Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
76/14.3YHLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: DIREITOS DE AUTOR
OBRA DE ARTE
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
MODELO INDUSTRIAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
PROVA DOCUMENTAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSO CIVIL – PROCESSO EM GERAL / CUSTAS, MULTAS E INDEMNIZAÇÃO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO / TRIBUNAIS / DECISÕES DOS TRIBUNAIS.
Doutrina:
- OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, p. 94.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 527.º, N.ºS 1 E 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEAS B), C) E D), 640.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA A) E 662.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º 1.
CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS (CDADC): - ARTIGO 2.º, N.º 1, ALÍNEA I).
Referências Internacionais:
DIRETIVA N.º 2001/29/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 22 DE MAIO DE 2001: - ARTIGO 2.º.
Sumário :
I. O vício da falta de fundamentação verifica-se quando é absoluta ou completamente omissa, não englobando os casos de fundamentação insuficiente ou deficiente.

II. As decisões judiciais, tanto na fundamentação como na decisão, devem ser claras quanto ao seu sentido, evitando a ambiguidade, resultante de ter mais do que um sentido, ou a obscuridade, advinda de não ser alcançável o seu exato sentido.

III. A justificar-se a rejeição do recurso de impugnação da matéria de facto, nomeadamente por incumprimento do ónus de alegação, haveria erro de julgamento, mas não excesso de pronúncia.

IV. Na impugnação da matéria de facto, sem fundamento em qualquer meio de prova gravado, mas em prova documental, com o acréscimo de diversas razões tendentes a desvalorizar a prova considerada relevante na sentença, é despropositada a aplicação da formalidade prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil.

V. Na base da proteção do direito de autor dos modelos industriais e obras de design encontra-se a criação intelectual no domínio artístico, que, culturalmente, acrescenta algo de inovador ao produto, distinguindo-se do que é meramente banal.

VI. Produtos sem incorporação de criação artística, por ausência de características inovadoras, e de natureza meramente utilitária, não justificam proteção no âmbito do direito de autor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


        AA - Investimentos Imobiliários instaurou, em 4 de março de 2014, no 2.º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual, contra BB - Unipessoal, Lda., (que, entretanto, passou a denominar-se CC - Unipessoal, Lda.) ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a abster-se de produzir, comercializar, oferecer para venda ou publicitar, por qualquer meio, os móveis sob as designações comerciais “pa beta”, “jar 78/2”, “ba 550”, “ba 551” e “Serra Daire” e quaisquer outros idênticos aos constantes dos catálogos da Autora, das gamas “outline”, “vida” “softshapes” e “wave”, eliminando todas as referências aos móveis na publicidade, documentação comercial, páginas da internet e em qualquer outras formas de divulgação ou identificação; a pagar-lhe a quantia de € 5 000,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada exemplar dos móveis referidos comercializados em violação da condenação a proferir ou por cada semana que a Ré permaneça em incumprimento dessa condenação; a pagar-lhe a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo ainda a quantia de € 30 000,00, pelos encargos sofridos com a investigação e cessação da conduta da Ré; subsidiariamente, a pagar-lhe a indemnização correspondente ao valor que seria devido por uma licença contratual para a produção e comercialização das unidades ilicitamente vendidas pela Ré, desde 1 de janeiro de 2011 até à liquidação, acrescida dos encargos com a investigação e cessão da conduta da Ré e de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento; em qualquer caso, ordenar-se a apreensão e destruição dos bens ilicitamente produzidos e/ou comercializados pela Ré e condenar-se esta a devolver aos adquirentes o preço recebido, bem como os produtos que vierem a ser encontrados em seu poder e declarar-se ainda a invalidade do desenho/modelo n.º 2613, registado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial em nome da Ré, ordenando o seu cancelamento.

Para tanto, alegou, em breve síntese, a violação, grave e reiterada, do seu direito de autor, nomeadamente por imitação, em produtos que a R. comercializa, causando-lhe prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, que carecem de ser indemnizados.

Contestou a Ré, por impugnação, negando qualquer imitação e o registo de modelo a seu favor, concluindo, pela improcedência da ação.

Teve lugar uma audiência prévia, durante a qual foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 26 de julho de 2016, a sentença, que, julgando a ação parcialmente procedente, declarou nulo o registo do desenho ou modelo n.º 2613, com a configuração constante de fls. 525; condenou a Ré a abster-se de produzir, comercializar, oferecer para venda ou publicitar os móveis “pa beta”, “jar 78/2”, “ba 550”, “ba 551” e “Serra Daire”, correspondentes às gamas da Autora, “outline”, “vida” “softshapes” e “wave”, eliminando todas as referências da sua publicidade, documentação comercial, páginas de Internet ou de qualquer outra forma de divulgação.

Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 9 de janeiro de 2018, revogou a sentença e absolveu a Ré dos pedidos formulados na ação.


Inconformada, a Autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:


a) A omissão do cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC impedia a Relação de conhecer de parte do recurso, violando a lei de processo.

b) A Relação incorreu também na nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, tendo tomado conhecimento de questão que lhe estava vedada.

c) A fundamentação do acórdão recorrido, no que respeita às alterações dos factos E e F é nula, por ininteligibilidade e falta de fundamentação, vício que se repercutiu nas alterações aos factos K, L, M e O, sendo que a alteração ao facto W é ambígua e ininteligível, o que constitui nulidade processual, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

d) As restrições às respostas aos factos P, Q, R, S e T assentaram exclusivamente na circunstância desses factos terem sido dados como provados com base em declarações de parte, sem que a Relação tenha feito qualquer reparo.

e) Além de incorrer no vício de incongruência e insuficiência de fundamentação, infringindo as alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, violou o disposto no art. 413.º, n.º 3, do CPC.

f) O entendimento sufragado pelo acórdão recorrido, quanto aos seus modelos, mostra-se completamente obsoleto, fundando-se numa doutrina com mais de vinte e cinco anos e abstraindo de toda a evolução legislativa e jurisprudencial entretanto ocorrida.

g) Não é exato que os seus modelos tenham um design “meramente funcional”.

h) De qualquer modo, o art. 2.º, n.º 1, alínea i), do CDADC, não exige que o caráter artístico prevaleça sobre o caráter funcional.

i) Depois das Diretivas n.º s 98/71/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, e 2001/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia apenas exige, para que uma obra seja protegida pelo direito de autor, que constitua uma “criação individual do autor”.

j) De resto, a Relação de Lisboa já o reconheceu em caso anterior, em 21 de fevereiro de 2017 (268/13.2YHLSB).

k) Ao interpretar o art. 2.º, n.º 1, alínea i), do CDADC, e ignorar o disposto no art.º 2.º da Diretiva n.º 2001/29, o acórdão recorrido incorreu no vício de violação de lei substantiva.  


Com a revista, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que repristine a decisão da 1.ª instância.


A Ré contra-alegou, no sentido de ser negado provimento ao recurso.


Posteriormente, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de abril de 2018, concluiu que o acórdão recorrido não padecia das nulidades invocadas pela Recorrente.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, para além das nulidades do acórdão, está essencialmente em discussão a violação do ónus de alegação no âmbito da impugnação da matéria de facto e, substantivamente, a violação do direito de autor em peças de mobiliário urbano.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. A. tem por objeto social, nomeadamente, a elaboração de projetos, estudos, serviços, importações e exportações de materiais de construção civil e comércio a retalho.

2. A A. dedica-se à conceção, fabrico e comercialização de sistemas de construção modulares, em betão, e de produtos de mobiliário urbano destinados aos mercados de construção civil e de equipamentos, públicos e domésticos, girando sob a denominação comercial de “sit modular solutions” e “sit urban design”.

3. A R. dedica-se ao fabrico, comercialização e instalação de parques infantis e mobiliário urbano.

4. A R. pediu o registo em 30/12/2011 do desenho/modelo nacional n.º 2613.

5. A papeleira “outline” foi concebida pelo designer DD, entre fins de 2006 e fins de 2007, tendo transmitido o direito de autor à A. e tendo sido lançada no mercado em 2007.

6. A R. anuncia, na internet, esse modelo de papeleira como sendo modelo seu, sob a designação de “pa beta”, “pa beta inox” e “pa beta m” (modelo em madeira).

7. A R. apresenta esse modelo como seu, com os dizeres “modelo patenteado” e “design by EE”.

8. A papeleira comercializada pela R. é de qualidade inferior à da A.

9. Os sofás da linha “wave” comercializados pela A. foram desenvolvidos pela “Bleach Design”, em 2008, a qual transmitiu o direito de autor.

10. A papeleira “outline” tem o preço de € 529,00, com uma margem de lucro bruta para a A. de valor não apurado (P – alterado pela Relação).

11. O banco “wave” tem o preço de € 335,00, com uma margem de lucro bruta para a A. de valor não apurado (Q – alterado pela Relação).

12. A floreira “hexagon” tem o preço de € 243,00, com uma margem de lucro bruta para a A. de valor não apurado (R – alterado pela Relação).

13. O sofá individual da linha “wave” tem o preço de € 319,00, com uma margem de lucro bruta para a A. de valor não apurado (S – alterado pela Relação).

14. O banco da linha “softshapes” tem o preço de € 370,00, com uma margem de lucro bruta para a A. de valor não apurado (T – alterado pela Relação).

15. A R. foi cliente da A. entre 2006 e 2012, mantendo com esta uma conta-corrente.

16. A margem bruta de comercialização da papeleira “beta/pa” “beta inox/pa” “beta m” e dos bancos “Serra Daire s/ba 1” e “Serra Daire” pela R., entre 2012 e 22/09/2015 foi, pelo menos, de € 7 828,00.

17. As últimas compras feitas pela R. à A. consistiram em pedidos de um exemplar de diversos modelos.

18. No Largo …, em M…, encontra-se mobiliário urbano da R.


***



2.2. Delimitada a matéria de facto, depois de alterada pela Relação, dando como não estando provados alguns dos factos impugnados (os identificados na sentença por E, F, K, L, M, N, O, V e W) e alterando outros (P, Q, R, S, T), importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas respetivas conclusões, nomeadamente da nulidade do acórdão recorrido, da violação do ónus de alegação no âmbito da impugnação da decisão relativa à matéria de facto e, ainda no âmbito substantivo, da violação do direito de autor em peças de mobiliário urbano.


Começando, logicamente, pela arguida nulidade do acórdão recorrido, a Recorrente alegou que, no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, padece em parte de insuficiência de fundamentação e é ininteligível, incorrendo, assim, nos vícios previstos no art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil (CPC).

Na verdade, obedecendo desde logo à Constituição (art. 205.º, n.º 1), as decisões judiciais devem ser fundamentadas, nos termos da lei, de modo a que os interessados possam conhecer e compreender integralmente as razões que as determinaram e, desse modo, legitimando o exercício da administração da justiça.

O vício da falta de fundamentação, no entanto, verifica-se quando é absoluta ou completamente omissa, não englobando os casos de fundamentação insuficiente ou deficiente, como é jurisprudência uniforme.

No caso vertente, como se referiu, invocou-se apenas que a decisão recorrida “não está suficientemente fundamentada”, alegação que não consubstancia o vício previsto no art. 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC.

De qualquer modo, percorrendo a fundamentação específica, o acórdão recorrido motiva, em termos adequados, a modificação introduzida na decisão sobre a matéria de facto, possibilitando a sua inteira compreensão.


Por outro lado, as decisões judiciais, tanto na fundamentação como na decisão, devem ser claras quanto ao seu sentido, evitando a ambiguidade, resultante de ter mais do que um sentido, ou a obscuridade, advinda de não ser alcançável o seu exato sentido.

O acórdão recorrido, ainda no mesmo âmbito específico, é também cristalino no desenvolvimento dos fundamentos que determinaram a alteração da decisão sobre a matéria de facto, na aplicação do princípio da livre apreciação da prova, permitindo perceber-se, com facilidade, a alteração e a sua motivação, dentro do contexto da impugnação deduzida.

Por isso, não padecendo o acórdão recorrido de qualquer ambiguidade ou obscuridade, não ocorre a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.


A Recorrente arguiu ainda também a nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por se ter conhecido de matéria que deveria ter sido rejeitada liminarmente, nomeadamente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, dado, no seu entender, o incumprimento do ónus de alegação.

Os poderes de cognição da Relação, para além da matéria de conhecimento oficioso, estão delimitados pelo objeto do recurso, consubstanciado nas suas conclusões.

A Recorrida, na apelação interposta, impugnou a decisão relativa à matéria de facto, tendo a Recorrente, na contra-alegação, invocado o incumprimento do ónus de alegação consagrado no art. 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

A própria Recorrente reconhece que o objeto do recurso de apelação compreendia também a impugnação da decisão relativa à matéria, a que se opôs, quer alegando o incumprimento do ónus de alegação, quer a falta de fundamento da impugnação.

É evidente que a Relação, ao conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, circunscreveu-se ao objeto da apelação, não incorrendo no excesso de pronúncia, apontado pela Recorrente.

A justificar-se a rejeição do recurso, nomeadamente por incumprimento do ónus de alegação, o que se verificaria, então, seria um erro de julgamento, por violação do disposto no art. 640.º do CPC, suscetível de constituir objeto da revista, o que, aliás, veio a suceder, mas não um excesso de pronúncia.

Deste modo, é manifesto que, ao conhecer-se da impugnação da matéria de facto, dando-lhe parcial procedência, a Relação não incorreu em excesso de pronúncia, não padecendo o acórdão recorrido da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Nestes termos, improcede, manifestamente, a arguida nulidade do acórdão recorrido.


2.3. A Recorrente, no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, alegou que a Recorrida não deu cumprimento ao ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, por se ter abstido de indicar com exatidão as passagens da gravação dos depoimentos que fundaram as respostas aos factos impugnados.

A Relação, contudo, não se pronunciou, expressamente, sobre essa alegação, conhecendo, desde logo, da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, podendo admitir-se que, de um modo implícito, considerou improcedente a alegação da ora Recorrente, que, nas contra-alegações da apelação invocara o incumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

Na verdade, sobre o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto recai o importante e obrigatório ónus de alegação, consubstanciado no disposto no art. 640.º, n.º s 1 e 2, alínea a), do CPC.

O cumprimento deste ónus de alegação possibilita o exercício eficaz do princípio do contraditório e, por outro lado, o julgamento sério e seguro da respetiva impugnação. O seu incumprimento importa, desde logo, a imediata rejeição do recurso (art. 640.º, n.º 1, do CPC).

No entanto, no caso vertente, analisando a impugnação deduzida, verifica-se que não se fundamenta em qualquer meio de prova que tivesse sido gravado, mas em prova documental, com o acréscimo de diversas razões tendentes a desvalorizar a prova considerada relevante na sentença.

Nestas circunstâncias, surge como despropositada a aplicação da formalidade prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, sendo certo ainda que o cumprimento da formalidade tem de ser apreciado com natural prudência, para obviar ao formalismo excessivo e desprovido de sentido normativo.

Assim, não podendo concluir-se pelo incumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640.º do CPC, foi legal o conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, no exercício do poder conferido à Relação pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, importando aceitar o resultado, nomeadamente a alteração produzida na delimitação da matéria de facto.


2.4. Em termos substantivos, está em causa a violação do direito de autor, alegada pela Recorrente, que viu a sentença, em grande parte, dar-lhe razão, decisão que a Relação, depois de ter alterado a matéria de facto, revogou e absolveu a Recorrida do pedido formulado na ação.

A Recorrente destaca, em particular, a violação dos arts. 2.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) e 2.º da Diretiva n.º 2001/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2001.

Enquadrada, sumariamente, a questão jurídica emergente dos autos, vejamos, então, o direito aplicável.


O art. 2.º, n.º 1, alínea i), do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos concede proteção expressa às “obras de artes aplicadas, desenhos ou modelos industriais e obras de design que constituam criação artística, independentemente da proteção relativa à propriedade industrial”.

Na base da proteção autoral dos modelos industriais e obras de design encontra-se a criação intelectual no domínio artístico, que, culturalmente, acrescenta algo de inovador ao produto, distinguindo-se do que é meramente banal.

É este aspeto particular da criação artística que sobreleva especialmente na proteção conferida pelo direito de autor, deixando para outro âmbito normativo, nomeadamente o do direito da propriedade industrial, a proteção dos modelos industriais e obras de design sem que revelem criação artística e são de caráter utilitário.

Assim, pode afirmar-se que o caráter artístico prevalece sobre a destinação industrial do objeto, como tem sido defendido pela doutrina portuguesa mais representativa (OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, pág. 94).

Sem criação artística e com o objeto a ter apenas um caráter meramente utilitário, fica aquele alheado do âmbito do direito de autor, embora com a proteção tutelada pelo direito da propriedade industrial, com as suas regras específicas.

Por outro lado, não estando em causa a proteção do direito de autor, não tem aplicação a Diretiva 2001/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, invocada pela Recorrente.

Com efeito, tal Diretiva foi destinada a dar proteção jurídica ao “direito de autor e dos direitos conexos no âmbito do mercado interno, com especial ênfase na sociedade da informação” (art.1º), sem prejuízo do direito interno. Afastada a proteção jurídica decorrente do direito de autor, fica igualmente arredada a aplicação da referida Diretiva comunitária, dado o seu âmbito de aplicação específica destacado.

   

Definido o direito aplicável e levando em consideração a matéria de facto provada, com a alteração introduzida pela Relação, afirma-se que, no caso sub judice, não está em causa a proteção jurídica decorrente do direito de autor, justificado pela criação artística emprestada ao objeto.

Na verdade, nenhum dos objetos referidos nos autos, nomeadamente papeleiras, bancos, sofás e floreiras, apresenta uma aparência tal que, pelas suas características, possa constituir uma inovação artística, sendo certo que esta também pode ter lugar em objetos ou produtos utilitários. Tais objetos, de natureza meramente funcional, não acrescentam nada de significativo em relação aos outros objetos idênticos existentes no mercado. Sem o valor acrescentado, resultante da criação artística, não podem tais produtos, meramente utilitários, merecer a tutela jurídica do direito de autor.

Outra proteção jurídica poderá existir, nomeadamente no âmbito do direito da propriedade industrial, mas a sua aplicação, sendo alheia ao objeto da presente revista, não é questionada de modo algum. 

Neste contexto, não se tendo provado que os produtos da Recorrente incorporassem criação artística, por ausência de características inovadoras, e nos quais sobressai a sua natureza meramente utilitária, não se justifica a pretendida proteção no âmbito do direito de autor.

Consequentemente, sufragando o entendimento adotado pela Relação, assente na lei aplicável ao caso, nega-se a revista.


2.5. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. O vício da falta de fundamentação verifica-se quando é absoluta ou completamente omissa, não englobando os casos de fundamentação insuficiente ou deficiente.

II. As decisões judiciais, tanto na fundamentação como na decisão, devem ser claras quanto ao seu sentido, evitando a ambiguidade, resultante de ter mais do que um sentido, ou a obscuridade, advinda de não ser alcançável o seu exato sentido.

III. A justificar-se a rejeição do recurso de impugnação da matéria de facto, nomeadamente por incumprimento do ónus de alegação, haveria erro de julgamento, mas não excesso de pronúncia.

IV. Na impugnação da matéria de facto, sem fundamento em qualquer meio de prova gravado, mas em prova documental, com o acréscimo de diversas razões tendentes a desvalorizar a prova considerada relevante na sentença, é despropositada a aplicação da formalidade prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil.

V. Na base da proteção do direito de autor dos modelos industriais e obras de design encontra-se a criação intelectual no domínio artístico, que, culturalmente, acrescenta algo de inovador ao produto, distinguindo-se do que é meramente banal.

VI. Produtos sem incorporação de criação artística, por ausência de características inovadoras, e de natureza meramente utilitária, não justificam proteção no âmbito do direito de autor.


2.6. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar a Recorrente (Autora) no pagamento das custas.


Lisboa, 27 de setembro de 2018


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira