Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S1175
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: REINTEGRAÇÃO DE TRABALHADOR
RECONVENÇÃO
REQUISITOS
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: SJ200601260011754
Data do Acordão: 01/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3600/04
Data: 01/19/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. Se a autora pede a reintegração no seu posto de trabalho e o pagamento das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento, fundando tais pedidos na ilicitude do despedimento, por considerar que os factos constantes da nota de culpa que a entidade empregadora contra ela deduziu eram insubsistentes, é admissível, nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, que a ré empregadora deduza reconvenção em que pede o pagamento de certa quantia, a título de indemnização pelos prejuízos originados pelo comportamento ilícito e culposo da autora, uma vez que os alegados factos ilícitos e culposos que terão dado causa aos prejuízos cuja indemnização se pede são, precisamente, os mesmos que, embora numa perspectiva oposta, servem de fundamento à acção;
2. Aliás, tendo o tribunal de conhecer da matéria de facto vertida na referida nota de culpa para poder ajuizar sobre as concretas pretensões deduzidas pela autora, o simultâneo conhecimento da reconvenção não implicará maior actividade por parte do tribunal, nem determinará embaraço de relevo para o julgamento da causa.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. "AA" instaurou acção emergente de contrato individual de trabalho contra Empresa-A, pedindo que, declarada a ilicitude do seu despedimento por falta de justa causa, seja aquela sociedade condenada a reintegrá-la no seu posto de trabalho e no pagamento da quantia global de 85.737,30 euros, a título de remunerações vencidas, retribuição de férias, subsídios de férias e de Natal, trabalho suplementar e outros créditos salariais que discriminou, bem como no pagamento dos salários e subsídios que se vencerem desde a data do despedimento até à reintegração no seu posto de trabalho, com juros de mora até efectivo e integral pagamento.

A ré contestou, alegando, por um lado, que nada deve à autora a título de retribuições, férias, subsídios de férias e de Natal, trabalho suplementar e outros créditos salariais peticionados, e, por outro lado, que a autora violou gravemente os seus deveres de lealdade, honestidade, respeito, zelo e diligência, o que torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, consubstanciando justa causa de despedimento, nos termos do artigo 9.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), d) e e), do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, tendo aproveitado para deduzir pedido reconvencional, com o fundamento de que «atenta a elevada posição da A. na empresa da R. e atento o dever de lealdade, obediência e respeito a que está sujeita, quer se tenha apoderado e feitas suas as importâncias em falta, quer tenha permitido o seu furto por terceiros, o que é facto é que a R. incorreu em inúmeros prejuízos originados pelo comportamento grave, ilícito e culposo da autora», pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 10.409,55 euros, a título de indemnização pelos prejuízos que lhe causou com a sua conduta ilícita, acrescida de juros de mora à taxa legal de 7%, desde a data da notificação da autora do pedido reconvencional, até integral e efectivo pagamento.

A autora respondeu e contestou o pedido reconvencional.

No despacho saneador, decidiu-se não admitir o pedido reconvencional deduzido, «face à não verificação, desde logo, dos requisitos de natureza substancial que condicionam a sua admissibilidade», com base nos seguintes fundamentos:

«Em processo laboral, a reconvenção é possível quando o pedido do réu (reconvindo) emerge ou resulta do mesmo facto jurídico que serve de fundamento ao pedido do autor (na reconvenção laboral tal facto jurídico não pode resultar da defesa do réu).
No caso sub judice, é manifesto que o pedido reconvencional deduzido resulta da própria defesa da R. - desvio das importâncias em falta, feitas suas, ou a permissão do seu furto por terceiros - factos esses susceptíveis de consubstanciarem a justa causa para o despedimento por violação, desde logo, dos deveres de lealdade, obediência e respeito por parte da trabalhadora.
Ora, o facto jurídico (principal) que serve de fundamento à acção é a impugnação judicial do despedimento individual feito pela R., com a invocação, desde logo, da inexistência de justa causa de despedimento.
Logo, por tal motivo o pedido reconvencional deduzido mostra-se inadmissível.»

2. Inconformada, a ré agravou para a Relação, que confirmou o despacho recorrido, negando provimento ao agravo, sendo contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante agravo de 2.ª instância, em que formula as seguintes conclusões:
«A) De acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, a reconvenção só é admitida quando o pedido do réu seja emergente do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou quando se encontre relacionado com o pedido do autor por uma relação de conexão, ou seja, uma relação de acessoriedade, complementaridade ou dependência;
B) A agravada intentou a acção principal com fundamento no contrato de trabalho que a vinculava à agravante e na sua cessação, peticionando o reconhecimento da ilicitude do seu despedimento, porquanto o mesmo tem na sua base, imputações alegadamente falsas, as quais constam da nota de culpa e da respectiva decisão final;
C) Ora, a agravante fundamenta e deduz o seu pedido reconvencional precisamente nas referidas imputações, a saber, violações dos deveres contratuais que impendiam sobre a agravada e no contrato de trabalho vigente entre as partes;
D) Impõe-se concluir pela admissibilidade da reconvenção, porquanto os factos jurídicos que fundamentam a acção são os mesmos, embora numa perspectiva oposta, que fundamentam a dedução do pedido reconvencional;
E) Se assim não se entender, à cautela e por mero dever de patrocínio, deverá sempre considerar-se preenchido o requisito objectivo da conexão, por dependência, uma vez que a agravada pretende provar a ilicitude do despedimento, ou seja, que os factos que lhe foram imputados não constituem infracção disciplinar ou são falsos, enquanto que a agravante, em sede de pedido reconvencional, pretende provar a verificação desses mesmos factos, os quais consubstanciam violações dos deveres contratuais que impendiam sobre a agravada, ao abrigo do contrato de trabalho;
F) O conceito de dependência implica que a apreciação de uma das questões pressuponha a apreciação da outra e, no caso sub judice, o pedido reconvencional está numa relação de conexão por dependência com a apreciação das infracções contratuais imputadas à agravada e que serviram de fundamento ao seu despedimento;
G) Atendendo a que quer a acção principal, quer o pedido reconvencional se fundamentam nos mesmos factos essenciais, a sua apreciação em dois processos judiciais distintos poderia levar, em última análise, a decisões contraditórias, em clara ofensa do princípio do caso julgado material;
H) A decisão recorrida revela-se contrária a anterior jurisprudência proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no domínio da mesma legislação, não tendo sido fixada jurisprudência sobre a mesma questão de direito pela Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, pelo que deverá o presente recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 732.º-A e 732.º-B, aplicáveis por força do artigo 762.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, ser objecto de julgamento alargado a fim de obter a uniformidade de jurisprudência;
I) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, bem como a alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, e o artigo 497.º do Código de Processo Civil.»

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido em conformidade com as conclusões transcritas.

Em contra-alegações, a recorrida veio defender a confirmação do julgado.

Submetido o processo à apreciação do Ex.mo Presidente deste Supremo Tribunal, para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 762.º, n.º 3, do mesmo Código, foi decidido que o julgamento do presente recurso se faria sem intervenção do plenário da Secção.
Continuados os autos com vista, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta exarou pronúncia no sentido de que se deveria dar provimento ao recurso de agravo, parecer que, notificado às partes, não suscitou qualquer resposta.

3. Corridos os vistos, o processo foi, entretanto, redistribuído, por jubilação do então relator.

Está apenas em causa saber se, no caso, a reconvenção é ou não admissível.

Tudo visto, cumpre decidir.
II
1. Com relevo para a apreciação do recurso importa ter presente a seguinte factualidade:

a) AA intentou acção emergente de contrato individual de trabalho contra Empresa-A, alegando que, tendo celebrado com a ré um contrato de trabalho, foi objecto de despedimento ilícito por parte da entidade empregadora, e que a ré é devedora de diversas retribuições a que a autora tem contratualmente direito, pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento por falta de justa causa e a condenação daquela sociedade a reintegrá--la no seu posto de trabalho e a pagar-lhe os créditos salariais que discriminou;
b) A ré contestou e deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora no pagamento da quantia de 10.409,55 euros, a título de indemnização pelos prejuízos que lhe causou com a sua conduta ilícita, que constituiu a invocada justa causa de despedimento.

Por conseguinte, será com base no acervo factual enunciado que há-de ser resolvida a única questão suscitada no presente recurso.
2. O artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho estipula:
«Artigo 30.º
(Reconvenção)
1 - A reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e no caso referido na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal.
2 - Não é admissível reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor.

Por sua vez, dispõe a alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), que compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, ou seja, «questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente», salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão.

A admissibilidade da reconvenção está, assim, dependente da verificação de requisitos de natureza substantiva, que se traduzem na exigência de uma certa relação de conexão entre o pedido principal e o pedido reconvencional, a par de outros, agora de carácter processual ou adjectivo, referentes à forma do processo e competência do tribunal.

O acórdão recorrido não põe em causa a falta de qualquer requisito de cariz processual, pelo que deles não há que conhecer.

Relativamente aos requisitos de natureza substantiva, o citado artigo 30.º prevê três situações de admissibilidade da reconvenção: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção; (ii) quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, complementaridade ou dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos.

Saliente-se que, enquanto a alínea a) do n.º 2 do artigo 274.º do Código de Processo Civil, admite a reconvenção «[quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa», o n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, restringe essa admissibilidade à situação em que o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, pelo que, no domínio do processo laboral, não é admissível reconvenção com base no facto jurídico que serve de fundamento à defesa.

E é precisamente neste ponto que o despacho proferido na primeira instância alicerça a fundamentação conducente à inadmissibilidade da reconvenção em causa, ao entender que o pedido reconvencional resultava da própria defesa da ré (desvio das importâncias em falta, feitas suas, ou a permissão do seu furto por terceiros), factos esses susceptíveis de consubstanciarem a justa causa para o despedimento por violação dos deveres de lealdade, obediência e respeito por parte da trabalhadora, e, por isso, seria inadmissível.

Nessa perspectiva, emergindo o pedido reconvencional de facto que serve de fundamento à defesa, verificar-se-ia a apontada restrição consagrada no específico regime de admissibilidade da reconvenção que vigora no direito processual laboral.

Porém, como bem se sublinha no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21 de Outubro de 1998, proferido no processo n.º 108/98 (revista), da 4.ª secção, «o problema não apresenta esta aparente linearidade».
Na verdade, prossegue o mesmo acórdão, «[u]ma reflexão mais cuidada levar-nos-á a indagar da razão por que tais factos servem de fundamento à defesa.

«Crê-se que isso resulta da inversão do ónus da prova consagrada no n.º 4 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro.

«E diz-se inversão do ónus da prova, porquanto a acção de impugnação judicial do despedimento tem, materialmente, como causa de pedir um despedimento ilícito.

«E quando essa ilicitude advém da falta de justa causa, o autor deve fundamentar o seu pedido (de reintegração, indemnização, etc.) no facto do despedimento no âmbito de um contrato de trabalho subordinado sem justa causa e, por isso, ilícito.

«Mas a alegação "sem justa causa" implica a alegação de que os factos em que a entidade patronal fundou o despedimento não são idóneos a integrar o conceito legal de justa causa.

«O que, no jogo normal das regras probatórias, implicaria a prova de que tais factos não existiriam ou não têm a relevância pretendida.

«Todavia, o legislador, por razões que agora não importam, mas que se aceitam e compreendem, impôs, naquele n.º 4 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 64--A/89, de 27 de Fevereiro, essa prova à entidade patronal.

«Daqui a ideia, demasiado simplista, de que tais factos servem de fundamento à defesa.»

3. No caso em apreço, a autora cumulou diversos pedidos contra a ré, sendo diferentes os factos jurídicos em que alicerça essas suas pretensões.

Assim, no que respeita aos pedidos de reintegração da autora no seu posto de trabalho e de pagamento dos salários e subsídios que se vencerem desde a data do despedimento até à reintegração, a causa de pedir reconduz-se à alegada ilicitude do despedimento, ilicitude essa que advém da imputada falta de justa causa para o despedimento promovido pela empregadora e que gera os efeitos estipulados no n.º 1 do artigo 13.º do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, adiante designado por LCCT.

Já quanto ao pedido de pagamento da quantia global de 85.737,30 euros, a título de remunerações vencidas e outros créditos salariais que discriminou, a causa de pedir assenta no não cumprimento ou no defeituoso cumprimento do próprio contrato de trabalho celebrado entre as partes, que investe o trabalhador e a entidade empregadora num complexo de direitos e obrigações, que a lei lhes reconhece e impõe (cf. artigos 1.º e 19.º a 21.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, adiante designado por LCT).

Com o pedido reconvencional, a ré pretende obter o pagamento da quantia global de 10.409,55 euros, a título de indemnização pelos prejuízos originados pelo comportamento ilícito e culposo da autora, «quer se tenha apoderado e feitas suas as importâncias em falta, quer tenha permitido o seu furto por terceiros».

Portanto, os factos ilícitos e culposos que terão dado causa aos prejuízos cuja indemnização se pede são, precisamente, os mesmos que integram a justa causa de despedimento, fundando-se esse pedido indemnizatório na violação grave e culposa dos deveres decorrentes do contrato de trabalho [deveres de lealdade, honestidade, respeito, zelo e diligência previstos nas alíneas a), b), e e) do n.º 1 do artigo 20.º da LCT], susceptível de integrar justa causa de despedimento [artigo 9.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), d) e e), da LCCT].

Em suma: a autora formulou pedidos assentes na ilicitude do despedimento, por considerar que os factos constantes da nota de culpa que a entidade empregadora contra ela deduziu eram insubsistentes, e são esses mesmos factos, embora numa perspectiva oposta, que suportam o pedido reconvencional.

Tanto basta para que se possa concluir que o pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção.

Aliás, tendo o tribunal de conhecer da matéria de facto vertida na referida nota de culpa para poder ajuizar sobre as concretas pretensões deduzidas pela autora, o simultâneo conhecimento da reconvenção não implicará maior actividade por parte do tribunal, nem determinará embaraço de relevo para o julgamento da causa.

Face a todas as precedentes considerações, a reconvenção, tal como se encontra formulada pela ré, é admissível com base no disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho.
III
Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao agravo e, assim, revoga-se o acórdão recorrido, bem como o despacho da primeira instância, na parte em que não admitiu o pedido reconvencional formulado, determinando-se que seja substituído por outro a julgar a reconvenção admissível, prosseguindo a acção seus regulares termos.

Custas pela agravada, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2006
Pinto Hespanhol
Maria Laura Leonardo
Sousa Peixoto