Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
693/22.8T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
INTERESSE EM AGIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
DIREITO DE PROPRIEDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PODERES DA RELAÇÃO
LEI PROCESSUAL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: - RECURSO DE MONOPOLY CONCEDIDO
- RECURSO DO AA, CONCEDIDO PARCIALMENTE
Sumário :
A impugnação de justificação notarial qualifica-se como uma acção de apreciação negativa, em que o impugnante deve alegar e demonstrar os fundamentos do seu pedido, designadamente que é titular de um direito susceptível de ser afectado pelo direito declarado na escritura a favor do impugnado.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e Monopoly, Lda.

Recorrido: BB

1. BB instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra AA e Monopoly, Lda., pedindo a procedência da acção e

em consequência:

a) Ser declarada ineficaz por impugnação a escritura pública de Justificação Notarial realizada pelo 1.º réu em 30 de outubro de 2020 (…);

b) Ser imediatamente comunicado ao Ex.mo Sr. Notário Dr. CC a pendência da presente ação, para os efeitos previstos no art. 101.º do Código do Notariado;

c) Ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor do primeiro réu e da segunda ré;

d) Ser o autor declarado dono do prédio sito à rua da ... da freguesia de ... do Concelho de ..., por o haver adquirido por usucapião;

e) Serem condenados os réus a reconhecerem o direito de propriedade do autor sobre o mesmo prédio, abstendo-se de qualquer ato que contenda com tal direito”.

Para tanto, afirmou serem falsos os factos declarados na escritura referida na al. a), pelo que respeita a um dos prédios por ela abrangidos.

Alegou ainda ter adquirido por usucapião tal prédio.

2. Regularmente citados:

- a ré Monopoly contestou, impugnando os factos avançados pelo autor, que entende litigar de má-fé, e, reconvindo, pedindo que seja reconhecida a propriedade do bem na sua pessoa; com a contestação juntou documentos, pugnou por que outros viessem aos autos e arrolou testemunhas; e

- o réu AA contestou, impugnando os factos avançados pelo autor e, reconvindo, pedindo que seja reconhecida a propriedade do bem na sua pessoa; com a contestação juntou documentos, pugnou por que outros viessem aos autos e arrolou testemunhas.

3. Replicou o autor, impugnando os factos das reconvenções apresentadas pelo réus.

4. A final, o Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto julgo totalmente improcedente a ação e consequentemente:

. absolvo os RR. AA e Monopoly, Lda. de todos os pedidos contra ela formulados pelo A. BB;

. não conhecer, por tautologia, as reconvenções formuladas pelos RR. AA e Monopoly, Lda. quanto a verem reafirmado um direito que não foi posto em causa;

. absolvo o A. BB do pedido de demolição do muro formulado contra si pela R. Monopoly, Lda. e bem assim da sua condenação em indenização em razão da má-fé processual;

. condeno o A. BB como litigante de má-fé na multa de 4 Uc´s.

Custas pelo A..

Independentemente da sorte desta ação, extrai-se certidão desta sentença e rema-se a mesma ao MºPº para efeitos de instauração de procedimento criminal contra AA e contra as testemunhas que intervieram na escritura de justificação, a saber, DD, EE e FF.

Registe e notifique”.

4. Inconformado, o autor apelou, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Em face do exposto, na procedência parcial da apelação, acorda-se em alterar a sentença recorrida, quanto ao primeiro capítulo do seu dispositivo:

a. julgando-se procedente a impugnação parcial da escritura de justificação notarial identificada no ponto 1 – fundamentação de facto –, outorgada pelo réu AA – na parte respeitante ao prédio nela identificado como “DOIS Urbano” –, por não ter este réu adquirido por usucapião tal prédio dela também objeto, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., na ficha n.º 2891/20190327, freguesia de ...), o que obsta a que produza quaisquer efeitos quanto ao mesmo;

b. ordenando-se o cancelamento da inscrição AP. 2289 de 2021/01/14 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de ...), da Conservatória do Registo Predial de ...;

c. ordenando-se o cancelamento da inscrição AP. 1726 de 2021/02/08 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de ...), da Conservatória do Registo Predial de ..., por assentar num contrato de compra e venda nulo.

Mais se acorda, quanto ao quarto capítulo do dispositivo da sentença recorrida e ao mais nela decidido:

d. manter a decisão de condenação do autor apelante como litigante de má-fé;

e. no mais subsistindo o decidido pela primeira instância, por não integrar o objeto da apelação.

Por último, acorda-se em:

condenar o réu AA, como litigante de má-fé, na multa processual de 4 UC (quatro unidades de conta).

C.B. Das custas

Custas da apelação a cargo dos apelados, em partes iguais.

Custas da causa a cargo, em partes iguais, do autor (1/3), do réu AA (1/3) e da ré Monopoly (1/3).


*

Notifique.

Após trânsito, comunique-se na primeira instância:

− ao Cartório Notarial onde foi outorgada a escritura de justificação notarial, para averbamento (arts. 101.º, n.º 1, 131.º, n.º 1, als. c) e d), e 202.º, al. c), do Cód. do Notariado);

− à Conservatória do Registo Predial;

– ao Ministério Público, para eventual petição do imóvel a favor do Estado”.

5. Inconformado, o réu AA vem interpor recurso de revista “nos termos do disposto nos artigos 671º nº 1, 674º nº1 alª a) e nº 2, 675º nº 1 e 676º do Código do Processo Civil”.

Pugna para que se decida:

a) Julgar que o autor não tem legitimidade para impugnar a justificação notarial dos autos, por não ser titular de um “direito incompatível com o declarado na escritura, tal como consta da lei nos arts. 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do registo do Notariado, absolvendo os RR. de todos os pedidos formulados pelo A.;

b) Revogar o douto Acórdão proferido pela Relação de Lisboa, datado de 07-11-2013, na parte em que julgou parcialmente procedente a apelação do Autor e, em consequência, decidiu alterar a sentença da Primeira Instância quanto ao primeiro capítulo do seu dispositivo e julgou procedente a impugnação parcial da escritura de justificação notarial identificada no ponto 1 – fundamentação de facto – da sentença da Primeira Instância, ordenando o cancelamento das respetivas inscrições do registo predial;

c) Revogar o douto Acórdão proferido pela Relação de Lisboa, datado de 07-11-2013, na parte em que condenou o 1º R, como litigante de má-fé, mantendo-se, assim, inalterada a Sentença proferida em Primeira Instância”.

Conclui as suas alegações assim:

1. O presente recurso, em matéria de Direito, tem por objeto o douto Acórdão proferido pela Relação de Lisboa, datado de 07-11-2013, na parte em que julgou parcialmente procedente a apelação do Autor e, em consequência, decidiu alterar a sentença recorrida, 1) quanto ao primeiro capítulo do seu dispositivo, a) julgou procedente a impugnação parcial da escritura de justificação notarial identificada no ponto 1 – fundamentação de facto – e b) ordenou o cancelamento da inscrição AP. 2289 de 2021/01/14 – “Aquisição”, bem como, c) da inscrição AP. 1726 de 2021/02/08 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, por assentar num contrato de compra e venda nulo, e 2) Condenou o 1º R, como litigante de má-fé, na multa processual de 4 UC (f).

2. Relativamente à ilegitimidade activa da impugnação da justificação, não tem razão o Tribunal da Relação quando discorda da Sentença da Primeira Instância, na parte em que esta “entendeu que o autor não tem legitimidade para impugnar a justificação notarial, por não ser titular de um “direito incompatível com o declarado na escritura, tal como consta da lei nos arts. 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do registo do Notariado”, não merecendo, pois, reparo, a sentença da Primeira Instância.

3. Com efeito, no seguimento da jurisprudência invocada na sentença da Primeira Instância, do Ac. do TRC de 23.9.2008 (processo n.º 219/06.0TBVZL.C1), apenas tem legitimidade “para instaurar acção de impugnação de escritura de justificação notarial (arts.89º, nº1 e 101º do Cód. do Notariado), o interessado que, relativamente ao prédio justificado, invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justifica”.

4. Acontece que, nos presentes autos, constitui a causa de pedir do A. - ou seja, o fundamento jurídico concreto donde emerge o direito que invoca e pretende fazer valer -, o pretenso direito de propriedade que, conforme alegou o Autor, lhe adviria por usucapião.

5. Não alegou, pois, o A. sua condição de inquilino, nem qualquer outro direito obrigacional ou interesse, sequer, como causa de qualquer interesse incompatível com o direito dos Réus, para impugnar a escritura de usucapião

6. Ou seja, o A., para provar a sua qualidade de “interessado” na impugnação da justificação do 1º R., alegou exclusivamente e tentou fazer prova da titularidade de um direito real incompatível com o do declarado na escritura, a saber, que era, por via da usucapião, o proprietário do imóvel.

7. Não obstante alegação inequívoca, na PI, dos factos constitutivos da usucapião (e, não, de quaisquer outros - nomeadamente, de gozo - que indiciassem um outro direito ou interesse incompatível com o impugnado), a verdade é que o A. não adquiriu a propriedade do imóvel por usucapião, nem se considerou possuidor do imóvel, não tendo invertido o título de posse precária, que, para mais, foi apenas exercida relativamente a uma parte do imóvel.

8. Sempre com o devido respeito por opinião diversa, não poderia, assim, o Venerando Tribunal da Relação concluir que “o autor tem um efetivo interesse relevante na impugnação, estando este bem vincado nos factos provados”.

9. Por outro lado, a posição do Douto Acórdão recorrido de que o “interesse relevante” do Autor decorre da notificação avulsa, apresentada pela Ré Monopoly, para entrega do imóvel, não teve em conta que o Autor se opôs à pretensão da Ré Monopoly, não por causa de uma relação obrigacional e da sua posição de arrendatário, mas, sim, invocando a aludida titularidade de um direito de propriedade sobre o imóvel, que não logrou provar.

10. Acresce que, ao pedido reconvencional da Ré Monopoly, quando o Autor poderia ter salientado o seu interesse como arrendatário ou outro interesse incompatível com o direito de propriedade da 2ª Ré, na sua réplica, o Autor/Reconvindo expressamente refere que ”é verdade que quando o A., no inicio da sua vida adulta, foi residir para a referida morada a sua posse era titulada por um contrato de arrendamento – que veio a cessar os seus efeitos através da não aceitação do pagamento de renda por quem de direito era titular do direito de propriedade” (artigo 6º) (sublinhado nosso).

11. Ou seja, o Autor/Reconvindo, em sede de resposta à alegação reconvencional da Ré Monopoly, nega inequivocamente, a sua qualidade de arrendatário

12. Para além disso, na sua réplica, reforça o Autor que não pagou, “nem tinha de pagar, qualquer quantia a título de renda, não só porque entende ser ele o legítimo proprietário do imóvel e, por conseguinte, não paga qualquer contrapartida pelo uso do mesmo” (artigo 9º da réplica).

13. Não poderia, assim e salvo melhor entendimento, o Venerando Tribunal da Relação alicerçar a sua decisão de legitimidade do Autor num argumento – a qualidade de arrendatário – que este sujeito processual recusa expressamente, mesmo depois de os Réus invocarem tal sua qualidade, em contraposição à de proprietário.

14. Não poderia, ainda, o tribunal recorrido ter considerado que “tem, pois o autor, na tutela da sua detenção, interesse em questionar a suposta aquisição originária do direito que veio a ser transmitido à segunda ré”, na medida em que

15. É o próprio Autor que enquadra a aludida “tutela da sua detenção” do imóvel, não num “direito pessoal de gozo” (que expressa e repetidamente afasta), mas, outrossim, num pretenso direito de propriedade, cuja aquisição, por usucapião, não logrou provar.

16. Assim e conforme bem salienta a sentença em Primeira Instância, que não merece censura, “…o A., neste particular, não tendo qualquer direito real sobre o imóvel aqui em causa registado em seu nome diz que a propriedade do bem aqui em causa é sua porque a adquiriu por usucapião”.

17. Por outras palavras, o A. partiu, precisamente, do pressuposto de que, para que pudesse ver declarada a nulidade da escritura, teria de ser afirmada, na sua pessoa, a titularidade de direito incompatível com o que nela está declarado, ou seja, a propriedade.

18. Assim e em suma, após o Autor enquadrar a sua ação e pedido, por um lado, nos referidos normativos legais do Código do Notariado e, por outro, no entendimento de que teria de provar ser titular de um direito de propriedade incompatível com o declarado na escritura, tendo, para mais, expressamente impugnado e afastado a sua qualidade de arrendatário, não poderia o Tribunal da Relação concluir que o A., nessa mesma qualidade de inquilino, teria um direito incompatível com a justificação impugnada.

19. Ora, mesmo que se entenda que a impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente (e o Tribunal da Primeira Instância não manifestou tal entendimento) e se reconheça, também, interesse em agir àqueles que invocam direito diverso, este nunca poderá ser o caso como o dos autos.

20. A propósito, saliente-se o Acórdão desse Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017 (disponível no seguinte link Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt) , ao dispor que “I - O interessado na impugnação da justificação notarial a que se alude no artigo 101.º do Código do Notariado pode ser quem invoque direito cujo exercício pode ser posto em causa se não for posto termo à situação de dúvida desencadeada pela incrição no registo do direito reconhecido mediante justificação notarial”, mas “II - No entanto, para que se admita a impugnação por parte de quem não goza de direito oposto ao que beneficia da presunção derivada do registo nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, há de ser alegada factualidade que evidencie que o interesse salvaguardado pelo direito do impugnante é igual ou, pelo menos, equivalente ao do direito que foi objeto de justificação notarial.

21. No caso dos autos, o A. conformou o seu pedido e o seu interesse processual e substantivo, tal como consta na PI, na aquisição da propriedade por usucapião, e

22. Para além da alegação de ser proprietário por usucapião, o Autor não alegou qualquer outra factualidade que evidencie que o interesse em causa.

23. O A. e recorrente não alegou o arrendamento, nem a qualidade de inquilino (antes pelo contrário), para demonstrar um interesse igual ou, pelo menos, equivalente ao do direito que foi objeto de justificação notarial.

24. Imputa-se assim ao Douto Acórdão recorrido a violação do artigo 101.º do Código do Notariado, por errada interpretação do conceito de interessado nele contido, em conjugação com os artigos art.º 552º, n.º 1, alínea d) e art.º 581º, n.º 4 do CPC,

25. Devendo ser revogado o douto Acórdão recorrido, na parte relativa ao primeiro capítulo do seu dispositivo que julgou procedente a impugnação parcial da escritura de justificação notarial e julgar, conforme decidido em Primeira Instância, que o autor não tem legitimidade para impugnar a justificação notarial, por não ser titular de um “direito incompatível com o declarado na escritura, tal como consta da lei nos arts. 89.º, n.º 1, e 101.º do Código do registo do Notariado, absolvendo os RR. de todos os pedidos formulados pelo A.

26. Relativamente à litigância de má-fé que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa entendeu condenar o 1º Réu, também não tem razão, devendo este ser absolvido.

27. Com efeito, afirma o Acórdão recorrido que “o réu AA violou as normas plasmadas no art. 542.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil, pois não podia ignorar que os factos que afirmou na escritura de justificação notarial, e que reiterou na contestação a esta ação de simples apreciação negativa – quanto ao primeiro pedido e aos dois apendiculares que se lhe seguem –, são falsos, não tendo nenhuma razão na sua pretensão de aquisição do prédio em litígio por usucapião, por ser manifesta, inequívoca e totalmente infundada”.

28. Considera, em concreto, o Venerando Tribunal recorrido que “resultaram provados factos incompatíveis com a narrativa posta por este réu na sua contestação. São inconciliáveis entre si e reveladores da falta deste réu à verdade o facto 19 – factos provados – e os factos descrito nos arts. 25.º a 27.º, 43.º e 44.º da contestação”

29. Ora, para além da falta de motivação adicional do Tribunal recorrido neste ponto, na verdade, não se verifica, do referido facto provado e das alegações do 1º Réu, a incompatibilidade e, ainda menos, a verificação de pressupostos para a litigância de má fé.

30. Refere, por outro lado, o Tribunal recorrido que, no art. 3.º da contestação, “o réu afirma serem falsos os factos descritos na petição inicial” que constam dos factos provados 6, 7, 8, 13, 14, 16, quando, “como resulta da decisão sobre a matéria de facto, eles são verdadeiros”, mas, uma vez mais

31. Ora, na verdade, na verdade, não se perspetiva, do confronto da matéria de facto supra mencionada com a posição processual do 1º Réu, como se poderá concluir pela sua litigância de má-fé, nomeadamente, pelo preenchimentos dos pressupostos legais, ainda mais quando, nem o Autor a requereu, nem o Tribunal de Primeira Instância assim o considerou.

32. Com efeito e desde logo, o 1º Réu não “afirmou serem falsos” tais factos, mas, sim, impugnou- os “em geral, por não corresponder à verdade, a matéria” que constava de tais artigos da PI e, ainda, “com a excepção dos pontos que, infra, serão expressamente aceites”.

33. Ora, o facto de o Autor ter logrado fazer prova relativamente a estes factos e o 1º Reu ter, antes, impugnado, não são, por si só, constitutivos de litigância de má fé.

34. E o mesmo se diga relativamente ao outro elemento motivador do Tribunal da Relação, ou seja, que, “os factos descritos nestes pontos, no que respeita ao comportamento de GG e do seu procurador, conflituam, ainda, com a afirmação do réu de ser pública e não contestada a sua putativa atuação como proprietário – cfr. o art. 49.º da contestação”.

35. Assim, dispõe o Código de Processo Civil (CPC) que deve ser sancionado como litigante de má de fé a parte que deduziu pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, que alterou a verdade dos factos ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa, que omitiu gravemente os deveres de cooperação e de boa-fé processual e/ou que fez do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão – cfr. art. 542º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

36. Com tal tipificação exaustiva das respetivas situações objetivas, a figura da litigância de má-fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, pôs em causa os princípios da cooperação, da boa fé processual, da probidade e da adequação formal, que estão subjacentes à boa administração da justiça, na certeza de que impende sob as partes o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes à boa fé - cfr. cit. art. 542 e artigos 7º e 8º do CPC.

37. Ainda que os factos alegados pelo 1º Réu, em sede de Contestação, bem como de Reconvenção, tenham vindo a ser julgados como não provados pelo Tribunal de Primeira Instância, não resulta demonstrado nos autos - nem o 1º R. efetivamente atuou - de forma reprovável e conscientemente, não tendo posto em causa a boa administração da justiça e estando, por isso, a sua atuação, longe de configurar de uma litigância de má-fé.

38. Conforme é entendimento assente, não basta, para que se conclua pela litigância de má-fé por alguma das partes no processo, a afirmação de factos que, segundo o entendimento do Tribunal, a parte não logrou fazer prova.

39. Tal é a situação dos autos, em que o Tribunal, ao abrigo da livre apreciação da prova, entendeu que não foi feita a prova que incumbia sobre o 1º R. no âmbito do objecto da ação em causa, ou seja, a prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga, a saber, do direito de propriedade adquirido por usucapião.

40. Por outro lado, há que ter em conta que a dificuldade do 1º R. em fazer prova poderá ser explicada por diversos fatores, desde logo, pela doença e a sua completa alteração de aparência física, à distância temporal em relação ao negócio e ao facto de o solicitador mandatado para tratar da legalização do assunto ter, entretanto, morrido e sido perdida a documentação na sua posse.

41. Assim, a mera circunstância do Tribunal de Primeira Instância não ter considerado provados os factos constitutivos do direito do 1º R. não pode, desacompanhada de outros que provassem a tipificação exaustiva das respetivas situações objetivas, bem como o elemento subjectivo (dolo ou negligência grosseira) previstos do Código de Processo Civil, levar a uma condenação por litigância de má-fé (que, de resto, não foi pedida pelo Autor).

42. Acresce que, várias testemunhas se referiram aos factos constitutivos da usucapião do 1º R., embora o Tribunal de Primeira Instância, ao abrigo da livre apreciação da prova testemunhal, tenha entendido não valorar como suficiente para dar como provado os factos constitutivos da usucapião,

43. Conforme consta da motivação em matéria de facto da sentença da 1ª Instância, relativamente aos testemunhos das testemunhas DD, HH, e FF, para a qual se remete.

44. Assim e em suma, a conduta processual do 1º. R não integra o instituto da litigância de má-fé, não estando demonstrados, nem preenchidos, os pressupostos da aplicação do referido instituto, tal como previsto no artigo 542º do CPC, tendo o Douto Acórdão recorrido violado o referido dispositivo legal”.

6. Igualmente inconformada, recorreu também de revista a ré Monopoly, Lda., “nos termos do disposto no n.º 1 e n.º 3, a contrario sensu, do artigo 671.º do CPC; com fundamento alicerçado nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC”.

Propugna que:

deve ser dado integral provimento ao presente recurso de revista, revogando-se, em conformidade, o Acórdão em crise, mais se confirmando, in totum, a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, pelos fundamentos apresentados, reconhecendo-se o direito de propriedade sobre o imóvel em causa à aqui Ré, com todas as legais consequências”.

Termina as suas alegações com as seguintes – note-se: excessiva e, logo, indevidamente extensas – conclusões:

A. Salvo o devido respeito, entende honestamente a Recorrente que o Acórdão em crise padece de múltiplas violações de lei, quer do ponto de vista substantivo, quer do ponto de vista adjetivo, não sendo suscetível de ser mantido na ordem jurídica, em face do atropelo ostensivo do Direito justamente aplicável ao caso concreto.

B. E nunca será sumptuoso ou excessivo recordar-se que aos Tribunais está exclusivamente confiada a única e superior missão de administração da justiça em nome do Povo, interpretando e aplicando o Direito ao caso concreto, assim fazendo-se a devida justa composição dos litígios.

C. O Autor Recorrido, no seu recurso de apelação, impugnou singelamente este único ponto (27) da matéria assente, sabendo-se que o tribunal de 1.ª instância está privilegiadamente posicionado (em face do princípio da imediação) para se pronunciar sobre a confirmação/infirmação dos factos alegados pelas partes – e perante si diretamente produzidos.

D. A despeito de tal máxima, o Tribunal da Relação entendeu subverter a factualidade dada como provada no ponto n.º 27, mas sem para tanto apresentar qualquer fundamentação lógica, coerente, sólida e intrínseca para o efeito, por respeito, naturalmente, ao exame critico de toda a prova produzida, antes enveredando e optando, sempre com o devido respeito, por um exercício meramente especulativo e auto conclusivo.

E. Ora, nos autos está suficientemente assente que:

- A aqui Ré é uma sociedade compradora e revendedora de imóveis, transacionando inúmeros prédios que destina exclusivamente a tal finalidade inserta no seu objeto social;

- Com respeito ao presente negócio imobiliário, a Ré soube da colocação deste imóvel no mercado através do anúncio publicitado por uma mediadora imobiliária, interessou-se, realizou a visita ao mesmo para o conhecer, apresentou proposta, esta foi aceite e efetuou-se a escritura - cujos documentos foram devidamente validados pelo Cartório Notarial – tudo conforme o padrão comum e de normalidade.

F. Com efeito, nada no processo (como bem sentenciou o tribunal de 1.ª instância) apontou para que a aqui Ré tivesse algum conhecimento (objetivo e subjetivo) de qualquer vicissitude relacionada com este imóvel - limitando-se a confiar, no giro comercial, nos vários intervenientes envolvidos.

G. Pergunta-se: não é suposto acreditar e confiar numa mediadora imobiliária credenciada e com licença AMI, no exercício da sua atividade, ao publicitar a venda de um imóvel? Não é suposto acreditar e confiar na legitimidade de quem se apresenta como proprietário de um imóvel e realiza a escritura – sendo a aqui Ré não conhecia tal pessoa? Não é suposto acreditar e confiar na legalidade dos procedimentos do Cartório Notarial para escrutinar qualquer situação não conforme?

H. Em todos os passos a aqui Ré comportou-se de boa-fé, sem saber, de todo, se tal imóvel «escondia» qualquer vicissitude. Dito de outra forma, será antes normal o procedimento avesso?

Ou seja, qualquer interveniente num negócio assume que a outra parte está a praticar um ato ilícito?!

I. A resposta só pode ser obviamente negativa, sob pena de invertermos a regra em exceção e vice-versa. Naturalmente que as partes confiam que a outra goza de legitimidade e que, quer a mediadora imobiliária, quer o Cartório Notarial, cuidaram de asseverar o respeito rigoroso e escrupuloso da Lei, até porque a tanto estão compelidas.

J. Diferente seria se do processo constasse (mas nunca poderia constar – pois não corresponde manifestamente ao ocorrido) que a aqui Ré sabia minimamente que afinal a escritura de justificação notarial na base da aquisição do alienante padecia de qualquer irregularidade.

K. I.e., é absolutamente indubitável que nos autos nenhum elemento existe que seja indiciador de qualquer conhecimento da aqui Ré sobre a eventual vicissitude do imóvel que adquiriu, pelo que não poderia o Acórdão recorrido subverter um facto dado como provado, com toda a segurança, pelas regras da experiência comum (entenda-se), transformando-o em facto não provado – simplesmente porque entendeu especulativamente assim fazê-lo.

L. Se é verdade que o tribunal de 2.ª instância goza de plena jurisdição na análise da matéria de facto, não menos verdadeira é a asserção que o obriga a fundamentar, logica e concludentemente, o juízo formulado sobre tal factualidade assente, mormente quando diverge do tribunal que teve contacto imediato e direto com a prova – e melhor auscultou a sua vivacidade e persuasão.

M. Com efeito, não se pode partir do pressuposto e ter como princípio norteador e atuante que as partes intervêm, nos negócios, de má-fé e com intuito de prejudicar terceiros – e que devem convencer o tribunal do contrário (como que constituindo seu ónus), para lograr demonstrar a sua boa-fé.

N. Com o devido respeito, quem realiza um autêntico salto lógico no seu raciocínio, sem suporte nos factos e provas carreadas, é o Acórdão recorrido – pois se ficou evidente que a aquisição do imóvel pela aqui Ré se circunscreveu ao exercício da sua atividade comercial regular, e nenhuma relação tinha com o alienante, como então se poderá concluir, pelo contrário e antagonicamente, que afinal pode ter atuado de má-fé!?

O. Se um facto está suficientemente positivado em prova bastante, no sentido de que assim previsivelmente ocorreu com esse motivo/fundamento, como pode depois concluir-se, sem mais, que o facto simétrico é que é possível, com segurança maior, de ter afinal ocorrido – para com isso não haver pronúncia decidente sobre tal factualismo!

P. Em síntese, o Acórdão recorrido, ao revogar a decisão quanto à matéria de facto, sem formular qualquer juízo lógico e clarividente (acima de toda a dúvida razoável, pondo a nu o erro de julgamento da 1ª instância) não está legitimado para dela divergir, não tendo, em todo o caso, patenteado qualquer fundamentação, ou a motivação perfilada se mostrar manifestamente obscura e ininteligível, o que sempre determina a sua nulidade, neste segmento, o que expressamente se requer, donde assiste a V. Exas, por força do consignado no n.º 3 do artigo 674.º do CPC o poder-dever de assim determinar, mantendo-se a factualidade assente, tal como sentenciado pelo tribunal de 1.ª instância, nesses exatos termos.

Q. A Recorrente não se conforma com o teor da decisão recorrida que reputa de ostensivamente ilegal porque atropela e derroga vários preceitos imperativos do direito processual civilístico.

R. Em primeiro lugar é preciso ter presente que o Autor não se limitou a impugnar a escritura de justificação notarial do Réu alienante, naquilo que seria uma simples ação de apreciação negativa, mas antes formulou um pedido próprio de uma ação de reivindicação.

S. Melhor dizendo, o propósito/fito da presente demanda intentada pelo Autor foi reivindicar o direito de propriedade sobre o imóvel em causa (por via da sua aquisição por usucapião própria), e com isso contestar a escritura do justificante, dado que não seria possível compaginar duas posses usucapientes, concorrentes e simultâneas sobre o mesmo prédio (embora com a ressalva de nunca ter tido a posse de parte significativa do imóvel).

T. Assim perspetivado pelo Autor, a presente ação tem como causa de pedir (única), ou radica no pressuposto, ou tem como seu fundamento - a aquisição, por si, da propriedade do imóvel, por via da usucapião.

U. É por ter ocorrido a aquisição da propriedade (enfim, de parte dela) pelo Autor, através da posse usucapiente, que este exclusivamente contesta e impugna a licitude da escritura de justificação notarial a favor do Réu alienante.

3 “No mesmo processo, pode o autor pedir que se declare ter, ele próprio, adquirido, por idêntico modo (usucapião), o domínio sobre o prédio.

Tratar-se-á, então, de acção declarativa de apreciação positiva, não de condenação nem constitutiva (por nenhuma prestação nem autorização para uma mudança na ordem jurídica existente nele se peticionar), cujo ónus da prova lhe cabe – artº 342º, nº 1, CC.

A acção em que o respectivo direito (direito de acção – artº 2º, nº 1) é assim duplamente exercido e em que se cumulam tais pedidos – artº 555º, nº 1, CPC – assume feição mista ou sui generis” – Acórdão da Relação de Guimarães, 19.11.2020, Processo n.º 74/19.0T8TMC.G1.

V. Nenhum outro fundamento ou causa de pedir (alternativa ou subsidiária) é hasteada nos presentes autos.

W. Designadamente, o Autor não funda o seu direito e interesse em agir nestes autos e a contestar a escritura de justificação notarial em qualquer outro facto ou fundamento que não seja o seu direito de propriedade – conflituante com o simétrico direito real do justificante.

X. E perante a evidência comprovada de que não ocorreu a aquisição do direito de propriedade por banda do Autor, o único direito/interesse legítimo que este acenou e moveu nos presentes autos, fácil é concluir que não lhe assiste legitimidade (material ou substantiva) para implicar a aquisição a favor do Réu alienante.

Y. É que a lei esclarece, injuntivamente, que não é qualquer terceiro ou pessoa da comunidade em geral que tem a legitimidade (processual, e por maioria de razão, a material ou substantiva) para derrubar uma escritura de justificação notarial, mas sim quem alegue (antes) e prove (depois) que é titular de um direito incompatível.

Z. Pressuposto, pois, do sucesso da ação será, fatal e inexpugnavelmente, que haja o reconhecimento ao Autor, na sua esfera jurídica, do dito direito/interesse legalmente protegido incompatível com o direito (propriedade) impugnado, numa primeira fase, para depois lhe reconhecer a legitimidade (de mérito) triunfante para anular tal alteração na titularidade do imóvel.

AA. Mas o tribunal, como é sabido, está imperativamente balizado e severamente condicionado pelo pedido e pela causa de pedir hasteada pelo Autor (impugnante) – só a ele compete privativa e exclusivamente determinar o fundamento concreto donde emerge o direito que invoca e pretende fazer valer em juízo.

BB. É que não são os Réus que o poderão substituir, e também não é o Tribunal que o poderá substituir, na invocação e configuração da causa de pedir que sustenta como fundamento do seu direito e agir processual.

CC. Fazendo tabula rasa destes magos princípios enformadores do processo civil, o Acórdão recorrido entendeu, contudo, fazer intervir (em 2ª instância) uma nova causa de pedir que, por si mesmo, atribuiu ao Autor.

DD. Sem que nunca o Autor o tenha invocado (e oportunidades processuais não lhe faltaram para o efeito), o Acórdão recorrido entendeu, alterando a causa de pedir (e revolucionando a configuração da relação jurídica material controvertida), conceber ao Autor um direito (pessoal de gozo) que este, não só nunca invocou, como pasme-se, o negou perentoriamente.

EE. Com efeito, a decisão recorrida ao atribuir a condição de arrendatário ao Autor, não apenas altera, por sua iniciativa, a causa de pedir nestes autos, imputando um circunstancialismo fáctico que não foi alegado pelo Autor (e consequente estatuto jurídico – locatário), como pior, substitui-se integralmente a uma das partes, numa clara violação (também) do princípio da igualdade – cf. artigo 4.º do CPC, atribuindo-lhe a alegação de factos que a própria parte negou/infirmou/rejeitou expressamente.

FF. O Autor, não apenas, não alegou que era arrendatário, como rejeitou e denegou visceralmente tal condição fáctica – arrendatário é alguém que factualmente habita na casa propriedade de terceiro e com respeito ao qual paga uma contrapartida pelo seu uso, dado ser uma relação onerosa, por defeito,

GG. I.e., o Autor alegou que não era arrendatário, que nenhum arrendamento subsistia mais, mas o Tribunal, em violação e afrontamento de todas aquelas regras, entendeu «alegar» pela própria parte, e pasme-se, em sentido antagónico ao que esta havia feito!

HH. Tal como nos ensina a nossa jurisprudência, impera no processo civil um ónus de individualização da causa de pedir, um ónus de substanciação do pedido, através do qual resulta configurado um litígio em tribunal, uma controversão entre titularidades de relações materiais jurídicas.

II. Não vale tudo e seguramente não é permitido tudo em processo judicial, sob pena de não existir qualquer seriedade nas pretensões das partes e moralização/licitude da litigância:

Aplicando tal tese ao caso concreto, obviamente que não era possível ao Autor, por exemplo, alegar a titularidade do direito real de propriedade (por usucapião) em 1.ª instância, e depois vir alegar a titularidade de um direito pessoal de gozo (arrendamento) em 2.ª instância - até porque, lá está, ambos os direitos são naturalmente auto excludentes e inconciliáveis, e numa 3.ª instância vir alegar a titularidade de um outro direito (superficiário/confinante, outro qualquer).

JJ. A despeito desta axiologia processual, o Acórdão recorrido veio, não obstante, subverter tais normas, alterando a causa de pedir nos presentes autos, atribuindo ao Autor uma alegação de factos (causa de pedir) que este nunca suportou, e até rejeitou – e mister é reconhecer-se que nenhum dos casos taxativos previstos nos artigos 260.º e 265.º do CPC se verifica para autorização desta alteridade da causa de pedir.

KK. Aplicado ao caso concreto dos autos, logo se vislumbra que a decisão recorrida, ao atribuir ao Autor uma condição factual de arrendatário (é um estatuto jurídico também, mas alicerçado [antes] numa ontológica pressuposta factualidade que não apenas a parte não alegou, como refutou) incorreu em violação de lei – maxime, do disposto, inter alia, nos artigos 2.º, n.º 2, 3.º, n.ºs 1 e 3, 4.º, 5.º, n.ºs 1 e 3 (a contrario sensu), 260.º, 265.º, n.º 1, 411.º, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º, n.º 4 e 584.º. n.ºs 1 e 2, todos do CPC.

LL. Na verdade, está proibido ao tribunal, e por maioria de razão, ao tribunal de recurso (que reaprecia um julgamento já realizado, sem introdução de questões novas ou causas de pedir diversas das conhecidas e decididas) operar uma alteração na causa de pedir, substituindo-se à parte na substantivação da sua pretensão, mas pior no caso dos autos, não apenas a substituindo, mas contrariando-a.

MM. E aqui chegados, não se discutindo mais nestes autos a usucapião ao Autor (e com ela o seu putativo direito de propriedade), que jamais poderia ser reconhecido, naturalmente que lhe falece qualquer legitimidade substantiva, para discutir o direito de propriedade sobre o referido imóvel.

NN. E é bom não o olvidar: era ao Autor que competia (i) alegar e (ii) provar a titularidade do seu direito/interesse legítimo, que se mostraria incompatível com o direito justificado, assim merecendo o seu derrube (deste último) na ordem jurídica.

OO. Mister é inferir-se que não sendo o Autor proprietário do referido prédio (por usucapião, ou por qualquer outra via), e nem sequer arrendatário (porque resulta dos autos, na sua alegação, a contestação desse estatuto – pois que se assim fosse não poderia, automaticamente, tornar-se usucapiente),

PP. Tratando-se antes de um mero e precário ocupante, sem poder ou direto algum sobre tal imóvel, pelo que, e logicamente não dispõe de qualquer legitimidade para disputar/questionar/reivindicar o direito de propriedade sobre tal prédio (rectius, sobre parte de tal prédio).

QQ. Conforme vimos já, apenas a decisão recorrida atribui ex novo, e contrariando todas as regras do ónus de substanciação e de individualização da causa de pedir – corolário da autorresponsabilização das partes, ao Autor a factualidade inerente à de locatário – que ele rejeita por não o ser efetivamente – recusa-se pagar qualquer renda e o arrendamento já não subsiste mais – é pois, sobre esta petição de princípio, que a decisão recorrida discorre depois (espuriamente) sobre a legitimidade (material) daquele.

RR. Conforme se vem de alegar, a lei não atribui indistintamente a qualquer pessoa a titularidade do direito de ver impugnado o direito justificado, mas apenas a um círculo perfeitamente delimitado de destinatários.

SS. Desde logo, (i) é absolutamente necessário (e prévio) ser titular de um direito incompatível com o direito (propriedade) justificado, o que significa que (ii) não reconhecido tal direito na esfera jurídica do impugnante, falece a legitimidade/interesse material para obstar à produção de efeitos do negócio jurídico objeto de justificação.

TT. É, que, ao contrário ao agora decidido, o Autor não é titular de qualquer direito pessoal de gozo (arrendamento) sobre parte do prédio em causa (para mais, nem sequer é sobre todo o prédio objeto de discussão) – pois, até nunca o alegou (antes refutou).

UU. Com efeito, a nossa jurisprudência tem sido firme quanto ao conceito de interessado legítimo – a quem, irremovivelmente está consagrada a titularidade de um direito/interesse digno de proteção e incompatível – atente-se que não basta a titularidade de um qualquer interesse o mesmo direito, mas apenas de um que se mostre incompatível, o que não é de somenos importância.

VV. Ou seja, a jurisprudência é assertiva quanto à necessidade de se ser (prévio) titular de um direito conflituante ou incompatível com o direito de propriedade do justificante,

WW. E veja-se que nem sequer todos os titulares de direitos reais foram reconhecidos como interessados legítimos na impugnação do direito justificado - no aresto deste Alto Tribunal, prolatado em 11.11.2020, Processo n.º 33/08.9TBVNG.P1.S1, acima reproduzido, não foi reconhecido tal direito a um titular do direito real (servidão).

XX. Logo, a fortiori, jamais poderia ter sido reconhecida legitimidade ao Autor, que nenhum direito alegou e provou ser titular (dado que não é arrendatário, nem isso está provado nos autos), quanto mais de um direito incompatível.

YY. Neste sentido, ao presente recurso falha assim a própria legitimidade do Recorrente, aqui no sentido de não haver concreto interesse processual em agir, pois que mesmo que por absurdo o recurso fosse julgado procedente, nunca lhe poderia ser satisfeita qualquer pretensão sua, mormente, qualquer das que integram a sua causa de pedir.

ZZ. Logo, por maioria de razão, estando assente que o Autor não é titular de qualquer direito incompatível com os direitos de propriedade detidos pela aqui Ré, não pode a ordem jurídica consentir que um ilegítimo ocupante de um imóvel persista numa batalha judicial para determinação/regateio de quaisquer direitos sobre esse mesmo imóvel.

AAA. Com efeito, tal seria beneficiar o infrator, perpetuando um processo judicial injusto e descabido de razão e fundamento, como sabiamente enfatiza este Alto Tribunal: “À luz do princípio da proibição do tu quoque (que constitui uma emanação/vertente do instituto do abuso de direito) aquele que criou/constituiu uma situação ilícita não pode dela beneficiar ou tirar dividendos” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 09.03.2022, Processo n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1.

BBB. Ou seja, ocupando parte de um imóvel, que sabe não lhe pertencer, que nunca usucapiu, e recusando-se a pagar a correspondente contrapartida pelo seu uso, sabendo também que nunca aquele lhe foi cedido gratuitamente (em regime de comodato), o Autor colocou-se numa situação de total ilicitude e clandestinidade, que apenas a si diz respeito – diferente podia ter sido se tivesse alegado que era arrendatário,

CCC. Donde, a arguição da ilicitude do direito justificado sempre constitui um manifesto abuso do direito, que subsidiariamente aqui também se alega – cf. artigo 334.º do CC, questão que é igualmente de conhecimento oficioso, dado que nenhum poder/direito/interesse legítimo tem sobre (parte) do imóvel em causa.

DDD. No caso concreto que nos ocupa, e dado que o Autor apenas exerce detenção precária e sem título sobre uma parcela do imóvel (que não o imóvel todo) ainda é mais fulgurante a figura do abuso do direito.

EEE. I.e, a decisão recorrida parece antes defender um tempo histórico que se julgava definitivamente ultrapassado e vencido pela história, nomeadamente, em que a ocupação sem título e gratuita não era geradora de qualquer direito (locatício) para o ocupante, e em que o «direito da força» se sobrepunha à «força do direito», nos antípodas da consagração hodierna da doutrina do Estado de Direito Democrático (cf. artigo 2.º da CRP).

FFF. Ainda que fossem atropeladas (e tal atropelo fosse legal) todas as normas atrás citadas, e o Autor (através da nova sindicância criativamente protagonizada pelo tribunal de recurso) fosse de considerar como titular legítimo de um direito pessoal de gozo (arrendamento), sempre seria de rechaçar a sua pretensa legitimidade impugnatória.

GGG. Isto porque, e note-se que não se conhece nenhum aresto que em o impugnante legitimado fosse titular de um mero direito pessoal de gozo, mas sim porque lhe foi reconhecido um direito real (e mesmo no caso do aresto deste STJ citado, numa hipótese de direito real de servidão, foi recusada tal legitimidade),

HHH. E bem se compreende que assim seja porque na verdade, o direito do arrendatário não sai legalmente beliscado pela alteração do titular subjetivo do direito de propriedade, ou seja, não há a incompatibilidade ou a oposição conflituante requerida.

III. Tanto assim que, mesmo nos casos de venda executiva (singular) ou venda executiva (universal – insolvencial), os direitos do arrendatário, rectius, os emergentes do arrendamento, mantêm-se os mesmos, devendo o proprietário respeitar, segundo os ditames da lei, tal feixe de faculdades e direitos daquele.

JJJ. O arrendamento é totalmente oponível ao novo proprietário, pelo que se o Autor caso se tivesse apresentado como arrendatário perante a aqui Ré, sempre esta teria, e terá, que o respeitar enquanto locatário, estando vedado o «despejo» fora de todas as previsões legais que necessariamente o autorizam.

KKK. E hoje, sabe-se que a doutrina espelhada no aresto citado está inclusivamente ultrapassada por este Alto Tribunal, pois mesmo nos casos em que o arrendamento se constitua após a penhora ou hipoteca, prevalece sempre sobre o direito do proprietário adquirente, sendo-lhe diretamente oponível, daí que não sai prejudicada (legalmente, entenda-se) a posição do locatário.

LLL. Por outro lado, ainda, o Acórdão recorrido repousa e agasalha a sua argumentação pretensamente fundamentadora do veredito acolhido com base em dois arestos, mas, salvo o devido respeito, não cuidou de examinar a diferença de regimes e direitos em concurso: Acórdão da Relação do Porto, 24.11.2005, Processo n.º 0535685

- Note-se que a legitimidade do impugnante adveio do facto de ser titular do direito de propriedade do prédio confinante com o prédio justificado – limites e estremas dos prédios – era o objeto do processo – logo, o interessado era titular de um direito real (de propriedade)

Acórdão da Relação de Guimarães, 17.12.2015, Processo n.º 228/14.6T8MDL.G1 –

- Note-se que a legitimidade do impugnante adveio do facto de este ter visto serem erigidas construções pelo justificante que afetavam o acesso à sua propriedade –logo, o interessado era titular de um direito real (de propriedade).

MMM. Mas nenhum dos arestos aconchega, pois, a decisão plasmada no Acórdão recorrido, nem em nenhum deles está em briga, pelo impugnante, um pretenso direito pessoal de gozo, que não direito real, embora, conforme já se reiterou exasperadamente, nenhum direito foi reconhecido ao Autor, e essa era uma condição inultrapassável e inarredável para o sucesso da ação.

NNN. E porque destituído de fundamento legitimante, nenhum direito lhe estando reconhecido, muito menos que seja incompatível, “Improcedendo a impugnação da escritura de justificação com base na qual foi lavrado o registo, vale contra o impugnante a referida presunção que a lei concede no pressuposto da existência do direito impugnado” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 11.04.2019, Processo n.º 68/14.2TBPTS.L1.S1.

OOO. Não existe assim qualquer violação de lei ou inconstitucionalidade dos artigos 89.º e 101.º do Código do Notariado, por pretensa violação do disposto nos artigos 13.º e 20.º da CRP.

PPP. Por último, o Acórdão recorrido invoca a aplicação do disposto no artigo 291.º, n.º 2, do CC para denegar à aqui Ré quaisquer direitos de propriedade sobre o referido imóvel, por via da oponibilidade à anulação da escritura de justificação notarial, mas fá-lo também em vício de violação de lei dado que os pressupostos cumulativos exigidos pelo legislador não se mostram igualmente verificados”.

7. O Exmo. Senhor Desembargador proferiu despacho com o seguinte teor:

Ref. 47422012

Por estar em prazo, inexistir “dupla conforme” e o valor da causa exceder a alçada do tribunal, sendo a decisão impugnada final e desfavorável ao(à) recorrente em valor superior a metade de tal alçada, admite-se a revista, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – arts. 629.º, 638.º, 671.º, 675.º e 676.º do Cód. Proc. Civil.

Ref. 47449692

Por estar em prazo, inexistir “dupla conforme” e o valor da causa exceder a alçada do tribunal, sendo a decisão impugnada final e desfavorável ao(à) recorrente em valor superior a metade de tal alçada, admite-se a revista, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – arts. 629.º, 638.º, 671.º, 675.º e 676.º do Cód. Proc. Civil.

Subam os autos ao colendo Supremo Tribunal de Justiça”.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

Do recurso da ré Monopoly:

1.ª) o Tribunal recorrido podia ter alterado a decisão sobre a matéria de facto;

Do recurso do réu AA e da ré Monopoly:

2.ª) o autor tem legitimidade para impugnar a escritura de justificação notarial; e

Do recurso do réu AA:

3.ª) como decidiu o Tribunal recorrido, o autor deve ser condenado em litigância de má fé.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. Da justificação notarial

1- Por escritura pública de justificação notarial, lavrada em 30 de outubro de 2020, a fls. 114 a 117 do livro de escrituras diversas n.º 751-A do Cartório Notarial de ... (…), o réu AA declarou, para o que aqui importa:

Que é dono dos seguintes imóveis:

UM

URBANO: constituído por casa baixa com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de sessenta e um vírgula cinquenta metros quadrados e descoberta com a área de vinte e oito vírgula cinquenta metros quadrados, sito na Rua do ..., na freguesia de ... do Concelho de ....

Que, o referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2104 da freguesia de ...), com registo de aquisição a favor de II, no estado de solteiro, maior, feito através da inscrição de vinte e oito de outubro de mil novecentos e sessenta e cinco a que corresponde a apresentação número quatro e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Matriz sob o artigo 654, com o valor patrimonial e atribuído de valor de vinte e oito mil e sessenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos; e

DOIS

URBANO: constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da ..., na freguesia de ... (...) do concelho de ....

Que, o referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2891 da dita freguesia, com registo de aquisição a favor de II, já no estado de casado com JJ também conhecida por JJ, sob o regime da separação de bens, feito através da inscrição de três de outubro de mil novecentos e setenta e quatro a que corresponde a apresentação número onze e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 728, com o valor patrimonial e atribuído de valor de cento e dois mil e cinquenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos”.

“Que (...) ainda no estado de solteiro, maior, tomou posse dos referidos prédios, em quatro de abril de mil novecentos e setenta e sete, por compra meramente verbal, feita não ao titular inscrito II, que já tinha falecido, mas sim à sua mulher JJ, herdeira testamentária do usufruto, e ao seu irmão KK, herdeiro testamentário e legítimo da nua propriedade (...)”.

“Que o prédio atrás identificado sob o número 'DOIS' foi adquirido pelo preço global de cinquenta mil escudos, (atualmente duzentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos), aos ditos KK e JJ”.

“Que (...) não celebraram a escritura naquela data porque os vendedores achavam que não tinham a documentação legalizada de forma a realizar a escritura”.

“Que, entretanto, foi deixando passar o tempo e como a partir daquela data tomou posse dos referidos prédios, não mais se preocupou em realizar a escritura, sendo certo que desde aquela data nunca interrompeu a posse que vinha exercendo e que se manteve até aos dias de hoje”.

“Que passado algum tempo cada um dos vendedores, ausentou-se para parte incerta, nos ..., sem nunca mais terem dado notícias, desconhecendo qual o seu atual paradeiro, ou mesmo se já terão falecido e nesse caso quais os seus herdeiros se os houver”.

“Que, não obstante esse facto, que continuou a exercer a posse da mesma forma pacífica, pública e de boa-fé, por ignorar lesar direito alheio, com o conhecimento de toda a gente das referidas freguesias de ... e ... e sem oposição ou qualquer contestação de quem quer que seja, tendo nesses prédios vindo a realizar obras de limpeza e conservação, pelo que, esta posse em função do tempo decorrido até agora e da forma como tem sido exercida, já conduziu à aquisição do direito de propriedade por usucapião, facto que, agora pretende formalizar, estabelecendo assim um novo trato sucessivo”.

2- Na escritura referida no ponto 1 dos factos provados, declararam DD, EE e FF, como testemunhas, que, por reporte às declarações do réu AA, referiram: “Que, por serem inteiramente verdadeiras, confirmam as declarações prestadas sobre o identificado prédio”.

3- Em 3 de novembro de 2020, o extrato da escritura referida no ponto 1 dos factos provados foi publicada no jornal D..... ... ......, publicado em ....

4- Em 14 de janeiro de 2021, pela inscrição AP. 2289 de 2021/01/14 – “Aquisição”, concernente à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de ...), da Conservatória do Registo Predial de ..., foi inscrita a aquisição da propriedade a favor do réu AA, por usucapião.

2. Posição jurídica do autor

5- O prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 dos factos provados, apesar de não estar constituído em propriedade horizontal, tem, a partir da rua, duas portas, com os números de polícia 56 e 58, portas essas que correspondem a duas frações autónomas de facto.

6- O autor, na fração do prédio a que se acede pelo n.º 56 de polícia, reside há mais de 50 anos, pois essa fração foi tomada de arrendamento pela sua mãe, GG, a II, ainda que esta ali nunca tenha habitado, pois, logo que contratou o arrendamento, entregou o locado ao autor e sua esposa, LL, para dele fazerem a sua residência permanente com a sua família.

7- As correspondentes rendas mensais eram pagas por GG a II, até ao falecimento deste em 1976, e após essa data a MM, procurador do cônjuge sobrevivo daquele, JJ, também conhecida por JJ.

8- JJ, também conhecida por JJ, deu a fração de facto do prédio a que se acedia pelo n.º 58 de polícia, sucessivamente, a várias pessoas, sendo os últimos arrendatários desse espaço o senhor NN e a sua esposa.

9- A partir de agosto de 2003, MM, na sequência da morte de JJ, ocorrida em ... de julho de 2002, recusou-se a receber as rendas dos inquilinos do prédio aqui em causa.

10- Nessa sequência, entre 8 de agosto de 2003 e outubro de 2003, o autor passou a efetuar o depósito das rendas na Caixa Geral de Depósitos, à ordem dos herdeiros desconhecidos de II, sendo certo que o último movimento nessa conta foi em 21 de agosto de 2006, com o levantamento do valor ali existente.

11- Desde agosto de 2003, o autor e o inquilino da fração do prédio que tem acesso pelo n.º 58 de polícia, NN, passaram a pagar, dividindo entre si esse encargo, o IMI do imóvel aqui em causa, coisa que lhe foi sugerida pelo MM, com o fito de evitarem penhoras por parte da autoridade tributária, e isso mau grado os respetivos documentos de liquidação continuarem a ser dirigidos aos proprietários e endereçados ao n.º 58 da Rua da ....

12- Na fração a que se acede pelo n.º 56 de polícia da rua da ..., viu o autor nascer a maior parte dos seus treze filhos, OO, BB, LL, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX e YY.

13- Foi na fração referida no ponto 12 dos factos provados que os filhos do autor foram criados e educados, alguns permanecendo a ali residir mesmo após a sua maioridade;

14- O autor, com o consentimento da JJ e, depois, do procurador dela, MM, procedeu a todas as obras de conservação e manutenção da fração que ocupava no imóvel, a expensas próprias, tendo inclusive ampliado o imóvel com novas divisões que ele construiu.

15- É o autor quem, desde que ocupa a fração referida no ponto 12 dos factos provados, paga a energia elétrica, os serviços de telecomunicações e a água que consome, ainda que os contratos respetivos, à exceção do segundo, não sejam por si titulados.

16- O domicílio fiscal do autor sempre foi no n.º 56 da rua da ..., por isso as declarações de IRS do autor foram sempre dirigidas à referida morada, bem como os recibos da sua pensão e respetiva documentação conexa.

17- Foi sempre na morada referida no ponto 12 dos provados que o autor recebeu a demais correspondência a si dirigida, como, por exemplo, a correspondência relativa a seguros e à pensão de sobrevivência.

18- Foi na morada referida no ponto 12 dos factos provados que o autor aumentou a sua família, celebrou com esta os seus aniversários, o Natal, a Páscoa e outras ocasiões festivas, nela recebendo os seus amigos e convidados, e nela vindo a falecer a sua esposa, LL, no ano de 2010.

19- Ao longo do tempo durante o qual o autor se mantém a habitar na fração referida no ponto 12 dos factos provados, nem ele nem qualquer membro da sua família ali viu, falou ou contactou com o réu AA, pessoa que nunca frequentou aquele imóvel, nem aquele se lhes apresentou a arrogar qualquer direito sobre ele, coisa que também sucede com qualquer uma das testemunhas que intervieram na escritura referida no ponto 1 dos factos provados.

20- Correu termos no Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca ..., o processo administrativo n.º 160/19.7..., instaurado na sequência de comunicação feita pelo filho do inquilino da fração do prédio que tem acesso pelo n.º 58 de polícia da rua da ..., ZZ, após a morte do seu pai em 2018.

21- Em 26 de junho de 2019, o autor foi ouvido no âmbito do processo referido no ponto 20 dos factos provados, não se tendo arrogado proprietário do prédio aqui em causa, antes afirmando o seu interesse em lá continuar a viver.

22- No processo referido no ponto 20 dos factos provados, procurou-se averiguar se a herança aberta por óbito de II e JJ era passível de ser declarada vaga a favor do Estado, apurando-se:

a - que o prédio urbano sito na rua da ..., n.os 56 e 58 havia sido objeto de escritura de justificação notarial a favor do réu AA, com registo de aquisição a seu favor em 14 de janeiro de 2021, sendo que esses prédios, em 8 de fevereiro de 2021, vieram a ser vendidos à ré Monopoly; e

b - que no prédio em causa e na fração com acesso pelo n.º 56 de polícia, reside o autor.

23- No ano de 2018 e, bem assim, em outros anos, o réu AA candidatou-se e foi-lhe concedida a subvenção associada ao programa de Incentivo ao Arrendamento de Prédios ou de Frações Autónomas para Residência Permanente promovido pela Secretaria Regional da Solidariedade Social – Direção Regional da Habitação.

24- Foi o réu AA, já depois da escritura referida no ponto 1 dos factos provados, quem mandou cessar o fornecimento da água e da luz, ou seja, cancelou os respetivos contratos de fornecimento de eletricidade e água da casa e verificou que a porta de ligação entre a fração com entrada pelo n.º 56 e a restante casa tinha sido arrombada, coisa que participou à PSP.

25- O autor nunca morou na fação de facto que tem entrada pelo n.º 58 da Rua da ....

26- Em 4 de fevereiro de 2022, o autor recebeu uma notificação judicial avulsa, apresentada pela ré Monopoly, na qual, em resumo, alega que, em 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu AA o direito de propriedade plena sobre o prédio urbano constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da ..., n.º 58, na freguesia de ... (...) do concelho de ..., prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2891 da dita freguesia, mais alegando que, após tal aquisição, foi surpreendida com a presença do autor no referido prédio, coisa que a determinará a recorrer à via judicial, a fim de forçar a entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias contados da receção de tal notificação.

27- Até este momento, a ré Monopoly, não recorreu à via judicial nos termos em que o anunciou que faria.

3. Posição jurídica da ré Monopoly

28- Em 2 de fevereiro de 2021, a ré Monopoly, por escritura pública, declarou adquirir ao réu AA, declarando este vender, além do mais, o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto dos factos provados1.

29- Em 8 de fevereiro de 2021, pela inscrição AP. 1726 de 2021/02/08 – “Aquisição”, respeitante à descrição objeto da ficha n.º 2891/20190327, freguesia de ...), da Conservatória do Registo Predial de ..., foi inscrita a aquisição da propriedade a favor da ré Monopoly, por compra ao réu AA (ref. 42425096).

30- Após o facto referido no ponto 28 dos factos provados, numa visita ao imóvel acompanhada pela mediadora da compra, a ré Monopoly deparou-se com a presença do autor no seu interior, ocupando, concretamente, a fração de facto acessível pelo n.º 56 de polícia, sendo certo que, nessa altura e noutras visitas posteriores, o autor nunca invocou perante si qualquer direito real sobre o imóvel.

31- Nas alturas referidas no ponto 30 dos factos provados, o autor afirmava que tinha direito de permanecer na casa pois tinha contrato de arrendamento, que não apresentou, e que pagava rendas ou que, até há muito pouco tempo atrás, as pagava, embora nunca o tenho feito junto da ré Monopoly.

32- É a ré Monopoly quem dispõe, após o facto referido no ponto 28 dos factos provados, da titularidade dos contratos de fornecimento de água e de energia elétrica;

33- A ré Monopoly detém a chave da porta com o n.º 58 do prédio, nele entra quando quer e exerce os direitos inerentes à titularidade do direito de propriedade, sendo que foi também esta quem foi notificada, pelas autoridades, sobre um evento de vandalismo ocorrido com as janelas do primeiro piso.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

1. Da reivindicação

34) Pelo menos desde o ano de 1967, o autor é possuidor do prédio sito na Rua da ...n.º 56, posse essa de boa fé, pois, ao adquiri-la ignorava lesar o direito de outrem e sem que tivesse de recorrer a qualquer tipo de violência, exercendo-a, ao longo dos anos, à vista de toda a gente e de modo a ser conhecida por todos.

35) Há mais 54 anos, o autor exerce a posse do imóvel aqui em causa de forma seguida, ininterrupta, sempre à vista de toda a gente e com a convicção plena de ser ele o verdadeiro dono daquele prédio, que sempre tratou como seu, seguro de não violar qualquer direito alheio, pois ao longo destes anos nunca teve qualquer oposição de ninguém.

36) Todos os vizinhos, familiares e conhecidos do autor o têm por verdadeiro proprietário daquele imóvel e ninguém, colocou em dúvida ou contestou esta titularidade do autor até ao presente.

37) Os filhos do autor sempre consideraram a casa como sua, não se pondo, sequer, a possibilidade de existir alguém que pudesse reivindicar a sua propriedade, coisa que também ele fez, nomeadamente a partir de 2003.

38) Foi o autor quem celebrou contrato de fornecimento de energia elétrica em seu nome.

39) Na década de 1990 a 1999, o procurador da proprietária recusou-se a receber as rendas.

40) Pelo menos desde 1999, foi o autor a assumir os encargos fiscais do imóvel pagando a contribuição autárquica/Imposto municipal sobre imóveis, despesa que dividia com o senhor NN, ocupante do primeiro andar, bem como com AAA, que residia no imóvel sito à rua do ..., melhor identificado na escritura referida no ponto 1 dos factos provados, coisa que vai sucedendo até ao presente;

5. Da justificação notarial

41) Em 4 de abril de 1977, o réu AA, declarou verbalmente comprar o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 dos factos provados.

42) O réu AA comprou o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 dos factos provados, não ao titular inscrito II, que já tinha falecido, mas sim à sua mulher, JJ, herdeira testamentária do usufruto, e ao seu irmão, KK, herdeiro testamentário e legítimo da nua propriedade.

43) Em 4 de abril de 1977, o réu AA tomou posse do referido imóvel.

44) Entre os anos de 1970 e 1976, o réu AA conheceu o então proprietário do imóvel, II, assim como a sua mulher, JJ, tendo conhecimento de que era dono de alguns prédios em ....

45) Em 1977, depois da morte de II, em 1976, o réu AA falou com a viúva e herdeira, JJ, e propôs comprar a casa supramencionada, bem como a outra que consta da escritura de justificação, sita na rua do ..., também em ....

46) A aludida JJ, que falava, também, em nome de KK, residente nos ..., anuiu e acordou com o réu AA o valor de 50.000$00 pela sua venda do imóvel sito à rua da ... n.º 58.

47) O prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 dos factos provados foi, assim, adquirido pelo preço global de cinquenta mil escudos, aos ditos JJ e KK, valor que o réu AA entregou, em dinheiro, à aludida JJ, a qual, por seu turno, lhe entregou, mais tarde, um recibo em papel selado do aludido pagamento do preço.

48) Em 1977, não foi celebrada a escritura porque os vendedores não tinham a documentação legalizada de forma a realizar a escritura, tendo a referida JJ garantido ao réu AA que iam “tratar dos papeis” da casa.

49) A aludida JJ mudou-se, depois, para os ..., mas regressou algumas vezes a ..., alturas em que o réu AA lhe perguntava se a situação da casa já estava legalizada, ou seja, se a titularidade do prédio já estava devidamente averbado nas finanças e inscrito no registo, para ser marcada a outorga da escritura de compra e venda, dizendo-lhe a primeira, em resposta, que estava a tratar de atualizar a documentação necessária e que não se preocupasse, que estavam a tratar de tudo.

50) Entretanto, foi passando o tempo e o réu AA não mais se preocupou em realizar a escritura.

51) Passados anos, cada um dos vendedores ausentou-se para parte incerta, nos ..., sem nunca mais terem dado notícias, desconhecendo qual o seu atual paradeiro, ou mesmo se já terão falecido e nesse caso quais os seus herdeiros se os houver.

52) A partir da compra verbal referida no ponto 41 dos factos não provados, o réu AA tomou posse dos referidos prédios e, designadamente, no que aqui interessa, da casa sita na rua da ..., n.º 58, na freguesia de ..., em ..., passando, desde aí, a falar com os inquilinos da casa, na qualidade de proprietário, tanto da parte principal do imóvel, com entrada pelo n.º 58 como da parte com acesso pelo n.º 56, transmitindo-lhes que tinha comprado o imóvel e que apenas aguardava a formalização da compra através da escritura notarial de compra e venda.

53) Desde aquela data, o réu AA nunca interrompeu a posse que vinha exercendo e que manteve até que vendeu o imóvel à ré Monopoly, no dia 2 de fevereiro de 2021, através da escritura notarial de compra e venda, data em que se transmitiu a posse do imóvel do réu AA para a ré Monopoly.

54) O réu AA sempre acompanhou proximamente a situação da casa, na qualidade de proprietário, como era de conhecimento público; aliás, conhecia o Senhor NN, inquilino do imóvel, desde que este se mudou para aquela casa e Informou-o de que era o seu novo dono, por tê-la adquirido verbalmente por 50 contos e que estava a aguardar a formalização do negócio.

55) Neste sentido, o réu AA informou o arrendatário que, a conselho do seu solicitador, não receberia rendas até ter a casa registada no seu nome e poder, assim, emitir os correspondentes recibos. Por esse motivo, e como contrapartida do arrendamento, combinou com o inquilino, senhor NN, que este faria, a expensas suas, algumas obras de conservação no locado, que ficaram a pertencer a este.

56) sendo também ficado combinado que o Senhor NN procederia ao pagamento às finanças de algumas prestações de IMI, uma vez mais, como contrapartida pelo arrendamento e em face da falta do atraso na outorga da escritura de compra e venda.

57) Designadamente nos anos de 2007, 2010, 2011, 2018 e 2019, não obstante o combinado, o réu AA também pagou diversas prestações de IMI relativos ao prédio em causa.

58) Em 2017, o inquilino NN, que sabia que o réu AA tinha comprado verbalmente o imóvel e considerava-o como o legítimo proprietário (…), quando a sua mulher estava já doente e antes mesmo de se ter mudado para a casa do filho, entregou-lhe as chaves do imóvel, momento a partir do qual passou a entrar livremente na casa antes arrendada e agora devoluta.

59) Nos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, o réu AA também entrou diversas vezes nas divisões do prédio em que se encontrava o autor, designadamente, tendo sido acompanhado por este, que lhe mostrou o espaço.

60) Nas ocasiões referidas no ponto 59 dos factos não provados, o réu AA conversou com o autor sobre o espaço e suas condições de habitabilidade, referindo-lhe este que, apesar de não ter um contrato escrito, tinha direito a estar ali porque depositava a renda e era inquilino, chegando mesmo a dizer-lhe que não se importava sair e entregar-lhe o espaço mediante o pagamento de uma compensação, coisa que não aceitou.

61) Foi o autor quem informou o réu AA da intenção do inquilino do imóvel, Senhor NN, querer entregar àquele as chaves do imóvel.

62) Desde 1977, o réu AA exerce a posse do prédio aqui em causa de forma pacífica, pública e de boa-fé, por ignorar lesar direito alheio, com o conhecimento de toda a gente das freguesias de ... e ... e sem oposição ou qualquer contestação de quem quer que seja, tendo nesses prédios vindo a realizar obras de limpeza e conservação.

63) Nem o autor, nem outra pessoa opuseram-se ou reagiram de qualquer forma à posse do réu AA.

64) O autor transmitiu ao réu AA, numa das várias vezes em que falaram, que tinha ido para aquele local (n.º 56) porque um colega de trabalho lhe teria passado verbalmente a posição contratual de inquilino.

65) Quando a ré Monopoly se deslocou ao imóvel aqui em causa, logo após a outorga da escritura de compra e venda dele a seu favor, pode comprovar que todo o imóvel se encontrava, com exceção do tal corredor/divisão interior, a que não acedeu, em muito elevado estado de degradação e deterioração, e sobretudo num estado de completa inabitabilidade.

66) Em meados de 2021, o autor fez obras no prédio, designadamente erguendo um muro.

67) Aquando da outorga da escritura pública referida no ponto 28 dos factos provados, a ré Monopoly confiava que o transmitente era legítimo proprietário e possuidor dos prédios adquiridos, e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros2

O DIREITO

1.ª) Da alteração da decisão sobre a matéria de facto

Uma das questões suscitadas no recurso da ré Monopoly prende-se com a alteração da decisão sobre a matéria de facto, mais precisamente com a alteração do ponto 28 do elenco dos factos provados e o aditamento do ponto 67) ao elenco dos factos não provados.

Alega a ré Monopoly que o Tribunal não podia ter procedido a tal alteração por falta de fundamentação (“sem para tanto apresentar qualquer fundamentação lógica, coerente, sólida e intrínseca para o efeito, por respeito, naturalmente, ao exame critico de toda a prova produzida, antes enveredando e optando, sempre com o devido respeito, por um exercício meramente especulativo e auto conclusivo”) e que tal alteração “sempre determina a [ ] nulidade [do Acórdão], neste segmento” (cfr., genericamente, conclusões C. a P.).

Esclarece-se, desde já, que não é possível reconduzir esta alegação à arguição da nulidade do Acórdão por falta de fundamentação, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC. O que está em causa nesta última norma é a falta de especificação dos “fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Ora, é indiscutível que o Tribunal recorrido especificou tanto os fundamentos de facto como os fundamentos de direito em que apoia a sua decisão, não se verificando, portanto, a hipótese prevista na norma.

O que, na realidade, a ré manifesta através daquela alegação é a sua incompreensão quanto às razões que levaram o Tribunal recorrido a proceder à alteração e, em última análise, a sua discordância relativamente a ela. Esta é uma questão que respeita à decisão sobre a matéria de facto e, respeitando à decisão sobre a matéria de facto, só pode ser apreciada por este Supremo Tribunal em circunstâncias muito particulares.

Com efeito, dispõe-se no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, também invocado pela ré / recorrente, que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Quer dizer: o Supremo Tribunal de Justiça só poderia apreciar desta questão, relacionada com a alteração da decisão sobre a matéria de facto, se estivesse em causa a violação de alguma norma de Direito probatório material. Ora, tal condição não se verifica – e nem sequer foi invocada.

Restam os casos em que é alegada violação da lei processual atinente aos poderes da Relação no âmbito da decisão sobre a matéria de facto. Entre as normas relevantes para o efeito encontra-se o artigo 662.º do CPC, que atribui certos poderes-deveres à Relação. É consensualmente entendido que o Supremo Tribunal pode sindicar a observância pela Relação do disposto no artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso”3 (uso indevido, insuficiente ou excessivo) dos poderes conferidos por esta norma susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC4.

Ainda assim, deve advertir-se que isto não significa sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido ou controlar a sua decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, o que já implicaria interferir na valoração da prova que este Tribunal fez segundo o critério da livre e prudente convicção – tudo coisas que estão interditas ao Supremo Tribunal5.

É verdade que a ré / recorrente não invoca expressamente invocada a violação do artigo 662.º do CPC mas, com alguma flexibilidade, é possível entender-se que é aquilo que pretende que seja apreciado. Nem mesmo com este esforço, porém, se torna possível acolher a sua pretensão pois não só estava nos poderes do Tribunal recorrido proceder à alteração em causa como a alteração está clara e logicamente fundamentada.

A fundamentação do Acórdão recorrido neste ponto é a seguinte:

Ouvidos os registos áudio da prova produzida, não podemos deixar de alterar a decisão de facto impugnada. Se os depoimentos invocados e transcritos pelo apelante não permitem considerar provada a matéria pretendida pelo mesmo, em toda a sua extensão, também dos meios de prova invocados pelo tribunal a quo não se pode extrair a decisão vertida na sentença.

Resumidamente, o apelante fundamenta a sua impugnação nas regras da experiência e na circunstância de:

a) a testemunha DD (mediadora imobiliária) conhecer os réus desde data anterior à outorga da escritura de justificação;

b) a testemunha DD ter descrito “o primeiro réu AA como uma pessoa doente, fragilizado e vulnerável”;

c) terem decorrido quatro meses entre a escritura de justificação e a escritura de compra e venda outorgada pelos réus.

Estas circunstâncias são manifestamente insuficientes para que se possa dar (positivamente) como provado que a ré Monopoly teve intervenção – designadamente, como instigadora – na decisão do réu de outorgar a escritura de justificação; não são sequer suficientes para que se possa considerar provado que, antes da outorga do contrato de compra e venda, conhecia a falsidade do que foi declarado nessa escritura. Mas a prova invocada pelo tribunal a quo também é insuficiente para que se possa concluir, com segurança, pela verificação do facto oposto. Na verdade, nenhuma prova concludente e credível foi produzida sobre esta factualidade – recorde-se que apenas se discute a parte final do ponto 28 –, sendo que os únicos depoimentos com ela relacionados – declarações de parte e testemunho de DD – são, em geral, como bem assinalou o tribunal a quo, pouco firmes, coerentes e credíveis.

A este respeito, deteta-se uma aporia no silogismo apresentado pelo tribunal a quo. Ainda que se tenha por “transparente a razão da aquisição do prédio aqui em causa [pela ré Monopoly], para revenda”, e se tenha por seguro que “nada nos autos nos permit[e] concluir ou até indiciariamente sustentar que a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”, nem por isso se poderá dar por positivamente provado que a ré atuou “confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros”. Apenas se poderia dar por não provado exatamente o que o tribunal a quo referiu (embora empregando termos distintos): “a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – afirmação da existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário”.

Pelas razões expostas, não se encontra qualquer motivo para afirmar que a actuação do Tribunal recorrido tenha importando violação do artigo 662.º do CPC ou de qualquer outra norma cuja violação fosse possível apreciar.

Improcede, pois, o recurso da ré / recorrente neste ponto.

2.ª) Da legitimidade do autor para impugnar a escritura pública de justificação notarial

O Tribunal recorrido reconheceu ao autor, enquanto titular de um direito pessoal de gozo sobre o prédio, a qualidade de interessado na impugnação da justificação e, reconhecendo ao autor a qualidade de interessado na justificação, deu procedência parcial à acção.

Pode ler-se no Acórdão recorrido:

Conforme resulta do exposto no ponto anterior, na estrutura da ação de simples apreciação negativa cabe ao réu alegar – e, a seu tempo, provar – os factos constitutivos do direito de que se arroga (…).

Não se provando estes factos no processo, a ação deve proceder.

Ora, os factos afirmados pelo réu AA na escritura de justificação notarial foram objeto de pronúncia expressa pelo tribunal a quo, tendo sido dados por não provados. São eles os factos 41 – não provado – a 53 – não provado –, designadamente. Está, pois, a ação em condições de proceder, relativamente aos três primeiros pedidos formulados.

(…)

Ninguém negará que um arrendatário, se for demandado numa ação para cobrança da renda por alguém que afirma ter adquirido a propriedade dessa coisa – e, assim, a qualidade de senhorio –, tem interesse em defender-se impugnando o suposto direito do demandante, se entender que não corresponde ele à verdade. É este mesmo interesse que existe na impugnação da justificação pelo inquilino, quando entende que esta teve por base factos e declarações falsas. E maior interesse tem quando a sua detenção é contestada pelo putativo proprietário.

Também sobre a questão vertente, pode ver-se o Ac. do TRG de 17-12-2015 (228/14.6T8MDL.G1), no qual se decidiu ter legitimidade bastante para a impugnação quem, apesar de não ter ligação jurídica ao prédio, ficará prejudicado com a utilização que o justificante lhe dá. Conclui o TRG “que tem legitimidade para instaurar ação de impugnação da justificação (…) qualquer interessado que invoque ser titular de direito ou interesse incompatível ou objetivamente afetado pelo reconhecimento do direito justificado” – sublinhado nosso. No mesmo sentido, é dito no Ac. do TRP de 24-11-2005 (0535685) que “[o]s interessados, para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que possa ser afetado, posto em crise pelo facto justificado (…). Interessados não são só aqueles que têm um direito ou interesse incompatível com o do justificante, mas também os que podem ser afetados em qualquer interesse relevante com o ato de justificação” – sublinhado nosso.

Repisa-se, não é indiferente ao arrendatário (nem a quem se arroga essa qualidade) a justificação notarial por meio da qual um terceiro pretende o reconhecimento de um direito que o coloca como contraparte na relação locatícia, especialmente quando esse direito é invocado, pelo justificante ou por um subadquirente, na sustentação de uma pretensão de entrega formulada contra o arrendatário (ainda que sob a forma de uma notificação judicial avulsa). Exigir mais do que isto – exigindo-se a titularidade de um direito real – significaria, na prática, recusar qualquer autonomia dogmática à ação de impugnação de justificação notarial, passando ela a ser, na verdade, uma normal ação de reivindicação – cfr. os arts. 1311.º e 1315.º do Cód. Civil.

Em suma, transpondo para a questão vertente a lição de Pires de Lima e de Antunes Varela sobre o conceito de interessado na arguição da nulidade do negócio jurídico – exposta em Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, com a colaboração de Henrique Mesquita, p. 263, em anotação ao art. 286.º do Cód. Civil –, deve entender-se que é interessado na impugnação da justificação notarial o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afetada pelos efeitos jurídicos que decorrem do facto justificado.

4.2. Interesse do autor na impugnação da justificação notarial

Afigura-se-nos apodítico que o autor tem um efetivo interesse relevante na impugnação, estando este bem vincado nos factos provados. Por um lado, ele decorre logo do ponto 26 – fundamentação de facto –, como resulta evidente dos seus termos: “Em 4 de fevereiro de 2022, o autor recebeu uma notificação judicial avulsa, apresentada pela ré Monopoly, na qual, em resumo, alega que em 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu AA o direito de propriedade plena sobre o prédio urbano (…), mais alegando que após tal aquisição foi surpreendida com a presença do autor no referido prédio, coisa que a determinará a recorrer à via judicial a fim de forçar a entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias contados da receção de tal notificação”.

Já nesta ação, a Monopoly pede, em reconvenção, que seja o autor condenado “a restituir imediatamente à 2.ª ré o imóvel devoluto de pessoas e bens”, por não lhe assistir “qualquer legitimidade legal e/ou contratual para permanecer no referido imóvel” (art. 52.º da contestação respetiva), apenas ocupando o imóvel porque os arrendatários “lhe foram tolerando o uso/gozo daquela divisão térrea interior do prédio”. Esta posição é reiterada pela ré Monopoly nas suas contra-alegações de recurso, nas quais afirma que o autor não é arrendatário (art. 11.º), “[t]ratando-se antes de um mero e precário ocupante, sem poder ou direto algum sobre tal imóvel” (art. 12.º), isto é, de “um ilegítimo ocupante” (arts. 15.º e 19.º).

Por outro lado, os factos descritos nos pontos 6 – factos provados – a 14 – factos provados –, designadamente, permitem concluir que o autor reside em parte do prédio objeto da justificação há mais de 50 anos, tendo sido reconhecido como arrendatário de tal parte pelos seus sucessivos proprietários – dele recebendo estes as rendas –, sendo o direito real destes – que legitima a posse precária do autor – incompatível com o direito invocado pelo réu AA. O mesmo é dizer que, mantendo-se a escritura de justificação notarial, o autor verá contestado o seu direito (fundamental) de habitar parte do prédio objeto da escritura, por não lhe ser reconhecida pelo putativo subadquirente a qualidade de arrendatário.

Em suma, o direito que pode ser reconhecido ao autor – direito pessoal de gozo –, porque onera o imóvel, é contrário ao direito que, supostamente, decorre dos factos justificados – direito real –, por ser este, na tese posta pelos réus – máxime, pela ré que tem registada a seu favor a aquisição da propriedade –, totalmente desonerado. Tem, pois o autor, na tutela da sua detenção, interesse em questionar a suposta aquisição originária do direito que veio a ser transmitido à segunda ré”.

Em abono do rigor, e com vista a que se propiciem as condições para a melhor resolução do caso, impõe-se dividir a questão em duas: (i) a questão do interesse processual ou interesse em agir do autor (confundido, por vezes, com a legitimidade processual); e (ii) a questão da legitimidade substantiva do autor.

Acredita-se que foi a indistinção entre estas duas questões / estes dois planos que criou, pelo menos em parte, maiores dificuldades na gestão do presente caso e que explica também a incompreensão dos réus / recorrentes manifestada na revista.

(i) Do interesse processual ou do interesse em agir do autor / Do conhecimento da impugnação de justificação notarial

Como acontece com qualquer acção, a admissibilidade desta acção está subordinada ao preenchimento de determinados pressupostos – pressupostos processuais6.

O interesse processual, também conhecido como “interesse em agir”7, é um desses pressupostos, cuja exigência visa evitar que a máquina judiciária seja posta em marcha para tramitação de acções frívolas ou inúteis, dado que isso acarretaria uma sobrecarga absolutamente injustificada da actividade dos tribunais.

A falta de interesse processual constitui uma excepção dilatória (inominada8), que é susceptível de conhecimento oficioso (cfr. artigo 578.º do CPC) e conduz à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º do CPC), em concretização do brocardo “pas d’interêt pas d’action”.

Explica a doutrina especializada que o interesse processual consiste no “interesse em recorrer aos tribunais para tutela do interesse material”, um “interesse sério para o recurso a juízo9. Quer isto dizer que deve ser visível que a propositura da acção – e a possibilidade da sua procedência – proporciona uma utilidade prática ao autor.

Como adiante se explicará, a presente acção é uma acção declarativa mista – de apreciação negativa no que toca à impugnação de justificação notarial, de apreciação positiva no que toca à declaração do direito de propriedade do autor sobre o prédio e de condenação dos réus no reconhecimento deste direito.

Como se refere no artigo 89.º, n.º 1, do Código do Notariado, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, a justificação notarial consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição, e referindo as razões que o impossibilitam de comprovar pelos meios normais.

Por sua vez, a impugnação da justificação notarial é o meio através do qual o impugnante pode reagir contra a afirmação da titularidade do direito de propriedade por parte do justificante, tendo em vista, a final, a declaração de inexistência deste direito.

Não há dúvidas de que, como se diz, por exemplo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2010 (Proc. 33/08.9TBVNG.P1.S1), a impugnação da justificação notarial se qualifica como acção de simples apreciação negativa e que, em acções deste tipo, “é condição imprescindível ao conhecimento da acção que o impugnante alegue ser titular de um direito susceptível de ser afectado pela justificação notarial”.

Quer dizer: só pode impugnar a justificação notarial quem se arrogar a titularidade de um direito susceptível de ser afectado pelo direito declarado na justificação.

Mas esclarece-se no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.06.2017 (Proc. 5043/16.0T8STB.S1) que “a impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente, reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta”, que, em suma, “[o] interessado na impugnação da justificação notarial a que se alude no artigo 101.º do Código do Notariado pode ser quem invoque direito cujo exercício pode ser posto em causa se não for posto termo à situação de dúvida desencadeada pela inscrição no registo do direito reconhecido mediante justificação notarial”.

Quer dizer: pode impugnar a justificação notarial quem se arrogar a titularidade de qualquer direito, desde que seja um direito susceptível de ser afectado pelo direito declarado naquela justificação.

Voltando ao caso dos autos e lendo a petição inicial (cfr., por todos, artigo 72.º10) e a réplica (cfr., por todos, artigo 911), verifica-se que o autor, interessado na impugnação, alegou os factos que justificam o seu interesse na impugnação enquanto factos que fundamentam a sua pretensão à declaração negativa (os fundamentos ou as causas do seu direito), dos quais se destaca o de que é ele (e não os réus) quem tem o direito de propriedade, adquirido por usucapião, sobre o prédio.

O direito de propriedade é, evidentemente, um direito susceptível de ser afectado pelo direito declarado na justificação.

Em face disto, não há dúvida de que o autor tem interesse em agir, que a impugnação tem para ele, que se arroga proprietário do prédio, uma utilidade óbvia.

Não deve confundir-se a questão acabada de resolver com a questão de saber se é o autor (e não os réus) quem tem o direito de propriedade sobre o prédio, questão que se localiza já no plano do mérito.

Num raciocínio determinado pelas particularidades do caso apreciado, diz-se aí:

33. Processualmente a autora deve considerar-se parte legítima considerando que ela se apresenta como interessada em impugnar a justificação notarial tendo em vista o cancelamento do registo do imóvel de que a ré beneficia; o interesse em demandar que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação residirá na circunstância de, mediante a impugnação da justificação notarial, a ré deixar de beneficiar da presunção de propriedade que o registo lhe confere, abrindo-se à autora o acesso a fundos comunitários destinados a custearas obras a realizar no imóvel.

34. No entanto sob o ponto de vista da legitimidade substancial pode, como se disse, questionar-se a possibilidade de o impugnante que é titular de direito que não colide diretamente com o direito registado impugnar a justificação notarial. (…); ora quando se admite a impugnação lança-se sobre o justificante o ónus de provar os factos constitutivos do direito a que se arroga in casu o direito de propriedade”.

Ver-se-á de seguida.

ii) Da (i)legitimidade substantiva do autor / Da (im)procedência da impugnação da justificação notarial

A legitimidade substantiva é um fundamento da procedência da acção, que é apreciado de acordo com o direito substantivo: existe legitimidade substantiva quando o autor é titular do direito que alega.

Como se disse, na presente acção, o autor pede que seja declarada a ineficácia da justificação notarial (com as devidas consequências registais) e ainda que ele próprio seja declarado proprietário do prédio e os réus condenados a reconhecer esta sua qualidade - tudo porque se arroga o direito de propriedade do prédio.

A lei não impõe que o impugnante que se arroga um direito de propriedade deduza pedido para que se declare o direito de propriedade a seu favor, mas a verdade é que o autor decidiu fazê-lo.

A presente acção apresenta-se, assim, como uma acção declarativa mista, composta de pedidos característicos da acção de apreciação negativa [o pedido formulado na al. a) e ainda os consequenciais formulados nas als. b) e c)], da acção de apreciação positiva [o pedido formulado na al. d)] e ainda da acção de condenação em reconhecimento de direito [o pedido formulado na al. e)].

Não obstante a sua distinta tipologia, todos os pedidos estão, visivelmente, relacionados entre si, existindo uma causa de pedir unitária ou comum – a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio por parte do autor.

Como se sabe, numa definição simplificada, a causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde deriva a pretensão do autor.

Explica Lebre de Freitas que é na petição inicial que o autor deve formular o pedido [cfr. artigo 552.º, n.º 1, al. e), do CPC], isto é, solicitar ao tribunal a providência processual quer julgue adequada para tutela da situação jurídica ou do interesse que afirma materialmente protegido, e deve indicar a causa de pedir [cfr. artigos 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 4, do CPC], isto é, identificar o(s) facto(s) constitutivo(s) da situação jurídica material que o autor quer fazer valer ou, numa fórmula mais genérica, o(s) facto(s) concreto(s) que terão constituído o efeito pretendido12.

A circunstância, que nunca foi posta em causa (nem tinha de ser), de que a petição inicial apresentada nos autos não é inepta tem como pressuposto que a acção (compreendidos não só o pedido de ineficácia da justificação notarial mas todos os pedidos do autor) tem uma única causa de pedir e que esta está relacionada com a pretensa aquisição do direito de propriedade sobre o prédio pelo autor.

É esta também, como se disse, a única causa de pedir que o autor invoca na petição inicial e na réplica. Diga-se, em abono da verdade, que da réplica resulta mesmo que o autor nega ser arrendatário do prédio (cfr., em especial, artigos 6, 7 e 913).

Reconhece, com certeza, o autor que não poderia valer-se simultaneamente do direito (real) de propriedade e de um direito de natureza obrigacional sobre o prédio, sob pena de tu quoque. Com efeito, não é possível que estes dois direitos coexistam na titularidade de um mesmo sujeito, sendo que a titularidade de um exclui necessariamente a do outro.

Chegados aqui, bem se compreende que o Tribunal não pudesse declarar a ineficácia da justificação notarial com fundamento na titularidade pelo autor de um outro direito (obrigacional) sobre o prédio, direito este que não é susceptível de coexistir com o direito (real) por ele invocado.

Antes de mais, porque o principio da substanciação impede que o Tribunal proceda, ele próprio, à alteração da causa de pedir.

A lei consagra, no artigo 581.º, n.º 4, do CPC, a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido definido através de certa causa de pedir.

Sobre esta última norma observa Abrantes Geraldes que “o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se, após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador (…)14.

De uma forma ainda mais incisiva, afirma-se no Acórdão deste Supremo Tribunal de 18.09.2018 (Proc. 21852/15.4T8PRT.S1) que “a orientação corrente vai no sentido de que o artigo 581.º, n.º 4, do CPC acolhe a doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.

Disto resulta que, uma vez invocada, na petição inicial, certa causa de pedir e sendo esta coerente com os pedidos deduzidos, ela pode ainda ser alterada (reduzida, ampliada, substituída) pelo autor mas apenas nas condições previstas na lei (cfr. artigos 264.º e 265.º do CPC)] e em caso algum ex officio pelo tribunal.

Mas a alteração da causa de pedir é ainda inadmissível por uma outra razão: a de que, independentemente de quem fosse o seu autor, a alteração contenderia com a compatibilidade entre os pedidos e a unidade da causa de pedir, como se tentou demonstrar atrás.

Chegados aqui, não resta senão concluir que, não obstante ter-se reconhecido ao autor interesse em impugnar a justificação notarial, não tendo o autor conseguido demonstrar que é titular do direito que invocou, a impugnação não pode proceder, devendo os réus ser absolvidos do pedido.

Nem se argumente que, numa acção de apreciação negativa como esta, em que aquilo que se pretende obter é a declaração de que o demandado não é titular do direito referido na escritura, é ao réu e apenas ao réu que cabe o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito.

A imposição ao réu daquela actividade probatória é indiscutível15. Mas isso não dispensa o autor de desenvolver também alguma actividade para evidenciar a titularidade do direito que alega enquanto fundamento da sua pretensão à declaração negativa do direito do réu.

A averiguação da titularidade do direito invocado pelo autor não é coisa que se possa levar a cabo antes de o Tribunal apreciar o mérito. Como se sabe, os pressupostos processuais são objecto de aferição numa fase inicial e em função daquilo que é alegado pelas partes e tal como alegado pelas partes.

Mas a verdade é que em algum momento aquela averiguação tem de ter lugar. No caso contrário, qualquer pessoa que meramente invocasse a titularidade de um direito susceptível, em abstracto, de ser afectado pelo direito declarado na justificação teria a possibilidade de obrigar, em concreto, o justificante a provar o seu direito e, se este não conseguisse fazê-lo por algum motivo, a destruir sem real motivo a situação jurídica criada.

Tudo isto aponta para a necessidade de, como se disse, o autor desenvolver (também) alguma actividade, dirigida a demonstrar que é realmente titular do direito que invoca. Se não o fizer, deverá ficar inviabilizada a procedência da acção, independentemente da actividade probatória do réu (do seu sucesso ou insucesso).

Parece ser isto o que se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3.07.2003 (Proc. 03B2066), em que se aprecia uma acção, também ela mista, de impugnação de justificação notarial e de declaração do direito a favor do autor.

Mas o autor não se limitou a impugnar a escritura, a suscitar uma declaração negatória do direito a que os réus se arrogam.

Com efeito, embora mantendo-se no âmbito da simples apreciação (nunca tendo passado à espécie condenatória, ao contrário do que os recorrentes alegam), o autor pede, também, que se declare como dele o mesmo direito.

Parte dos factos que fundamentam este pedido de apreciação positiva (…) sempre o autor teria de os alegar e provar, enquanto fundamentos do pedido de apreciação ou declaração negativa do direito a que os réus se arrogam. São factos que fundamentam a sua pretensão à declaração negativa (…).

Aquela prova a cargo do autor não briga com a regra especial de distribuição do ónus da prova, consagrada, no artº. 343º, 1, CC, precisamente para as acções de apreciação negativa (nestas acções, diz aquela norma, "...compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga").

Ao autor cabia demonstrar aqueles fundamentos do pedido (as causas e razões do seu direito) e negar, antecipadamente, as declarações contrárias do réu; a este cabe alegar e demonstrar, por seu lado, os fundamentos do direito que contrapõe ao do autor”.

Enfim, pelos motivos indicados, a impugnação não pode proceder.

3.ª) Da condenação do réu AA em litigância de má fé

O Tribunal recorrido condenou o réu / recorrente AA, como litigante de má-fé, ao abrigo do artigo 542.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC, numa multa processual de 4 UC.

Fundamentou a sua decisão assim:

O réu AA violou as normas plasmadas no art. 542.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil, pois não podia ignorar que os factos que afirmou na escritura de justificação notarial, e que reiterou na contestação a esta ação de simples apreciação negativa – quanto ao primeiro pedido e aos dois apendiculares que se lhe seguem –, são falsos, não tendo nenhuma razão na sua pretensão de aquisição do prédio em litígio por usucapião, por ser manifesta, inequívoca e totalmente infundada. Tal como manipulou os serviços de notariado, o réu ensaiou manipular o tribunal e, assim, branquear o seu comportamento com uma sentença judicial favorável, recorrendo, para o efeito, à mentira sobre a ocorrência de factos essenciais.

Embora bastante frugal na inclusão da atividade processual do réu AA no leque de factos provados – pois da motivação da convicção resulta que poderia ter sido dada por provada toda a versão contrária à apresentada pelo réu, e não apenas por não provada a versão que lhe seria favorável –, o tribunal a quo considerou verificadas condutas reveladoras da litigância de má-fé deste demandado. Mais precisamente, resultaram provados factos incompatíveis com a narrativa posta por este réu na sua contestação.

São inconciliáveis entre si e reveladores da falta deste réu à verdade o facto 19 – factos provados – e os factos descrito nos arts. 25.º a 27.º, 43.º e 44.º da contestação. No art. 3.º da contestação, o réu afirma serem falsos os factos descritos na petição inicial nos arts. 15.º e 16.º – factos provados no ponto 6 –, no art. 18.º – facto provado no ponto 7 –, no art. 19.º – facto provado no ponto 8 –, no art. 27.º – facto provado no ponto 13 –, no art. 30.º – facto provado no ponto 14 – e nos arts. 32.º e 33.º – factos provados no ponto 16 –, quando, como resulta da decisão sobre a matéria de facto, eles são verdadeiros. Os factos descritos nestes pontos, no que respeita ao comportamento de GG e do seu procurador, conflituam, ainda, com a afirmação do réu de ser pública e não contestada a sua putativa atuação como proprietário – cfr. o art. 49.º da contestação. Por serem pessoais os factos em questão, o réu não podia ignorar – impossibilidade de facto – a falta de adesão à realidade da narrativa por si apresentada, o que revela o seu dolo”.

O réu / recorrente AA insurge-se contra esta decisão, sustentando, entre outras coisas, que a circunstância de ter alegado factos que depois não conseguiu provar não é suficiente para que a sua conduta se qualifique como litigância de má fé (cfr. conclusões 26 a 44).

Aprecie-se.

A litigância de má fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, reprimir a “má conduta processual”16.

Mais precisamente, dispõe-se no artigo 542.º, n.º 2, do CPC:

Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

A conduta sancionada consubstancia-se, então, na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorado, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A verdade é que, conforme amplamente ilustrado pelo Tribunal recorrido, o comportamento do réu / recorrente se apresenta como uma conduta especialmente reprovável, tanto no plano objectivo, como no plano subjectivo, envolvendo, pelo menos, negligência grave.

No mínimo, deve pôr-se a tónica no elemento “não podia ignorar”. Sendo a maioria dos factos (factos que vieram a ser dados como provados) atinentes à sua pessoa e por isso não podendo ignorá-los, ainda assim o réu / recorrente não se coibiu da sua refutação ou na alegação de factos que directamente os contrariavam.

Um exemplo paradigmático é a alegação do seguinte facto na contestação:

49. Assim, desde 1977, o 1.º R continuou a exercer a posse da mesma forma pacífica, pública e de boa-fé, por ignorar lesar direito alheio, com o conhecimento de toda a gente das freguesias de ... e ... e sem oposição ou qualquer contestação de quem quer que seja, tendo nesses prédios vindo a realizar obras de limpeza e conservação17

Como se veio depois a compreender, apesar do tom categórico destas afirmações, a posse do prédio pelo réu / recorrente não era conhecida sequer do autor e da sua família, que era quem habitava no prédio.

Veja-se na factualidade provada:

19- Ao longo do tempo durante o qual o autor se mantém a habitar na fração referida no ponto 12 dos factos provados, nem ele nem qualquer membro da sua família ali viu, falou ou contactou com o réu / recorrente, pessoa que nunca frequentou aquele imóvel, nem aquele se lhes apresentou a arrogar qualquer direito sobre ele, coisa que também sucede com qualquer uma das testemunhas que intervieram na escritura referida no ponto 1 dos factos provados.

É difícil conceber que o réu / recorrente não soubesse de tudo isto, o que significa que persistiu numa pretensão que sabia ser destituída de fundamento e que faltou propositadamente à verdade, sempre com o intuito de ser favorecido ou, pelo menos, de não ser desfavorecido na causa.

Assim, sem necessidade de mais ilustrações, conclui-se que o réu / recorrente adoptou os comportamentos previstos nas als. a) e b) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC.

Este é um comportamento que a ordem jurídica não tolera e por isso não pode deixar de ser objecto de consequências.

Relativamente ao montante da multa, tendo em conta os critérios de ponderação aplicáveis, designadamente a gravidade das consequência e o grau de culpa do réu / recorrente, entende-se que ela é não só aceitável como também adequada.


*

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

I. Conceder provimento ao recurso interposto pela ré Monopoly, Lda., e provimento parcial ao recurso interposto pelo réu AA, revogando-se o Acórdão recorrido nas als. a), b) e c) do seu dispositivo e repristinando-se a sentença no primeiro capítulo do seu dispositivo, nos seguintes termos:

- Absolvem-se os réus AA e Monopoly, Lda. de todos os pedidos contra eles formulados pelo autor BB; e

II. Negar provimento parcial ao recurso interposto pelo réu AA, confirmando-se o Acórdão recorrido na decisão de condenação do réu AA, como litigante de má-fé, na multa processual de 4 UC (quatro unidades de conta).


*

Custas pelo autor BB e pelo réu AA na proporção do respectivo decaimento.

*

Lisboa, 18 de Abril de 2024

Catarina Serra (relatora)

Isabel Salgado

Paula Leal de Carvalho

______




1. Alterado pelo Tribunal recorrido.

2. Aditado pelo Tribunal recorrido.

3. Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015 (Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1).

4. Sobre isto cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019 (Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2).

5. Cfr., neste sentido, entre tantos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009 (Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1).

6. Sobre os pressupostos processuais cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL, 2022, pp. 51 e s.

7. Explicam Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 179) a expressão “interesse em agir” é “importada” da doutrina italiana, usando, por seu turno, a doutrina alemã, com maior propriedade, a expressão “necessidade de tutela judiciária” (Rechtsschutzbedürfnis).

8. Uma vez que a lei não lhe faz referência directa.

9. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 583.

10. Onde se diz, em conclusão do articulado: “Atendendo ao hiato temporal decorrido, isto é, desde 1967 até ao presente, cabe ao A. o direito de propriedade sobre o prédio descrito em 2, por via da aquisição originária através do instituto da usucapião”.

11. Diz-se aí: “9. Do mesmo modo, também carece de qualquer sentido e veracidade o alegado em 51.º pela 2R., pois o A. nunca pagou à 2R, nem tinha que pagar, qualquer quantia a título de renda, não só porque entende ser ele o legítimo proprietário do imóvel, e, por conseguinte, não paga qualquer contrapartida pela uso do mesmo”.

12. Cfr. Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), pp. 37 e s., e Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, Coimbra, Gestlegal, 2017 (4.ª edição), pp. 66 e s. Cfr. ainda, no mesmo sentido, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), pp. 373-374.

13. Diz-se aí: “6. Quanto à alegada postura do A., é verdade que quando o A., no início da sua vida adulta, foi residir para a referida morada a sua posse era titulada por um contrato de arrendamento – que veio a cessar os seus efeitos através da não aceitação do pagamento de renda por quem de direito era titular do direito de propriedade. 7. Porém, falta a 2R à verdade quando afirma que o A se assumiu perante ela (ou seus representantes) como arrendatário (…). 9. Do mesmo modo, também carece de qualquer sentido e veracidade o alegado em 51.º pela 2R., pois o A. nunca pagou à 2R, nem tinha que pagar, qualquer quantia a título de renda, não só porque entende ser ele o legítimo proprietário do imóvel, e, por conseguinte, não paga qualquer contrapartida pela uso do mesmo”.

14. Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1998 (2.ª edição), pp. 192-193

15. Cfr., por todos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.2023 (Proc. 583/19.1T8FAR.E1.S1). Diz-se aí: “A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, em que por inversão do regime regra do ónus da prova, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art. 343.º, n.º 1, do CC)”.

16. Cfr. António Menezes Cordeiro, Litigância de má fé, abuso do direito de ação e culpa “in agendo”, Coimbra, Almedina, 2014 (3.ª edição), p. 45.

17. Sublinhados nossos.