Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3391/08.1TVLSB.L1.S1-A
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
PRÉDIO INDIVISO
PRÉDIO URBANO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
COMPRA E VENDA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: NÃO ADMITIR O RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
A contradição entre as duas decisões em análise é meramente aparente porque proferidas uma em 1991 e outra em 2022, em contextos factuais e normativos profundamente diversos.
Decisão Texto Integral:

Recorrente: AA, autor

Recorridos: BB,

CC, réus


*


Acordam em Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

I.1 –

AA, autor na acção declarativa, com forma de processo comum, apensa, notificado do acórdão de 13 de Outubro de 2022, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que julgou procedente a revista, e, em consequência, revogou a decisão recorrida julgando improcedentes os pedidos formulados na acção, veio interpor recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, com fundamento em contradição de julgados entre este acórdão e o proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 26 de Setembro de 1991 no processo 080164, tendo apresentado alegações que encerram com as seguintes conclusões:

1. O recurso é admissível existindo contradição entre Acórdãos do Supremo Tribunal da Justiça proferidos no domínio da mera legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

2. No caso dos autos, a contradição entre arestos apontada ocorre no domínio da mesma legislação, isto é, da Lei 63/77 de 25 de agosto; sendo

3. A questão fundamental de direito a de se saber se, no domínio dessa lei, o arrendatário de, apenas, parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, pode preferir, no caso de venda do prédio, sobre a totalidade do mesmo prédio, ou não.

4. O Acórdão recorrido, no segmento decisório, entende dever ser aplicável ao caso dos autos as normas de Lei 63/77; que a interpretação das normas deve ser efetuada atendendo às condições específicas do tempo em que são aplicadas; que ao aplicar as normas da Lei 63/77 o faz de acordo com entendimento que considera ―ao tempo ― ser minoritário, mas que, mercê de interposição atualista, lhe é agora consentido nela se inscrever e decidir, contrariamente à corrente jurisprudencial do tempo que o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada;

5. Considerou: Não pôr em causa que sejam de aplicar ao caso dos autos os normativos da Lei. 63/77. Conhecendo a diferença fundamental da posição da jurisprudência ao longo dos anos e das sucessivas alterações legislativas, entre uma corrente maioritária e outra minoritária, filiou-se na minoritária; por Fazer uso de um método interpretativo, que a doutrina e a jurisprudência designada por atualista passando a interpretar os normativos em causa (Lei 63/77) à luz da interpretação que hoje será corrente em função da evolução legislativa.

6. Assim a questão de fundo no Acórdão recorrido é exatamente a oposição de conceções na interpretação e aplicação dos normativos da Lei. 63/77 (maioritária/minoritária), sendo a questão da interpretação atualista da Lei, mera ferramenta interpretativa daqueles normativos.

7. A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito.

8. Apenas se a intenção do legislador de 1977 não fosse suficientemente clara, ou o texto da lei (63/77) inculcasse interpretação diversa da que a jurisprudência unânime ao tempo da sua aplicação seguia, é que tal legitimaria a decisão recorrida proceder à sua interpretação atualista; o que não acontece: a intenção do legislador era clara (proteção do direito à habitação) e o texto da lei claro é também, o locatário habitacional de imóvel tem direito de preferência na compra e venda do mesmo (imóvel não constituído em propriedade horizontal).

9. Não aplica o Acórdão recorrido uma interpretação actualista sobre a lei em vigor que demande, por via da evolução legislativa, social, humana, etc., interpretação actualista, mas, sim, utiliza pensamento actual para interpretar lei antiga, que já não está em vigor há mais de 20 anos.

10. É, pois, de afastar a técnica da interpretação atualista ao caso dos autos.

11. Ao caso dos autos, é de aplicar os normativos da Lei. 63/77, de 25 de agosto.

12. Na Jurisprudência produzida sobre a aplicação direta da Lei 63/77, não se conhece qualquer corrente jurisprudencial minoritária que considere que o arrendatário de parte do prédio não possa preferir sobre a totalidade do prédio quando no mesmo não se encontra instituído o regime de propriedade horizontal.

13. Não parece curial que o Acórdão recorrido se haja socorrido de pensamento actual representativo da evolução legislativa, por simples opção do legislador, para substituir a opção do legislador de 1977.

14. Refere o Acórdão recorrido que se “inscreve na corrente jurisprudencial que era minoritária…”

15. Não existia ao tempo da aplicação da Lei 63/77 qualquer corrente minoritária na doutrina ou na jurisprudência.

16. Essa corrente minoritária só veio a surgir com a alteração provocada pelo DL. 320-B/90 (RAU).

17. Ao invés do sustentado no Acórdão recorrido, no domínio da Lei 63/77 de 25 de agosto, não existe qualquer entendimento minoritário da doutrina ou da jurisprudência que declare que o inquilino duma fração de um prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo, como veio a decidir.

18. Afastando-se a cortina da interpretação actualista, que se considera abusiva por alterar radicalmente o pensamento do legislador de 1977 e se fundar em corrente jurisprudencial e doutrinária que nunca existiu (no âmbito da Lei 63/77), fica-nos evidente a contradição de julgados: no Acórdão-fundamento considerou-se poder o locatário habitacional de prédio não constituído em propriedade horizontal preferir sobre a totalidade do mesmo e no Acórdão recorrido, considerou o contrário. Elementos que determinam a contradição alegada (art.º 690º nº 1 CPC).

19. Por tal consideram-se elementos de facto e de direito. De facto, a existência de perfeita similitude no caso em apreço em ambos os Acórdãos, a saber: -Prédio não constituído em propriedade horizontal; - Factos (compra e venda) que ocorrem no âmbito da aplicação da Lei 63/77 de 25 de Agosto (21/08/1978 e 10/7/1985); -Análise de possibilidade de o arrendatário poder preferir sobre parte ou totalidade do prédio.

20. De Direito, em que no Acórdão fundamento, se considera que o inquilino pode (só pode) preferir pela venda da totalidade do prédio; e O Acórdão recorrido entende tal não ser possível.

21. O Acórdão recorrido considera que o inquilino duma fração de um prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo, como veio a decidir; e, pelo contrário.

22. O Acórdão-fundamento considera que o inquilino duma fração de um prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo, como veio a decidir.

23. Fazer uso de um método interpretativo, que a doutrina e a jurisprudência designada por atualista passando a interpretar os normativos em causa (Lei 27 63/77) à luz da interpretação que hoje será corrente em função da evolução legislativa.

24. Utilizam-se posições jurisprudenciais e doutrinais e hodiernas, tiradas, sobretudo após a cessão da vigência da Lei 63/77 para elas aplicar.

25. A favor da tese do Acórdão-fundamento, que se defende no presente recurso, militam - entre outros argumentos - não só a defesa do direito à habitação, tal como resulta do preambulo da L 63/77 e foi sustentado pela jurisprudência;

26. Como, também, dada a forma como a lei se encontra estruturada, a preferência só pode ser exercida sobre o bem que era objeto da preferência, no caso, a totalidade do prédio e não sobre outro ou parte desse bem.

27. Há que haver coincidência e o objeto da preferência.

28. Quando o prédio estivesse submetido ao regime da propriedade horizontal, então, aplicável o nº 2 do mesmo art.º 1º.

29. Se existisse mais do que um preferente, regula, então, o nº 3 do mesmo artigo.

30. Isto é, encontrava-se na redação da norma do art.º 1º solução para as diferentes situações de facto possíveis.

31. Tudo isto para além do elemento literal da norma do (nº 1 do art.º 1º) que inculca, sem margem para dúvida, a possibilidade de o locatário habitacional de parte do prédio poder exercer direito de preferência sobre “o mesmo”, naturalmente, prédio urbano.

32. Quando assim não fosse, ficaria esvaziada a possibilidade de o locatário de parte do prédio exercer o direito de preferência, o que notoriamente o Legislador não quis, ao contempla todas as possibilidades de ocupação ou exercício do direito de preferência (parte alíquota, fração autónoma, mais do que um preferente). Da violação imputada ao Acórdão recorrido.

33. O Acórdão recorrido, violou, por um lado, a forma como a lei e a jurisprudência permitem a utilização da interpretação atualista, ao utilizar uma interpretação decorrente da lei atual, cuja evolução legislativa tem que ver com opção do legislador em si, não necessitando de qualquer esforço interpretativo, à lei antiga, já não em vigor e cuja redação e interpretação se encontra bem definida na jurisprudência unânime vigente ao tempo.

34. Por outro, violou claramente a disposição do nº 1 do art.º 1º da Lei 63/77 de 25 de Agosto, a qual permitia - e há-de permitir no caso dos autos - que um inquilino de um prédio urbano não submetido ao regime da propriedade horizontal possa preferir, na venda do mesmo, sobre a sua totalidade e não apenas sobre o local arrendado, como modernamente se estipula (art.º 1091 Código Civil, na redação da Lei nº 6/2006).

35. Ao decidir, como decidiu, violou, ainda, o Acórdão recorrido os princípios constitucionais da confiança, da segurança jurídica (porquanto o recorrente tinha expectativas dignas de tutela do seu direito de preferência consagrado na Lei n.º 63/77 e assegurado pelo entendimento da Jurisprudência unânime do STJ), os princípios da igualdade, da proporcionalidade e de acesso à habitação própria, consagrados, respetivamente, nos arts. 2.º, 3.º, 13.º, n.º 1, 17.º, 18.º, nºs 2 e 3, e 65.º, nº1, todos da Constituição da República

36. Deve ser a jurisprudência uniformizada no sentido de que, no âmbito dos normativos da Lei nº 63/77 de 25 de agosto, o locatário habitacional de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal tem direito de preferência, na compra e venda.

Os Réus/recorridos contra-alegaram, apresentando as seguintes conclusões:

1. Não existe para os efeitos do disposto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC, interesse público atendível na fixação de jurisprudência relativamente a legislação revogada há mais de trinta anos;

2. Pelo que deverá o Conselheiro Relator indeferir liminarmente a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão com vista à uniformização de jurisprudência;

3. Muito menos quando o intuito expresso do recurso é a fixação imutável do entendimento de tal legislação desligada do tempo concreto da sua aplicação;

4. Estando o interesse público na base da prolação de um acórdão de uniformização de jurisprudência, deve entender-se que a ausência de tal interesse fundamenta a rejeição de o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciar através de acórdão do Uniformização de Jurisprudência;

5. Acresce que, o facto de tal legislação não se encontrar em vigor tendo sido sucessivamente alterada por outras legislações que de forma expressa regularam a matéria em discussão nos autos, deve entender-se que, para os efeitos do disposto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC, não se encontra reunido o pressuposto de nos encontrarmos “no domínio da mesma legislação”;

6. O que, implicaria, aliás uma total desconsideração sobre a repercussão do tempo nas relações jurídicas;

7. Também por este fundamento não se encontram reunidos os pressupostos dos quais o artigo 688.º, n.º 1, faz depender a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciar através de acórdão de uniformização de jurisprudência. Sem conceder,

8. A consagração de direito de preferência do arrendatário habitacional na Lei 63/77 não é, nunca foi e nunca será, uma porta aberta à especulação imobiliária e à admissibilidade do enriquecimento abjecto que o Autor pretende obter nos presentes autos – a totalidade de um prédio urbano sito no centro de ... e cerca de 40 anos de rendas recebidas pelos Réus pelos arrendamentos por si legalmente celebrados no prédio;

9. É assim necessário interpretar a legislação aprovada na década de 70 do século passado e revogada há mais de trinta anos;

10. Consta do preâmbulo da vetusta leu que o propósito da revolucionária legislação foi o de fomentar: “uma política de acesso à habitação própria”.;

11. Ora o caso que retratado nos autos em nada se reconduz à ratio legis supra transcrita na medida em que intenção do Autor mais não é do que que legitimar um “assalto” à propriedade dos réus (propriedade imobiliária stricto sensu, mas também patrimonial – o Autor arroga-se a receber 38 anos de renda de todos os arrendamentos existentes no prédio quando apenas é arrendatário do segundo andar esquerdo) que não encontra eco nem respaldo numa alegada protecção à habitação própria – o prédio que o Autor pretende adquirir por € 7,500.00;

12. E tal não é permitido pelo ordenamento jurídico;

13. Em rigor, nem é isso que sequer resulta, nem do elemento histórico, nem do elemento literal da interpretação do artigo 1.º da Lei 63/77; (xiv) Sendo que uma interpretação atualista da lei de 63/77 revogada na década de 90 do século passado também leva à conclusão que se defende da não existência do direito de preferência do arrendatário urbano de andar na alienação da totalidade do prédio com outros andar e, inclusivamente, finalidades distintas: habitação, comércio e serviços;

14. Interpretação que sai reforçada com o actual entendimento jurisprudencial sobre tal questão à face da Lei n.º 6/2006 de 27/2 que, depois de algumas hesitações iniciais, de forma praticamente unânime, reconhecem que os arrendatários habitacionais de andares não constituídos em propriedade horizontal não gozam de qualquer direito de preferência na alienação do imóvel.

15. Entre vários acórdãos, e citam-se apenas arestos deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, veja-se, para citar apenas os mais recentes: Acórdão de 25.03.2021 proferido no âmbito do processo n.º 10307/16.0T8PRT.P2.S1 [relatora: Rosa Tching]; Acórdão de 09.03.2021 proferido no âmbito do processo n.º 2899/18.5T8ALM.L1.S1 [relator: Fernando Simões];Acórdão de 07.11.2019 proferido no âmbito do processo n.º 14276/18.3T8PRT.P1.S2 [relatora: Maria do Rosário Morgado] e Acórdão de 21.01.2016 proferido no âmbito do processo n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1 [relator: Tavares de Paiva];

16. Pelo que da interpretação actualista (tal como consagrada no artigo 9.º do CC) aliada à teleologia da lei aplicável resulta evidente que não assiste direito de preferência do arrendatário habitacional de um andar na alienação da totalidade do prédio não constituído em propriedade horizontal o andar hipoteticamente objecto da preferência se insere;

17. Acresce ainda que a norma que resulta do disposto do artigo 1.º da Lei n.º 63/77, com o sentido de que o titular de um contrato de arrendamento habitacional, que tem como objeto exclusivo um andar independente do prédio, tem direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de todos os andares do imóvel / do prédio, que contém, aliás, unidades independentes que são dedicadas ao comércio e serviços, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1.º,62.º, n.º 1 e 65.º, n.º 3 todos da CRP, o que desde já se alega para todos os efeitos legais;

18. Sendo, igualmente, inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto nos artigos 416.º, 421.º e 1410.º do CC, no sentido que a sentença pela qual se efetiva o direito de preferência violado, valendo como título translativo da propriedade, pode fixar de forma ampla e abstrata que todos os proveitos da gestão desse imóvel, nos vários andares e unidades independentes que não correspondia à habitação do preferente, lhe têm de ser entregues, automaticamente, pelo adquirente original, independentemente do tempo passado ou de qualquer alegação ou prova de culpa na violação do direito de preferência, criando, por esta via, uma indemnização por responsabilidade objetiva no âmbito de uma ação destinada a decidir sobre a propriedade de um bem imóvel. Isto porque, tal norma viola o princípio da confiança, ínsito no Estado de Direito, a proibição de responsabilização automática, o direito de propriedade privada, o direito de iniciativa económica privada, o direito à habitação (que serve de base à preferência).

Percorrendo a tramitação processual da acção declarativa de condenação apensa dela se destacam os seguintes elementos relevantes para a completa compreensão da questão submetida a juízo:

O Autor, AA, instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus: BB e seu cônjuge, CC, falecidos na pendência da casa e devidamente habilitados os seus sucessores, DD, falecida na pendência da casa e devidamente habilitados os seus sucessores, e EE, falecido na pendência da casa e devidamente habilitados os seus sucessores, e seu cônjuge FF, pedindo a sua condenação a verem reconhecido o seu direito a haver para si o prédio alienado, 2.º andar, lado esquerdo, do prédio sito na Rua da ..., freguesia da ..., concelho e cidade de ..., descrito sob o n° .03 da ...ª Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito na respectiva matriz sob o art. .75, actual .38 da referida freguesia da ..., por virtude do seu direito real de preferência e, bem assim, ser declarada a transacção efectuada a seu favor, substituindo-se este aos l.°s réus na compra e venda formalizada pela escritura pública, que teve por objecto o prédio referido, e a condenação dos réus a entregar ao autor o valor das rendas vencidas e pagas no prédio, desde a data da aquisição até ao trânsito em julgado da sentença.

Em fundamento da sua pretensão invocou:

- Em 1976 ter tomado de arrendamento, o 2º andar do prédio sito na Rua da ..., freguesia da ..., concelho e cidade de ..., descrito sob o n° .03 da ...ª Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito na respectiva matriz sob o art. .75, actual .38 da referida freguesia da ....

- Em 2008, ter verificado que, em 1984, o prédio havia sido vendido pelos 2ºs e 3ºs réus maridos à 1ª ré mulher, livre de quaisquer ónus e encargos, sem que lhe tivesse sido comunicada a intenção de se proceder à compra e venda em questão.

- Ser o único arrendatário do prédio, mantendo essa qualidade desde o tempo da alienação.

O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção improcedente, decisão que foi revogada por acórdão da Relação proferido no recurso de apelação interposto pelos réus.

Em recurso de revista, apresentado pelos réus, foi proferido o acórdão recorrido que julgou a acção improcedente absolvendo os réus dos pedidos contra eles formulados.

O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência foi admitido por despacho do relator proferido em 09 de Junho de 2023.

O Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

A Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, não atribui ao locatário habitacional de parte integrante de imóvel urbano não constituído em propriedade horizontal direito de preferência na compra e venda da totalidade do prédio”.


*


I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

No recurso para uniformização de jurisprudência, o despacho, proferido pelo relator que liminarmente o admite não decide definitivamente a questão da sua admissibilidade à luz do disposto no art.º 692.º, n.º 4, parte final, do Código de Processo Civil.

Daí decorre que o Pleno das secções não está dispensado de aferir da admissibilidade deste recurso.

Mostra-se invocada a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 26 de Setembro de 1991 no processo 080164, por alegadamente terem atingido decisões opostas sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação.

Nada obsta à admissibilidade formal do recurso que foi tempestivamente apresentado, por quem dispõe de legitimidade para o efeito e se encontra regularmente patrocinado – art.º 689.º nº1, 631, ambos do Código de Processo Civil – mostrando-se instruído nos termos impostos pelo art.º 690.º do Código de Processo Civil.

No acórdão recorrido foi assim delimitado o objecto do recurso:

«O conhecimento das questões a resolver na presente revista, delimitadas pelas conclusões, remete para decidir se (…) existe por parte dos autores direito de preferência na aquisição do imóvel identificado nos autos.».

No acórdão fundamento, por seu turno, foi identificado o seguinte objecto de recurso:

« Múltiplas são as questões postas pelos recorrentes, os quais, na alegação do presente recurso, submetem a reexame, por parte deste Supremo Tribunal, os problemas da existência ou inexistência do direito de preferência (conclusão 7 e 8), do "onus probandi", relativamente ao facto de aos preferentes não ter sido dado conhecimento da venda - facto constitutivo do direito que os autores se arrogam, segundo a tese defendida pelos recorrentes (conclusões 1 e 2), (..)».

A solução jurídica encontrada no acórdão recorrido assenta na seguinte matéria de facto provada:

1. A 1 de Agosto de 1976, os herdeiros de GG, representados pelo cabeça de casal HH, na qualidade de senhorios e AA, como inquilino, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 12-13, onde consta que entre eles foi ajustado o arrendamento do segundo andar esquerdo sito na Rua da ..., n° 4 pela renda mensal de Esc. 1.512$00.

2. A 10 de Março de 1983, o autor subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 97, denominado "DECLARAÇÃO", com o seguinte teor:

"AA, inquilino do segundo andar lado esquerdo do prédio sito na Rua Dr. ... n° 4 e 6 (antiga R. da ...) declara para os devidos e legais efeitos não estar interessado na compra do referido imóvel."

3. A 28 de Junho de 1984, foi lavrada a folhas trinta e sete a folhas trinta e oito verso do livro de notas para escrituras diversas número noventa e um - B do extinto ... ° Cartório Notarial de ..., a escritura pública de "COMPRA E VENDA" certificada a fls. 20-22, onde consta que compareceram como outorgantes Dr. II, como procurador e em representação de D. DD, EE, D. BB, tendo os Iº e 2º outorgantes declarado que pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, de que dão quitação à compradora, livre de encargos, vendem à terceira outorgante, D. BB, o prédio urbano sito na Rua da ..., número dois, tornejando para a Travessa das ..., números vinte a vinte e seis, freguesia da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° ..30, a fls. 168 do Livro-B-4, inscrito na respectiva matriz sob o artigo .38, com o valor matricial de Esc. 1.393.140$00, tendo a terceira outorgante declarado aceitar a venda nos termos referidos.

4. A 10 de Julho de 1985, foi lavrada a folhas 6v.-8 do Livro n° 225-E do 16o Cartório Notarial de ..., a escritura pública de "ARRENDAMENTOS" certificada a fls. 81-86, onde consta que JJ, em representação de CC e BB, deram de arrendamento:

a. KK, a sala A da loja com entrada pelo n° 6, pela renda mensal de Esc. 50.000$00, sendo destinado a salão de chá e venda de utilidades domésticas;

b. LL, as salas B e C da loja com entrada pelo n° 6, pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinado venda de artigos de decoração e prendas;

c. MM, a sala D da loja com entrada pelo n° 6, pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinada a salão de chá e venda de artigos de presentes e decorações;

d. MM, o Anexo, composto de sala ampla e cozinha, pela renda mensal de Esc. 50.000$00;

e. NN, o 1. ° andar do anexo pela renda mensal de Esc. 50.000$00.

5. Está descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° .03/20040715 um prédio urbano sito na Rua Dr. ... (e não "... - erro ortografia), n°s. 4 e 6, composto de lojas, r/c, 1º andar, quintal e anexo, cuja descrição em livro tinha o n° 1430, tendo estado inscrito na matriz sob o art. .38, estando actualmente inscrito na matriz sob o art. .71 da freguesia de ....

6. Pela Ap. 47, de 2004/07/15, foi inscrita a aquisição a favor de EE, casado com FF e DD, por sucessão.

7. Pela Ap. 48, de 2004/07/15, foi inscrita a aquisição a favor BB, casada com CC, no regime da comunhão geral, por compra a EE e DD.

8. O autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade.

9. Ao subscrever o instrumento referido em B), o autor sabia que o prédio ia ser vendido.

10. A aquisição referida em C) apenas foi inscrita na Conservatória do Registo predial, em 2004.

11. A 25 de Novembro de 1988, a ré BB celebrou, em seu nome, contrato de fornecimento de água do 1º andar esquerdo do prédio referido em C) e E).

12. No r/c D. tº do mesmo prédio residia o cunhado e irmão dos réus, Eng. OO.

13. E no 1º andar esquerdo reside o filho dos réus, PP.

14. Na ausência dos réus, são os referidos OO e PP que recebem as rendas, nomeadamente do autor, mandam executar as reparações necessárias, quer no exterior, quer no interior dos andares, recebem as reclamações dos inquilinos, nomeadamente do autor, vistoriam o prédio.

15. Tudo em representação dos réus BB e CC.

16. Sendo que alguns dos recibos de rendas eram assinados pela ré BB.

17. É a ré BB quem paga a taxa da Rede Geral de Esgotos, o imposto para o Serviço de Incêndios e a Contribuição Predial, posteriormente Contribuição Autárquica e agora IML

18. Após 1984, os réus realizaram obras de reconstrução total e reconversão do n° 6, criando um pronto a comer equipado com duas cozinhas e duas instalações sanitárias, uma casa de chá-restaurante com cozinha completa e duas instalações sanitárias, uma galeria de arte e dois espaços comerciais-lojas que fazem parte integrante do pátio e três instalações sanitárias, incluindo estruturas, acabamentos, revestimentos, instalações especiais novas.

19. Após 1984, foram executadas obras gerais no exterior que consistiram na substituição de rebocos, novas pinturas da totalidade do n° 4 e reparação e pintura das janelas.

20. De 1984 a 2008, foram, efectuadas reparações regulares correntes, limpeza da cobertura, isolamento de algerozes e caleiras, reparação de trapeiras.

21. Na década de 2000 foram executadas instalações especiais no n° 4 que incluíram:

- coluna de distribuição de gás nova;

- coluna eléctrica, incluindo campainhas e trincos novos;

- coluna de água nova, com novas derivações e passagem dos contadores para caixa de escada;

- reparação da caixa de escada, incluindo estuques novos, pinturas e remates.

22. Na década de 2000, foram executadas obras de reparação geral no r/c esquerdo, incluindo igualmente todas as instalações novas.

23. Na década de 2000, foram realizadas obras de reconstrução de nova garagem na cave do edifício com capacidade para 5 viaturas, com obras de contenção de estrutura, escavação e reforço do edifício.

24. O prédio referido em C) e E) valia, em Janeiro de 2009, € 846.662,00.

A solução jurídica encontrada no acórdão fundamento assenta na seguinte matéria de facto provada:

1. O autor marido celebrou, em 18 de Abril de 1973, com a sociedade ré um contrato de arrendamento, escrito, para habitação relativa ao 2 andar do prédio urbano sito na ..., na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n. ...16, a folhas 188 do livro B-52, e inscrito sob parte do artigo .11, secção 70-78, actual artigo ..64, da freguesia da ..., mediante a renda mensal de 2200 escudos, arrendamento que ainda se mantem;

2. Este prédio é composto de casa, rés-do-chão e 1 andar;

3. Na cave habitam as 3 e 4 rés e H e I;

4. No rés-do-chão, referido no contrato como 1 andar, habitam J e mulher, mediante a renda mensal de 2200 escudos;

5. No 1 andar, referido no contrato como 2 andar, habitam os autores;

6. O referido prédio foi vendido, em 21-8-78, pela 1 ré aos restantes réus, por 250000 escudos, livre de quaisquer ónus ou encargos;

7. No processo de notificação para preferência (n. 85/86 do 4 Juízo – ...ª secção da comarca de ...) os autores requereram, em 23-5-86, a notificação de J e mulher; esse processo terminou por sentença homologatória da transacção lavrada em acta de licitação: os requeridos renunciaram ao direito de preferência em favor dos requerentes, os quais passarão a ser titulares do mesmo e suportarão as custas, dando-se como compensadas as custas de parte e procuradoria, pelo que não licitaram (conferencia de 24-7-86);

8. Os autores continuaram, após a venda do prédio, a satisfazer as rendas relativas ao seu andar;

9. Os 2, 3 e 4 réus passaram, desde 21-8-78, a receber as rendas pagas pelo J.

No acórdão recorrido não foi reconhecido o direito de preferência do arrendatário de uma parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal na venda total do prédio, enquanto no acórdão fundamento tal direito foi reconhecido.

Estava em causa, no acórdão recorrido, um arrendamento para habitação celebrado em 1 de Agosto de 1976 e a venda da totalidade do imóvel realizada a 28 de Junho de 1984, enquanto no acórdão fundamento o arrendamento datava de 18 de Abril de 1973 tendo a venda da totalidade do imóvel ocorrido em 21 de Agosto de 1978.

Para a decisão, ambos os acórdãos convocaram a Lei n.º 63/77 de 25 de Agosto que enquadraram «no objectivo de realização, ainda que em grau reduzido, da politica de acesso a habitação própria, constitucionalmente consagrada, o legislador de 1977 entendeu que um dos instrumentos adequados para esse objectivo era o de conferir aos arrendatários habitacionais direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos imoveis respectivos, conforme se afirma na parte preambular da Lei n. 63/77», no texto do acórdão fundamento.

O acórdão fundamento, datado de 26 de Setembro de 1991, indica ainda: «(…) ser manifesta a inaplicabilidade do novo Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n. 321-B/90, de 15 de Outubro (V. art. 2 deste diploma). Nenhum valor tem, portanto, o argumento que os recorrentes pretendem extrair do facto de a referida Lei 63/77 "estar hoje revogada" (art. 3, n. 1, alínea d), do citado Decreto-Lei) e de o texto do artigo 47 do referido Regime do Arrendamento Urbano ser diferente do correspondente preceito do artigo 1 da Lei n. 63/77.

Não importa, pois, neste momento, definir o âmbito de aplicação do citado artigo 47 do actual Regime de Arrendamento Urbano e, designadamente, saber se esse preceito tem apenas o restrito sentido e alcance que os recorrentes lhe atribuem.».

O acórdão recorrido sublinha que:

«(…) No caso em decisão, à data da outorga da escritura pública de compra e venda (28.6.1984) estava em vigor a lei 63/77 de 25 de Agosto (…) Na vigência destes preceitos, a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores entendia que, quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situe o local arrendado; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fração respetiva.(…) o D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), confrontado com a existência de regimes não coincidentes de preferências comerciais e habitacionais no Código Civil e naquele diploma, revogou-os e uniformizou a matéria (…) O confronto desta redação com a redação daqueles artigos 1117.º do Código Civil e 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, evidencia que o legislador mantendo o essencial não reproduziu totalmente os textos anteriores: por um lado, ao invés de continuar a falar no direito de preferência do prédio arrendado ou do imóvel urbano passou a referir do local arrendado; por outro lado, no preâmbulo afirmou que “Nessa tarefa codificadora, teve-se sempre a preocupação de valorar os textos anteriores perante a jurisprudência dos tribunais de Portugal (…) Nesta linha e na medida do possível foram mantidos os textos anteriores quando, sobre eles, houvesse já uma concretização jurisprudencial que importasse conservar” e manteve consagrado a licitação entre dois ou mais preferentes.

A jurisprudência e doutrina maioritárias, na interpretação deste preceito, seguiram o entendimento anterior (…)Todavia, não só a alteração da redação assinalada, mas sobretudo ela, tornou mais destacável o entendimento contrário, ou seja, o de o inquilino duma fracção de um prédio não constituído em propriedade horizontal não ter direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo (…) a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que reescreveu o art. 1091.º do Código (…) passou a ser unânime na jurisprudência deste tribunal o entendimento segundo o qual atento o teor do artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada (…).

(…) Não era, pois, unânime nem unívoca a interpretação dessas normas e a dissensão orbitava em torno de uma leitura das regras e dos princípios existentes à data como agora, e que reportavam à autonomia da vontade privada e ao art. 62.º/1 da CRP segundo o qual “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão” sem embargo do art. 1305 do CC dispor que “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.(…) Poder-se-ia até questionar a partir da redação do art. 1 da Lei 63/77 se ela não apontaria para os casos de prédio urbano compreendendo um único espaço de locação habitacional (no que prédio urbano coincidiria com o arrendado) e para os casos de frações autónomas, situações em que o arrendado seria, digamos assim, uma unidade coincidente.(…) Veja-se que não está em causa com o direito de preferência a perda de um arrendamento, mas sim a conquista da propriedade do arrendado e, por extensão, a totalidade de um prédio, o que suscita, e suscitou desde a entrada em vigor da Lei 63/77 uma reflexão indiciária no domínio da equidade e proporcionalidade.(…) Como referiu a este propósito Menezes Cordeiro, e faz pensar, transformar o inquilino de uma parte integrante (de um fogo) em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objectivo legal, mais se insere numa lógica lucrativa de negócios imobiliários”

(…)Tudo se resume a saber se através da verificação de uma mutação da realidade se altera o sentido da norma sem que o seu texto mude, podendo nessa mutação influir elementos de apreciação diversos fornecido pela atualidade da realidade em presença. Aceitando que a norma e o texto da norma não se confundem caberia ao intérprete mormente à jurisprudência extrair de cada enunciado linguístico com intenção normativa um sentido adequado à época e contexto.

(…) E é isso que coloca a questão de saber como o intérprete deve agir quando está a aplicar uma lei mais de 23 anos depois quando essa mesma lei foi fundadora de um direito (de preferência do arrendatário) mereceu um entendimento maioritário mas não unânime, entendimento esse que a evolução da realidade veio a inverter com base numa outra lei que no entanto não realizou (nem declarou ter realizado) um corte com a lei anterior, antes a enunciou em termos que deixa verdadeiramente intocada a polémica interpretativa inicial - saber se o arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal o pode adquirir na totalidade – e fornecendo até uma norma o nº 8 do art. 1091 (que veio a ser julgada inconstitucional) que pretendia responder a essa questão sempre presente desde que existe preferência do arrendatário, da forma enunciada pela corrente então minoritária.(…) deve aceitar-se que interpretar a norma tendo atenção às condições especificas do tempo em que é aplicada impõe que não nos coloquemos em 1984 a aplicar a lei, mas sim no tempo presente, pelo menos por referência à data do início do litígio em tribunal e nesta interpretação cabe (tem de caber) mais que a visão mundividente daquele tempo. (…) Pode objetar-se a esta interpretação atualizada pela realidade subsequente que a culpa não é do arrendatário e que se este tivesse sabido mais cedo da venda teria preferido ou, até, que a lei apenas mudou em 2006 e a ação foi proposta em 2008. Porém, o que dizemos e aceitamos, não é que se a ação tivesse sido proposta mais cedo a decisão interpretativa seria outra (maioritária). Não fomos chamados a decidir em tempo anterior e por isso não é esse juízo hipotético e retroagido que cumpre agora realizar. Tem de decidir-se com base na norma aplicável interpretando-a na sua própria letra e também com os elementos relevantes para compreensão da realidade e dos preceitos que dispomos no tempo em que estamos a fazer a sua aplicação.

Deste modo, o texto da lei 63/77, o seu art. 1º, não fechava o entendimento de se poder recusar o direito de preferência ao arrendatário que o fosse apenas de parte integrante de um imóvel com mais partes e não constituído em propriedade horizontal e, aceitando ser nesse âmbito de vigência da norma bastante mais frequente a jurisprudência aceitar a preferência sobre a totalidade do imóvel, em verdade não só a inexistência de unanimidade (com os fundamentos que deixamos expostos e subscrevemos) toda a evolução posterior a partir do mesmo núcleo de preocupações normativas e a leitura juridicamente significante do tempo e da realidade, determina que, na interpretação da lei 63/77 e sua aplicação ao caso dos autos, entendamos não dever ser reconhecido ao arrendatário de uma única parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal e que contém outras partes locáveis, o direito de preferência, máxime, sobre a totalidade do imóvel.».

Suportando-se as decisões jurídicas em confronto em situações fácticas com um grau de sobreposição assinalável, e tratando-se da aplicação do mesmo normativo, há entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento o decurso de 31 anos, e respectiva influência na conformação das relações jurídicas, com evolução legislativa que fez coincidir o direito de preferência do arrendatário na alienação do prédio com o espaço locado, e as consequentes alterações de posição maioritária e minoritária da jurisprudência sobre a extensão do direito de preferência do arrendatário naquelas situações, que foram determinantes para a decisão constante do acórdão recorrido e eram inexistentes no momento em que foi proferido o acórdão fundamento.

A contradição entre as duas decisões em análise é meramente aparente porque proferida uma, o acórdão recorrido, em 2022, num contexto factual e normativo profundamente diverso daquele de que dispunha o acórdão fundamento ao aplicar, em 1991, o mesmo preceito legal, donde resulta não se mostrar suficientemente configurada uma contradição entre os dois acórdãos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

Não é, pois, admissível o recurso ao abrigo do disposto art.º 688.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


*


III – Deliberação

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Pleno das Secções Cíveis não admitir o recurso para uniformização de jurisprudência.

Custas pelo recorrente.


*


Lisboa, 9 de Abril de 2025

Ana Paula Lobo (relatora)

Isabel Manso Salgado

Jorge Leal

Emídio Francisco Santos

Nelson Borges Carneiro

Maria do Rosário Gonçalves

Maria de Deus Simão Correia

Anabela Luna de Carvalho

Cristina Tavares Coelho

Maria Teresa Albuquerque

Rui Machado e Moura

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

Maria Clara Sottomayor

Maria da Graça Trigo

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

António Oliveira Abreu

José Maria Ferreira Lopes

António Barateiro Martins

Fernando Batista de Oliveira

Luís Espírito Santo

Jorge Arcanjo Rodrigues (vencido conforme declaração que junto)

Manuel José Aguiar Pereira – vencido nos exactos termos da declaração de voto do primitivo relator Juiz Conselheiro Jorge Arcanjo

Henrique Antunes. Vencido pela fundamentação exposta na declaração de voto do Sr. Juiz Conselheiro Jorge Arcanjo

Orlando Nascimento, vencido nos termos do voto vencido do Cons. J. Arcanjo

Fátima Gomes, vencida conforme declaração do Conselheiro Arcanjo

Maria João Vaz Tomé, vencida de acordo com declaração do Senhor Conselheiro Jorge Arcanjo

António Moura Magalhães, vencido de acordo com a declaração do Sr. Conselheiro Dr. Jorge Arcanjo

Ricardo Alberto Santos Costa. Votei vencido, subscrevendo a declaração de voto do Conselheiro Jorge Arcanjo.


***



Processo nº 3391/08.1TVLSB.L1.S1

Recurso de Uniformização de Jurisprudência


Declaração de voto de vencido

Voto vencido pelas razões que passo a expor e que correspondem, no essencial, às do projeto que elaborei como relator primitivo.

Como já foi delimitado no despacho de admissão do recurso, a questão fundamental de direito que se encontra em discussão reconduz-se a determinar se a Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, deve ser interpretada no sentido de que o inquilino de uma parte de um prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, poderá preferir na venda sobre a totalidade do imóvel.

No despacho de admissão considerou-se existir contradição entre o acórdão recorrido, o acórdão do STJ, proferido em 13-10-2022 nos autos principais, aos quais o presente recurso para uniformização de jurisprudência corre por apenso, e o acórdão do STJ, datado de 26-09-1991, proferido no âmbito do processo n.º 080164 (acórdão fundamento).

Resulta da análise conjugada dos nºs 3 e 4 do art. 692.º do CPC que o Pleno pode entender em sentido diverso do acórdão da conferência, que decide pela verificação dos pressupostos materiais e formais da admissão do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência.

O requerimento de interposição de recurso mostra-se tempestivo (art. 689.ºnº1 do CPC) e foi apresentado por quem dispõe de legitimidade para o efeito (art. 631.º do CPC) e se encontra regularmente patrocinado.

Tal requerimento encontra-se devidamente instruído com alegações e conclusões, mostrando-se, do ponto de vista formal, satisfeitos os ónus de indicação dos fundamentos específicos de recorribilidade e foi junta cópia do acórdão fundamento, que é anterior ao acórdão recorrido e cujo trânsito se presume (art. 688.ºnº2 do CPC).

Verificando-se os pressupostos de admissibilidade formal do presente recurso extraordinário, importa averiguar se existe ou não contradição de julgados relevante.

De acordo com o disposto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC, “as partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.”

Atenta a disposição legal acima mencionada, e conforme jurisprudência estabilizada, a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência depende da verificação de três requisitos:

(1) contradição do acórdão recorrido com algum acórdão anteriormente proferido pelo STJ, denominado de acórdão fundamento;

(2) que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e

(3) que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito (cf., por exemplo, acórdão do STJ de 11-07-2019, recurso para uniformização de jurisprudência n.º 1649/14.0T8VCT.G1.S1-A).

Como tem sido uniformemente decidido pelo STJ, a questão fundamental de direito subjacente à alegada contradição deve assumir carácter fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto. Irrelevam, por conseguinte, as hipóteses em que a divergência invocada se traduza em mero obiter dictum ou em simples argumentos laterais, coadjuvantes ou suplementares de uma solução realmente já alcançada por outra via jurídica, e, portanto, à qual os mesmos surgem anódinos, irrelevantes, indiferentes. Também a jurisprudência do STJ afirma, “de forma pacífica e reiterada, que a contradição relevante, neste âmbito, pressupõe ainda a identidade do núcleo essencial das concernentes situações fácticas” (Acórdão do STJ de 20-11-2019, recurso para uniformização de jurisprudência n.º 433/11.7TVPRT.P1.S2-A). Pronunciaram-se no sentido exposto, os acórdãos do STJ de 19-09-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 28438/16.4T8LSB.L1.S1-A), de 12-09-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 2146/16.4T8LRA.C2.S1-A), de 19-03-2019, (Recurso para Uniformização de Jurisprudência n.º 6233/10.4TBCSC.L2.S1-A), de 28-03-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 60/13.4TBCUB.E1.S1-A), de 29-01-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 2303/01.8TVLSB.L2.S1-A) e de 10-01-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 1522/13.9TBGMR.G1.S2-A).

Na situação objeto de apreciação pelo acórdão recorrido, discutiu-se se seria de reconhecer ao autor, na qualidade de arrendatário de uma parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência, consagrado na Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, na venda da integralidade daquele prédio urbano à primitiva ré Maria Zaida, ocorrida em 28-06-1984.

No acórdão recorrido (de 13-10-2022) relevam os seguintes elementos: Prédio urbano não constituído em propriedade horizontal; Em 1976, Arrendamento para habitação de uma parte (2º andar); Em 1984, venda de todo o prédio.

No acórdão fundamento (26-9-1991) os seguintes dados: Prédio urbano não constituído em propriedade horizontal; Em 18-4-1973 arrendamento para habitação do 1º andar; Em 21-8-1978 venda de todo o prédio.

Em ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) aplica-se a Lei nº 63/77 porque as respetivas vendas foram realizadas na vigência desta lei.

No acórdão recorrido negou-se o direito de preferência sobre todo o prédio. No acórdão fundamento reconheceu-se o direito de preferência sobre todo o prédio.

O acórdão recorrido, fazendo uma interpretação dita atualista do art.1º da Lei n.º 63/77, de 25 de agosto negou ao autor tal direito de preferência, argumentando que a Lei não contempla no seu texto o direito de preferência de arrendatário sobre a totalidade do prédio urbano. No essencial, são dois os argumentos invocados: (a) posição de uma corrente minoritária no âmbito da Lei nº 63/77 a interpretar o art.1º no sentido de que não abrange o direito de preferência do arrendatário de parte sobre o prédio na sua totalidade; (b) a evolução legislativa posterior.

Por seu turno, também no acórdão fundamento se discutiu se os autores, na qualidade de arrendatários habitacionais de parte não autónoma de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, gozavam do direito de preferência conferido pelo art. 1.º Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, na venda de todo o imóvel, ocorrida a 21-08-1978. Tal questão foi respondida em sentido afirmativo pelo aresto em análise, que fez notar que “o artigo 1 da Lei 63/77, de 25 de Agosto atribui, ao locatário habitacional de imóvel urbano o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do mesmo, independentemente de o mesmo se encontrar ou não constituído em regime de propriedade horizontal e qualquer que seja o adquirente.” Nesta base, julgou o STJ improcedente a revista, confirmando o acórdão da Relação que confirmou a sentença de primeira instância que reconheceu aos autores o direito de preferirem na venda em questão.

Nos dois acórdãos estão em confronto duas situações litigiosas essencialmente análogas – em que os arrendatários habitacionais de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal reclamavam a titularidade de um direito de preferência legal na venda da integralidade do imóvel –, acompanhadas por um entendimento divergente quanto à interpretação do art. 1.º da Lei 63/77, de 25 de agosto, como consagrando um direito de preferência relativamente a tal categoria de arrendatários habitacionais.

Sublinhe-se que, ao contrário do que resulta da posição expressa pelos recorridos em sede de resposta, a circunstância de o mencionado regime não se encontrar em vigor, tendo sido substituído por diversa disciplina legal, se mostra irrelevante para efeitos do preenchimento da exigência, prevista no n.º 1 do art. 688.º do CPC, de a controvérsia se ter de verificar “no domínio da mesma legislação”.

Efetivamente, a norma em causa não exige que a legislação sobre a qual se verificou o dissídio jurisprudencial permaneça em vigor, bastando que os pronunciamentos judicativos se tenham reportado ao mesmo quadro normativo. Ora, se é certo que, entre a prolação dos dois arestos ocorreram modificações legislativas relevantes, trazidas pelo RAU (aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de outubro) e pelo NRAU (aprovado pela Lei nº 6/2006de 27 de fevereiro), reguladoras do direito de preferência do arrendatário habitacional, não é menos verdade que nos dois acórdãos, muito embora separados por mais de trinta anos, as operações de subsunção jurídica se realizaram por referência à Lei nº 63/77, de 25 de agosto.

Na verdade, como é sabido, o direito legal de preferência, enquanto direito real de aquisição, surge na esfera jurídica do seu titular no momento em que a situação se objectiva, sendo, por isso, aplicável a lei vigente à data da alienação. Como resulta do art.1410 nº1 CC, aplicável directamente ou por analogia a todas as preferências legais, o reconhecimento judicial do direito de preferência tem efeito retroativo ao momento da alienação, de tal modo que o adquirente que figura no contrato é substituído ab inicio pelo preferente. Daí que para a determinação da lei aplicável se deva atender ao momento da compra e venda ou da dação em cumprimento, e ambas as vendas (1978 – acórdão fundamento, 1984 – acórdão recorrido) foram realizadas na vigência da Lei nº 63/77 de 25 agosto.

Deste modo, evidencia-se entre os acórdãos em cotejo dois pronunciamentos divergentes quanto à questão de saber se o direito de preferência legal, consagrado no art. 1.º da Lei 63/77, de 25 de agosto, abrange a categoria de arrendatários habitacionais na venda da totalidade do prédio não constituído em propriedade horizontal, entendimentos esses que, tendo sido enunciados pelos arestos de forma expressa, apresentaram um relevo decisivo para o desfecho das respetivas causas, cujas ratio decidendi orbitaram em torno da questão do reconhecimento do direito de preferência invocado pelos respetivos autores.

Por conseguinte, verifica-se uma identidade fáctico-normativa entre os dois arestos em exame conducente a resultados decisórios antagónicos quanto à mesma questão fundamental de direito.

O acórdão, expressando a posição maioritária do Pleno, muito embora reconheça que as situações fáticas em  ambas as decisões ( acórdão recorrido e acórdão fundamento) são similares ( rectius,  “com um grau de sobreposição assinalável”) e que está em causa a “aplicação do mesmo normativo”,  rejeita, porém,  o recurso de uniformização dizendo que “a contradição entre as duas decisões em análise é meramente aparente”, com o argumento de que “ há entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento o decurso de 31 anos, e respectiva influência na conformação das relações jurídicas, com evolução legislativa que fez coincidir o direito de preferência do arrendatário na alienação do prédio com o espaço locado, e as consequentes alterações de posição maioritária e minoritária da jurisprudência sobre a extensão do direito de preferência do arrendatário naquelas situações, que foram determinantes para a decisão constante do acórdão recorrido e eram inexistentes no momento em que foi proferido o acórdão fundamento”.

Com o devido respeito, discordo desta argumentação porque ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) aplicam o mesmo diploma e a mesma disposição, o art.1º da Lei 63/77 de 25 agosto, logo não faz parte da “base normativa” a evolução legislativa posterior (RAU e NRAU).

A circunstância do acórdão recorrido haver interpretado o art.1º da Lei nº 63/77 conferindo-lhe precisamente o mesmo sentido que o legislador de 2006 ( Lei nº 6/2006 de 27 fevereiro)  com o NRAU, através de lei inovadora, e não interpretativa, introduziu no art.1091 CC (que segundo a interpretação que hoje se apresenta como a mais consistente não atribui o direito legal de preferência ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal), não serve para afastar o requisito da contradição, postulado no art.688 nº1 CPC, e rejeitar o recurso. Pelo contrário, só reforça a contradição, na medida em que tal circunstância já contende, não com a admissibilidade, mas com o mérito do recurso de uniformização.

De resto, quando ambos os acórdãos em confronto foram proferidos já tinha havido alterações legislativas, e não apenas ao tempo da prolação do acórdão recorrido, pois também aquando do acórdão fundamento já se dera alteração legislativa (RAU).

Daí se entender, contrariamente à posição que logrou vencimento, que, no caso concreto, o intervalo de tempo de 31 anos entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido não legitima o afastamento do requisito da contradição.

Acresce que, contrariamente ao argumento invocado, no âmbito da aplicação da Lei nº 63/77 não houve quaisquer “alterações de posição maioritária e minoritária da jurisprudência”, pois a sua interpretação (no sentido de atribuir direito de preferência ao arrendatário de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal), reforçada pelo argumento sistemático, revelou-se uniforme, tanto no plano jurisprudencial, como doutrinário. Com efeito, no âmbito desta lei não se conhece qualquer corrente minoritária que aporte uma outra interpretação a negar o direito de preferência ao arrendatário. Foi apenas com o RAU (art.47), que, em face da alteração da redação (“local arrendado”), se formou uma posição minoritária.

Muito embora seja defensável uma  interpretação restritiva da norma prevista no art. 688.ºnº1 do CPC, confortada pelo recurso aos princípios gerais do processo civil (como o dever de gestão processual, previsto no art. 6.ºnº1 do CPC, ou o princípio da boa-fé processual, previsto no art. 8.º daquele diploma), conducente à rejeição de um recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência quando, a título de exemplo, seja invocado um acórdão fundamento numericamente insignificante e desatualizado em face de outros acórdãos do Supremo mais recentes e mais numerosos(possibilidade aventada por António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 558), a verdade é que tal situação não sucede no caso vertente. E isto porque o acórdão fundamento indicado, longe de ser numericamente insignificante, dá voz ao entendimento jurisprudencial uniforme que, na vigência da Lei nº63/77, de 25 de agosto, se consolidou a respeito da existência de um direito de preferência legal do arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal. Por seu turno, a jurisprudência que, entretanto, se firmou no STJ, no sentido de negar tal direito, reporta-se, não à aludida Lei de 1977, mas ao atual regime vigente, consagrado no art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU).

Por outro lado, não existe jurisprudência uniformizada de acordo com a qual o acórdão recorrido pudesse estar de acordo (cfr. artigo 688.º, n.º 3, do CPC).

Em sede de resposta, os réus pugnaram pela inadmissibilidade do presente recurso para uniformização de jurisprudência invocando a inexistência, para os efeitos do disposto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC, de um interesse público atendível na fixação de jurisprudência relativamente a legislação revogada há mais de trinta anos.

Tal argumento não poderá proceder. Efetivamente, como sublinhado na decisão singular de 09-06-2023, para além de não ser apenas o interesse público a justificar a admissibilidade de um recurso da índole do presente, encontra-se por demonstrar que tal interesse público esteja ausente “in casu”, considerando que a Lei nº63/77, de 25 de agosto, cuja interpretação suscitou discórdia entre os acórdãos em confronto, não deixa de conhecer aplicação atual - como demonstra o acórdão recorrido -, apesar de há muito ter sido revogada.

A circunstância, indiciada por um juízo de probabilidade empírica, de a aplicação de tal diploma ser, nos dias de hoje, meramente residual e circunscrita, não constitui fundamento legal para a rejeição liminar do presente recurso.

Pelo exposto, admitiria o recurso de uniformização de jurisprudência.

Lisboa, 9 de Abril de 2025.

Jorge Arcanjo