquicardia juncional ectópica, condicionando instabilidade hemodinâmica por baixo débito cardíaco.

48. O quadro descrito em 47 justificou a implantação de assistência circulatória mecânica contínua (ECMO), que se manteve durante sete dias.

49. No dia 24 de Janeiro de 2019 o cirurgião retirou a ECMO.

50. Durante o período em que a CC permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos Pediátricos ocorreram várias complicações de etiologia infecciosa, duas infecções do trato urinário com isolamento de Pseudomonas aeruginosa e Enterococcus faecium, tendo cumprido antibioterapia dirigida com resolução do quadro.

51. No dia 5 de Fevereiro de 2019 a CC foi extubada.

52. Cerca de um mês após a realização da intervenção cirúrgica a CC foi transferida para a enfermaria.

53. A evolução da CC, neste período, caracterizou-se por hipoxemia progressiva, com saturações de cerca de 75%, dependendo de oxigénio suplementar.

54. Para esclarecimento do quadro clínico da CC foi decidida a realização de angioTC e ecocardiograma com administração de soro agitado.

55. Esses exames revelaram a existência de lesão residual, com estenose do shunt de Sano e anomalia da drenagem da veia cava superior (retorno venoso da veia cava superior e veias pulmonares a drenar na aurícula à direita e veia cava inferior e veias supra-hepáticas a drenar na aurícula à esquerda. Shunt Sano patente com obstáculo mais significativo no ramo esquerdo da artéria pulmonar).

56. Neste contexto a CC foi submetida novamente a cirurgia cardíaca no dia 21 de Março de 2019 para realização de atrioseptectomia, plastia do ramo esquerdo da artéria pulmonar e implantação da veia cava superior no apêndice auricular direito e secção do shunt Sano com realização de shunt central.

57. A evolução pós-operatória foi sempre caracterizada por hipoxemia persistente e dependência de ventilação mecânica invasiva.

58. Para esclarecimento da situação foi realizado um cateterismo cardíaco de diagnóstico que objectivou obstrução no retorno venoso pulmonar, assimetria da perfusão pulmonar, com hipo perfusão do pulmão direito.

59. Foi efectuada tentativa de cateterização das veias pulmonares direitas para eventual dilatação, sem sucesso, por provável estenose grave na sua desembocadura.

60. A CC foi então submetida a uma terceira cirurgia cardíaca no dia 15 de Abril de 2019 para desobstrução do retorno venoso pulmonar à direita e atriosepectomia total.

61. A observação intraoperatória confirmou a obstrução na drenagem das veias pulmonares direitas.

62. O pós-operatório desta terceira cirurgia foi complicado por: choque e acidose metabólica, a necessitar de suporte inotrópico elevado, com melhoria gradual nas primeiras 48 horas, mantendo suporte vaso pressor até ao vigésimo segundo dia de pós-operatório; intercorrências infecciosas, nomeadamente urossépsis, com isolamentos de Pseudomonas aeruginosa, Citrobacter freundii e Enterococcus faecium, e sépsis com ponto de partida respiratório por Klebsiella pneumonia ESBL; lesão renal aguda secundária à instabilidade hemodinâmica e nefrotoxicidade dos antibióticos, com necessidade de diálise peritoneal durante três dias e melhoria progressiva da função renal; disfunção hepática com cito colestase, hiperamoniemia e coagulopatia; dependência de ventilação mecânica invasiva, provavelmente multifatorial, o que motivou a transferência da CC para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de ... no dia 20 de Maio de 2019.

63. Durante o internamento no Hospital de ... a CC realizou ecografias transfontanelar seriadas a 18 de Fevereiro de 2019, a 20 de Março de 2019 e a 18 de Abril de 2019, com achados dentro dos parâmetros de normalidade.

64. Nas 72 horas subsequentes à realização da intervenção cirúrgica a que se alude em 60) a CC registou uma melhoria progressiva da diurese em consequência da colocação de cateter de diálise.

65. A CC efectuou algumas tentativas de desmame ventilatório, das quais resultou o agravamento da função respiratória.

66. A última vez que a CC esteve em SIMV foi no dia 11 de Maio, sendo colocada em PRVC por se apresentar completamente desadaptada do ventilador.

67. Nessa altura houve necessidade de ser aumentada sedação em perfusão que já se encontrava em desmame com diazepan em bólus PO.

68. A CC tinha secreções mucopurulentas, chegando a ter secreções hemáticas, o que deixou de suceder a partir do dia 12 de Maio de 2019, tendo apenas, pontualmente, secreções raiadas de sangue.

69. A certa altura a autora e o pai da CC dirigiram-se aos Cuidados Intensivos e foram informados de que deveriam vestir batas e colocar luvas e máscaras, em virtude de a mesma ter contraído uma infecção generalizada muito grave.

70. A partir dessa data a autora e o pai da CC só puderam tocar na sua filha com luvas.

71. No dia 26 de Maio de 2019 a autora e o pai da CC foram convocados para uma reunião com uma parte da equipa médica do Hospital de... e com a Dr.ª Isabel Freitas, do Hospital de ..., tendo-lhes sido transmitido que era preciso saber quando parar.

72. No decurso dessa reunião os pais da CC foram informados, pelo corpo clínico, de que não havia nenhuma solução para reverter o quadro clínico da CC.

73. No final da reunião os pais da CC declararam que, acontecesse o que acontecesse, não queriam que a sua filha sofresse mais, tendo-lhes sido referido que a CC iria ser colocada em coma, o que efectivamente aconteceu.

74. O coração da CC parou no dia ... de Maio de 2019, pelas 00h34, no Hospital de ..., estando os seus pais ao seu lado no exacto momento em que isso aconteceu.

75. A autora e o pai da CC voltaram para ... com a sua filha, tendo a CC sido sepultada no Cemitério de ....

76. Os pais da CC sempre a acompanharam na sua luta pela vida, nunca desistindo de a manter viva.

77. A autora não esquece o sofrimento e a agonia da sua filha.

78. A autora vivenciou todo o padecimento e sofrimento da sua filha, assistindo, impotente, à contínua degradação da vida da CC, o que lhe provocou sofrimento, tristeza e profunda depressão.

79. No dia 29 de Setembro de 2011, a Direcção Geral da Saúde, por proposta conjunta do Departamento da Qualidade na Saúde e da Ordem dos Médicos, emitiu a Norma n.º 023/2011, actualizada a 21 de Maio de 2013, com o seguinte teor:

“I – NORMA

Da prescrição

1 – Na vigilância da gravidez de baixo risco realizam-se os seguintes exames ecográficos de rastreio, com os critérios e nos períodos que a seguir se definem:

a) 1º trimestre: ecografia obstétrica, realizada entre as 11 e as 13 semanas e seis dias (Nível de evidência A, Grau de recomendação I);

b) 2º trimestre: ecografia obstétrica, realizada entre as 20 e as 22 semanas (Nível de evidência A, Grau de recomendação I);

c) 3º trimestre: ecografia obstétrica, realizada entre as 30 e as 32 semanas (Nível de evidência C, Grau de recomendação II-a).

2 – Sempre que existam razões para duvidar da idade cronológica ou impossibilidade de a calcular, pode ser realizada ecografia para datação da gravidez.

3 – Quando o cálculo da idade gestacional é feito pelo comprimento crânio-caudal, na ecografia das 11-13 semanas e seis dias, mantém-se inalterável ao longo de toda a gravidez.

Da execução

4 – Em todos os exames ecográficos realizados nos períodos anteriormente definidos, são avaliados os seguintes itens:

a) número de fetos e placentas;

b) atividade cardíaca;

c) movimentos fetais;

d) biometria (valores colocados em gráfico de referência para o tempo de gestação e documentados por imagem);

e) localização da placenta e quantidade de líquido amniótico;

5- No exame ecográfico realizado no 1º trimestre

a) devem ser avaliados os seguintes itens, para além daqueles definidos no n.º 4 da presente Norma:

i. comprimento crânio-caudal;

ii. frequência cardíaca;

iii. medida da translucência da nuca (valor absoluto e percentil para a idade gestacional);

iv. quantificação do risco de trissomia 21 (baseado na medida de translucência da nuca e na idade materna), usando para este fim uma base de dados informatizada;

v. anatomia do feto: pólo cefálico, coluna vertebral, estômago, parede abdominal e membros;

vi. corionicidade (definição em caso de gravidez múltipla);

vii. anexos (observação e descrição).

b) deve ser produzido um relatório escrito onde obrigatoriamente deve constar informação sobre:

i. itens definidos no n.º 4 da presente Norma;

ii. itens definidos no n.º 5, a) da presente Norma;

iii. eventuais limitações à qualidade do exame;

iv. cálculo da idade gestacional a que corresponde o comprimento crâniocaudal e cálculo do risco de trissomia 21.

6 – No exame ecográfico realizado no 2º trimestre: a) para além dos itens definidos no n.º 4 da presente Norma, deve incluir-se o estudo das seguintes estruturas:

i. contorno craniano e cérebro: estruturas inter-hemisféricas incluindo o cavum do septum pellucidum; ventrículos laterais; plexo coróideu; cerebelo e cisterna magna;

ii. face e pescoço: órbitas, perfil, osso nasal, lábios, maxilares e prega da nuca;

iii. tórax: coração (quatro cavidades, cruzamento das grandes artérias e corte dos três vasos, frequência e ritmo cardíaco), pulmões;

iv. abdómen: parede abdominal, fígado, estômago, intestino, rins, bexiga;

v. coluna vertebral;

vi. membros superiores: três segmentos;

vii. membros inferiores: três segmentos;

viii. cordão umbilical: inserção e número de vasos;

ix. genitais externos.

b) deve ser produzido relatório escrito onde obrigatoriamente deve constar informação sobre:

i. itens definidos no n.º 4 da presente Norma;

ii. itens definidos no n.º 6, a) da presente Norma;

iii. eventuais limitações à qualidade do exame;

iv. enquadramento do observado num padrão de normalidade e referência a eventual patologia identificada.

7 – No exame ecográfico realizado no 3º trimestre:

a) para além dos itens definidos no n.º 4 da presente Norma, deve incluir também:

i. apresentação fetal;

ii. perímetro cefálico;

iii. perímetro abdominal;

iv. comprimento do fémur;

v. estimativa ponderal;

vi. parâmetros biofísicos de avaliação do bem-estar fetal.

b) deve ser produzido um relatório escrito onde obrigatoriamente deve constar informação sobre:

i. itens definidos no n.º 4 da presente Norma;

ii. itens definidos no n.º 7, a) da presente Norma;

iii. eventuais limitações à qualidade do exame;

iv. percentil e referência a eventual patologia identificada.

8 – Os relatórios dos exames ecográficos são fornecidos à grávida, registados no Boletim de Saúde da Grávida (BGS) e no seu processo clínico.

(…).

II – CRITÉRIOS

A. Os exames e rastreios definidos na presente Norma são realizados a todas as grávidas, sendo que as de risco acrescido fazem, além destes, os exames adequados ao risco identificado.

(…). IV – FUNDAMENTAÇÃO

A. A ecografia realizada entre as 11 e as 13 semanas e seis dias tem como objetivos: confirmar a viabilidade fetal, determinar o número de fetos e corionicidade, datar corretamente a gravidez, diagnosticar malformações major e contribuir para a avaliação do risco de aneuploidias. (…).

E. A ecografia do segundo trimestre permite confirmar alguns dados da ecografia do primeiro trimestre, mas destina-se, sobretudo, à identificação de malformações fetais. São de especial relevância as malformações incompatíveis com a vida ou associadas a elevada morbilidade pós-natal, anomalias com potencial para tratamento intrauterino ou que exigem tratamento ou investigação pós-natal.

F. Estima-se uma prevalência de malformações fetais de cerca de 2% e uma taxa global de deteção pré-natal de cerca de 45% (15-85,3%). Existe, no entanto, uma grande variação na sensibilidade da ecografia para a deteção de malformações fetais, consoante os diferentes estudos, que poderá ser explicada: pelo tipo de anomalia, pela idade gestacional à data da ecografia, pela técnica do ecografista e pela qualidade do equipamento utilizado.

G. Existem poucos trabalhos que abordem a altura ideal para a realização da ecografia do 2º trimestre. Pretende-se um compromisso entre a idade gestacional em que melhor se visualizam as diferentes estruturas fetais com aquela em que a eventual opção de interrupção da gravidez é legal e eticamente aceitável para os casais. O período entre as 20 e as 22 semanas é aquele em que o exame é mais fácil de executar e com menos probabilidade de necessitar repetição quando comparado com as 18 semanas.

H. A ecografia obstétrica realizada entre as 30 e as 32 semanas é o exame de eleição para a avaliação do desenvolvimento fetal e o diagnóstico de anomalias tardias. (…).”.

80. A ecografia referente ao segundo trimestre de gestação não poderia deixar de revelar a existência de sinais que fundamentavam a suspeita de que a CC padecia de uma cardiopatia.

81. Quando, no decurso da realização de ecografias de rastreio, surja a suspeita da existência de uma malformação cardíaca, a boa prática médica impõe o encaminhamento da grávida com vista à realização de um ecocardiograma ao coração do feto.

82. O réu, enquanto técnico de saúde e médico ginecologista-obstetra especializado, não podia deixar de identificar a malformação do coração da CC.

83. O réu não identificou a referida malformação por ter visualizado os exames ecográficos realizados à autora de forma desatenta.

84. O diagnóstico pré-natal de uma cardiopatia congénita impõe, de acordo com as boas práticas da medicina, o encaminhamento da grávida para estabelecimento hospitalar especializado, no qual deverá ser realizado o parto.

85. Não foi concedida à autora a possibilidade de optar pela interrupção da gravidez.

86. A autora, juntamente com o pai da CC, teria ponderado a possibilidade de interromper a gravidez caso tivesse sido informada das consequências da dextrocardia de que a sua filha padecia.

87. O réu podia ter detectado a anomalia que afectava o coração da CC.

88. O réu não se apercebeu da dextrocardia que era visível através da realização de ecografias fetais.

89. A CC viveu praticamente todos os dias da sua vida em agonia, sujeita a medicação, cuidados continuados e três intervenções cirúrgicas.

90. A autora recorda permanentemente a sua filha com enorme tristeza e saudade.

91. A autora não se conforma com a perda da sua filha.

92. A autora devotou todo o seu amor e carinho à CC durante a sua vida.

93. A autora é uma pessoa triste, amargurada e revoltada por ter perdido a sua filha.

94. A autora teve uma gravidez de baixo risco, sem complicações, por não ter sido identificado qualquer factor acrescido de morbilidade materna e fetal.

95. Numa situação de situs inversus total o estômago está posicionado mais à direita, o que nunca foi detectado pelo réu no decurso dos exames ecográficos a que a autora se submeteu.

96. Em nenhum dos exames ecográficos realizados foi detectada pelo réu qualquer situação de alarme que justificasse a realização de algum exame complementar, sendo as condições de observação da grávida as consideradas normais.

97. O réu nunca identificou qualquer sinal de patologia cardíaca do feto, sendo os registos cardiotocográficos reactivos e normais.

98. Nas imagens referentes às ecografias juntas aos autos pela autora não se detecta qualquer situs inversus, nem qualquer comunicação interventricular ou outra patologia.

99. A CC faleceu por insuficiência renal e insuficiência cardíaca, na sequência das infecções por si contraídas durante o período de internamento hospitalar a que esteve sujeita.

100. O falecimento da CC não resultou de qualquer acto médico praticado pelo réu, nem este provocou qualquer tipo de doença ou patologia.

101. A dextrocardia, só por si, não provoca a morte.

102. A comunicação interventricular pode ser corrigida com a realização de cirurgias.

103. O réu não é responsável pela implantação dos grandes vasos na gestação da CC, nem pelas patologias que a afectavam.

104. O retorno venoso pulmonar anómalo total e a atresia pulmonar são de muito difícil diagnóstico intrauterino.

105. Os dados transmitidos pelo ecógrafo comportam uma margem de erro.

106. Foi prestada à CC a mesma assistência médica que se revelaria adequada caso a cardiopatia tivesse sido diagnosticada antes do seu nascimento.

107. A dextrocardia não é a causa de qualquer comunicação interventricular nem da malposição das grandes artérias, nem do retorno venoso pulmonar anómalo total.

Factos dados como não provados:

a) Que a autora engravidou no dia ... de Abril de 2018.

b) Que a autora efectuou transferência de dois embriões no dia ... de Abril de 2018.

c) Que uma semana após a consulta a que se alude em 7) dos factos considerados provados a autora deslocou-se aos Hospitais da Universidade de ... para realizar a primeira ecografia, naquele Centro Hospitalar, depois da fertilização in vitro, tendo sido possível ouvir os batimentos cardíacos do embrião.

d) Que na ocasião mencionada em 10) e 11) dos factos considerados provados o réu referiu que a onfalocele, nessa idade gestacional de nove semanas, era uma “coisa banal e corriqueira”.

e) Que o réu não transmitiu à autora e ao seu marido nenhuma informação relativa ao objectivo da ecografia realizada às doze semanas.

f) Que o réu não informou a autora da importância da ecografia a que se alude em 17) dos factos considerados provados.

g) Que a autora nunca se apercebeu de qualquer diferença entre a ecografia a que se alude em 17) dos factos considerados provados e as anteriores.

h) Que todas as consultas e ecografias realizadas pelo réu tinham uma duração limitada que não excedia, em média, os 10 ou 15 minutos.

i) Que as ecografias referentes ao primeiro, ao segundo e ao terceiro trimestres tiveram uma duração de cerca de quarenta e cinco minutos.

j) Que as restantes ecografias e exames realizados à autora duraram sempre, pelo menos, vinte a trinta minutos.

k) Que na ecografia mencionada em 21) dos factos considerados provados foi possível visualizar o cérebro, o formato da face, o coração e seus retornos venosos.

l) Que na ocasião mencionada em 34) dos factos considerados provados, a médica pediatra que se encontrava de serviço auscultou a CC e constatou a existência de dificuldades respiratórias, apresentando, a mesma, saturações de 50% de oxigénio.

m) Que no dia 20 de Dezembro de 2018 o réu, que se encontrava no Hospital ... e, casualmente, se deparou com a Autora, perguntou-lhe se estava tudo bem, tendo a autora respondido que a CC tinha nascido com o coração rodado para a direita, após o que o Réu, manifestando surpresa, exclamou “rodado para a direita?!”.

n) Que na sequência de reunião com o cirurgião cardíaco do Hospital Pediátrico de ..., ocorrida no final do mês de Dezembro de 2018, o mesmo informou que nada tinha para oferecer à CC, devido à alta complexidade do caso, e que as suas hipóteses de sobrevivência eram diminutas.

o) Que no Hospital Pediátrico de ... a CC esteve sempre com diagnóstico estável, mas sempre com saturações entre os 70% e os 80%, devido à administração de alprostadilo.

p) Que, em face da complexidade da cardiopatia em causa, a equipa médica do Hospital de ... quis fazer exames mais completos e específicos como angiografias, TAC ecocardiogramas, RX e, mais tarde, outros exames como cateterismos e TAC pulmonar.

q) Que, na ocasião mencionada em 45) dos factos considerados provados, a autora foi informada de que a CC teria que se submeter à realização de cirurgias para mudança de shunt até aos vinte anos de idade.

r) Que só no Hospital de ... é que os pais da CC tiveram conhecimento efectivo da patologia concreta de que a mesma padecia.

s) Que pelo médico interno, Dr. EE, foi referido que a cardiopatia que afectava a CC “era altamente complexa e que já há muito tempo que não aparecia naquele Hospital uma cardiopatia tão grave”.

t) Que após a realização da cirurgia a que se alude em 46) dos factos considerados provados a CC ficou com o esterno aberto, sedada, algaliada e com cateteres centrais para administração de medicação (milrinona, heparina, soro composto, morfina, midalozam, dopamina, furosemida, albumina humana, cisatracúrio, adrenalina, noradrenalina, amicacina, aminofilina, vancomicina, gentamicina, meropenem, diazepam, ertapenem).

u) Que, na ocasião indicada em 49) dos factos considerados provados, o cirurgião disse aos pais da CC para estarem preparados para o pior pois a mesma teria poucas hipóteses de sobrevivência, uma vez que não conseguiria sobreviver sem a ECMO, já que estava com saturações que não ultrapassavam os 30%, com tendência a diminuir.

v) Que durante a madrugada do dia 24 para o dia 25 de Janeiro de 2019 a CC começou a apresentar melhorias.

w) Que no dia 26 de Janeiro de 2019 a CC teve uma recaída, começando por ficar mais cianótica e com a saturação muito baixa, motivo pelo qual a equipa médica decidiu fazer um teste ao nível de hemoglobina.

x) Que, como o nível de hemoglobina estava muito baixo, a equipa médica decidiu fazer uma transfusão de sangue e aumentar o nível de oxigénio.

y) Que, no dia 28 de Janeiro de 2019, foi realizado um cateterismo cardíaco de diagnóstico para perceber se as artérias teriam alargado e provocado essa melhoria.

z) Que tal melhoria manteve-se nos dias seguintes, apesar de a CC continuar com arritmias e batimentos ventriculares prematuros (extrassístoles).

aa) Que na ocasião mencionada em 52) dos factos considerados provados foi efectuado prognóstico de implicações no desenvolvimento psicomotor da CC, em função das intervenções e terapêuticas de que a mesma necessitava.

bb) Que, como a CC, entretanto, melhorou, o passo seguinte era reaprender a mamar do biberão para poder ir para casa.

cc) Que a equipa médica comunicou ainda à autora a possibilidade de vir a ser realizada uma cirurgia denominada de Fontan, o que teria que ser decidido conforme o crescimento da CC, pois seria preciso apurar se o seu coração iria ficar com uma função uni ventricular ou não.

dd) Que durante a sua permanência na enfermaria a CC deixou de poder mamar no biberão porque não aguentava o cansaço e teve que passar a ser exclusivamente alimentada por sonda nasogástrica.

ee) Que foi ainda necessário administrar-lhe medicação para dormir, para evitar que as saturações baixassem para níveis drásticos. (Hidrato de 8/8 horas).

ff) Que como a CC tinha frequentes crises de baixas saturações a Dr.ª FF teve a necessidade de encontrar uma técnica que consistia em colocá-la deitada no berço a direito, sem qualquer inclinação e com as pernas flectidas.

gg) Que também em relação à alimentação foram feitos reajustes e a CC passou a ser alimentada por sonda continuamente (só fazia duas pausas por dia de meia hora), cerca de 25 mililitros /hora, para não fazer esforço.

hh) Que o plano seguinte consistia em fazer um treino para lhe retirar o oxigénio que consistia em baixar diariamente 0,5 ml, no sentido de fazer um desmame.

ii) Que nesta fase foi ponderada pela equipa médica a alta hospitalar da CC, apesar de esta não conseguir atingir os 75% de saturação, mesmo tomando oxigénio.

jj) Que essa sugestão causou perplexidade à autora, tendo-lhe sido explicado pelo corpo clínico que seria normal a CC ter dias piores que outros e que provavelmente iria com oxigénio portátil e algumas recomendações, evitando sair para lugares públicos e fechados.

kk) Que entre Fevereiro e Abril de 2019 a CC fez a vacina mensal VSR (vírus sincicial respiratório) devido à sua insuficiência cardíaca e respiratória.

ll) Que a cirurgia a que se alude em 56) dos factos considerados provados demorou cerca de seis horas.

mm) Que ao terceiro dia de pós-operatório o cirurgião fechou o esterno e a CC começou a melhorar progressivamente.

nn) Que o cateterismo cardíaco de diagnóstico a que se alude em 58) dos factos considerados provados foi realizado no dia 11 de Abril de 2019.

oo) Que, na ocasião mencionada em 69) dos factos considerados provados, o Prof. Doutor GG adiantou que se tornava imperativo tratar da infecção e, caso fosse necessário, faria uma traqueostomia.

pp) Que, no Hospital de ..., a autora e o pai da CC foram informados de que a sua filha contraíra uma nova bactéria hospitalar, começando a fazer mais um antibiótico, pois as análises mostravam que os parâmetros infecciosos estavam muito elevados, mas que ao longo dos dias seguintes iam descendo lenta e gradualmente.

qq) Que a autora e o pai da CC verificaram ainda que a sua filha continuava a piorar ao ponto de ficar quase desfigurada devido à baixa diurese, situação que foi aumentando progressivamente ao longo dos dias.

rr) Que, no dia 21 de Maio de 2019, a Dr.ª HH, do Hospital de ..., deslocou-se ao Hospital de ... para fazer um eletrocardiograma à CC, cujo resultado indiciava que com o coração estava tudo bem.

ss) Que ao longo dos dias foi necessário aumentar para parâmetros muito elevados o suporte ventilatório.

tt) Que a insuficiência renal da CC levou a que os médicos subissem para uma elevada percentagem a medicação, na tentativa de a levar a urinar, o que nunca chegou a acontecer.

uu) Que, em simultâneo, especialistas médicos realizaram ainda várias ecografias renais em que concluíram que dificilmente conseguiriam reverter a situação.

vv) Que, no decurso da reunião a que se alude em 71) dos factos considerados provados, a Dr.ª Isabel Freitas afirmou que já tinha falado com o Prof. Doutor GG e que este tinha informado que não iria fazer mais nenhuma cirurgia à CC.

ww) Que, nessa reunião, o corpo clínico informou ainda os pais da CC de que tinha sido admitida a hipótese de inserir um cateter, mas como as veias da CC eram muito pequeninas, existia um grande risco de esta vir a ter uma hemorragia e, por conseguinte, esta alternativa foi descartada, pelo que teria que se esperar para se ver se a CC respondia ou não à medicação.

xx) Que, quando a Autora tocava na sua filha para lhe colocar creme ou quando tinham que a posicionar, verificava que a mesma ficava com poças na pele devido ao extremo inchaço.

yy) Que a CC estava irreconhecível e, devido a esse inchaço, já era impossível verificar os níveis de saturação e tensão arterial, até que, progressivamente, o seu ritmo cardíaco começou a diminuir.

zz) Que, no dia 28 de Maio de 2019, o capelão do Hospital de ..., apercebendo-se do seu estado de espírito, acercou-se dos pais da CC, na tentativa de os acalmar e conformar com a situação da sua filha, pelo que, nesse mesmo dia, decidiram baptizar a CC.

aaa) Que a cardiopatia que afectava a CC poderia ter sido revertida através de cirurgia, ou, pelo menos, atenuada se tivesse sido detectada antes do seu nascimento.

bbb) Que a ecografia morfológica não poderia deixar de revelar a asplenia de que a CC padecia.

ccc) Que o réu não podia deixar de identificar a ausência de baço.

ddd) Que o réu não identificou a malformação do coração da CC, nem a ausência de baço por usar um aparelho desactualizado.

eee) Que a Autora pagou todos os serviços médicos que lhe foram prestados pelo Réu.

fff) Que a detecção da cardiopatia no decurso das ecografias realizadas pelo réu teria permitido corrigi-la cirurgicamente ainda durante a gestação ou logo a seguir ao parto.

ggg) Que a detecção da cardiopatia no decurso das ecografias realizadas pelo Réu teria permitido à CC sobreviver ou, pelo menos, aumentaria a probabilidade de a mesma sobreviver.

hhh) Que a CC já reagia aos estímulos da autora, sorrindo, esbracejando e sentindo-se confortável na sua presença.

iii) Que a Autora despendeu a quantia de € 1.496,51 com os tratamentos da sua filha, incluindo despesas referentes a Via Verde e parques no montante de € 632,45.

jjj) Que a autora pagou ao réu o montante de € 637,50, a título de honorários, pelas consultas, exames e ecografias que realizou.

kkk) Que o réu nunca teve qualquer caso semelhante ao dos presentes autos ao longo da sua carreira profissional de mais de quarenta anos de trabalho.

lll) Que o réu realizou milhares de ecografias desde o ano de 1981, data em que se iniciou na prática e análise de ecografias nos Hospitais da Universidade de ....

mmm) Que ao longo do acompanhamento da autora, o réu procedeu à realização de treze ecografias obstétricas, o que fez por forma a ter um maior grau de certeza e melhor acompanhamento do feto, designadamente síndromes fetais, problemas placentares, níveis de líquido amniótico e evolução do feto.

nnn) Que nos três exames trimestrais ecográficos realizados o réu cumpriu escrupulosamente os parâmetros e critérios constantes da Norma da Direcção Geral da Saúde a que se alude em 79) dos factos considerados provados, avaliando todos os itens aí indicados.

ooo) Que o réu elaborou os relatórios escritos correspondentes às três ecografias trimestrais indicadas na Norma da Direcção Geral da Saúde a que se alude em 79).

ppp) Que, nos restantes dez exames ecográficos realizados à autora, o réu, seguindo a orientação da cabeça do feto, procurou sempre analisar: a posição do coração, com estudo da orientação do apex em relação ao estômago; a posição do ventrículo direito mais próximo da parede torácica e à esquerda da coluna, o que se verificava no caso da CC;  as quatro cavidades cardíacas, sua simetria e dimensões; estudo do septo interventricular com uso de doppler para despiste de comunicação interventricular; refluxo da tricúspide;  análise dos grandes vasos (aorta e artéria pulmonar);  ritmo cardíaco;  doppler da artéria umbilical (03 vasos) e a artéria cerebral média; placenta; líquido amniótico e comprimento do colo uterino; peso estimado do feto (para avaliar se não há restrições de crescimento); análise de rins e bexiga, entre outros que se mostrassem necessários.

qqq) Que só com a realização de um angiotac foi possível detectar a dextrocardia e a patologia dos grandes vasos que afectavam a CC.

rrr) Que o diagnóstico intrauterino da dextrocardia que afectava a CC não era possível.

sss) Que nas imagens referentes às ecografias juntas aos autos pela autora observa-se o coração posicionado à esquerda e quatro cavidade simétricas.

ttt) Que, em teoria, a dextrocardia pode ser detectada após as trinta e duas semanas de gestação.

uuu) Que o réu realizou as consultas e ecografias com zelo, diligência e rigor.

vvv) Que no Hospital de ... foi prestada à CC toda a assistência necessária que lhe seria prestada em qualquer outro Hospital.

III – Fundamentação de direito

1. Atendendo à elevada relevância social e humana dos interesses que estão em causa na presente acção, considera-se necessário começar por delimitar, de forma rigorosa, qual a questão ou questões que integram o objecto do presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Deste modo, importa esclarecer que, ainda que a autora tenha intentado a presente acção com fundamento em negligência do médico réu no acompanhamento da sua gravidez, peticionando uma indemnização pelo dano da morte da sua filha e pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria autora por causa dessa morte e ainda por ter presenciado o sofrimento da criança durante os meses que antecederam a morte, veio a ser proferida sentença na qual se entendeu:

i. Que «o facto ilícito e culposo praticado pelo Réu, ao não detetar, em momento anterior ao do nascimento da CC, as malformações cardíacas de que a mesma padecia, não só não provocou a morte da mesma, como nem sequer reduziu a probabilidade de a CC sobreviver aos tratamentos médicos a que foi submetida, já que estes coincidiram com os que teriam sido realizados caso a sua cardiopatia tivesse sido objeto de diagnóstico intrauterino»;

ii. Que, «[s]endo assim, não se verifica o necessário nexo de causalidade adequada entre o facto praticado pelo Réu e o dano consistente na morte da filha da Autora», pelo que, «[e]m consequência, não poderá deixar de improceder o pedido de condenação do Réu no pagamento da indemnização no valor de € 50.000,00 formulado pela Autora a título de compensação pelo dano morte da sua filha CC»;

iii. Que, quanto ao pedido de «condenação do Réu no pagamento de uma indemnização no valor de € 50.000,00 para compensação dos danos de natureza não patrimonial sofridos pela própria Autora por ter acompanhado todo o sofrimento e agonia da sua filha recém-nascida, assim como por ter acabado por perdê-la» e, «[à] semelhança do que foi já mencionado a propósito da morte da CC, também o percurso por esta efetuado ao nível dos internamentos hospitalares a que esteve sujeita, assim como das intervenções cirúrgicas, exames médicos e demais tratamentos que lhe foram ministrados não sofreu qualquer alteração por não ter havido notícia, em data anterior à do seu nascimento, da existência da cardiopatia congénita que a afetava».

A mesma sentença considerou, porém, que:

i. «No entanto, o facto ilícito e culposo praticado pelo Réu, ao não detetar as malformações em causa e ao não informar a Autora acerca da existência das mesmas, não foi indiferente para o modo como tais danos foram causados e, sobretudo, para o impacto e para a dimensão que os mesmos assumiram»;

ii. Pelo que, «tendo a Autora sido confrontada com a notícia de que a sua filha padecia de uma cardiopatia congénita complexa apenas no segundo dia de vida da mesma, é evidente que acompanhou todo o seu sofrimento e padecimento em condições diferentes das que se teriam verificado se tivesse sido previamente informada e preparada para enfrentar um quadro clínico com essa gravidade»;

iii. Como compensação para aquilo que considerou serem danos não patrimoniais da autora resultantes da falta de informação atempada sobre a grave patologia congénita da sua filha, o Tribunal da 1.ª instância decidiu atribuir uma indemnização no montante de € 25.000,00.

2. Tendo o réu interposto recurso de apelação desta decisão, argumentando no sentido da sua revogação, veio o Tribunal da Relação a apreciar o objecto recursório, considerando que «[a] conclusão a retirar da matéria de facto é a que a autora, ora recorrida, não demonstrou, como lhe cabia (n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil), o nexo de causalidade entre a omissão ilícita e culposa imputada ao réu, ora recorrente, e os danos não patrimoniais que foram objecto de indemnização. Visto que tal nexo de causalidade era condição necessária da obrigação de indemnizar tais danos, a decisão conforme à lei era a improcedência do pedido de condenação na indemnização de tais danos. Há, assim, fundamento para revogar a sentença e substituí-la por decisão que absolva o réu de tal condenação.».

3. Insurge-se a autora contra esta decisão, afirmando expressamente que o «presente recurso tem por objecto único saber se o nexo de causalidade entre o facto danoso e co-respectivo dano indemnizatório pelos danos não patrimoniais em que o recorrido foi condenado a pagar à recorrente € 25.000,00 se encontra verificado ou não, sendo esta a única questão que se submete ao superior conhecimento» do tribunal.

Em prol da sua pretensão, alega a recorrente essencialmente o seguinte (concls. J), L), N), O) e P)):

- A decisão recorrida ignora «completamente a possibilidade de ressarcibilidade dos danos indirectos conforme é aceite pela doutrina e jurisprudência, na medida em que exista conexão entre o facto ilícito e culposo e o dano»;

- [E]ssa ligação resulta desde logo da causa de pedir e pedido bem como designadamente [d]os art.ºs 168.º; 169.º; 170.º; 173.º e 177.º, da p.i., e da matéria assente sob os pontos 16; 17; 38; 80; 81; 82; 85; 86; 87; 88; 94; 95; 96 e 97 da douta Sentença proferida pela 1.ª Instância que traduzem inequivocamente o sofrimento da recorrente relativamente à falta de informação e que se concretiza no pedido genérico constante da al. B), da p.i.»;

- «[A]inda que de forma indirecta (...) o nexo de causalidade que originou a decisão da 1.ª instância na condenação do recorrido nos danos não patrimoniais atribuídos, se encontra preenchido quer enquanto causa de pedir, pedido e matéria assente como supra se reproduziu»;

- «Com efeito neste pedido genérico de danos não patrimoniais está compreendido não só o sofrimento da recorrente relativamente à morte da CC (para cujo dano não concorreu a conduta ilícita do recorrido), como também todos os demais danos sofridos em consequência desta conduta nomeadamente a enorme surpresa de só ter tido conhecimento das malformações após o nascimento desta, quando o recorrido estava obrigado a dar-lhe essa informação a meio sensivelmente da sua gravidez o que provocou à recorrente um enorme e inesperado sofrimento (dano), para o qual não se encontrava preparada/avisada»;

- «Ou seja seguindo a Jurisprudência transcrita provando-se a culpa e ilicitude do agente resultante da violação de uma obrigação contratual, como resulta dos autos relativamente ao recorrido, basta a verificação que desta actuação omissiva e culposa resultam danos indirectos para que se encontre verificado o nexo de causalidade, sempre que a contraparte (recorrido), não demonstre, como se prova, que aqueles danos não tenham resultado do seu facto culposo, ilícito e omissivo».

Vejamos.

4. Vem provado (factos 99 e 100) que «[a] CC faleceu por insuficiência renal e insuficiência cardíaca, na sequência das infecções por si contraídas durante o período de internamento hospitalar a que esteve sujeita» e que «[o] falecimento da CC não resultou de qualquer acto médico praticado pelo réu, nem este provocou qualquer tipo de doença ou patologia».

Perante a prova feita, não vem posto em causa que o réu, na qualidade de médico que acompanhou a gravidez da autora, não pode ser responsabilizado pela morte da filha da autora, nem pelos sofrimentos da mesma que antecederam a morte, nem tampouco pelo sofrimento da autora pela perda da vida da filha.

5. Contudo, foi também provado (factos 80 a 83 e 88) que «[a] ecografia referente ao segundo trimestre de gestação não poderia deixar de revelar a existência de sinais que fundamentavam a suspeita de que a CC padecia de uma cardiopatia», que «[q]uando, no decurso da realização de ecografias de rastreio, surja a suspeita da existência de uma malformação cardíaca, a boa prática médica impõe o encaminhamento da grávida com vista à realização de um ecocardiograma ao coração do feto», que «[o] réu, enquanto técnico de saúde e médico ginecologista-obstetra especializado, não podia deixar de identificar a malformação do coração da CC», que «[o] réu podia ter detectado a anomalia que afectava o coração da CC» e ainda que «[o] réu não se apercebeu da dextrocardia que era visível através da realização de ecografias fetais».

Antes de prosseguir, convém ter presente aquilo que, em relação ao significado dos factos provados 104 e 105 («O retorno venoso pulmonar anómalo total e a atresia pulmonar são de muito difícil diagnóstico intrauterino»; «Os dados transmitidos pelo ecógrafo comportam uma margem de erro»), se pode ler no acórdão recorrido o seguinte:

«Da matéria acabada de transcrever, a única que é susceptível de contender com as razões pelas quais o réu ora recorrente não detectou as malformações do coração do feto é a discriminada sob os números 104 e 105.º. Porém, como bem se observou na sentença, nenhuma desta matéria justifica o facto de o réu, ora recorrente, não ter detectado as malformações do feto. Assim:

• A circunstância de o retorno venoso pulmonar e a atresia pulmonar serem de muito difícil diagnóstico intra-uterino justificam a não detecção destas anomalias. Sucede que estas não eram as únicas malformações do coração. Havia outras, descritas no ponto n.º 40, em relação às quais não existiam tais dificuldades de diagnóstico intrauterino.

• A circunstância de os dados transmitidos pelas ecografias comportarem uma margem de erro também não justifica que o réu não tenha detectado nenhuma das anomalias do coração do feto, como sucedeu no caso. Como bem se escreveu na sentença, não resulta da matéria de facto que o erro em que incorreu o réu ora recorrente quanto ao diagnóstico das anomalias do coração do feto esteja compreendida na margem de erro das ecografias fetais.»

Feito este esclarecimento, temos, que, tal como ajuizaram as instâncias, se entende que o réu médico incumpriu o dever de informação a que se encontrava contratualmente adstrito, sendo que, provado que «[o] réu não identificou a referida malformação por ter visualizado os exames ecográficos realizados à autora de forma desatenta» (facto 83), se encontra feita a prova de que o incumprimento foi culposo.

Encontram-se, assim, preenchidos os pressupostos da ilicitude (por violação do dever de informação) e da culpa na actuação do médico réu.

Dada a importância nuclear que o dever de informação ocupa no conjunto dos deveres jurídicos a que os médicos estão adstritos, não pode deixar de se considerar que a conduta do réu é merecedora de particular censura ético-jurídica.

6. A divergência entre o entendimento do acórdão recorrido e a posição assumida pela autora, ora recorrente, incide sobre a questão da verificação dos pressupostos do dano e do nexo de causalidade entre o desrespeito pelo dever de informação e o dano.

Antes de mais, cumpre deixar claro que, diversamente do alegado pela recorrente (ao afirmar «provando-se a culpa e ilicitude do agente resultante da violação de uma obrigação contratual (...) basta a verificação que desta actuação omissiva e culposa resultam danos indirectos para que se encontre verificado o nexo de causalidade, sempre que a contraparte (recorrido), não demonstre, como se prova, que aqueles danos não tenham resultado do seu facto culposo, ilícito e omissivo»), de acordo com as regras gerais vigentes (cfr. arts. 5.º, n.º 1, do CPC e 342.º, n.º 1, do Código Civil), cabe ao autor o ónus de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil, sendo que, no domínio da responsabilidade contratual, a culpa se presume (cfr. art. 799º, n.º 1, do Código Civil), presunção que, no caso dos autos, se mostra irrelevante, uma vez que foi feita a prova da conduta culposa do réu.

Relativamente ao que ora está em causa – preenchimento dos pressupostos do dano e do nexo de causalidade entre o desrespeito pelo dever de informação e o dano –, foi alegada e provada a seguinte factualidade:

8. No dia 7 de Maio de 2018, às sete semanas de gestação, a autora deslocou-se ao consultório do réu, onde foi realizada nova consulta e nova ecografia que permitiu percepcionar os batimentos cardíacos do embrião, tendo o réu dito à autora e ao seu marido que estava tudo a correr normalmente.

10. No dia 25 de Maio de 2018, na sequência da realização de mais uma consulta, foi efectuada nova ecografia, na qual foi possível visualizar o embrião em formação e ouvir os seus batimentos cardíacos, tendo o réu referido uma vez mais que estava tudo bem.

13. No dia 14 de Junho de 2018, às doze semanas de gestação e no decurso de nova consulta, foi realizada nova ecografia através da qual foi possível visualizar o corpo do feto, as mãos, os pés, a cabeça, a translucência nucal e os batimentos cardíacos, mantendo o réu que tudo decorria normalmente.

14. No dia 19 de Julho de 2018 foi realizada uma nova ecografia, tendo o réu verificado o comprimento do fémur, o perímetro cefálico e também os batimentos cardíacos do feto, mantendo que tudo corria normalmente.

15. A autora, que não percebia as imagens das ecografias e não possuía conhecimentos médicos, confiava no Réu.

16. No dia 8 de Agosto de 2018, às vinte semanas de gestação, foi efectuada uma nova ecografia, na qual foi visualizada a coluna, o perímetro cefálico, os batimentos cardíacos, a placenta e o colo do útero, tendo o réu confirmado, mais uma vez, que estava tudo bem.

17. No dia 5 de Setembro de 2018, por volta das vinte e quatro semanas, foi realizada a ecografia referente ao segundo trimestre, através da qual o réu visualizou o perímetro cefálico e os batimentos cardíacos, referindo, mais uma vez, que estava tudo bem.

20. No dia 11 de Outubro de 2018, por volta das vinte e nove semanas, o Réu procedeu à realização de uma nova ecografia em que mediu o perímetro cefálico, o comprimento do fémur e o peso do feto.

21. No dia 9 de Novembro de 2018, às trinta e três semanas, o réu procedeu à realização da ecografia referente ao terceiro trimestre.

22. Nesta ecografia foi possível visualizar o perímetro cefálico, o comprimento do fémur e os batimentos cardíacos, tendo o réu referido que tudo decorria normalmente.

24. No dia 3 de Dezembro de 2018, às trinta e sete semanas de gestação, foi realizada uma nova ecografia, tendo sido visualizado o cérebro, perímetro cefálico, comprimento do fémur, coração e retornos venosos e batimentos cardíacos, tendo o réu referido que tudo estava a correr bem.

27. No dia 17 de Dezembro de 2018, às trinta e nove semanas de gestação, foi realizada uma nova ecografia, na qual foi visualizado o coração e batimentos cardíacos, tendo o réu referido, mais uma vez, que estava tudo bem.

29. Nesse dia, o réu, após constatar que a autora já estava com 2 cm de dilatação, decidiu que se iria provocar o parto no dia seguinte.

30. No dia ... de Dezembro de 2018 a autora deu entrada no serviço de obstetrícia do Hospital ... em ....

31. Nesse dia, pelas 22h15, nasceu, de cesariana, uma menina com 3.220 gramas, 49,7 cm e índice de Apgar de 9/10/10, parâmetros estes normais, à qual a autora e o seu marido decidiram chamar CC.

32. A CC nasceu sem sinais de sofrimento respiratório, apresentando auscultação cardíaca sem sopros.

33. A CC encontrava-se hemo-dinamicamente estável após o parto, sendo os sinais cardíacos normais após o nascimento.

34. No dia 20 de Dezembro de 2018, à hora do banho, a médica pediatra que se encontrava de serviço constatou que a CC apresentava cianose peri bucal e das extremidades, tendo a mesma sido, de imediato, transferida para a UCERN do Hospital ....

35. Seguidamente, foram realizados exames e análises complementares, tendo a pediatra que se encontrava de serviço entrado em contacto, por videoconferência, com a equipa médica do Hospital Pediátrico de ....

36. A ecocardiografia então realizada à CC foi inconclusiva, tendo sido realizado um RX ao tórax que revelou dextrocardia.

37. Por ter surgido a suspeita de que a CC apresentava uma cardiopatia congénita cianótica, foi a mesma transferida para o Hospital Pediátrico de ... ainda no dia 20 de Dezembro de 2018.

38. No Hospital Pediátrico de ... foi efectuado um primeiro diagnóstico de cardiopatia cianótica complexa, tendo a autora e o pai da CC sido informados de que a mesma tinha uma cardiopatia congénita que lhe provocava uma hipoxemia grave e que tinha também um diagnóstico de asplenia (ausência de baço).

39. Ainda no Hospital Pediátrico de ... foi realizada investigação não invasiva que confirmou o diagnóstico inicial, tendo a CC iniciado terapêutica com prostaglandina ev e fármacos anti congestivos (furosemida e espironolactona).

42. Aos vinte e um dias de vida a CC foi transferida para o Hospital de ... para avaliação diagnóstica e terapêutica cirúrgica.

43. Nessa altura foi confirmada à autora e ao pai da CC a gravidade e complexidade da sua cardiopatia.

74. O coração da CC parou no dia ... de Maio de 2019, pelas 00h34, no Hospital de ..., estando os seus pais ao seu lado no exacto momento em que isso aconteceu.

76. Os pais da CC sempre a acompanharam na sua luta pela vida, nunca desistindo de a manter viva.

77. A autora não esquece o sofrimento e a agonia da sua filha.

78. A autora vivenciou todo o padecimento e sofrimento da sua filha, assistindo, impotente, à contínua degradação da vida da CC, o que lhe provocou sofrimento, tristeza e profunda depressão.

89. A CC viveu praticamente todos os dias da sua vida em agonia, sujeita a medicação, cuidados continuados e três intervenções cirúrgicas.

92. A autora devotou todo o seu amor e carinho à CC durante a sua vida.

Os factos dados como provados, considerados na sua globalidade, demonstram que, ao longo do tempo de gestação, se sucederam os exames ecográficos conduzidos pelo médico réu, o qual, em momento algum, informou a autora da má formação congénita de que padecia a sua filha; demonstram também que, em resultado dessa omissão, apenas no segundo dia após o nascimento, foram detectados os primeiros sinais de que algo não estaria bem com a criança, seguindo-se um penoso processo de sucessivas transferências hospitalares para a realização de exames progressivamente mais especializados, até que, vinte e um dias após o nascimento, foi finalmente confirmada aos pais da pequena CC, «a gravidade e complexidade da sua cardiopatia» (facto 43).

Atendendo à formulação normativa do nexo causal prevista no art. 563.º do Código Civil («A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sorrido se não fosse a lesão»), considera-se que, entre os danos não patrimoniais dados como provados (facto 78), se incluem aqueles que decorrem directamente da falta de informação do médico réu e que respeitam ao carácter inesperado da situação clínica da criança, que começou a revelar-se a partir do segundo dia da sua vida, sendo que, segundo a informação médica até ali recebida, confirmada em boa medida com esses dois primeiros dias de vida, a criança tinha nascido normal, saudável e com esperança de vida.

Temos, assim, que a autora que, durante a gestação, foi autorizada a pensar que podia acalentar expectativas e fazer planos para o nascimento e a vida de uma filha saudável, foi surpreendida com a informação de que, afinal, essa filha, há muito se encontrava em grave risco, sem que ela o pudesse ter previsto e – o que se afigura da maior importância – sem que tivesse tido possibilidade de se preparar tanto para encarar esse risco, como para, juntamente com o pai da CC, decidir se aceitaria ou não todos os tratamentos a que filha viria a ser submetida. Não se tratou de uma criança saudável que adoeceu e a quem naturalmente se tentou prestar todo o apoio clínico para superar a sua doença, mas de uma criança que começou a dar sinais de começar a sucumbir às muitas e graves patologias pré-existentes e detectáveis na vida intra-uterina, que foram até então ocultadas dos pais.

A informação sobre a verdadeira situação clínica da criança em gestação, se prestada no momento devido, diminuiria o impacto emocional, o sofrimento que a autora suportou durante os meses de vida da filha, porque o risco há muito que estaria equacionado como possível e provável pela mesma autora, permitindo uma mais fácil aceitação da morte da criança a qual veio, efectivamente, a ocorrer.

Acompanha-se, assim, o entendimento da 1.ª instância, ao afirmar que «o facto ilícito e culposo praticado pelo Réu, ao não detetar as malformações em causa e ao não informar a Autora acerca da existência das mesmas, não foi indiferente para o modo como tais danos foram causados e, sobretudo, para o impacto e para a dimensão que os mesmos assumiram», e que, «tendo a Autora sido confrontada com a notícia de que a sua filha padecia de uma cardiopatia congénita complexa apenas no segundo dia de vida da mesma, é evidente que acompanhou todo o seu sofrimento e padecimento em condições diferentes das que se teriam verificado se tivesse sido previamente informada e preparada para enfrentar um quadro clínico com essa gravidade».

Estando em apreciação danos não patrimoniais causados à autora pela violação do dever de informação legal e contratualmente tutelado, que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (cfr. art. 496.º, n.º 1, do Código Civil), conclui-se que se encontram reunidos os pressupostos para responsabilizar o réu médico.

Não vindo posto em causa o montante indemnizatório (€25.000,00) fixado pela sentença da 1.ª instância para ressarcir os danos derivados da mesma violação, é de repristinar essa decisão.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, repristinando-se a decisão da 1.ª instância de condenar o réu BB a pagar à autora AA a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da sentença até integral pagamento.

Custas no recurso de revista pelo recorrido.

Custas na acção e no recurso de apelação na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que a autora beneficie.

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Ana Paula Lobo