Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1552
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
APRECIAÇÃO DA PROVA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
BEM IMÓVEL
BOA FÉ
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPRA E VENDA
DIREITO REAL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
MANUTENÇÃO DE POSSE
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
OPOSIÇÃO
PROPRIEDADE
PROVA DOCUMENTAL
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
REGISTO PREDIAL
REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
VENDA DE BENS ALHEIOS
Nº do Documento: SJ200706210015527
Data do Acordão: 06/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – A falta de reclamação, quer contra a base instrutória, quer contra o julgamento da matéria de facto, não impede a alteração da decisão de facto pela 2ª instância, nos termos constantes do artigo 712º do Código de Processo Civil;
II – A força probatória plena dos documentos autênticos abrange apenas os factos praticados pela entidade documentadora e os factos atestados com base nas suas percepções (artigo 371º do Código Civil), e não impede a 2ª instância de retirar ilações de factos assim plenamente provados;
III – O princípio da livre apreciação da prova testemunhal (artigo 396º do Código Civil) vale tanto na 1ª, como na 2ª instância, permitindo à Relação valorar diferentemente do que fez a 1ª instância depoimentos de testemunhas registados no processo;
IV – No âmbito do recurso de revista, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça reapreciar meios de prova sujeitos àquele princípio, e com base neles alterar a decisão sobre a matéria de facto (artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil);
V – Tendo ficado provado que os autores duma acção de reivindicação instaurada em 2002 e fundada na aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinados imóveis praticaram, na convicção de serem proprietários, actos materiais que permitem concluir pela aquisição da posse correspondente por apossamento e actos materiais e jurídicos que revelam a manutenção ininterrupta da posse, desde 1996, e ainda que essa posse foi pública e pacífica, verificou-se a aquisição, a seu favor, do direito de propriedade correspondente;
VI – A aquisição por usucapião produz efeitos desde a data do início da posse (artigo 1288º do Código Civil) e provoca a extinção de quaisquer direitos incompatíveis;
VII – Deve, em consequência, ser tratada como venda de bens alheios como próprios e considerada, portanto, nula a venda por um anterior proprietário, posteriormente àquele início (artigo 892º do Código Civil);
VIII – Sendo uma modalidade de aquisição originária, a usucapião não cede perante registo anterior (artigo 5º, nº 2, a) do Código do Registo Predial).
Sumário elaborada pela Relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça


1. Em 18 de Outubro de 2002, AA e mulher, BB, propuseram, no Tribunal Judicial da Comarca de Fafe, uma acção ordinária contra Herdeiros de M...F..., Herdeiros de E...F... e Herdeiros de V...R...V..., na qual pediram que fosse declarado serem eles proprietários de um prédio urbano situado no lugar do Assento, freguesia de Revelhe, e de três prédios rústicos situados nos lugares de Sobradelo, Guival e Sabugal, sempre naquela freguesia de Revelhe, devidamente identificados nos autos.
Para o efeito, os autores alegaram: que os prédios, “não obstante estarem omissos na Conservatória do Registo Predial desta comarca, encontram-se inscritos na respectiva matriz”, em relação a três deles, em nome de M...F... e, quanto a outro, em nome de E...F...; que foram doados verbalmente aos autores “cerca do ano de 1960” por V...R...V..., falecida em 1966, filha de M...F... e neta de E...F...; que, de qualquer modo, estiveram na posse dos referidos prédios, “por mais de 10, 20, 30, 40, 50 e 100 anos, contínua e ininterruptamente…”, “com ânimo de verdadeiros proprietários, à vista de toda a gente e com conhecimento de todas as pessoas do lugar e freguesia da sua situação”, o que sempre levaria à aquisição do “direito de propriedade (…), por usucapião, título que expressamente se invoca”; que, por sentença transitada em julgado proferida numa “Acção Especial de Justificação de Direitos”, processada no 3º Juízo da mesma comarca, “os autores foram remetidos para os meios comuns”, o que fizeram através da propositura desta acção; e que pretendem registar em seu nome os mesmos prédios.
Concluem pedindo que se declare serem os proprietários dos referidos prédios e que se ordene à Conservatória do registo predial de Fafe que “sejam registados a favor dos Autores”.
Nem os réus, que foram citados editalmente, nem o Ministério Público, contestaram; mas CC interveio nos autos deduzindo o incidente de oposição espontânea. Alegou, em síntese, ter comprado os prédios a que a acção se refere por escritura pública em 18 de Setembro de 2003 a DD e EE, herdeiras de FF, por sua vez herdeira de V...R...V..., esta última, tal como GG, filha e herdeira de M...F..., impugnando parte do alegado pelos autores e sustentando inexistir em direito português “a figura da doação verbal”.
Os autores contestaram, alegando a inadmissibilidade da intervenção e a improcedência da oposição. Invocaram a invalidade da habilitação notarial de herdeiros de EE e de DD e a invalidade da compra e venda alegada pela opoente; e contrapuseram, por entre o mais, que o nº 2 do artigo 947º do Código Civil prevê a doação verbal, que os prédios lhes foram doados nos termos já indicados, que de qualquer modo teriam adquirido a propriedade por usucapião e que, também por este motivo, a compra e venda alegada seria nula, segundo o artigo 892º do Código Civil. Terminam afirmando que a opoente sabia, quando celebrou o contrato de compra e venda que invoca, que o prédio não pertencia às vendedoras, já que consta da escritura correspondente que “sobre os prédios impende inscrição provisória por natureza (…) de acção para ser reconhecido e declarado o direito de propriedade a favor de AA e BB (…)”, o que demonstraria a sua má fé.
A intervenção foi admitida, por despacho de fls. 80. Os autores recorreram (a fls. 107), sendo o recurso admitido como agravo a subir “com os Agravos interpostos de despachos proferidos na causa principal e efeito devolutivo” (fls. 120, vº); foram apresentadas alegações.
Em 19 de Junho de 2006, a fls. 226, foi proferida sentença julgando a acção improcedente. Em síntese, o tribunal entendeu só ter ficado demonstrado o “exercício dos poderes de facto” (o corpus), e não provado o “elemento psicológico-jurídico” (o animus) necessários para se poder considerar existir posse, e só quanto ao prédio urbano e ao rústico situado no lugar de Sobradelo.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, foi negado provimento ao agravo dos autores mas concedido provimento quanto à sua apelação, “reconhecendo-se e declarando-se os AA como proprietários dos prédios em causa na acção, e declarando-se nulo o contrato de compra e venda incidente sobre os mesmos a que se refere a escritura correspondente ao escrito junto aos autos, mais se ordenando o cancelamento dos registos de aquisição a que a mesma deu lugar relativamente àqueles quatro prédios”.
CC recorreu de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo.

2. Nas alegações então apresentadas, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

“Deve ser concedida a revista e revogar-se o Acórdão recorrido, mantendo-se a sentença da primeira instância pelos seguintes fundamentos:
1 – A recorrente deduziu na acção principal o incidente de oposição espontânea alegando que, por escritura de compra e venda outorgada em 03/09/18, adquiriu os prédios devidamente identificados na petição inicial, a DD e EE, herdeiras da falecida FF, que, por sua vez, sucedeu às falecidas V...R...V... e GG.
2 – Oposição espontânea admitida, determinando-se a intervenção da opoente, ora recorrente.
3 – Da admissão deste incidente interpuseram os recorridos o competente recurso de agravo que não mereceu, aliás, provimento no Acórdão recorrido.
4 – No Acórdão recorrido foram, ainda, apreciadas duas questões:
a) Reapreciação da prova, entendendo os apelantes que a sua devida apreciação implicaria que se tivesse dado como provada a matéria a que se referem os arts. 1º, 2º, 4º e 5º da base instrutória;
b) Nulidade da sentença, nos termos das als. c) e d) do artigo 668º do Cód. Proc. Civil, por contradição dos fundamentos com a decisão, por pretenderem que a matéria de facto provada não permite fundamentar a decisão proferida, sendo até contrária à mesma (conclusão 24) e porque a sentença não se pronunciou sobre a questão que deveria ter apreciado, e que era a de declaração da nulidade da escritura de compra e venda, com as legais consequências (conclusão 27°)
5 - Diga-se, desde já, que da fixação da base instrutória não houve qualquer reclamação.
6 - E que, realizada a audiência de julgamento em lª instância, foi proferida a decisão da matéria de facto de fls. que também não mereceu por parte dos recorridos qualquer reclamação.
7 – Entendeu-se no Acórdão recorrido proceder-se à reapreciação da prova, alterando-se as respostas dadas aos formulados quesitos.
8 – Com todo o devido respeito, os fundamentos adiantados não suportam tal alteração.
9 – Em primeiro lugar porque a recorrente adquiriu por compra os questionados prédios aos seus legítimos proprietários.
10 – Uma das fontes de aquisição derivada da propriedade é a própria lei – sucessão legítima.
11 – Falecido o de cujus, sem testamento, todo o seu património – herança – é atribuído, por força da lei, aos herdeiros legítimos.
12 – A ora recorrente adquiriu a DD e EE, às quais foi atribuída, como sucessoras legítimas o direito de propriedade sobre os mesmos prédios e doutros que DD deixou em Arcachon, França e já partilhados e vendidos por estas herdeiras.
13 – Como tudo vem provado por documentos autênticos cuja autenticidade não foi questionada pelo que fazem prova plena dos factos, nos termos do artigo 371º do Código Civil.
14 – Ora o direito de propriedade adquire-se, como já se referiu supra, por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei, artigo 1316º do Cód. Civil.
15 – O mesmo é dizer que o direito de propriedade sobre os identificados prédios estava já definido antes da audiência de julgamento.
16 – Aliás, foi esse o fundamento que levou à admissão daquele incidente de oposição espontânea.
17 – E os recorridos bem sabiam que aqueles prédios eram da propriedade dos herdeiros, omitindo intencionalmente os últimos elos da cadeia sucessória.
18 – Para fundamentar as alterações das respostas à matéria de facto, transcrevem-se no Acórdão recorrido, vários depoimentos e de várias testemunhas.
19 – Com todo o respeito, são apenas transcrições truncadas.
Assim é que a testemunha Á... T... refere, entre outras coisas, que
" E depois no fim de comprar as oliveiras, arranquei os raizeiros, depois fiz lá limpeza, a Junta para fazer limpeza foi falar com eles, eu fiz a limpeza , a Junta pagou-me e eu paguei a ele e a Junta pagou a mim, pag. 14 das alegações de recurso.
Do depoimento da testemunha M... da C... pode retirar-se o seguinte:
"conheço sim ... estavam lá duas velhotas e depois a senhora BB tomou conta daquilo, fis. 22 das alegações de recurso
Do depoimento da testemunha F... R... F..., fis. 25 das alegações de recurso, consta entre outras afirmações.
Advogado: Lá no lugar quem é que consta como sendo o dono dessa casa e desses terrenos.
Testemunha: Aquilo lá eles é que olhavam por aquilo
Advogado: depois dela falecer quem ficou a cuidar daquilo era a D.BB, era ela que colhia a azeitona e podava as vides?
Testemunha: era sim senhor.
Ora, afirmações como "a Junta pagou-me para fazer a limpeza do prédio", " a senhora BB tomou conta daquilo" "aquilo lá eles é que olhavam por aquilo", quem ficou a cuidar daquilo", significa precisamente o contrário do decidido no Acórdão recorrido.
20 – Do que resulta, quando muito, que os recorridos detinham uma posse meramente precária, ou mera detenção dos identificados prédios.
21 – Sendo certo que, na aquisição bilateral da posse o "animus" resulta da natureza do acto jurídico porque transmitem o direito susceptível da posse.
22 – "Tomou conta daquilo", "olhavam por aquilo", "quem ficou a tomar conta daquilo", não são actos jurídicos de onde possa inferir-se que os recorridos agiram na convicção de serem eles os únicos detentores do direito de propriedade sobre os referidos prédios.
23 – Por outro lado, a convicção do julgador é aquela que resulta da motivação e da matéria que considerou provada.
24 – Não podendo o tribunal de 2a instância sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal da 1ª instância em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra.
25 – E sempre a conduta dos recorridos se poderá considerar como de má fé, porquanto não ignoravam que lesavam os direitos dos sucessores daquela V...R...V....
26 – Reconhece-se no douto Acórdão recorrido que não se deu como provado que os AA., recorridos, tivessem efectuado nos imóveis obras de conservação e transformação ou que houvessem suportado os respectivos encargos, nomeadamente fiscais.
27 – Para concluir que essas actuações omissivas não são suficientes para descaracterizarem a actuação correspondente ao direito de propriedade.
28 – Com todo o respeito, entende a recorrente que não é assim. Agir como propriedade [sic] de um imóvel, traduz-se, ao contrário, em proceder a obras que evitem a sua deterioração e destruição material, como aconteceu com a questionada casa, hoje em ruínas, e não apenas em colher eventuais benefícios por eles produzidos - ubi commoda ibi incommoda.
29 – Não se aceita o afirmado no douto Acórdão recorrido que "aquando da efectuação da escritura de compra e venda destes imóveis por EE e DD e marido, a CC, estes imóveis já eram pertença dos AA, e que consequentemente, aquelas vendedoras não teriam legitimidade para os vender a esta” e que “operaram assim, venda de uma coisa alheia, como se fora própria”.
30 – Até porque não se encontra ainda decidido, com trânsito em julgado, a quem cabe o direito de propriedade sobre os identificados prédios.
31 – Carecendo de fundamento a declaração de nulidade daquela escritura de compra a venda.
32 – Violou o douto acórdão recorrido, além do mais, o disposto nos arts. 371º, 1290º, 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1269º e 1290º, todos os Código Civil, arts. 5º, 6º, 7º, 92º e 101º, do Código do Registo Predial e 712º e al. c) do nº 1 do artigo 668º, ambos do Cód. Processo Civil.

Contra-alegaram os autores, sustentando, em síntese, que o recurso deve ser rejeitado ou, pelo menos, “deverá improceder”, desde logo porque o que os recorrentes verdadeiramente impugnam é a decisão sobre a matéria de facto, não cabendo a apreciação de tal questão no âmbito do recurso de revista e dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

3. O acórdão recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:
a) – Matéria já havida como provada pela 1ª instância:
“1.Sob o artigo 146º da matriz urbana encontra-se inscrito o prédio situado no lugar do Assento, da freguesia de Revelhe, desta comarca, composto por uma casa com três divisões no 1º andar, com área de 160 m2, a confrontar do Norte com J... G... P... de M... e M..., do sul com A... da C..., do nascente com caminho público e do poente com E... F... M..., omisso na Conservatória do Registo Predial, com o valor patrimonial de 52,54 €.
2. Sob o artigo 271° da matriz rústica encontra-se inscrito o prédio situado no lugar de Sobradelo, da freguesia de Revelhe, desta comarca, composto pelo Campo da Fozinha, com área de 850m2, a confrontar do Norte com A...de F..., do sul com A...G..., do nascente e poente com caminho público, omisso na Conservatória do Registo Predial, com o valor patrimonial 21,3 7€.
3. Sob o artigo 458° da matriz rústica encontra-se inscrito o prédio situado no lugar de Guival, da freguesia de Revelhe, desta comarca, composto pela Sorte de Mato do Guival, com a área de 430m2, a confrontar do norte e sul com caminho, do nascente com M...F... M... e do poente com A...G..., omisso na Conservatória do Registo Predial, com o valor patrimonial de 1,26€.
4. Sob o artigo 1231° da matriz rústica encontra-se inscrito o prédio situado no lugar do Sabugal, da freguesia de Revelhe, desta comarca, composto pela sorte de Mato da Portela do Sabugal, da freguesia de Revelhe, com a área de 870 m2, a confrontar do Norte com J...G...P..., do sul com Dr.. J...F...de M..., do nascente com J...G... e outro e do poente com M...F... M..., omisso na conservatória do Registo Predial, com o valor patrimonial de 3,65€.
5. Os prédios descritos em 1,3 e 4 estão inscritos na matriz em nome de M...F... e o prédio descrito em 2 encontra-se inscrito na matriz em nome de E...F....
6. V...R...V... faleceu em 1966, no estado de solteira, sendo filha de M...F... e neta de E...F....
7. Desde há cerca de 40 anos os autores usam os prédios descritos em 1 e 2 de forma contínua e ininterrupta, efectuando neles obras de transformação, limpando-os, arrendando-os, colhendo todos os seus frutos e utilidades, designadamente rendas e vendendo os seus frutos.
8. Tudo isto o têm vindo a fazer à vista de toda a gente e com o conhecimento de todas as pessoas do lugar, sem a oposição de ninguém.
9. Em 10/09/2003 foi apresentada a registo, relativamente a todos os quatro prédios em apreço nos autos e referidos nas als. A) a D) dos factos assentes o seguinte: " Ap. 02/20030910 - Acção - Provisória por natureza ( art° 92°, nº1, a1.a); Autores: AA e BB, casados em comunhão geral, Assento, Revelhe, Fafe. Réus: herdeiros de M...F..., viúva; de E...F..., solteira, maior; e de V...R...V..., maior, residentes que foram no lugar de Assento, Revelhe, Fafe. Pedido: Ser reconhecido e declarado o direito de propriedade a favor dos autores. Respeita a 4 prédios.”

b) – Factos que o Tribunal da Relação considerou ainda provados:
b). 1. – após “reapreciação da prova” produzida na audiência (prova testemunhal), assim alterando as respostas aos artigos 1º, 2º, 3º e 4º da base instrutória (e, portanto, os pontos 7 e 8 acabados de transcrever):
“– Provado que os AA, desde a morte de V... R..., ocorrida em 29/3/66, sempre disseram que aquela lhes tinha dado os prédios referidos de A) a D);
– Provado que os AA, pelo menos desde a morte da referida V... R..., usam tais prédios de forma contínua e ininterrupta, cultivando-os, colhendo os seus frutos e utilidades, designadamente rendas, bem como arrendando-os e vendendo os seus frutos;
– E tudo isto à vista e com conhecimento de todas as pessoas do lugar e freguesia, sem oposição de ninguém e com a consciência de não lesarem o direito de ninguém;
– Na convicção de serem seus verdadeiros proprietários”.
b. 2) – A Relação considerou ainda ter ficado provado que “em 18/9/03 CC tinha conhecimento de que os AA se intitulavam donos dos prédios de A) a D), sendo-lhe possível ter conhecimento da propositura por eles da presente acção com o pedido que nela se faz de reconhecimento e declaração da propriedade a seu favor daqueles prédios, atenta a circunstância de a mesma se achar registada relativamente aos mesmos, desde 10/9/03”, assim alterando a resposta ao artigo 5º da base instrutória.

c) Quanto ao mais, para o que agora releva, a Relação manteve a decisão de dar como não provados, nem a doação verbal alegada pelos autores, nem a “tradição (que na situação dos autos decorreria da pretendida doação, ainda que verbal)” dos prédios; e considerou não provado que, “no exercício dos direitos correspondentes aos do proprietário (…) os AA tivessem efectuado nos imóveis obras de conservação e transformação, ou que houvessem suportado os respectivos encargos, nomeadamente os de natureza fiscal”.

4. Tendo em conta toda esta matéria de facto, a Relação concluiu “que os AA exerceram a posse (causal, porque adquirida nos termos do art. 1269º/1) [1263º] al a)), em termos correspondentes ao direito de propriedade relativamente aos prédios em causa na acção, desde a morte de V...R..., ocorrida em 29/3/66. Não sendo tal posse titulada – art 1259º/1 ‘a contrario’ – mostra-se de boa fé – art 1260º/1 – e como pacífica e pública – arts. 1261º/2 e 1262º. E assim sendo, ao fim de 15 anos conduziu à usucapião, isto é, à aquisição do direito de propriedade daqueles imóveis pelos AA (art 1296º CC)”.
Nestes termos, e considerando que os AA já haviam registado a instauração da presente acção à data da escritura de compra e venda dos prédios pela ora recorrente, a Relação entendeu que “aquando da efectuação da escritura de compra e venda destes imóveis por EE e DD e marido, a CC, estes imóveis já eram pertença dos AA e que, consequentemente, aquelas vendedoras não teriam legitimidade para os vender a esta”.
Julgou, portanto, nula esta compra e venda, por se tratar de venda de bens alheios (artigo 892º do Código Civil), ordenando o cancelamento do respectivo registo.

5. Tendo em conta as conclusões apresentadas pelos recorrentes, são as seguintes as questões colocadas neste recurso:
– Violação, pelo acórdão recorrido, dos artigos 712º e 668º, nº 1, c), do Código de Processo Civil;
– Errada conclusão de que os autores actuaram como proprietários, já que o acórdão recorrido entendeu que determinadas actuações omissivas por parte dos autores (não terem realizado determinadas obras de conservação e transformação e não terem suportado os respectivos encargos, nomeadamente fiscais) “não são suficientes para descaracterizarem a actuação correspondente ao direito de propriedade”;
– Errada conclusão de que os autores actuaram de boa fé e na convicção de que eram proprietários;
– Falta de fundamento da declaração de nulidade da compra e venda que alegam ter feito, quer por terem comprado às legítimas proprietárias dos prédios, quer por não se poder afirmar, antes do trânsito em julgado da decisão de considerar os autores como proprietários dos mesmos, que se tratou de venda de bens alheios.

6. Tendo a recorrente acusado o acórdão recorrido de infringir o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 668º (nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, aplicável à 2ª instância por força do artigo 716º do mesmo Código) e no artigo 712º do Código de Processo Civil, parece que cumpriria começar por se averiguar se tal acórdão é nulo, por contradição entre os fundamentos e a decisão relativa à matéria de facto.
Verifica-se, todavia, que em parte alguma das mesmas alegações a recorrente aponta qualquer contradição entre essas alterações determinadas no julgamento da matéria de facto e os fundamentos em que a Relação se baseou para assim julgar.
Considera-se, pois, que a recorrente apenas está a sustentar que a Relação desrespeitou as regras definidas pelo artigo 712º para a apreciação do recurso interposto da decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente, a este propósito, adianta as seguintes razões:
– Não houve qualquer reclamação, nem “da fixação da base instrutória”, nem “da decisão da matéria de facto”;
– Estava definido, já “antes da audiência de julgamento”, o direito de propriedade sobre os prédios, uma vez que, por documentos autênticos, cuja autenticidade não foi posta em causa, foi provada a aquisição, pelas vendedoras, do direito de propriedade sobre os mesmos e, posteriormente, o contrato de compra e venda por estas celebrado com a recorrente; foi aliás por isso que foi admitida a intervir nos autos como opoente;
– Os depoimentos de testemunhas que a Relação apontou para modificar a decisão de facto não permitem as conclusões a que tal Tribunal chegou; não cabe, aliás, nos seus poderes “sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal de 1ª instância em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outros”.
A recorrente não tem, todavia, razão.
Em primeiro lugar, cabe recordar que o recurso de apelação comporta a possibilidade de o tribunal de 2ª instância alterar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos definidos fundamentalmente pelo artigo 712º do Código de Processo Civil. A falta de reclamações contra a base instrutória (previstas no nº 2 do artigo 511º do Código de Processo Civil) ou contra a decisão da matéria de facto (cfr. nºs 4 e 5 do artigo 654º respectivo) não a impede, como decorre claramente dos termos em que estes preceitos se harmonizam com o já citado artigo 712º (ou, ainda, do nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil).
Em segundo lugar, cumpre observar que as alterações determinadas pela Relação quanto à decisão da matéria de facto em nada conflituam com a força probatória que a lei reconhece aos documentos autênticos, como são os documentos cujas cópias foram juntas pela recorrente para provar a aquisição, pelas vendedoras, do direito de propriedade sobre os prédios que lhe venderam, bem como a celebração do contrato de compra e venda.
A força probatória de um documento autêntico, cuja autenticidade não esteja afastada, está definida pelo artigo 371º do Código Civil, e apenas abrange os factos praticados pelo documentador e aqueles que são atestados com base nas suas percepções.
Ora de nenhum dos documentos em causa resulta plenamente provado algum facto cuja verificação tenha sido posta em causa pelos depoimentos testemunhais apontados pela Relação para alterar a decisão de facto, já que, com base nesses depoimentos, apenas se alteraram as respostas aos artigos 1º, 2º, 3º e 4º da base instrutória, nos termos acima transcritos.
Também não é certo que a Relação tenha excedido os seus poderes por ter alterado a valoração que o tribunal de 1ª instância fez de determinados depoimentos de testemunhas, uma vez que respeitou as condições definidas na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil. Note-se que o princípio da livre apreciação da prova – aplicável, como se sabe, à prova testemunhal, como resulta do artigo 396º do Código Civil – tanto vale para a primeira, como para a segunda instância, não o afastando a circunstância de, nesta última, não ter aplicação o princípio da imediação, quando julga em recurso.
Já o mesmo se não pode dizer relativamente ao Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que o recurso de revista não permite, nem a reapreciação de meios de prova sujeitos àquele princípio da livre apreciação (artigo 722º, nº 2 do Código de Processo Civil) nem, consequentemente, a alteração da decisão sobre a matéria de facto em consequência dessa (inadmissível) reapreciação (nº 2 do artigo 729º do mesmo Código).
Finalmente, a Relação alterou a resposta ao artigo 5º da base instrutória, considerando não só provada “a existência no registo predial da AP referente ao registo da presente acção aquando da realização da escritura de compra e venda por parte da opoente”, mas ainda que, da circunstância de se achar registada a presente acção desde 10 de Setembro de 2003, decorria que a opoente “tinha conhecimento de que os AA se intitulavam donos dos prédios de A) a D)” e lhe era “possível ter conhecimento da propositura por eles da presente acção com o pedido que nela se faz de reconhecimento e declaração da propriedade a seu favor”.
Ora essa alteração, como se depreende do acórdão, não resulta da reapreciação da prova testemunhal produzida em audiência, mas da consideração do conteúdo da escritura de compra e venda a favor da recorrente (celebrada em 18 de Setembro de 2003) e, admite-se, de ilações retiradas desse mesmo conteúdo.
Com efeito, por um lado, da escritura consta que “sobre os mesmos prédios impende inscrição provisória por natureza G-UM de acção para ser reconhecido e declarado o direito de propriedade a favor de AA e BB…”, e que a compradora – e ora recorrente – declarou “que aceita este contrato”.
E, por outro, nada há a censurar a que a Relação tenha retirado destes factos (plenamente provados) a ilação de que a recorrente sabia que os recorridos se consideravam proprietários dos prédios em disputa e podia tomar conhecimento do conteúdo da presente acção, uma vez que do disposto no artigo 351º do Código Civil não decorre a inadmissibilidade de presunções para dar tais factos como assentes.
Não é, pois, possível concluir pela violação do artigo 712º do Código de Processo Civil, como pretende a recorrente; nem, naturalmente, pela ocorrência da nulidade prevista no artigo 668º, nº 1, c), do mesmo Código admitindo-se que se deva considerar implicitamente arguida (assim interpretou a alegação de violação deste preceito, por exemplo, o acórdão deste Tribunal de 30 de Setembro de 2004, igualmente disponível em www.dgsi.pt). .

7. A recorrente sustenta, ainda, que o acórdão recorrido não deveria ter entendido que os autores actuaram como proprietários, tendo errado quando julgou que determinadas omissões da sua parte (não terem realizado obras de conservação e transformação e não terem suportado os respectivos encargos, nomeadamente fiscais) “não são suficientes para descaracterizarem a actuação correspondente ao direito de propriedade”.
Não explica, porém, por que razão tais omissões seriam de tal forma relevantes que impediriam essa conclusão
Seja como for, o acórdão recorrido não merece, também quanto a este ponto, qualquer censura.
Com esta acção, os autores pretendem ser declarados proprietários dos quatro prédios em litígio, sustentando, para o que agora interessa, que em qualquer caso adquiriram o direito de propriedade correspondente por usucapião, que expressamente invocam na petição inicial (como é necessário para que se verifique a aquisição por usucapião, nos termos do disposto nos artigos 1292º e 303º do Código Civil).
Essencial à aquisição por usucapião é, como é evidente, a posse correspondente ao direito de cuja aquisição se trata, por certo lapso de tempo (que varia, segundo as circunstâncias da posse), nos termos do artigo 1287º do Código Civil; no caso, da posse correspondente ao direito de propriedade.
Como decorre do disposto no artigo 1251º do mesmo Código Civil, haverá essa posse quando se “actua por forma correspondente ao exercício” desse direito, independentemente de se ser ou não titular do mesmo.
Estando definitivamente provado por prova testemunhal, nos termos já referidos, que os autores desta acção exercerem determinados poderes sobre todos os prédios “na convicção de serem os seus verdadeiros proprietários”, como se decidiu no acórdão recorrido, não vem agora ao caso tratar da questão de saber se e em que termos é ou não imprescindível à existência de posse a demonstração do chamado “animus” da posse, ou de determinar como se apura esse elemento e exactamente o que se exige para que se considere verificado.
Com efeito, por mais exigente e subjectivista que se admita ser o conceito de posse adoptado pela lei portuguesa, a verdade é que não pode deixar de se haver por preenchido a partir do momento em que aquela convicção foi dada como assente, não tendo razão a recorrente quando pretende que apenas ficou demonstrada, quando muito, a mera detenção por parte dos autores. Nem há, pois, sequer que recorrer à doutrina definida no acórdão de uniformização de jurisprudência de 14 de Maio de 1996, segundo a qual “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (Diário da República, II Série, de 24 de Junho de 1996).
Há todavia que analisar a questão de saber se o corpus da posse se não deve considerar descaracterizado, nos termos referidos.
Não tendo ficado provada a doação (ainda que verbal) alegada pelos autores, a posse só se poderia ter constituído na sua esfera jurídica através do apossamento, modalidade de aquisição originária e unilateral da posse e que se traduz, segundo o disposto na al. a) do artigo 1263º do Código Civil, na “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”.
Deixando agora de lado a publicidade – porque a recorrente a não questiona, aliás –, verifica-se que é condição de aquisição da posse, neste caso, “uma relação de facto” entre a pessoa e a coisa que se traduza nessa prática reiterada e efectiva de actos materiais “capazes de exprimirem o exercício do direito” (Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, reimp. da 2ª ed. revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, págs. 25-26). Como explica, por exemplo, Carvalho Fernandes (Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2003, pág. 297), para ocorrer o apossamento exige-se “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa, não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela”, ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, “para consubstanciar apossamento”, terá “de se processar uma actuação de acordo com as circunstâncias, que faculte um controlo duradouro da coisa considerada” (A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 104).
Estando em causa saber se uma determinada pessoa adquiriu a posse correspondente ao direito de propriedade, e sabendo-se que “o proprietário goza não só dos direitos de uso e fruição, poderes materiais, como do direito de disposição, poder puramente jurídico, tal como o de administração da coisa” (cfr. artigo 1305º do Código Civil), esta exigência da prática de actos materiais como condição de aquisição da posse faz com que “só através de actos materiais, isto é, de actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse, e nunca através de actos de disposição ou de administração”, porque eles podem ser praticados mesmo que a coisa seja possuída ou detida por um terceiro. Assim, e para continuar a utilizar as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., págs. 26 e 27, “se alguém, por exemplo, paga habitualmente a contribuição predial e outros encargos relativos a determinado imóvel, não adquire, através desses actos, a posse do prédio. Trata-se, com efeito, de actos que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa”.
Não é todavia exigível que se pratiquem “todos os actos materiais qualificativos do direito”. Citando Manuel Rodrigues (A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Coimbra, 1981, nº 38, pág. 182 e segs., pág. 186), “o proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente. Para se adquirir a posse do direito de propriedade basta, por isso, praticar actos materiais que correspondam a alguns daqueles poderes (…)”.
Adquirida a posse, nomeadamente por esta via, é ainda indispensável à aquisição por usucapião, como se disse, que a posse se mantenha durante um determinado lapso de tempo – embora, como se viu, a intensidade da relação material com a coisa não tenha de se manter para se poder concluir pela manutenção da posse adquirida. Ou seja, há que apurar se, por esse período, se manteve a relação de domínio (material ou não, ou não só, uma vez adquirida a posse) característica da posse, e, no caso, correspondente ao direito de propriedade. Como se dispõe no nº 1 do artigo 1257º do Código Civil, “a posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”.
Ficou definitivamente provado que os autores, pelo menos desde 1966, usam e fruem os prédios mediante a prática reiterada de actos materiais: “de forma contínua e ininterrupta”, como decidiu a Relação, usando-os directamente, cultivando-os e colhendo os respectivos frutos, para além de os administrarem (arrendando-os, recebendo rendas, vendendo os frutos).
Praticaram, pois, actos materiais que permitem concluir pela verificação da aquisição da posse correspondente ao direito de propriedade por apossamento, e materiais e jurídicos idóneos a concluir pela manutenção da posse, desde 1966, ininterruptamente.
É certo que será normal que um proprietário proceda a obras de conservação do que lhe pertence, e eventualmente a obras de transformação, suportando os respectivos encargos. Não se pode, no entanto, considerar indispensável à caracterização da actuação como proprietário que assim seja, desde logo porque da sua não realização não decorre a exclusão de qualquer dos poderes integrantes do direito de propriedade (uso, fruição ou disposição, como se viu).

Em conclusão, não há qualquer reparo a fazer ao acórdão recorrido quando considerou verificado o corpus da posse, mesmo dando como não provado que os autores, nem tivessem praticado actos de conservação e de transformação dos prédios, nem tivessem suportado os respectivos encargos.

8. A recorrente sustenta, também, que o acórdão recorrido errou quando afirmou que os autores actuaram de boa fé e na convicção de que eram proprietários dos prédios; mas igualmente sem razão.
Com efeito, está também dado definitivamente como provado que sempre disseram, desde a morte de V... V..., que esta lhes tinha dado os prédios; que sempre tiveram a consciência de não estarem a lesar o direito de ninguém; e que sempre tiveram a convicção de serem os proprietários dos prédios.
Tanto basta para se concluir pela sua boa fé, como entendeu a Relação (artigo 1260º do Código Civil), e pelo preenchimento do elemento do animus da posse correspondente ao direito de propriedade.

Não foram, pois, violados, os artigos 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1269º ou 1290º do Código Civil.

9. Finalmente, a recorrente afirma não ter fundamento a declaração de nulidade da compra e venda que alega ter celebrado, quer por ter comprado às legítimas proprietárias dos prédios, quer por não ser possível dizer, antes do trânsito em julgado da decisão de considerar os autores como proprietários dos mesmos, que se tratou de venda de bens alheios.
Ora, verificada a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre todos os prédios em litígio nesta acção, têm de improceder as objecções levantadas pela recorrente quanto à decisão de julgar nula a compra e venda que invocou para justificar a sua aquisição da propriedade dos mesmos.
Na verdade, uma vez que a aquisição por usucapião produz os seus efeitos desde “a data do início da posse” (artigo 1288º do Código Civil), e que este se encontra fixado “pelo menos desde a morte” de V...R... (em 1966), é certo que, quando foi celebrado o contrato de compra e venda, as vendedoras não eram proprietárias dos prédios.
A aquisição por usucapião provoca, como se sabe, a extinção dos direitos incompatíveis com o que por aquela via foi adquirido; se foi o direito de propriedade plena, seguramente extinguiu qualquer outro direito de propriedade plena eventualmente existente, por não poderem subsistir ambos.
Tem assim razão o acórdão recorrido quando considera nula a venda, por aplicação do regime da venda de bens alheios como próprios, em particular do disposto no artigo 892º do Código Civil. Extinta qualquer propriedade que se pudesse considerar ter existido na esfera jurídica das vendedoras, ainda que pela via de aquisição alegada pela recorrente, ou nas pessoas de quem pudessem ter adquirido, tal direito ter-se-ia extinguido em 1966, muito antes, portanto, da celebração do contrato.
Diga-se, ainda, não ter sentido o argumento de que só após o trânsito em julgado da decisão que julgar procedente a presente acção é que se pode aplicar este regime. As duas questões podem ser apreciadas numa mesma acção; a circunstância de a apreciação de uma ser logicamente prévia à outra não impede que o tribunal, para conhecer da dependente, dê como assente, neste contexto, a principal.

10. A terminar, cabe ainda referir a acusação feita, pela recorrente, de terem sido violados pelo acórdão recorrido os artigos 5º, 6º, 7º, 92º e 110º do Código do Registo Predial.
Basta, para o efeito, lembrar que, como a Relação observou, esta acção foi registada mesmo antes de celebrado o contrato de compra e venda.
De qualquer modo, sempre resultaria do disposto nesses mesmos preceitos, maxime no artigo 5º, nº 2, a), que a aquisição por usucapião não cede perante registo anterior, dada a sua natureza de aquisição originária.
Como se escreveu, por exemplo, no acórdão de 3 de Fevereiro de 1999 deste Supremo Tribunal, disponível em www.dgsi.pt, “o art. 5 do CReg.Pred., no seu n. 1 estabelece a regra da eficácia contra terceiros dos factos sujeitos a registo, depois da data deste mesmo registo. E o n. 2 contempla um regime excepcional, exceptuando da regra anterior a aquisição por usucapião, no que toca aos direitos referidos na al.a) do n. 1 do art. 2, isto é, os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão.(…) .Com o Prof. Oliveira Ascensão (obra cit. p. 382), diremos que a usucapião "em nada é prejudicada pelas vicissitudes registais, vale por si, como resulta cabalmente do art. 5 n. 2 a) do CRP. Por isso, o que se fiou no registo (...) nada pode contra a usucapião". O que se compreende, já que é uma forma de aquisição originária.”; ou, no mesmo sentido, no acórdão de 27 de Abril de 2006, também disponível em www.dgsi.pt.

Nestes termos, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão sob recurso.
Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Junho de 2007

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relator)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa