Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
778/11.6TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: COLISÃO DE DIREITOS
PROPRIEDADE HORIZONTAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
MOBILIDADE CONDICIONADA
Data do Acordão: 02/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DA PERSONALIDADE / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / COLISÃO DE DIREITOS - DIREITOS REAIS / DIREITO DA PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS E DEVERES SOCIAIS.
Doutrina:
- Maria de Fátima Ribeiro, no Comentário ao CC – Parte Geral, UC Editora, pp. 170 e ss..
- Menezes Cordeiro, “Os direitos de personalidade na civilística portuguesa”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, vol. I, p. 21 e ss.; Tratado de Direito Civil, I, tomo IV, p. 389 e ss..
- Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, p. 542.
- Raymond Lindon, Les Droits de Personalité)
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 335.º, 1420.º, N.º1, 1425.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 71.º, 72.º.
LEI Nº 46/06, DE 28-8: - ARTIGOS 1.º, 3.º, AL. B), 4.º, AL. E).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 2-12-13, DE 7-4-11, DE 19-10-10, DE 30-9-10, DE 29-11-12.
Sumário :
1. O nº 3 do art. 1425º do CC, introduzido pela Lei nº 32/12, de 14-8, permite que um condómino em situação de mobilidade condicionada possa instalar, à sua custa, em parte comum do prédio em regime de propriedade horizontal, estruturas que facilitem o acesso à sua fracção.

2. Conquanto esse direito não esteja expressamente atribuído ao arrendatário de uma fracção autónoma, o regime da propriedade horizontal não deve impedir que possa ser autorizado a instalar, à sua custa, em circunstâncias semelhantes, estruturas que facilitem a sua mobilidade.

3. Estando o arrendatário, por via da sua condição física, impedido de aceder ao 3º andar de um prédio não dotado de elevador, o regime jurídico da propriedade horizontal deve ceder na medida necessária a assegurar a tutela dos seus direitos, nos termos do art. 335º do CC, permitindo designadamente a instalação de uma cadeira elevatória na escadaria comum.

4. A autorização judicial para a colocação de uma cadeira elevatória na escadaria comum do prédio, para além de constituir uma medida que beneficia quem sofre de mobilidade condicionada, nos termos do Dec. Lei nº 163/06, de 8-8, assegura também o efectivo exercício do direito à habitação de pessoas afectadas por incapacidade física, cuja discriminação é impedida pela Lei nº 46/06, de 28-8.

Decisão Texto Integral:
I - AA e BB instauraram acção declarativa contra CC, DD e Condomínio do Prédio sito na Avª EE, n° …, em …, pedindo a sua condenação a conformarem-se com (ou a absterem-se de impedir) a colocação de uma cadeira elevatória nas escadas do prédio de que os AA. são arrendatários e a indemnizarem os AA. pelas despesas extraordinárias que tiveram de realizar por causa da recusa dos RR. e numa indemnização por danos morais.

Os RR. contestaram mas a contestação foi desentranhada.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, mas a Relação, em recurso de apelação, julgou-a parcialmente procedente quanto ao pedido relacionado como a colocação da cadeira elevatória nas escadas do prédio.

Os RR. recorreram e a única questão que verdadeiramente importa apreciar gira em torno da possibilidade de ser conferida aos arrendatários de uma fracção habitacional a possibilidade de procederem à instalação, na escadaria comum do prédio, de uma cadeira elevatória, com o objectivo de superarem as dificuldades decorrentes da sua situação de mobilidade condicionada que os impede de aceder, por outros meios, ao 3º andar onde habitam.

I – Factos provados (alinhados de forma lógica e cronológica):


1. O prédio onde os AA. residem é composto por três pisos sem elevador.
2. Os AA. são inquilinos dos RR. CC e DD, proprietários da fracção habitacional onde aqueles residem desde 19-9-67, sita à Av. EE nº …, 3° dtº, em Lisboa, pagando a renda mensal de €125,00.
3. Os RR. CC e DD são proprietários de mais de 50% do prédio.
4. O A. nasceu em 7-10-30 e a A. em 24-9-39.
5. O A. teve o primeiro Acidente Vascular Cerebral em 1993, com hemiparesia direita, ataxia e disartria, e desde então sucederam-se outras complicações de saúde graves, como doença vascular periférica, tendo realizado bypass aorto-femural, sofre de hipertensão arterial, de enfisema pulmonar, hipotiroidismo e insuficiência renal crónica.
6. No dia 28-8-10, o A. foi internado de urgência no Hospital de S. Francisco Xavier na sequência de novo AVC com protuberancial à esquerda que agravou muito a sua deambulação, com necessidade de realizar fisioterapia diária.
7. Na sequência deste internamento do A., as filhas FF e GG contactaram a R. DD e o R. Condomínio para informarem do estado de saúde do seu pai e da necessidade de colocar no corrimão das escadas do prédio uma cadeira elevatória com paragem no 3º andar, pois, não possuindo o prédio elevador, sem tal cadeira elevatória o A. não poderia regressar ao seu lar, por estar impossibilitado fisicamente de subir e descer escadas.
8. O pedido dos AA. consistiu na instalação, a expensas suas, de uma cadeira elevatória, que os levasse do r/c ao 3° andar onde moram, num prédio sem elevador, e manifestaram desde logo a intenção de suportarem todos os custos e encargos.
9. As filhas dos AA. pediram à co-administradora do R. Condomínio, a Drª HH, autorização para, pelo menos uma delas, estar presente na Assembleia Geral e, se assim fosse desejado, também o técnico da empresa que procederia à instalação da cadeira elevatória, a fim de melhor explicitarem em que consistiria a instalação, respectivas dimensões e contingências.
10. A pedido das filhas dos AA. e na emergência de o A. vir a ter alta hospitalar, foi marcada uma Assembleia de Condóminos extraordinária a fim de ser submetida a deliberação a instalação da cadeira elevatória, mas foi-lhes negada a possibilidade de estarem presentes na dita Assembleia Geral de Condóminos.
11. No dia 20-10-10, os Condóminos do prédio sito na Av. EE n° … em …, reunidos em Assembleia Geral, deliberaram por unanimidade dos presentes não autorizar a colocação da referida cadeira elevatória; sem esclarecerem os motivos da recusa, limitaram-se a recusar.
12. Em Assembleia-geral de condóminos, realizada em 20-10-10, todos os condóminos votaram desfavoravelmente a proposta da A. de colocação de uma cadeira elevatória, por o Dec. Lei nº 163/06, de 8/8, a isso não obrigar e por a colocação ser impossível nas condições existentes.
13. A partir desta deliberação, as filhas dos AA. solicitaram nova Assembleia de Condóminos com vista a melhor os esclarecerem de que a colocação da cadeira elevatória em nada afectaria a estética do interior do prédio ou perturbaria o livre acesso por parte dos demais residentes às suas habitações, mas mais uma vez foi recusado o pedido.
14. À data da recusa dos RR., o A., de 80 anos de idade, ainda estava hospitalizado na sequência de segundo acidente vascular cerebral.
15. A instalação da cadeira elevatória constitui uma inovação que só beneficia o prédio sem elevador e que poderá ser útil aos demais residentes, nomeadamente, atenta a idade, aos moradores do 2º andar.
16. No dia 7-11-10, o A. foi novamente internado de urgência no Hospital de Pulido Valente em virtude de dificuldade respiratória grave, no contexto de infecção tráqueo-brônquica, tendo tido alta em 12/11/10, com indicação para manter oxigeno-terapia nocturna e cinesiterapia respiratória.
17. Para além das incapacidades motoras decorrentes dos AVCs, o A. padece de uma insuficiência respiratória com dispneia para pequenos esforços o que contribui para a impossibilidade de subir e descer escadas.
18. Também a A. sofreu um enfarte do miocárdio em 8-8-06, sendo aconselhada pelo médico assistente a fazer a sua vida normalmente, nomeadamente, a andar em zona plana, mas a evitar todo o esforço físico e caso realize esforços físicos, os problemas cardíacos da A. agravar-se-ão.
19. Em consequência dos problemas de saúde que afectam ambos os AA. estes deixaram de poder subir as escadas do prédio onde habitam, até ao 3º andar.
20. Entretanto, com a alta hospitalar, perante a incapacidade física motora do A., da necessidade de ter de se deslocar a sessões de fisioterapia e face à recusa dos RR. em autorizarem a instalação da cadeira elevatória, os AA. viram-se obrigados a alojarem-se no Hotel …, sito na Av. …, nº …, em Entrecampos, Lisboa.
21. Na sequência do teor da deliberação tomada, posterior recusa em atender ao pedido dos A.A. e da alta hospitalar ocorrida em 12-11-10, estes viram-se na necessidade de irem para um hotel, no caso o Hotel ….
22. O Hotel … tem preços da diária mais baixos que o Hotel …, contudo só com as dormidas naquele hotel o custo mensal que os AA. suportam ascendia aos € 2.000,00 (em Novembro de 2010 pagaram por 18 dias a quantia de € 1.062,00).
23. Tiveram despesas extraordinárias, com as quais não contavam, como as da hospedagem, alimentação e tratamento de roupas que ascenderam, até à data da instauração da acção, a € 7.500,00.
24. Ao valor supra indicado acresceram os custos diários com as refeições (pequeno-almoço, almoço e jantar) e tratamento de roupa (lavar e passar a ferro) dos AA.
25. Os AA. vivem ambos da reforma do A. marido e era-lhes incomportável continuarem a pagar alojamento, refeições e tratamento de roupa, sendo que têm a sua própria casa da qual pagam renda aos RR. CC e DD.
26. Durante alguns meses, os AA. estiveram impedidos de subir e descer as escadas do prédio onde residem.
27. As duas filhas dos AA. não têm possibilidade de ter com elas os seus pais. A filha FF, de 46 anos de idade, vive num apartamento T-2 arrendado sito na Av. de …, nº …, 7° Esq., Lisboa, com a sua filha II de 18 anos de idade. A filha GG, de 40 anos de idade, vive num T-3 sito na R. …, nº …, Lisboa, com o seu marido e os 3 filhos menores de idade.
28. A cadeira elevatória percorre o lado interior das escadas com curva e é fabricada de acordo com as normas de segurança europeias e aprovada pelo organismo oficial alemão TUV, tendo aproximadamente as seguintes dimensões (1.080 mm de altura, 417 mm de profundidade e 575 mm de largura), ficando estacionada a 90º em relação à escada, sem impedir a passagem de macas, de carrinhos de bebé ou de cadeira de rodas de adulto.
29. A cadeira elevatória, porque não é fixada na estrutura nem nas fundações do prédio, não ofende as estruturas nem as infra-estruturas do prédio, nem o seu accionamento importa trepidação que ofenda das estruturas e fundações e não impede a circulação de pessoas e cargas pela escada, sendo a alimentação eléctrica feita directamente pelo quadro eléctrico da casa dos AA. e não pela coluna do prédio.
30. O estacionamento da cadeira elevatória apenas fica parada no r/c para que os AA. saiam e entrem da mesma, ficando depois estacionada no 3° andar, uma vez que existe um comando que a reenvia sempre para o piso onde os AA. habitam.
31. A instalação, no futuro, não sendo necessária, poderá ser retirada.
32. (Atenta a data da instauração da acção) os AA. andam tristes e deprimidos e não é pelas doenças (normais em pessoas de idade avançada) que vivem deprimidos pelo que lhes está a acontecer, impossibilitados de regressar a casa porquanto subir e descer as escadas lhes impõe esforço físico para lá das suas forças.
33. A ajuda dos bombeiros a que os AA. poderiam recorrer é paga e os AA. sentir-se-iam humilhados ao verem-se transportados ao colo para cima e para baixo sempre que pretendessem sair ou entrar na sua casa.

III – Decidindo:

1. No caso concreto, apresenta-se-nos uma pretensão formulada por um casal de idosos, o marido com 84 anos e a mulher com 74 anos, ambos sofrendo de problemas do foro cárdio-vascular e respiratório e, especialmente o primeiro, com graves dificuldades de locomoção que o impedem de subir e descer as escadas para aceder ou sair do 3º andar que constitui a habitação de ambos.

Em 1993, o A. marido sofreu um AVC que, além de outras sequelas, o deixou em situação de hemi-parasia direita. Teve recaída em 2010, carecendo, a partir de então, de tratamentos diários de fisioterapia gravemente impedidos pelas dificuldades de mobilidade.

Quanto à A., embora a situação não assuma tal gravidade, sofre também de problemas do foro cardíaco, não podendo fazer esforços físicos, como aqueles que implicam a subida e descida da escadaria.

Por causa da impossibilidade ou grave dificuldade de cada um deles utilizar as escadas do prédio e sem outra alternativa junto dos seus familiares, os AA. estiveram alojados numa unidade hoteleira até ser instalada uma cadeira elevatória autorizada judicialmente através de uma providência cautelar de natureza antecipatória que os AA. requereram contra os RR.

Os AA. são arrendatários da fracção e é nesta que pretendem manter a sua morada, sendo que a forma mais pragmática de resolução desse problema passa pela instalação de uma cadeira elevatória na escadaria comum, o que não prejudica o uso normal da escadaria pelos demais ocupantes do prédio. Para além de a instalação e do funcionamento serem da responsabilidade dos AA., a referida estrutura elevatória é amovível, podendo ser retirada logo que venha a mostrar-se desnecessária.

2. É neste quadro fáctico que importa integrar a pretensão dos AA. que na prática se resume na confirmação da decisão cautelar.

Relativamente à generalidade das pretensões que aos tribunais são submetidas e mais ainda àquelas que convocam direitos de diferentes espécies é possível – e aconselhável – procurar a sua pré-compreensão, identificando a solução que provavelmente estará inscrita no ordenamento jurídico-formal, no pressuposto, repetidamente confirmado, de que na resolução de problemas concretos o legislador adopta a solução abstractamente mais razoável.

Os factos que se apuraram, para além de não suscitarem dúvidas quanto à razoabilidade da pretensão dos AA., permitem afirmar a sua pertinência e a sua procedência em resultado da harmonização entre as regras da propriedade horizontal e os direitos de personalidade dos arrendatários.

Na verdade, nem sequer numa visão mais formalista dos diversos componentes do ordenamento jurídico se poderia negar aos AA., atenta a sua idade, estado de saúde e a grave dificuldade de locomoção, a oportunidade de melhorarem a sua qualidade de vida através da cedência equilibrada dos direitos que a lei atribui aos condóminos da propriedade horizontal.

3. Ao fazerem seus os argumentos que na sentença de 1ª instância foram usados para negar aos AA. o acolhimento da sua pretensão, os recorrentes associam-se a uma decisão que nem sequer encontra sustentação numa perspectiva lógico-formal, como veio a ser reconhecido pela Relação no acórdão recorrido.

Os recorrentes colocam no mesmo plano indivíduos que podem usar normalmente a escadaria do prédio e os AA. que comprovadamente estão incapacitados de o fazer pelos seus próprios meios, tendo em conta a sua mobilidade reduzida ou condicionada e o facto de nem sequer ser possível aceder ao 3º andar através de elevador, já que o prédio não dispõe desta estrutura.

Semelhantes objecções devem ser formuladas relativamente à opção dos recorrentes de estabelecerem uma equivalência entre a situação em que os AA. estavam aquando da celebração do contrato de arrendamento e o estado em que agora se encontram, 47 anos volvidos e afectados por graves doenças do foro cardíaco, respiratório e vascular.

Ainda que o neguem, ao contrariarem o que razoavelmente foi requerido pelos AA., os recorrentes concorrem seriamente para a consumação de uma situação de discriminação indirecta, colocando em posição desfavorável pessoas que, como os AA., carecem de um auxílio suplementar para alcançarem alguma qualidade de vida, mantendo na fracção locada o centro da vida familiar, sem terem de se alojar numa instalação hoteleira ou de encontrar outra solução habitacional.

Enfim, a uma pretensão dos AA., sustentada no apelo a direitos de personalidade, responderam os RR. com a invocação, velha e relha, do direito de uso e fruição dos bens em propriedade ou brandindo com o estatuto da propriedade horizontal, como se não fosse legítimo opor a tais direitos algumas condicionantes que permitam a sua harmonização com direitos de outra dimensão e de relevo não inferior.

O facto de em relação às partes comuns do edifício os condóminos poderem invocar o direito de exclusivo (art. 1420º, nº 1, do CC) não leva a afirmar a sobreposição total e incondicionada relativamente à posição em que se encontram os AA., como arrendatários habitacionais e como pessoas dotadas de direitos de personalidade cuja tutela pretendem obter.

Sendo verdade que os AA. são arrendatários da fracção autónoma, essa mera qualidade não impede a dedução de uma pretensão como aquela que apresentaram, nem é legítimo que se responda à sua razoável pretensão com a alusão à possibilidade de porem fim ao contrato de arrendamento ou com o argumento da inviabilidade de uma solução que permita compatibilizar o direito de propriedade referente às partes comuns com aquele direito pessoal de gozo e com os direitos de personalidade.

Neste contexto, sem necessidade sequer de invocar legislação específica relativa ao acesso a edifícios habitacionais de pessoas dotadas de incapacidades de ordem física, a mera aplicação das regras gerais que se extraem do Cód. Civil permite conceder aos AA. a tutela pretendida, como se especificará.

4. Concretizando:

4.1. Mesmo relativamente aos direitos sobre imóveis é de afirmar a sua relatividade, de tal maneira que a invocação dos poderes dos respectivos titulares terá sempre de se compatibilizar com outros direitos que com os mesmos entrem em conflito, em termos de se alcançar a sua harmonização.

Sendo verdade que, em princípio, o condomínio urbano não é obrigado a tolerar a introdução de inovações em partes comuns que algum condómino ou terceiro pretenda introduzir, o facto de alguma ou de algumas fracções terem um fim habitacional é susceptível de comprimir a invocação, em toda a sua extensão, dos direitos de natureza real.

O art. 335º do CC constitui o preceito que permite e impõe a harmonização de direitos em conflito. O facto de se encontrarem do lado passivo direitos de natureza real e do lado activo uma situação jurídica assente num contrato de arrendamento não permite argumentar pura e simplesmente que é o arrendatário quem deve ceder pondo fim ao contrato de arrendamento.

Sendo os AA. confrontados com uma situação que dificulta gravemente a utilização do locado mas que pode ser ultrapassada mediante uma medida paliativa que passa pela colocação de uma cadeira elevatória amovível, é por demais evidente que os direitos de personalidade e o direito à habitação que assim pretendem acautelar, associados ainda ao direito que lhes advém da qualidade de arrendatários, lhes permite impor ao condomínio urbano a adopção dessa medida que nem sequer comporta custos de instalação ou de funcionamento para os RR.

4.2. O recurso à figura da colisão de direitos para moderar ou comprimir o exercício de um direito em confronto com direitos da mesma ou de semelhante natureza tem sido frequente na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.

Sem pretensões de enunciar exaustivamente o que tem sido decidido nessa matéria, basta exemplificar, a partir de www.dgsi.pt., com arestos proferidos em matéria de actividades ruidosas e de protecção do direito ao sossego: os Acs. de 2-12-13 (Rel. Bettencourt de Faria), de 7-4-11 (Rel. Lopes do Rego), de 19-10-10 (Rel. Alves Velho) e de 30-9-10 (Rel. Álvaro Rodrigues). Matéria que também foi apreciada no Ac. do STJ de 29-11-12 (Rel. Abrantes Geraldes, ora relator).

Em todos esses arestos se afirmou a prevalência dos direitos de natureza pessoal gravemente perturbados pelo exercício de actividades que, conquanto fossem lícitas, acabavam por ferir terceiros na sua esfera de direitos de personalidade.

A compressão desses direitos em conflito com os direitos de propriedade ou com o direito de iniciativa privada foi a solução encontrada nesses e noutros arestos, em correspondência, aliás, com a tendência doutrinal (cfr. designadamente Menezes Cordeiro, Os direitos de personalidade na civilística portuguesa, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, vol. I, págs. 21 e segs., Maria de Fátima Ribeiro, no Comentário ao CC – Parte Geral, UC Editora, págs. 170 e segs., e Raymond Lindon, Les Droits de Personalité).

4.3. Da previsão abstracta do art. 335º do CC não é possível concluir assertivamente que as situações de conflito entre direitos de natureza pessoal, como os direitos de personalidade, e direitos de cariz patrimonial, como aqueles que os RR. invocaram, determinem invariavelmente a supremacia dos primeiros em relação aos segundos.

Rejeitando esse automatismo, admite-se que em qualquer situação de conflito devem ser ponderadas as características intrínsecas de cada posição jurídica, avaliando quer os factores que permitem a valorização de determinados direitos, quer os que implicam uma desvalorização relativa.

Alguns desses factores são descritos por Menezes Cordeiro, no Tratado de Direito Civil, I, tomo IV, págs. 389 e segs. e encontram ainda largo desenvolvimento em O Direito Geral de Personalidade, de Rabindranath Capelo de Sousa, que enuncia, dentro dos factores de natureza aumentativa de determinados direitos de personalidade, “a natureza significativa do elemento concreto da personalidade humana objecto de tutela do direito subjectivo de personalidade”, a “acumulação de bens de personalidade tutelados”, “a ampla extensão ou a elevada intensidade dos bens de personalidade tutelados”, “a particular adequação, justeza, proporcionalidade e inocuidade dos meios empregues pelo titular do direito de personalidade no exercício do seu direito e a congenitude ou a perdurabilidade no tempo da constituição do direito de personalidade ou do seu exercício” (pág. 542).

4.4. No caso concreto, existem diversos elementos que nos permitem atribuir uma amplíssima valorização da posição em que os AA. se encontram, cabendo assinalar, dentro dos critérios enunciados pela doutrina e pela jurisprudência, os seguintes:

- O elevadíssimo relevo que para a qualidade de vida dos AA. representa a instalação da estrutura elevatória;

- O papel que tal estrutura representa na satisfação do direito de habitação e na tutela da dignidade humana;

- A idade avançada dos AA., especialmente do A., associada aos problemas de saúde que afectam a sua mobilidade relativamente à prática de actos quotidianos, como descer e subir as escadas para aceder à sua habitação ou ao exterior, e também em relação à necessidade de receber tratamentos de fisioterapia;

- A fraca interferência negativa que a estrutura causa na utilização da escadaria e nos direitos dos demais condóminos, associada ao facto de os custos de instalação e de funcionamento correrem integralmente por conta dos AA.;

- O facto de a estrutura poder servir eventualmente outros condóminos e de poder ser retirada logo que se revele desnecessária;

- O custo de outras alternativas, seja a busca de outra residência com melhores condições de mobilidade, seja o recurso a uma unidade hoteleira.

4.5. Nesta medida, usando dos critérios de razoabilidade e de proporcionalidade que se impõem em situações de conflito de posições jurídicas, não pode duvidar-se do acerto de uma solução como a que foi procurada pelos AA. e relativamente à qual os RR. se limitaram a dar respostas formais como aquelas que mantêm na presente revista.

Esta solução foi provisoriamente assumida no âmbito do procedimento cautelar de natureza antecipatório, mas acabou por ser negada na sentença de 1ª instância, erro que foi corrigido pelo acórdão da Relação que, assim, deve ser confirmado.

5. A solução é ainda mais evidente quando se apela a regras que foram criadas para facilitar a resolução de problemas decorrentes de incapacidades físicas, designadamente quando está em causa assegurar as condições de mobilidade de pessoas singulares. Ou ainda quando se atenta na especial vulnerabilidade dos cidadãos mais idosos, carecidos, por isso, de apoios específicos.

5.1. Os direitos de personalidade estão genericamente acautelados no art. 70º do CC, não podendo ser encarados como meras locuções de natureza platónica, que sirvam de embelezamento ao ordenamento jurídico ou para ilustrar os avanços civilizacionais em termos de tutela das pessoas singulares. Ao invés, devem encontrar tradução na vida quotidiana e, quando invocados judicialmente, devem ser encarados de forma séria, impelindo ao esforço de todos. maxime dos tribunais, no sentido da sua efectiva tutela.

A Constituição também enuncia uma série de direitos de natureza social que, como ocorre com os direitos de personalidade, devem obter realização através das práticas legislativas e jurisdicionais.

É neste sentido que merece atenção o disposto no art. 71º da CRP, quando apela à solidariedade da sociedade na realização dos direitos de que são portadores cidadãos com deficiência, designadamente, deficiências físicas resultantes de doenças crónicas. Ou o art. 72º, especialmente ajustado ao caso concreto, na medida em que visa assegurar a pessoas idosas o acesso efectivo a uma habitação e ao convício familiar e comunitário, sem prejuízo da sua autonomia pessoal, superando situações de isolamento. Ou mesmo o art. 65º quando tutela efectivamente o direito de habitação, de modo a preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

5.2. Os objectivos a que apelam os anteriores preceitos constitucionais tem encontrado resposta no legislador ordinário. Conformando de modo abstracto os diversos interesses e especialmente os que demandam uma resposta mais eficaz, é de notar os desenvolvimentos legislativos que foram concretizados pela Lei nº 46/06, de 28-8, transpondo uma Directiva da União Europeia, que visou impedir práticas discriminatórias de pessoas afectadas de deficiências físicas.

Com tal diploma o legislador pretendeu “prevenir e proibir a discriminação, directa ou indirecta, em razão da deficiência” ou de situações de “risco agravado de saúde” (art. 1º), entendendo-se por discriminação indirecta “a que ocorre sempre que uma disposição critério ou prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar pessoas com deficiência numa posição de desvantagem comparativamente com outras pessoas” (art. 3º, al. b)).

O art. 4º identifica alguma das práticas discriminatórias, entre as quais se integra a “recusa ou a limitação de acesso ao meio edificado” (al. e)).

Também é de destacar o regime previsto no Dec. Lei nº 163/06, de 8-8, que visa impulsionar a construção ou a existência de edifícios ou de outras estruturas que permitam a mobilidade de pessoas afectadas de incapacidade. Posto que tal diploma não seja aplicável a edifícios de habitação que, como o dos autos, já se encontrassem construídos, não deixa de constituir um sinal dos avanços no campo legislativo que devem ser ponderados quando, noutras situações, se imponha a harmonização de direitos conflituantes ou que apresentam alguma incompatibilidade.

É o que se extrai do respectivo Preâmbulo, no qual se refere que “as pessoas com mobilidade condicionada … quotidianamente têm de confrontar-se com múltiplas barreiras impeditivas do exercício pleno dos seus direitos de cidadania” e onde se alerta para “as desigualdades impostas pela existência de barreiras urbanísticas e arquitectónicas”.

5.3. Nestas circunstâncias, a recusa da assembleia de condóminos de permitir a instalação de uma cadeira elevatória amovível e uma eventual confirmação de tal recusa por parte das instâncias judiciárias, com improcedência do pedido formulado, para além de desconsiderar a tutela de direitos de personalidade e de direitos de natureza social que envolvem os AA., revelariam ainda a consumação de uma prática discriminatória indirecta que, como tal, deveria ser impedida se porventura outra solução não fosse encontrada com recurso às regras gerais de direito anteriormente referidas.

Com efeito, posto que a negação da pretensão dos AA. revelasse uma prática aparentemente neutra relativamente a moradores com mobilidade condicionada, colocá-los-ia numa situação de desvantagem comparativamente com outros indivíduos, constituindo, deste modo, uma prática discriminatória que não poderia ser tolerada.

6. A antecedente resposta favorável aos AA. encontra sustentação adicional nas modificações que, já depois de ter sido instaurada a presente acção, foram introduzidas no regime jurídico da propriedade horizontal.

Com efeito, por via da Lei nº 32/12, de 14-8, o art. 1425º do CC foi alterado, prevendo-se agora a possibilidade de qualquer condómino impor ao condomínio a colocação de rampas de acesso ou de plataformas elevatórias quando algum elemento do seu agregado familiar sofra de mobilidade condicionada, suportando aquele os custos da instalação (nº 3).

É verdade que tal preceito não abarca expressis verbis o arrendatário de fracção autónoma que porventura também padeça de mobilidade reduzida. Todavia, não deixa de constituir um sinal adicional dado pelo legislador ordinário no sentido do acolhimento de uma pretensão como aquela que foi deduzida pelos AA. na presente acção.

7. O acervo de factos que se apuraram e dos argumentos que foram alinhados deixa bem clara a linha que deve ser seguida para se alcançar a melhor harmonização possível.

Sem que seja gravemente perturbado o direito de propriedade sobre as partes comuns ou os interesses dos condóminos na utilização da escadaria do edifício, a colocação da cadeira elevatória amovível constitui uma medida que, dentro dos padrões de razoabilidade, permite resolver de uma forma ajustada o conflito de interesses, dando cobertura eficaz à situação em que os AA. se encontram e permitindo-lhes que, na medida do possível, mantenham à utilização da fracção como casa de morada da família.

III – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista e nas instâncias a cargo dos RR.

Notifique.

Lisboa, 26-2-15

Abrantes Geraldes (Relator)



Tomé Gomes


Bettencourt de Faria