Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17087/16.7T8LSB.L2.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BEM IMÓVEL
BENS PRÓPRIOS
BENS COMUNS DO CASAL
SUB-ROGAÇÃO
INDICAÇÃO DE PROVENIÊNCIA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O eventual erro de julgamento do tribunal da Relação na fixação dos factos materiais da causa só é susceptível de ser objecto de recurso de revista se se verificar alguma das hipóteses previstas no art. 674.º, n.º 3, do CPC;

II - Não ocorre fundamento de revista se, não exigindo a lei uma certa espécie de prova para a demonstração de doação de quantias em dinheiro de pais a filhos, a convicção do tribunal sobre essa realidade se fundar, conjugadamente, em prova testemunhal e documental e na admissão da parte contrária sobre a utilização da totalidade da quantia entregue, analisada à luz das regras de experiência comum que tornam inverosímil a conclusão de que apenas foi doada uma parte da totalidade da verba utilizada;

III - No regime supletivo da comunhão de adquiridos, os bens imóveis adquiridos na constância do matrimónio, em parte com dinheiro ou bens comuns e em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges, são bens comuns ou bens próprios, conforme a natureza que tiverem os bens utilizados para realizar a prestação mais valiosa.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


֎

RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA intentou contra BB, ambas devidamente identificadas nos autos, acção declarativa de condenação pedindo, em primeira linha, que fosse declarado que os seguintes bens imóveis eram sua propriedade:

a) Fracção N do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...48 da freguesia da ...;

b) Fracção H do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...24 da freguesia da ...;

c) Fracção BS do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº...79 da freguesia da ....

Subsidiariamente, para o caso de se considerar que eles estavam integrados no património comum do ex-casal que a autora formou com a ré, peticionou que esta fosse condenada a compensá-la, na sequência do divórcio entre ambas, do valor por si despendido com a aquisição dos bens imóveis em causa.

Alegou para o efeito, muito sinteticamente, que, encontrando-se no estado de casada com a ré, adquiriu as fracções de imóveis identificadas com valores próprios e doados por seus pais, nunca tendo vivido em economia comum com a ré, pelo que tais bens não integram o património comum do ex-casal, a partilhar na sequência do divórcio.

2) Tendo sido citada a ré contestou, por excepção e por impugnação, defendendo que os bens em causa foram adquiridos maioritariamente com bens comuns do casal, nomeadamente com rendimentos do trabalho ou valores cedidos a ambas as ex-cônjuges, concluindo pela improcedência da acção.

3) Teve lugar audiência prévia na qual se declarou a regularidade da instância, se fixou o objecto do processo e se enunciaram os temas da prova.

Foi oportunamente declarada a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido relativo à fração identificada na alínea b) do pedido.

4) Teve lugar a audiência final em primeira instância, após o que foi, em 25 de maio de 2021, proferida sentença cujo dispositivo tem o seguinte teor:

Face ao exposto, julgo a presente acção deduzida por AA contra BB parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente condeno a Ré a compensar o património comum do casal, na quantia de 90.000,00€ (noventa mil euros), no momento da partilha.

No mais vai a ré absolvida.”

Tal decisão assentou na circunstância de se considerar que os bens imóveis em causa, porque adquiridos na constância do matrimónio, integravam o património comum do ex-casal, devendo a autora ser compensada na partilha a realizar no valor de 90.000,00 euros utilizados na aquisição de uma das fracções na medida em que tal montante lhe pertencia, em exclusivo, por lhe ter sido doado.

5) Na sequência de uma tramitação algo atípica que envolveu a interposição de recursos de apelação interpostos pela ré (na parte em que a condenou a compensar o património comum do ex-casal no momento da partilha) e pela autora e de recurso de revista interposto pela autora tendo por objecto o subsequente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 1, com subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça, viria a ser proferido, na sequência de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de janeiro de 2023 ordenando a reapreciação de parte da matéria de facto, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de maio de 2023 que decidiu:

“a) Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré;

b) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela autora, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condena a ré e na parte em que a absolve do pedido principal quanto à fracção N, substituindo-a pela seguinte decisão: julga-se a acção parcialmente procedente, declarando que a fracção N é bem próprio da autora, e improcedente no demais, absolvendo a ré dos outros pedidos.”


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Parte II – A Revista

6) A ré interpôs então recurso de revista tendo formulado as CONCLUSÕES das suas alegações de recurso que se transcrevem:

“A. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão prolatado em 25 de maio de 2023 (…) pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

B. Circunscrevendo-se o presente à parte decisória concernente à apreciação da impugnação da Ré/Recorrente, bem como, no que respeita ao juízo relativo à natureza da parcela de € 20.000,00 (se bem próprio da Autora/Recorrida, se bem comum do património conjugal) e, bem assim, à natureza do bem fração N (alínea b) da página 49 da decisão recorrida).

C. Salvo o devido respeito, entende a Ré/Recorrente existirem fundamentos para a interposição do presente recurso em virtude da violação, pelo douto Tribunal, quer da lei substantiva (normas aplicáveis quanto ao regime da comunhão de adquiridos), quer da lei processual (quanto aos artigos 411.º, 414.º e 574.º e regime da prova), nos termos do disposto no artigo 674.º n.º 1, als. a) e b), do Código de Processo Civil, no que concerne à decisão relativa aos pontos 4 a 6 da matéria de facto dada como provada.

(…)

E. Com efeito, resulta das alíneas G) e H), do ponto "B. 1) Factos adquiridos por acordo e provados por documento nos termos do artigo 574.º n.º 2 do Código de Processo Civil", do despacho saneador, que foi adquirido por acordo que, a título de sinal e princípio de pagamento e a título de reforço de sinal, foram entregues, ao promitente vendedor, as quantias de € 30.000,00 e € 60.000,00, respetivamente.

F. Resultando da enunciação dos temas de prova (…) que "importa saber se", além do mais, "O valor do sinal referido em G) foi pago pela autora com valores doados pelos seus pais" e se "O reforço de sinal referido em H) foi pago com valores monetários doados pelos pais da Autora, 40.000,00 € em cheque e 20.000,00 € em dinheiro".

G. Na sentença, deu-se como provado (…) que "(...) foi entregue ao promitente vendedor a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, por cheque emitido da conta bancária do pai e do tio da A. domiciliada no Millennium BCP (…) (ponto 4 da matéria de facto).

H. Que "Em 30-05-2013 foi entregue ao promitente vendedor a quantia de 60.000,00€ (sessenta mil euros), a título de reforço de sinal, parte da qual (40.000,00€) mediante cheque emitido da conta bancária do pai e do tio da A. domiciliada no Millennium BCP (…) (ponto 5 da matéria de facto).

I. E que "Os valores do sinal referido em 4. e do reforço de sinal referido em 5. foram pagos com valores doados à Autora pelos seus pais" (ponto 6 da matéria de facto).

J. No seu recurso da sentença, a Ré/Recorrente impugnou o teor vertido nos factos 4 a 6, porquanto, "(...) nada quer na matéria de facto dada como assente, quer na própria fundamentação da Sentença, permite aferir de que forma ou em que data foi feita a alegada doação dos restantes € 20.000,00 cuja doação foi dada como provada sem que da sentença se permita aferir do iter cognitivo e probatório e)" que tenha levado aquele douto tribunal, sem qualquer suporte probatório, a "(...) dar como provado, maxime, (...) que o valor alegadamente doado ascendeu a € 90.000,00 .)".

K) Concluindo pela impugnação do facto 6, "(...) por falta de suporte probatório, pelo menos no que se refere a € 20.000,00 (dos € 90.000,00) alegadamente doados".

L. Apreciando os recursos, veio o douto Tribunal a quo referir que "(...) o tribunal recorrido, quando utilizou o depoimento das duas testemunhas (pai e tio) para a decisão dos factos 4 a 6, fê-lo em conjunto com outros elementos (cheques) de prova e com outras razões (admissão da entrega), Portanto, está explicada a diferença de valoração: isoladamente, os depoimentos das testemunhas não convenceram. Quando tomados em conjunto com outros elementos, serviram para a formação da convicção".

M. Ultrapassada atinente aos depoimentos testemunhais, aquele douto Tribunal passou à análise dos restantes meios usados para a prova dos factos 4 a 6.

N. Quanto aos documentos (cheques), considerou inexistirem razões para ser posta em causa a sua utilização.

O. Quanto à questão da alegada admissão dos factos veio o douto Tribunal, defender que "(...) o princípio da indivisibilidade não impediu que, no caso dos autos, o facto da entrega dos 90.000€ fosse admitido por acordo".

P. Porquanto, considerou o douto Tribunal que a Ré/Recorrente em momento algum tinha impugnado a admissão por acordo da entrega dos € 90.000,00.

Q. Entendendo, porém que, da admissão por acordo da entrega dos € 90.000,00, não decorre, só por si, a prova por doação. Tanto assim é que, repete-se, apesar de a entrega ter sido dada como provada, foram fixados dois temas de prova para que a autora provasse (como lhe competia: art. 342/1 do CC) que essa entrega tinha sido feita a título de doação".

R. Que "(...) mesmo a aceitar-se que, por força do princípio da indivisibilidade, já não pudesse dar à confissão da entrega dos 90.000€ o valor de força probatória plena, ela continuaria a valer como prova de livre apreciação (artigo 361 do Código Civil) e, por isso, a suportar, como elemento corroborante, a prova testemunhal do pai e do tio, de que a entrega tinha sido feita a título de doação".

S. E que a prova da doação dos 90.000€ tinha como base a admissão da entrega dos 90.000€, os dois cheques de 30.000€ + 40.000€ e o depoimento do pai e do tio, há justificação suficiente para os factos 5 e 6 terem sido dados como provados, apesar de o tribunal não ter dado credibilidade àqueles mesmos depoimentos para outros factos (sendo que nestes esses depoimentos estavam desacompanhados da admissão por acordo e da prova documental)".

T. Concluindo: "(.. .), aquilo que o pai e o tio dizem, corroborados pelos cheques de 30.000€ + 40.000€ e pela admissão, pela ré, da entrega dos 30.000€ + 60.000€, é prova suficiente da doação de tais valores. É certo que, quanto aos 20.000€ em numerário, falta um daqueles dois elementos corroborantes, mas seria arbitrário, não justificado, estar a fazer diferença quanto a este valor. Admitidos que foram entregues 90.000€ não se vê porque é que apenas 70.000€ seriam doação, sem que se pudesse dizer a que título foi entregue o resto".

U. Analisemos, então, os elementos que, entende a Ré/Recorrente, no caso sub judice, fundamentam e tornam essencial a avaliação e pronúncia quanto a presente recurso.

V. Ora, do teor das alíneas G) e H) (…), só pode resultar como admitido a entrega daqueles montantes, ao promitente vendedor, a título de sinal e reforço de sinal.

W. Não resulta, porém, o entendimento de que a Ré/Recorrente tenha admitido por acordo que aqueles montantes, entregues ao promitente vendedor, tenham sido doados pelos pais da Autora/Recorrida.

X. Tanto assim não é que a identificação da proveniência dos montantes em questão, consta depois das alíneas temas de prova, sendo, por isso, matéria controvertida, evidentemente excluída dos factos adquiridos por acordo.

Y. E, quanto aos € 60.000,00, impõe-se, adicionalmente, responder se houve doação de € 40.000,00, em cheque, e se houve doação de €20.000,00, em numerário.

Z. Evidentemente, dizer-se que se admitiu por acordo a entrega, ao promitente vendedor, de € 90.000,00 não se confunde com a admissão de que o capital entregue tenha sido doado pelos pais da Autora/Recorrida, entendimento que a Ré/Recorrente não admite e do qual se discorda, por não corresponder à verdade.

AA. Quanto ao referido a propósito da sua contestação, a Ré/Recorrida reproduz os argumentos invocados a propósito do teor do despacho saneador, admite-se a entrega ao promitente vendedor, mas não se pode retirar do teor daquele articulado a admissão de que os montantes entregues foram doados pelos pais da Autora.

BB. Analisando o ponto 80 da contestação, verifica-se que, sobre a menção da Ré/Recorrente quanto a parte daquele montante, entregue ao promitente vendedor, ter sido emprestada pelos pais da Autora/Recorrida, o douto Tribunal a quo entende que tal menção reflete a admissão, pela Ré/Recorrente, que parte daquele dinheiro teve como proveniência os pais da Autora/Recorrida.

CC. Ainda que vingue tal entendimento, sem conceder, a proveniência só poderia ser considerada para parte do montante entregue ao promitente vendedor (os € 30.000,00 + € 40.000,00), ou seja, a parte que se supunha emprestada, apenas.

DD. Dado que, dos autos resulta a existência de dois cheques, um de € 30.000,00, e outro de € 40.000,00, assinados pelo pai da Autora/Recorrida, à ordem do promitente vendedor.

EE. Portanto, a existir aqui o juízo de valoração daqueles factos como provados, acolhendo a doação dos montantes em causa, nunca esse juízo se poderia co-sustentar na alegada admissão da Ré/Recorrente, na parte em que considera que a Ré/Recorrente admitiu ter ocorrido doação, porquanto, conforme já referido, ainda que se possa admitir a entrega dos montantes ao promitente vendedor, não houve qualquer admissão quanto à eventual doação de tais montantes à Autora/Recorrida.

FF. Além disso, e sem conceder, se quanto aos € 30.000,00 e € 40.000,00, pese embora não esteja demonstrado o trajeto (proveniência e destino final) dos referidos cheques, pode ser de considerar que os mesmos tenham sido doados, por conta dos cheques que lhes correspondem.

GG. Já quanto aos restantes € 20.000,00 não se admite o mesmo juízo de valor, porquanto, "(...) nada quer na matéria de facto dada como assente, quer na própria fundamentação da Sentença, permite aferir de que forma ou em que data foi feita a alegada doação dos restantes €20.000,00 (…);

HH. Por isso, pelo menos quanto àqueles € 20.000,00, não é possível aferir, por falta de suporte probatório, qual a sua origem.

II. Aliás, resulta precisamente do acórdão ora em causa a inexistência de prova que permita aferir uma tal valoração.

Vejamos

JJ. Equacionando o referido supra nas alíneas N. e U. destas conclusões, ficou claro para a Ré/Recorrente, que a convicção do douto Tribunal a quo para a valorar como provados os factos 4 a 6, nomeadamente, a valoração dos € 90.000,00 como doação resultou da ponderação conjunta dos dois cheques, dos depoimentos testemunhais e da admissão, pela Ré/Recorrente, da entrega dos € 30.000,00 + € 60.000,00 ao promitente vendedor.

KK. Analisemos então, por mero dever de patrocínio, os factos e a prova sob aquele ponto de vista, sem olvidar que a Ré/Recorrente não partilha do entendimento de ela própria tenha admitido a doação dos referidos montantes, ou pelo menos, quanto aos € 20.000,00, conforme esclarecido.

LL. Analisando cada montante separadamente, quanto aos €30.000,00, existe um cheque assinado pelo pai da Autora/Recorrida à ordem do promitente vendedor, existem os depoimentos testemunhais e a alegada admissão pela Ré/Recorrente.

MM. Assim sendo, resultando a formação da convicção do Tribunal da análise conjunta dos meios probatórios, porque separadamente não tiveram força probatória suficiente para convencer o douto Tribunal a quo, haveria prova suficiente da doação dos € 30.000,00.

NN. A respeito dos € 40.000,00, o mesmo exercício se aplica, o mesmo resultado se apuraria.

OO. Já quanto aos € 20.000,00, entende o douto Tribunal que, não obstante a falta de suporte documental, um dos elementos corroborantes, a existência dos depoimentos testemunhais e a admissão da entrega dos € 90.000,00, motivou o entendimento de que a doação dos € 20.000,00 também se havia de ter por provada.

PP. Ora, a Ré/Recorrente não partilha de tal entendimento, porque ao admitir a entrega daqueles montantes ao promitente vendedor, está apenas a admitir isso mesmo, a entrega ao promitente vendedor.

QQ. Não está a admitir que os valores entregues tenham sido doados.

RR. Aliás, resulta do referido supra na alínea S, que é também este o entendimento do douto Tribunal a quo.

SS. E é por entender que a admissão da entrega dos montantes ao promitente vendedor não significa que esses montantes tenham sido doados, que sustenta a sua convicção na ponderação conjunta dos 3 elementos probatórios dos autos.

TT. Sucede que, do exposto supra da alínea V., quanto aos € 20.000,00, resulta a assunção, pelo próprio Tribunal, da inexistência daquele trio de elementos corroborantes, sobre os quais apenas o resultado de uma ponderação conjunta seria suscetível de suportar a valoração dada à matéria de facto.

UU. Ou seja, por já não terem resultado da ponderação conjunta daquele trio de elementos, mas apenas de dois elementos, quanto a estes €20.000,00 já não se pode aceitar que vingue a tese da doação.

VV. Aliás, concretamente quanto aos € 20.000,00, da decisão ora em causa nada se pode aferir nomeadamente quanto ao iter cognitivo e probatório que tenha levado o Tribunal a considerar como provada aquela doação.

WW. Inexiste qualquer alusão às partes dos depoimentos que tenham relevado para tal decisão.

XX. Restando, portando, um tal juízo de valoração assente única e exclusivamente na alegada admissão pela Ré/Recorrente.

YY. Entendendo, porém, o douto Tribunal a quo que, mesmo não existindo todos os elementos corroborantes, "(...) seria arbitrário, não justificado, estar a fazer diferença quanto a este valor (…).

ZZ. Com o devido respeito, mas impendendo sobre o douto Tribunal o dever de, quanto a cada facto (ou conjunto de factos) concretamente se pronunciar, proferindo decisão e fundamentando-a, independentemente da (in)suficiência da fundamentação, o que não pode suceder (como sucedeu) é um Tribunal dar por provado determinado facto, no caso a doação dos € 20.000,00, por entender, sem qualquer suporte probatório, reitera-se, que seria arbitrário e não justificado estar a fazer diferença entre o referido valor e os demais.

AAA. Com efeito, existem zero provas nos autos que permitam atribuir aos € 20.000,00 a natureza de doação.

BBB. Não é possível aferir nem da proveniência dos referidos €20.000,00, nem do destino final desse montante, e nem, consequentemente, que esse montante tenha sido doado pelos pais da Autora/Recorrida.

CCC. Também não é possível atender à admissão no sentido que o douto Tribunal invoca.

DDD. Desde logo, a referida admissão da entrega apenas pode ser tida em consideração no que respeita à entrega dos montantes ao promitente vendedor, é isso que, com algum esforço se pode aferir.

EEE. Jamais haverá qualquer tipo de admissão quanto àquela suposta entrega, que seria a entrega, pelos pais da Autora/Recorrida, dos montantes em questão, entrega essa que, no caso dos € 20.000,00, haveria de ter sido feita em dinheiro, e sempre teria de ter sido demonstrada a sua proveniência e, bem assim, o seu destino, o que se não encontra espelhado em nenhum dos elementos probatórios existentes nos autos.

FFF. Pelo que, não se tem por demonstrada a doação daqueles €20.000,00, porque nem sequer a sua proveniência se revela demonstrada.

GGG. Ora, chamando à colação a disciplina estabelecida no Código Civil (CC) quanto aos regimes matrimoniais de bens, resulta que o casamento, ora dissolvido, se considera celebrado sob o regime matrimonial de bens supletivo da comunhão de adquiridos, uma vez que não existiu convenção antenupcial (cfr. artigo 1717 0 do CC).

HHH. Resultando do teor dos artigos 1722.º e 1724.º do Código Civil, que, no âmbito do regime de bens adquiridos, é tido como de natureza comum um bem adquirido onerosamente na constância do casamento.

III. Sendo que, para que lhe seja atribuída natureza diferente, natureza de bem próprio, é necessário demonstrar, pela parte que alega a natureza de bem próprio, que tal bem não integra o património comum.

JJJ. Ora, no caso, não se provou que a proveniência daqueles € 20.000,00 era de doação feita pelos pais da Autora/Recorrida, não se podia, como tal, dar como provado que os € 20.000,00 não eram bem comum do dissolvido casal.

KKK. Pelo que, não podia o douto Tribunal a quo ter decidido estar em causa bem próprio da Autora/Recorrida.

LLL. Aqueles € 20.000,00 provieram do património comum do, ora dissolvido, casal, porque nenhuma prova foi feita para que se pudesse concluir que não estivessem integrados naquela comunhão.

MMM. Impunha-se, portanto, quanto à natureza do € 20.000,00, uma decisão análoga, com as devidas adaptações, àquela que foi proferida quanto à fração BS.

NNN. Visando agora aferir da natureza da fração N, terá de se equacionar o estabelecido artigo 1726.º, n.º 1, do Código Civil.

OOO. In casu, ainda que se admita que por acordo ficou provada a entrega dos € 90.000,00 ao promitente vendedor, tal admissão, conforme reiterado, apenas abarcaria a parte referente à entrega ao promitente vendedor, jamais qualquer doação, pelo menos na parte referente aos € 20.000,00.

PPP. Prosseguindo, desses € 90.000,00, considerando € 70.000,00 a título de doação (bem próprio da Autora/Recorrida), e os restantes € 20.000,00 revestindo a natureza de bens comuns do dissolvido casal, tal como

QQQ. E considerando os € 140.000,00 mutuados, também integrados no património comum do dissolvido casal.

RRR. Comparando os referidos montantes valores com o preço global da fração N, € 170.000,00.

SSS. Temos que, do preço global de € 170.000,00, € 70.000,00 se podem considerar provados como sendo dinheiro ou bens próprios da Autora/Recorrida, e os restantes € 100.000,00 dinheiro ou bens comuns do dissolvido casal.

TTT. Naturalmente que, da totalidade dos € 170.000,00, montante de € 100.000,00 corresponde a prestação mais valiosa que o montante de € 70.000,00.

UUU. Pelo que, a fração N deve ser declarada como bem comum do dissolvido casal.

VVV. Assim não tendo decidido, o douto Tribunal a quo fez errada interpretação dos factos, por, sem suporte probatório, decidir considerar provada a doação dos € 20.000,00.

WWW. Resultando de tal decisão, em primeiro lugar, violação da lei processual, nomeadamente, do estabelecido nos artigos 411.º, 414.º e 574.º, todos do Código de Processo Civil.

XXX. Ora, quanto ao regime do artigo 411.º, do Código Civil, assumindo-se a inexistência de prova para sustentar determinado facto, e entende a Ré/Recorrente, foi assumido pelo douto Tribunal a quo a propósito da parcela de € 20.000,00 ("É certo que, quanto aos 20.000 € em numerário, falta um daqueles dois elementos corroborantes, (.. .)".

YYY. Não foi, contudo, o que sucedeu, reconhecendo ausência de elementos probatórios, deveria o juiz ter agido no sentido de cumprir o estabelecido no artigo 411.º do Código Civil, ou ter-se abstido de julgar provados factos relativamente aos quais não existe prova nos autos.

ZZZ. Mal andou o douto Tribunal a quo quando, quanto ao julgamento da prova da doação dos € 20.000,00, admitindo a ausência de um dos elementos probatórios, daquele trio de elementos a ponderar em conjunto, decidiu por provada a doação, ao invés de ter decidido em sentido contrário, ofendendo, por isso, o estipulado no artigo 414.º do Código Civil.

AAAA. No mais, da decisão recorrida resulta, ainda, ofensa à disposição do artigo 574.º n.º 2, do Código de Processo Civil, porquanto, desconsiderou aquele douto Tribunal a impugnação da Ré/Recorrente, nomeadamente, daqueles factos que, à partida, aquele douto Tribunal a quo havia considerado provados por acordo.

BBBB. Pelo que, a Ré/Recorrente traz à colação o recurso da sentença de primeira instância, dando aqui por reproduzido todo o seu teor, em particular, o referido nas alíneas H) a DD) das respetivas conclusões.

CCCC. Duma leitura atenta de tais conclusões constatar-se-á que não corresponde à verdade a alegação da falta de impugnação daqueles factos.

DDDD. No mais, da defesa ponderada em conjunto não resulta a admissão dos factos no sentido que lhes dá o douto Tribunal a quo, pelo que, também neste ponto andou mal o douto Tribunal violando aquele n.º 2, do artigo 574.º porquanto, desconsiderou o sentido da globalidade da defesa apresentada.

EEEE. Quanto à ofensa da lei substantiva, andou mal aquele douto Tribunal ao considerar estar ilidida a presunção de que a fração N era bem comum, por tudo quanto ficou exposto nestas alegações de recurso, nomeadamente, nas alíneas GGG. a UUU..

FFFF. Face ao exposto, deve o acórdão de que ora se recorre ser revogado na parte sobre a qual versa o presente recurso e ser substituído por decisão que satisfaça a pretensão jurídica da Ré/Recorrente”

Remata a recorrente pedindo a procedência da revista e a consequente revogação da “decisão ora recorrida na parte circunscrita ao presente recurso, substituindo-se a mesma por outra que satisfaça a pretensão jurídica da Ré/Recorrente”.


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7) A autora recorrida, apresentou resposta às alegações de recurso e, subsidiariamente, ampliou o objecto da revista formulando as seguintes CONCLUSÕES:

“A. O objeto deste recurso – reapreciação sobre a decisão relativa à matéria de facto -, na forma como é apresentado, não se inclui nos poderes de apreciação do Supremo, como resulta do disposto nos arts. 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.

B. A Ré/Recorrente diz que o recurso vem interposto ao abrigo do disposto no artigo 674.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC, por existir violação “quer da lei substantiva, quer da lei processual” (n.º 4 das alegações), mas, como se verá, limita-se a impugnar a decisão sobre a matéria de facto, em termos que não cabem nos poderes deste Supremo Tribunal ou, se assim não fosse, que contrariam a regra da dupla conforme.

C. Quanto à violação da lei substantiva, sem especificar, diz a Recorrente que são violadas “nomeadamente as normas aplicáveis quanto ao regime da comunhão de adquiridos”.

Porém, como aceita a aplicação ao caso do disposto no artigo 1726.º, só poderia haver violação desta norma se fosse reapreciada a questão e atendida a sua argumentação quanto à decisão da matéria de facto, o que não pode ocorrer.

D. A impugnação constante do recurso da Recorrente limita-se à decisão sobre a matéria de facto, sobretudo ao que foi decidido em 1.ª instância sobre o facto provado n.º 6 – Os valores do sinal referido em 4 e do reforço de sinal referido em 5 foram pagos com valores doados à autora pelos seus pais –, o que foi já reapreciada pela Relação.

E. Tal como já ocorrera no recurso para a Relação, a Recorrente pretende alterar a decisão, mas apenas e tão-só através do que não pode ser modificado: a decisão sobre concretos factos dados como provados, ademais em duas instâncias.

F. A reapreciação da decisão sobre a matéria de facto não se enquadra, em geral e no caso concreto, nos fundamentos da revista, como resulta do disposto no n.º 3 do art. 674.º do Código de Processo Civil como é jurisprudência pacífica (cfr. Acs do STJ de 3/11/2021, Proc. 4096/18.0T8VFR.P1.S1 e de 30/11/2022, Proc. 2603/19.0T8PDL.L1.S1).

G. A Recorrente não interpõe o recurso no âmbito do preenchimento do art. 674º, 3, 2ª parte, do CPC, pois não alega a violação de norma legal que exija prova vinculada para a existência do facto ou norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

H. O que a Recorrente invoca neste recurso não se integra no âmbito dos poderes deste Supremo Tribunal em relação à matéria de facto (cfr. ac. do STJ de 9/3/2021, Proc. n.º 3424/16.8T8CSC.L1.S1: atribuição de errado valor a meio de prova; necessidade de a matéria de facto ser ampliada para constituir base suficiente para a decisão de direito ou contradições na decisão sobre a matéria de facto que obstam à decisão jurídica do pleito.

I. Uma parte do recurso contém, por outro lado, matéria nunca invocada. Porque não foi objeto da impugnação em 1.ª instância, tal matéria não pode ser agora apreciada, já que também não é de conhecimento oficioso (cfr. Ac. STJ de 7/7/2016, Proc. 156/12.0TTCSC.L1.S1. Referimo-nos ao invocado erro por se ter considerado como provado por acordo determinados factos

J. Os factos em causa – n.ºs 4 a 6 da sentença - já vinham dados como provados, parte no despacho saneador, parte na sentença, sem que este fundamento de recurso fosse antes invocado pela Recorrente, no recurso da sentença, já que não recorreu do despacho saneador.

K. Mas, quanto aos meios de prova tidos em conta, a Recorrente, no seu recurso da sentença, apenas pôs em causa a prova testemunhal – cfr. conclusões A a I do recurso da sentença.

L. Por outro lado, o facto de apenas ter sido impugnada neste recurso a decisão sobre a matéria de facto e a sua apreciação pela Relação implica que seja afastada a “desconformidade”, para efeitos de admissão da revista (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Dupla conforme": critério e âmbito da conformidade”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, 2008, págs. 21 e 22 e Joana Lima Ferreira, A Dupla Conforme em Recurso Cível, A Conformidade Decisória em Especial, Lisboa, 2019, p. 69).

M. Se assim não fosse decidido, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, existiria dupla conforme a impedir o presente recurso, pois o mesmo não vem interposto como revista excecional, ao abrigo do disposto no art. 672.º do CPC – não podendo assim ser agora considerado (cfr. Ac. do STJ de 12/1/2021, Proc. 492/13.8TBPDL.L1-A.S1), sendo-lhe aplicável o n.º 3 do art. 671.º.

N. Em relação ao objeto do recurso, as decisões da 1.ª e da 2.ª instância são conformes pois que: ambas decidiram que devia ser considerado como provado que 90.000,00 € do preço global de 170.000,00 € foram pagos com valores que são bens próprios da Recorrida, com a mesma fundamentação quanto à prova destes factos e sem que, no acórdão, tenha havido voto de vencido.

O. É certo que enquanto a 1.ª instância decidiu no sentido de que o bem era comum, a 2.ª decidiu no sentido de que o bem é próprio. Mas isso não afasta a dupla conforme, sobretudo de acordo com o que tem sido a interpretação dominante neste Supremo Tribunal, que afasta a tese da dupla conforme plena.

P. O que releva é que, sobre o objeto do recurso, as decisões foram iguais, e tal é o que releva (cfr. Ac. do STJ de 4/6/2015, Proc. 7412/08.0TBCSC.L1.S), pois o acórdão confirmou, na íntegra e por unanimidade, a sentença, no que respeita ao objeto deste recurso, e fê-lo “sem fundamentação essencialmente diferente”.

Q. A admitir-se o presente recurso, o que apenas por cautela de patrocínio se equaciona, o mesmo não merece provimento.

R. A Recorrente apenas põe em causa que pudesse ser considerado provado o que consta do Facto n.º 6, em relação apenas a 20.000,00€.

S. Como decidido, quanto às provas utilizadas, “o tribunal invocou, para além dos cheques, ainda os depoimentos do pai e do tio da autora para prova da doação dos 20.000€ incluídos nos 90.000€. Com efeito, o tribunal, na fundamentação, referiu-se ao valor global dos 90.000€ (= 30 + 40 + 20). A fundamentação - “Os depoimentos prestados [pelo] pai da autora e p[elo] tio paterno da autora […] referiram terem dado tais valores à filha e sobrinha” - não se refere apenas aos cheques de 30 e de 40, referem-se aos 30 e aos 60 (20 [em numerário] + 40 em cheque). Precisamente a prova testemunhal que o ac. do TRL de03/03/2022 decidiu que não podia ser considerada e que por isso afastou, e que o ac. Do STJ de 31/01/2023 decidiu que podia ser utilizada, pelo que não pode ser afastada.”

T. E, como decidido no acórdão, “(…) seria arbitrário, não justificado, estar a fazer diferença quanto a este valor. Admitidos que foram entregues 90.000€ não se vê porque é que apenas 70.000€ seriam doação, sem que se pudesse dizer a que título foi entregue o resto".

U. A invocada errada prova de factos por admissão por acordo não existe, assentando num erro de apreciação da Recorrente, pelo que não há violação do disposto na parte invocada do art. 574.º, 2.

V. Ou seja, o acórdão limita-se a invocar a admissão por acordo da entrega dos 90.000,00 €, o que é aceite pela Recorrente (cfr. n.º 28 das alegações) e não para o título a que ocorreu tal entrega.

W. Ainda que se entendesse que este não era o modo correto de proceder – ou seja, que por força da indivisibilidade da confissão, não estando admitida a doação, não podia dar-se por provado a entrega, o acórdão salienta a irrelevância da indivisibilidade da confissão.

X. Como decidido “mesmo a aceitar-se que, por força do princípio da indivisibilidade, já não se pudesse dar à confissão da entrega dos 90.000€ o valor de força probatória plena, ela continuaria a valer como prova de livre apreciação (art. 361.º do Código Civil) e, por isso, a suportar, como elemento corroborante, a prova testemunhal do pai e do tio(…)”.

Y. A decisão de que os valores entregues tinham sido doados pelos pais da Autora assenta numa multiplicidade de fatores e de meios de prova (mas, em nenhum caso, da admissão por acordo da existência de tal doação).

Z. Saliente-se que, a tudo o que foi invocado na sentença e no acórdão, junta-se agora a admissão pela Recorrente da doação de 70.000,00 €, quer por não ter recorrido dessa parte da decisão, quer pelo que diz nas alegações (cfr. n.º 47), em decisão já transitada nessa parte, que não foi objeto do recurso, e a já salientada falta de diferente prova para os 20.000,00 €.

AA. Sobre as os demais meios de prova atendidos pelo tribunal, lavra a Recorrente em novo erro, ao considerar violados os arts. 411.º e 414.º do Código de Processo Civil, pois, ao contrário do que diz, foram atendidos vários meios de prova, conjugados entre si.

BB. Em qualquer caso, nunca o valor pago com bens comuns ascenderia a 100.000,00 €, como pretende a Recorrente (80.000,00 € de empréstimo e 20.000,00 € de origem não provada) e o valor pago com bens próprios da Autora – antes da compra, ao promitente- vendedor, e depois do divórcio, ao Banco mutuante - excederá sempre em muito o valor pago com bens comuns.

CC. De facto, o que releva para a qualificação de bem próprio ou bem comum do valor pago pelo preço de aquisição do imóvel não é o valor do empréstimo, mas o valor deste que foi pago com bens próprios ou comuns, na única interpretação possível do n.º 1 art. 1726.º do CCivil: um bem só é adquirido com bens comuns na parte em que o pagamento do empréstimo, contraído para tal aquisição, seja feito com bens comuns.

DD. No entendimento judicial aplicado aos autos, o valor pago do empréstimo é bem comum por ter sido feito com rendimentos do trabalho, também eles bem comum do casal; aceitando-se essa premissa, há que determinar, então, que valor do empréstimo foi pago através de rendimentos comuns.

EE. Ora, apesar de o empréstimo ter sido contraído em 28/6/2013 (FPs n.º 7 e 8 e documento n.º 6 da p.i.), sobreveio, entretanto, o divórcio da Autora e da Ré, com efeitos patrimoniais reportados à data da separação, ou seja, a 1 de agosto de 2015 (FP n.º 15).

FF. Assim, estando provado nos autos que o pagamento do empréstimo era feito exclusivamente através a conta bancária da Autora/Recorrida – Factos provados n.ºs 12 e 13 -, com valores que apenas foram considerados bens comuns, por serem rendimentos do trabalho (cfr. FP n.º 16), o certo é que tais valores deixaram de ter tal natureza a partir do divórcio, passando a deter a natureza de bens próprios (cfr. Ac. Da Relação do Porto de 27/3/2017, Proc. 716/14.4T8AVR.P1).

GG. Por isso, o único valor do empréstimo pago com bens comuns é o valor pago desde a contração do mesmo até à data da produção os efeitos patrimoniais do divórcio – entre julho de 2013 e julho de 2015 foram pagas 24 prestações - , e como resulta do doc. 9 junto à p,i, o Banco mutuante confirma que, após o pagamento da 24.ª prestação, em julho 2015, o valor do empréstimo em dívida era de 133.582,44 €, o que implica que tivesse sido amortizado, na data da produção os efeitos do divórcio, 1/7/2015, um valor de 6.417,56 €

HH. Veja-se a iniquidade do pretendido pela Recorrente: apesar de apenas uma ínfima parte do bem imóvel haja sido pago com bens comuns - rendimentos do trabalho auferidos pela Recorrida – 6.417,56 €, na versão provada nos autos, ou 26.417,56 €, na versão defendida pela Recorrente neste recurso – aquela ficaria também proprietária de um bem cujo valor de aquisição foi de 170.000,00 €.

II. Ainda que o presente recurso viesse a ser admitido e viesse a ser julgado que o valor de 20.000,00 €, pago ao promitente-vendedor, considerado valor exclusivo da Autora/Recorrida, não tinha tal natureza, no que não se concede, a solução jurídica não podia vir a ser alterada, o que se requer que seja decidido, em ampliação do recurso, a título subsidiário.

JJ. Assentando na ideia de que o empréstimo utilizado parcialmente, em 80.000,00 €, para pagamento do e parte do preço da compra era pago com bens comuns – rendimentos do trabalho da Recorrida - considerou-se no acórdão que a autora não provou que o pagamento de tal empréstimo fosse feito com bens próprios.

KK. Mas daqui não podia extrair-se ou não se mostra correto que assim se extraísse, que todo o valor de 80.000,00 € foi pago com bens comuns, incorrendo o acórdão em erro de direito se dele resultar o contrário, por duas razões essenciais:

LL. Não conseguir provar que 80.000,00 € foram pagos com bens doados não é, neste caso, e em função das premissas do demais decidido, sinónimo de que tal parte do preço é bem comum., também porque a conjugação necessária entre os factos provados impõe conclusão diversa.

MM. Do acórdão resulta que tal valor, sendo considerado comum, apenas o poderia ser enquanto foi pago com bens comuns, no caso os rendimentos de trabalho da Autora; deixando tais rendimentos de ser comuns, por força do divórcio, deixa igualmente de ser comum tal parte do preço.

NN. Essa é a única conclusão que pode resultar da conjugação entre os seguintes factos dados como provados: 8, 10, 12, 13 e 15.

OO. Como supra se salientou já, o valor do empréstimo apenas foi pago com bens comuns até à data do divórcio, ou seja, apenas 24 prestações, entre julho de 2013 e julho de 1015 foram suportadas com os valores da conta da Autora, alimentada por rendimentos do seu trabalho, então bem comum, por vigorar o casamento entre Recorrente e Recorrida.

PP. Ou seja, apenas um valor diminuto – inferior a 7.000.00 € - do montante total do empréstimo, contraído por 27 anos, terá sido pago nesses 2 anos, decorridos entre a compra do imóvel e o divórcio de Autora e Ré, pelo que só esse valor pode ser considerado como a parte adquirida “com dinheiro ou bens comuns”, para os efeitos do disposto no artigo 1726.º do C. Civil.

QQ. Torna-se, pois, necessário, corrigir o valor de aquisição do imóvel considerado como feito com dinheiro ou bens comuns, servindo-se dos factos já provados ou, se assim se entender necessário, ampliando a matéria de facto, de forma a da mesma incluir o valor do montante do empréstimo pago na data do divórcio (art. 682.º/3 o CPC), pois só essa quantia integra a categoria de bem comum do casal, com relevo para os efeitos do disposto no art. 1726.º, n.º 1 do C. Civil.

Termos em que deve ser julgado improcedente o presente recurso, mantendo-se decisão recorrida; assim não se decidindo, deve ser apreciado e julgado procedente o recurso ampliado.


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8) As questões colocadas no âmbito da revista interposta pela ré reportam-se, no essencial, à divergência sobre a decisão tomada pelas instâncias em relação aos factos 4, 5 e 6 do elenco dos factos provados, mais incisivamente, sobre a propriedade de uma parte das quantias com que foi efectuado o pagamento do bem imóvel identificado como a fracção autónoma designada pela letra N correspondente ao 3.º andar D do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...48 da freguesia da ....

Comecemos por analisar a matéria de facto que foi dada como provada pelas instâncias.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São estes os factos considerados provados, e não provados, tal como descritos no acórdão recorrido:

A – Factos Provados

1 – A autora e a ré casaram entre si em 14 de janeiro de 2011, sem convenção antenupcial.

2 – A autora e a ré nunca apresentaram declarações conjuntas de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares;

3 – A autora celebrou, em 5 de abril de 2013, um contrato-promessa de compra e venda que teve por objecto a fracção N, correspondente ao 3º-D, do prédio sito na Praça ..., Rua ... e Rua ..., com lugar de garagem no nº 28, inscrito na matriz sob o artigo matricial nº ...72, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...48 (da freguesia da ...);

4 – Em tal ocasião, foi entregue ao promitente vendedor a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, por cheque emitido da conta bancária do pai e do tio da autora domiciliada no Millennium BCP;

5 – Em 30 de maio de 2013 foi entregue ao promitente vendedor a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), a título de reforço de sinal, parte da qual (€ 40.000,00) mediante cheque emitido da conta bancária do pai e do tio da autora domiciliada no Millennium BCP;

6 – Os valores do sinal referido em 4. e do reforço de sinal referido em 5. foram pagos com valores doados à autora pelos seus pais.

7 – Em 28 de junho de 2013, por documento particular autenticado, denominado “Contrato de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca” a autora e a ré declararam comprar a CC, que declarou vender, a fracção autónoma designada pela letra N do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...48 da freguesia da ..., pelo preço de 170.000,00€ (cento e setenta mil euros).

8 – Para aquisição de tal fracção, o “Banco Santander Totta, SA” concedeu a autora e ré um empréstimo no valor de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), do qual ambas se confessaram vendedoras, pelo prazo de 324 meses.

9 – Para garantia do cumprimento por autora e ré das obrigações advenientes de tal empréstimo, autora e ré constituíram hipoteca sobre a fracção adquirida a favor de tal banco.

10 – A aquisição por autora e ré, por compra, da fracção autónoma designada pela letra N do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...48 da freguesia da ..., foi inscrita pela Ap. ...05 de 26-06-2013.

11 – A hipoteca da fracção autónoma designada pela letra N do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...48 da freguesia da ..., foi inscrita a favor do “Banco Santander Totta, SA” pela Ap. ...06 de 26-06-2013;

12 - As despesas relativas ao empréstimo bancário referido em 8., no valor total de 4.976,78€ (quatro mil, novecentos e setenta e seis euros e setenta e oito cêntimos) abaixo discriminadas, foram debitadas da conta bancária com o n.º ...20, aberta no “Banco Santander Totta, SA”, de que a autora é única titular:

12.1. Comissões de avaliação, de 330,00€;

12.2. IVA de 75,90€;

12.3. Imposto de selo do mútuo de 840,00€;

12.4. IVA de 60,77€;

12.5. Despesas de formalização de 730,90€;

12.6. Imposto de selo de 79,44€;

12.7. Imposto Municipal sobre Transacções de 2.859,77€.

13 – O pagamento das prestações do empréstimo referido em 8. foi sempre feito, em exclusivo, através de débito na conta bancária referida em 12.

14 – Em 10 de julho de 2015 a autora declarou adquirir a fracção BS, correspondente a um lugar de garagem no piso -4, do prédio sito na Rua ..., Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo matricial nº 3, da freguesia da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 79, com o valor patrimonial de 9.800,00€ (nove mil e oitocentos euros).

15 - Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 5 de novembro de 2018, proferido no Proc. nº 656/16.2T8PRT, foi decretado o divórcio de autora e ré e fixado o início da separação de facto em 1 de agosto de 2015, a esta data retroagindo os efeitos do divórcio.

16 – A autora é Magistrada do Ministério Público e recebeu a sua remuneração mensal em 21 de abril de 2025, na conta bancária referida em 12.

Apesar de não descritos na sentença de primeira instância, foram ainda considerados provados os factos descritos nas alíneas D, V, X, Z, AA, GG e II do despacho proferido em 28 de fevereiro de 2018, que procedeu ao saneamento dos autos fixando os factos assentes e enunciando os temas da Prova:

17 – Aquando da celebração do casamento a autora residia em ... numa moradia por si adquirida em 2007;

18 – Foram emitidas pela sociedade então gerida pela Ré, S..., Lda., as seguintes facturas, pagas pela Autora:

-FT.../42, no valor de € 1.926,90;

-FT.../40, no valor de € 510,20;

-FT.../13, no valor de € 3.444,00;

-FT.../14, no valor de € 3.442,00;

-FT.../45, no valor de € 593,00.

19 – A Autora procedeu ainda aos seguintes pagamentos directos à ré, através de transferência da sua conta pessoal aberta junto do BPI:

- € 200,00, a 6/05/2015;

- € 1100,00, a 10/07/2015;

- € 800,00, a 13/07/2015;

- € 1000,00, a 5/08/2015;

- €2000,00, a 7/09/2015.

20 – A que acrescem transferências da conta pessoal da autora do Banco Santander Totta para a conta pessoal da ré:

. Em 27/5/2015, €200,00

. Em 10/07/2015, €1100,00

. Em 13/07/2015, €800,00

. Em 5/08/2015, €1000,00

. Em 7/09/2015, €2.000,00

. Em 22/09/2015, €500,00

. Em 22/09/2015, €1500,00

. Em 5/08/2015, €1000,00.

21 – A Autora procedeu a outros pagamentos, que efectuou por conta da ré, nomeadamente:

. Em 27/07, de € 75,00 e € 412,10 para DD, funcionária da sociedade da Ré;

. Em 3/08/2015, para a O..., no valor de € 1.219,00, para pagamento de bens de decoração entregues e facturados à S..., Lda..

22 – Antes da formalização da compra, mas instrumentalmente a esta, a autora declarou adquirir ainda, em 10 de julho de 2015, a fracção BS, correspondente a um lugar de garagem no piso -4, do prédio sito na Rua ..., Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo matricial nº 3, da freguesia da ..., descrito na CRP de ... sob o nº 79.

23 – A ré não esteve presente nestes dois últimos actos de aquisição.



B) Factos não provados

Foram considerados não provados os seguintes factos:

a. Que as despesas referidas em 12. tenham sido pagas pela autora com fundos e bens doados pelos seus pais;

b. Que o pagamento das prestações do empréstimo referido em 8. tenha sido feito com valores doados pelos pais da autora;

c. A garagem referida em 15. foi paga com dinheiro doado à Autora por seus pais.


֎

Parte II – O Direito

1) Está em apreciação um recurso de revista interposto pela ré cujo objecto central é a decisão da matéria de facto quanto aos pontos 4, 5 e 6 do elenco dos factos provados supra descritos.

Segundo alega a ré recorrente a decisão do acórdão recorrido sobre esses factos comporta violação de lei substantiva (no caso de “normas aplicáveis quanto ao regime de comunhão de adquiridos”) e de lei processual (no caso os artigos 411.º, 414.º e 574.º n.º 2 do Código de Processo Civil), o que viabilizaria o conhecimento do recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça dado o disposto no artigo 674.º n.º 1 alínea a) e b) do Código de Processo Civil.

2) Vejamos.

É sabido que, em princípio, o Supremo Tribunal de Justiça não interfere com o julgamento da matéria de facto efectuado pelas instâncias, sendo a sua função no modelo de administração da justiça vigente entre nós, avaliar da conformidade dos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido com a solução jurídica encontrada para o caso concreto, “aplicando definitivamente o regime jurídico que julgue adequado” (artigo 682.º n.º 1 do Código de Processo Civil).

Tal não significa, porém, que não caiba nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça apurar se o Tribunal recorrido (no caso o Tribunal da Relação) usou de forma adequada os poderes de que dispõe (artigo 662.º do Código de Processo Civil) ao decidir a matéria de facto, ou avaliar e decidir se a decisão do tribunal recorrido pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (artigo 682.º n.º 3 do Código de Processo Civil).

No que se refere, porém, a eventuais erros na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa os poderes de conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se aos casos em que ocorra “ofensa de uma disposição de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, ou que fixe a força de determinado meio de prova”, como expressamente refere o artigo 674.º n.º 3 do Código de Processo Civil.

3) No caso dos autos os factos sobre que, segundo a ré, se verifica erro de julgamento são os seguintes:

“4 – (Quando, em 5 de abril de 2013, a autora celebrou o contrato promessa de compra e venda da fracção correspondente ao 3.º andar D do prédio sito na Praça ... Aquando da celebração do contrato promessa), foi entregue ao promitente vendedor a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, por cheque emitido da conta bancária do pai e do tio da autora domiciliada no Millennium BCP;

5 – Em 30 de maio de 2013 foi entregue ao promitente vendedor a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), a título de reforço de sinal, parte da qual (€ 40.000,00) mediante cheque emitido da conta bancária do pai e do tio da autora domiciliada no Millennium BCP;

6 – Os valores do sinal referido em 4. e do reforço de sinal referido em 5. foram pagos com valores doados à autora pelos seus pais.”

4) A ré recorrente, aceitando que foram feitas as aludidas entregas ao promitente vendedor, e que as quantias tituladas por cheque emitidos sobre contas bancárias de familiares próximos, insurge-se contra o facto de a quantia não titulada por cheque (vinte mil euros, como resulta do facto 5.) ter sido englobada no acórdão recorrido no valor doado à autora por seus pais.

5) A convicção do tribunal recorrido sobre esta matéria ficou incisivamente expressa do seguinte modo:

A entrega pela autora da quantia de 90.000,00 euros ao promitente vendedor ficou processualmente assente desde o despacho proferido em audiência prévia por sobre ela se registar acordo entre as partes.

A prova de que as quantias entregues ao promitente vendedor a título de sinal e de reforço de sinal foram doadas à autora decorre do facto de serem, na sua maior parte, provenientes de contas bancárias de que eram titulares o pai e o tio da autora, conforme prova documental junta aos autos, associado ao teor dos respectivos depoimentos em audiência, sendo esses factos analisados quanto à alegação de que a doação abrangeu a totalidade da quantia entregue à luz das regras de experiência, para se concluir, não tendo sido produzida prova nesse sentido, que resultaria inverosímil que apenas parte dela fosse objecto de doação.

Ou seja, como se disse no acórdão recorrido, não havia justificação para considerar que, sendo admitido por acordo que foram entregues ao promitente vendedor 90.000,00 euros provenientes de familiares da autora, apenas 70.000,00 euros seriam objecto de doação “sem que se pudesse dizer a que título foi entregue o resto”.

6) Ainda que assim não fosse, e admitindo que pudesse haver erro de julgamento na apreciação da prova produzida quanto à invocada doação da quantia de 20.000,00 euros efectivamente entregue ao promitente vendedor, tal circunstância não constitui, no caso presente, fundamento da revista que deva ser apreciado nesta sede.

O Tribunal da Relação formou a sua própria convicção sobre a matéria de facto impugnada tendo em conta a prova produzida nos autos, expôs de forma claramente compreensível as razões das conclusões a que chegou e, tendo em conta a natureza dos factos em discussão, não contrariou qualquer norma, em verdade inexistente, que impusesse a exigência de determinado meio de prova, antes conjugou de forma equilibrada as regras sobre o ónus de impugnação da parte com a observância das regras sobre o ónus da prova dos factos alegados por cada uma das partes.

7) Perante tal condicionalismo e visto o disposto no artigo 674.º n.º 3 do Código de Processo Civil não pode ser objecto do recurso de revista, nem este Supremo Tribunal de Justiça sindicar, a decisão recorrida que fixou os factos materiais da causa considerando que as quantias referidas nos pontos 4 e 5 do elenco dos factos provados foram doadas à autora pelos seus pais.

Assentes se terão, pelo exposto, os factos tidos por provados no acórdão recorrido e, sobre os pontos controvertidos, em perfeita consonância entre a primeira e a segunda instância.


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8) Invoca a ré violação por parte do acórdão recorrido de lei substantiva, no caso consistente no regime jurídico da comunhão de bens adquiridos sob que foi celebrado o casamento entre a autora e a ré, alegando que não poderia ter sido afastada a presunção de que a fração do imóvel identificado integrava o património comum do ex-casal.

Recorde-se que, com a mesma base factual, a sentença proferida em primeira instância considerou que os imóveis identificados na petição inicial integravam o património comum do ex-casal, devendo a autora ser compensada no exacto montante de 90,000,00 euros com que contribuiu para a sua aquisição da fracção N por ser sua exclusiva propriedade por efeito de doação de seus pais.

O acórdão recorrido, porém, considerou que a fracção N) era um bem próprio da autora e não um bem comum, por aplicação da norma resultante da conjugação dos artigos 1722.º n.º 1 b) e 1726.º n.º 1, ambos do Código Civil.

E, de facto, assim se deve concluir.

9) O casamento celebrado entre a autora e a ré é regulado, quanto ao regime de bens, pelo regime supletivo da comunhão de adquiridos (artigo 1721.º do Código Civil).

No regime de comunhão de adquiridos integram a comunhão todos os bens que sejam adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento, desde que não exceptuados por lei, mantendo, contudo, e desde logo, a qualidade de bens próprios, os bens que a cada um tenha adquirido por efeito de doação (artigo 1722.º n.º 1 b) do Código Civil), ainda que na constância do casamento, presumindo-se a comunicabilidade dos bens móveis, mas não a dos bens imóveis.

O legislador, atento às realidades da vida em sociedade, previu e regulou aos casos em que os bens adquiridos pelos cônjuges o sejam através da utilização em parte de bens comuns, como o rendimento do trabalho e em parte com bens próprios de cada um.

E dispôs no artigo 1726.º n.º 1 do Código Civil que nesses casos os bens adquiridos na constância do casamento devem ser tratados como bens próprios ou como bens comuns tendo em conta a natureza da mais valiosa das prestações: “Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações”.

10) Tendo em conta que, como vem provado, na constância do seu casamento autora e ré adquiriram a fração de um imóvel pelo preço de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros), e que no pagamento desse preço a autora fez entrega ao comprador de € 90.000,00 (noventa mil euros) que lhe foram doados por seus pais, sendo o restante preço (€ 80.000,00 – oitenta mil euros) suportado pelo património comum, essa fracção do imóvel não pode deixar de ser havida como bem próprio da autora, por ser a sua prestação mais valiosa que a prestação realizada em comum, sem embargo, como estipula o nº 2 do artigo 1726.º do Código Civil, da compensação que for devida pelo património da autora ao património comum, no momento da dissolução e partilha da comunhão.


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11) Em resumo, a revista interposta pela ré improcede no que se refere à impugnação da decisão da matéria de facto na medida em que, não ocorrendo violação ou errada aplicação de lei do processo, o apontado erro de julgamento na avaliação da prova e fixação dos factos materiais da causa, não é susceptível de servir, no caso, de fundamento da revista.

E improcede igualmente no que se refere à pretensão de que não se mostra afastada a presunção de comunhão do imóvel identificado na parte decisória do acórdão recorrido.

Tal como decidiu o acórdão recorrido o pedido formulado pela autora na petição inicial procede quanto à fracção do imóvel em causa.

A ré, porque vencida no recurso de revista que interpôs, suportará as respectivas custas.


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DECISÃO

Termos em que, julgam improcedente a revista e confirmam o acórdão recorrido.

As custas do recurso ficam a cargo da ré ora recorrente.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 27 de fevereiro de 2024

Manuel José Aguiar Pereira (relator)

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues

António Pedro de Lima Gonçalves

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1. O acórdão, datado de 3 de março de 2022, decidiu: i) julgar parcialmente procedentes as impugnações da matéria de facto apresentadas pela ré e pela autora; ii) revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a ré a compensar o património comum do casal na quantia de 90.000€ e, outrossim, condenar a ré a compensar a autora, à custa do património comum do casal, no valor que resultar da aplicação da percentagem de 17,647% sobre o valor do imóvel (fracção N) a partilhar, calculado na data da partilha, mantendo quanto ao mais a sentença recorrida.↩︎