Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2592
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: RECURSO SUBORDINADO
ADMISSIBILIDADE
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO-CAUÇÃO
OBJECTO NEGOCIAL
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ200310050025922
Data do Acordão: 10/05/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7586/01
Data: 10/18/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. O recurso subordinado supõe a prévia interposição, pela parte contrária do recorrente, de recurso independente, não sendo de admitir se o recurso independente for interposto por um comparte.

2. Se, tendo ficado parcialmente vencidos dois réus, um deles recorre da decisão, ao outro (que não interpôs recurso independente) só fica aberta a via do recurso subordinado se o autor (também parcialmente vencido) tiver interposto recurso da parte da decisão que lhe foi desfavorável.

3. Não é nulo, por violação do disposto no art. 2º do Dec-lei 171/79, de 6 de Junho, o contrato de locação financeira, tendo por objecto mediato um veículo automóvel, celebrado entre uma sociedade de locação financeira mobiliária e uma sociedade que se dedica ao aluguer de longa duração de veículos automóveis, já que o dito veículo, porque destinado ao desenvolvimento desta actividade de aluguer integrada no escopo social, constitui para esta última um bem de equipamento.

4. O seguro-caução, negócio jurídico formal, tem de constar de uma apólice, sendo pela interpretação das cláusulas desta, à luz dos princípios acolhidos nos arts. 236º e 238º do CC, que se determina o objecto daquele contrato.

5. O contrato de seguro-caução celebrado entre a B - Comércio de Automóveis, SA e a Companhia de Seguros C, SA garante o pagamento das rendas relativas ao contrato de locação financeira celebrado entre a A - Companhia Portuguesa de Locação Financeira Mobiliária, SA e a B, e não o pagamento das rendas referentes ao contrato de aluguer de longa duração celebrado entre a B e uma cliente desta.

6. Não obstante celebrado apenas entre a B e a C, o contrato de seguro-caução criou duas relações jurídicas: uma, entre o tomador (B) e a seguradora, e outra entre a seguradora e o terceiro beneficiário (a A), sendo a primeira uma normal relação contratual, da qual emergem direitos e obrigações para ambas as partes, e a segunda uma relação que se concretiza num direito de crédito do beneficiário em relação à seguradora e na correspectiva obrigação desta.

7. Mas, porque esta segunda relação é originada e modelada pela primeira - pois a pretensão do beneficiário radica no contrato celebrado entre o tomador e a seguradora - não pode o beneficiário ter mais direitos do que os que resultam de tal contrato, sendo-lhe, por isso, oponíveis por parte da seguradora todos os meios de defesa derivados do contrato de seguro-caução (art.449º do CC), e, entre eles, os efeitos de falta de participação do sinistro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

A - Companhia Portuguesa de Locação Financeira Mobiliária, SA intentou contra B - Comércio de Automóveis, SA e Companhia de Seguros C, SA a presente acção, ora a seguir sob a forma de processo ordinário, pedindo que a primeira ré fosse condenada a devolver-lhe o equipamento que ela, autora, lhe havia locado - um veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno 45 S, de matrícula AI - e que ambas as demandadas fossem condenadas, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de Esc. 964.236$00, acrescida de juros à taxa de desconto do Banco de Portugal, vencidos e vincendos até integral pagamento, juros que, no que respeita aos vencidos e com referência a 20.02.97, liquidou em 178.646$00.
Alegou, para tanto, em síntese, ter celebrado um contrato de locação financeira com a ré B, tendo por objecto o aludido veículo automóvel, e que esta não cumpriu as obrigações decorrentes desse contrato, nomeadamente as respeitantes ao pagamento das rendas, não lhe tendo pago as seis rendas trimestralmente vencidas e facturadas de 16.04.94 a 16.07.95, no montante total de 964.236$00, sendo as três primeiras no valor unitário de 160.016$00, e cada uma das três restantes no valor de 161.396$00; e também não lhe devolveu o equipamento locado.
Por outro lado, a ré C, através de contrato de seguro que celebrou com a B, segurou o risco de esta ré não pagar as suas dívidas para com a autora, provenientes do dito contrato de locação financeira, sendo acordado entre ambas as rés que tal garantia seria paga à primeira solicitação da autora, sem qualquer formalidade, e no prazo de 45 dias após a interpelação; mas, tendo a autora dado conhecimento à primeira do incumprimento da segunda, não efectuou o pagamento das rendas em dívida.

A ré B, em contestação, alegou, em súmula, que não é ela a responsável pelo pagamento das rendas em dívida, já que, por força do contrato de seguro-caução que celebrou com a C, impende tal responsabilidade sobre esta seguradora.
O objecto do aludido contrato consiste unicamente no pagamento da totalidade das rendas pela C em caso de incumprimento por parte dela, B.

Por seu turno a C, na contestação apresentada, arguiu a nulidade do contrato de locação financeira celebrado entre a autora e a primeira ré, e alegou que o contrato de seguro-caução que celebrou com a B se destinou a garantir, não as obrigações desta ré para com a autora, mas antes o pagamento das prestações a pagar à B pelos locatários dos contratos de aluguer de longa duração (ALD) celebrados entre esta empresa e os seus clientes.
Deduziu ainda a C reconvenção, pedindo que, a reconhecer-se que o seguro-caução abrange as obrigações assumidas pela B para com a autora, fosse esta condenada a pagar-lhe a indemnização - a liquidar em execução de sentença - correspondente aos prejuízos causados pelo incumprimento das obrigações decorrentes dos artigos 10º e 14º das Condições Gerais da Apólice, e equivalente, no mínimo, ao montante pelo qual viesse a responder por força da apólice.

Replicou a autora, sustentando a improcedência da excepção de nulidade do contrato, arguida pela C, e a inadmissibilidade e improcedência do pedido reconvencional.

Seguindo os autos a sua normal tramitação, veio a ser realizado o julgamento, com sequente prolação da sentença, na qual foi a acção julgada totalmente procedente e improcedente a reconvenção, sendo as rés condenadas nos pedidos acima indicados.

Da sentença apelaram ambas as rés.
A Relação de Lisboa, porém, julgou improcedentes ambas as apelações, com o esclarecimento de que "as taxas de juro são as taxas de desconto do Banco de Portugal, como foi pedido pela autora."

Recorrem agora de revista - sendo que o recurso da B foi interposto e admitido como recurso subordinado.

Subidos os autos a este Supremo Tribunal, proferiu o relator despacho questionando a admissibilidade deste recurso subordinado.
Foram, por isso, notificadas as partes sobre esta questão, sendo certo que todas elas se mantiveram silentes.

Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
2.

Perfila-se, como questão prévia, a da admissibilidade do recurso interposto pela ré B.
Recordemos a situação de facto a ter em conta, já aludida no despacho do relator.
O acórdão da Relação foi notificado às partes por cartas registadas expedidas em 19.10.01.
A ré C interpôs recurso de revista em 29.10.01, que foi admitido por despacho do Ex.mo Desembargador relator.
O despacho de recebimento foi notificado por cartas registadas expedidas em 03.12.01.
Em 13.02.02 a ré B apresentou o seu requerimento de fls. 576, do teor seguinte:
B (...), devidamente notificada do douto despacho que admitiu o recurso de revista interposto pela ré C, do douto acórdão de 01.10.18, vem, ao abrigo do disposto nos n.os 1 e 2 do art. 682º do CPC, interpor recurso subordinado para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso foi admitido por despacho do Ex.mo Desembargador relator.

Temos, porém, por certo que - tal como foi evidenciado no despacho do relator neste Supremo Tribunal - não podia a B, no caso em apreço, interpor recurso subordinado do acórdão da Relação.
Como assinala o Prof. Alberto dos Reis (1) , a decisão proferida pelo tribunal sobre um qualquer caso concreto pode ser desfavorável a mais do que um litigante. E pode sê-lo apenas em relação a um dos lados dos sujeitos da relação processual, falando-se então de decaimento paralelo (ficam vencidos vários autores ou vários réus), ou relativamente a ambos os lados, caso em que se fala de decaimento recíproco ou inverso (venceram e foram vencidos, em parte, o autor e o réu).
Quer num caso quer noutro pode suceder que um dos vencidos reaja, pela via recursiva, contra a decisão. E coloca-se então a questão de saber qual o efeito do recurso em relação ao(s) não recorrente(s).
A resposta encontra-se, para o primeiro caso, no art. 683º do CPC, e para o caso de decaimento recíproco, no art. 682º.
De acordo com este normativo, o recurso circunscreve-se à parte da decisão que é desfavorável ao recorrente. Na verdade, cada uma das partes terá de recorrer, se quiser obter a reforma da decisão na parte que lhe é desfavorável, daí se seguindo que o recurso não pode implicar a reforma da decisão naquilo em que ficou vencida a parte não recorrente.
Pode, porém suceder, ainda neste caso de decaimento recíproco, que um dos (parcialmente) vencidos esteja disposto a conformar-se com a decisão, caso a parte contrária não recorra. Poderá então, confrontado com o recurso do seu adversário, interpor recurso subordinado.
A parte contra quem é dirigido o recurso principal, em vez de se limitar à defesa, contraditando a argumentação desenvolvida pelo recorrente, a fim de o recurso ser julgado improcedente, pode, por sua vez, interpor recurso quanto á parte da decisão que lhe foi desfavorável, para o tribunal superior reapreciar, na sua totalidade, a decisão impugnada (2) .
Supõe, assim, o recurso subordinado a prévia interposição de recurso (independente) pela parte contrária do recorrente, não sendo de admitir no caso de o recurso independente ter sido interposto por um comparte.
Como ficou dito, para os casos de sucumbência paralela rege o art. 683º, onde não está contemplada a hipótese de recurso subordinado.
Assim, à B só ficaria aberta a via do recurso subordinado se a autora tivesse ficado parcialmente vencida e tivesse recorrido da parte desfavorável da decisão. Mas o certo é que não foi, pela demandante, interposto recurso do acórdão da decisão; e nem podia sê-lo, porquanto logrou, nas instâncias, inteiro ganho de causa.
Daí que outra alternativa não restasse à B, se quisesse ver alterada a decisão na parte em que lhe foi desfavorável, senão interpor recurso independente. E devia, obviamente, fazê-lo no prazo previsto no art. 685º/1 do CPC.
Não o tendo feito nesse prazo, precludida fica a possibilidade de este Tribunal convolar em recurso independente o (inadmissível) recurso subordinado pela ré interposto.
E, por isso, não deve, hic et nunc, conhecer-se do objecto do recurso.
3.

Decidida esta questão, fica de pé o conhecimento do objecto do recurso interposto pela ré C.
A alegação de recurso desta ré finaliza com a enunciação do seguinte quadro conclusivo:
1º - São nulos os contratos de locação financeira celebrados entre a autora e B, por ofensa ao art. 2º do Dec-lei 171/79, pois, na verdade, tais contratos tiveram por objecto, não bens de equipamento, mas antes veículos que as partes bem sabiam destinar-se a uso pessoal dos seus adquirentes, com quem a B, com conhecimento e consentimento da autora, contratara previamente os contratos de locação financeira.
2º - Em casos como este, em que estamos perante um vício que afecta a própria validade e subsistência da obrigação garantida, deve ser dada primazia às normas imperativas que regulam o ordenamento jurídico em causa, ainda que de uma garantia autónoma se trate, sendo tal vício invocável pelo garante e oponível ao beneficiário da garantia.
3º - A decisão do processo não foi acompanhada da necessária análise crítica dos meios de prova oferecidos pelas partes, em flagrante violação da lei processual, no caso o art. 659º do CPC.
4º - A determinação da efectiva vontade das partes - C e B - ao contratarem entre si os seguros de caução, constitui requisito prévio essencial para a boa interpretação da apólice dos autos.
5º - A natureza formal do contrato de seguro não implica a automática irrelevância de todo e qualquer elemento de interpretação para além do texto da apólice, apenas não sendo admissível que se sobreponha a esse texto estipulações que lhe são exteriores.
6º - Dos protocolos firmados entre seguradora e ré B resulta de forma cristalina que a intenção das partes, ao contratarem a emissão do seguro dos autos, consistia na prestação de garantia ao pagamento das rendas por parte do cliente desta última, locatário no contrato de aluguer de longa duração.
7º - A proposta com base na qual foi emitida a apólice dos autos, enviada à C pela B, identifica claramente o contrato de aluguer de longa duração através da indicação do respectivo número e locatário.
8º - Ao definirem, nas condições particulares da apólice, qual o objecto da garantia prestada, as partes não concretizaram a que rendas se referiam, se às da locação financeira ou antes às de aluguer de longa duração.
9º - A dúvida assim suscitada deverá ser esclarecida com recurso à vontade das partes e aos elementos de prova constantes dos autos, o que, conforme vimos, nos leva a concluir que estão garantidas as rendas referentes ao aluguer de longa duração.
10º - Seja como for, é inequívoco que a vontade das partes, tal como acima a identificámos, tem no texto da apólice um mínimo de correspondência, ainda que expresso de forma imperfeita, pelo que pode e deve valer na respectiva interpretação.
11º - A não ser assim teríamos que concluir pela nulidade do contrato em sede interpretativa, sob pena de se fazer valer o negócio com um sentido totalmente contrário à vontade das partes nele intervenientes (art. 220º do CC).
12º - Os argumentos constantes do acórdão recorrido para justificar a improcedência do pedido reconvencional não colhem, justificando-se igualmente a revogação de tal decisão.
13º - O acórdão recorrido viola os arts. 236º, 238º, 280º e 281º do CC e 659º do CPC.

Em contra-alegações, a recorrida A, SA bate-se pela improcedência do recurso.

Cumpre, agora, dele conhecer e decidir.
4.

Vêm, das instâncias, provados os seguintes factos:
I - A autora tem por objecto a prática da locação financeira mobiliária;
II - A ré B dedica-se ao comércio de compra, venda e aluguer de veículos automóveis;
III - No exercício dessas actividades, a autora e a ré B acordaram, em 22.07.92, nos precisos termos de fls. 9 a 12 dos autos;
IV - Tal acordo tinha como objecto o veículo automóvel de marca Fiat, modelo Uno 45 S, com a matrícula AI, no valor de Esc. 1.292.068$00, mantinha-se pelo prazo de 36 meses, mediante a satisfação, pela ré à autora, de 12 prestações trimestrais, no montante unitário de Esc. 137.945$00 (sem IVA), destinando-se o veículo a aluguer de longa duração;
V - Entre a ré B e a ré C foi celebrado o acordo que faz fls. 15 e 16 dos autos (contrato de seguro-caução) e que aqui se tem por reproduzido;
VI - A autora enviou à ré B, e esta recebeu, as cartas cujas cópias fazem fls. 19, 22, 25, 26, 27 e 28 dos autos (fls. 29 a 34);
VII - A autora enviou à ré C, que as recebeu, as cartas cujas cópias fazem fls. 35, 38, 41, 42, 43, 44 e 45 (fls. 47 a 53);
VIII - A ré C enviou à autora a carta cuja cópia faz fls. 18 dos autos, que esta recebeu;
IX - A ré C enviou à autora as cartas cujas cópias fazem fls. 122 e 124 dos autos;
X - A ré C enviou à ré B a carta cuja cópia faz fls. 123 dos autos;
XI - Nas negociações com a ré B, que precederam o acordo aludido em III, a autora fez depender a conclusão do mesmo de que a B obtivesse de um terceiro, com capacidade financeira, a prestação de uma garantia para o caso de incumprimento;
XII - O acordo aludido em V resultou dessa exigência;
XIII - A ré B não pagou à autora as seis rendas trimestrais vencidas de 16.04.94 a 16.07.95, cada uma das três primeiras no valor de Esc. 160.016$00, e cada uma das três restantes no valor de Esc. 161.396$00;
XIV - A B não devolveu à autora o veículo referido em IV;
XV - A B celebrava com os clientes dois contratos - um contrato de aluguer, através do qual dava de aluguer os veículos aos clientes, e um contrato-promessa de compra e venda, pelo qual prometia vender ao cliente e este prometia comprar o mesmo veículo, efectivando-se o contrato prometido no termo do contrato de aluguer;
XVI - Foram celebrados entre as rés os protocolos juntos de fls. 110 a 117;
XVII - O veículo aludido em IV foi cedido a D;
XVIII - A B enviou à C o documento que faz fls. 118 e 119 dos autos;
XIX - A autora sabia que a ré B destinava o veículo a ALD.
5.
Como é sabido, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o âmbito do recurso, só devendo o tribunal ad quem conhecer das questões que nessas conclusões são colocadas (sem prejuízo do dever de examinar e tratar as questões de que qualquer tribunal deve conhecer oficiosamente).
Analisadas essas conclusões, fácil é identificar as questões suscitadas pela recorrente, que este Tribunal terá de analisar e decidir, e que são as seguintes:
- Nulidade do contrato de locação financeira celebrado entre a autora e a ré B;
- Objecto da garantia do contrato de seguro-caução celebrado entre a B e a C;
- Pedido reconvencional deduzido pela C.
Avancemos, pois, para a dilucidação de tais questões.

5.1. Da nulidade do contrato de locação financeira

A recorrente sustenta a nulidade, por fraude á lei, do contrato de locação financeira celebrado entre a autora e a ré B.
De acordo com o seu entendimento, este contrato mais não foi do que uma forma de contornar a proibição legal de locação financeira de veículos a particulares, constante do art. 2º do Dec-lei 171/79, de 6 de Junho, com o objectivo de fazer chegar o veículo ao seu verdadeiro destinatário - o cliente da B.
Revelador desse objectivo perverso seria o facto de serem os próprios particulares, clientes da B, a escolher no stand a marca e o modelo pretendido, cabendo então a esta última celebrar o contrato com a locadora financeira, que adquiria o veículo e lho cedia em leasing, para a B logo o ceder ao seu cliente, não chegando sequer o veículo a passar pelas mãos da locatária, sendo o particular quem o levantava no fornecedor.
O que tudo mostraria uma actuação concertada entre ambas as sociedades com o objectivo comum de tornear a indicada proibição legal.
Os contratos de locação financeira celebrados entre a autora e a B teriam por objecto, não bens de equipamento, mas antes veículos que as partes bem sabiam destinar-se a uso pessoal dos seus adquirentes, com quem a B, com conhecimento e consentimento da autora, contratara previamente à celebração dos ditos contratos.
Que dizer desta argumentação?
Desde logo, que - contrariamente ao afirmado pela recorrente - ela não encontra válido suporte no acervo factual dado como assente. Não estão apurados os factos, indicados pela recorrente - nem quaisquer outros - que possam haver-se como reveladores de conluio entre a autora e a B, direccionado a contornar os preceitos legais que proibiam a locação financeira de coisas móveis para usos não afectos a actividades empresariais, e indiciadores de que a B mais não haja sido do que mera intermediária entre a autora e os particulares interessados na aquisição de veículos automóveis para utilização própria. A este propósito é expressiva a resposta de não provado - de que, porém, a recorrente faz tábua-rasa - que mereceu o quesito 5º da base instrutória, assim formulado:
A A. recorreu à ré B, para que esta servisse como intermediária entre si e os particulares interessados em obter a aquisição de veículos automóveis em regime idêntico ao acordado entre as duas?
A mera prova de que a autora tinha conhecimento de que a B destinava o veículo a aluguer de longa duração não permite extrapolar a trama, o enredo, que a recorrente afirma urdido por ambas, com o intuito de desfeitear a legalidade instituída.
Mal se entende, aliás, que a recorrente esgrima, como meio de defesa, com a nulidade do contrato de locação financeira - invocando percurso ínvio alegadamente seguido pelas partes nele intervenientes - quando ela própria, que coloca a B como co-autora no processo de fraude à lei, vem, afinal, ao celebrar com esta o contrato de seguro-caução, a dar cobertura (seja qual for o entendimento que se perfilhe quanto ao objecto deste contrato) a esse alegado processo fraudatório.
E, por isso, tem vindo este Supremo a afirmar que "a seguradora se não pode valer da nulidade como forma de se eximir ao cumprimento, na medida em que celebrou e geriu os contratos de seguro sem questionar a sua validade, designadamente procedendo ao agravamento dos prémios anuais das apólices de seguro" (3).
Tal comportamento, traduzido na arguição dessa nulidade, não pode deixar de entender-se como envolvendo abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, como também já o qualificou este Tribunal (4).

Tem também este Supremo Tribunal entendido, una voce, que os veículos objecto do contrato de locação financeira constituem, para a B, bens de equipamento, rejeitando a possibilidade de se fundar na violação do art. 2º do Dec-lei 171/79, de 6 de Junho, a nulidade do contrato.
De acordo com o estatuído em tal preceito, em vigor à data da celebração do contrato, "a locação financeira de coisas móveis respeita sempre a bens de equipamento". E, embora a lei seja omissa quanto ao entendimento do inciso legal "bens de equipamento", é usual defini-los por contraposição de tal expressão à de "bens de consumo", incluindo nestes os que se destinam ao consumidor final interessado na sua utilização e vendo naqueles os que se destinam a investimento ou rentabilização com vista à obtenção futura de lucros (5).
Ora, tendo em conta o objecto social da B - no qual se inclui o aluguer de veículos automóveis - parece claro que os veículos de que se constituía locatária, na sequência de contratos de locação financeira como o dos presentes autos, para os ceder a particulares, mediante contratos de ALD, representavam, para ela, bens de equipamento, porque destinados ao desenvolvimento daquela actividade de aluguer integrada no escopo social.
Não se vê, por isso, que o indicado art. 2º sofresse entorse com a realização do contrato de locação financeira.
E nem releva o facto de a autora saber que a B destinava o veículo a ALD, tanto mais que a possibilidade de sublocação era contemplada pelo art. 22º do Dec-lei 171/79.

Por tudo quanto se deixou assinalado não resta senão concluir pela falência do arsenal argumentativo da recorrente, no que à questão em apreço concerne - o mesmo é dizer, pela validade do contrato de locação financeira a que se reportam os autos, tendo por objecto o veículo automóvel Fiat Uno 45 S, de matrícula AI, celebrado entre a autora e a B.

5.2. Do objecto do contrato de seguro-caução

Reportando matéria recorrente em todos - e muitos são - os processos de natureza idêntica à dos presentes autos, consiste a questão que vai ser objecto de apreciação, em saber qual o objecto da garantia do seguro-caução, documentado a fls. 15 e 16 dos autos, e celebrado entre as rés B e C.
Entende a seguradora recorrente que o objecto do contrato se reconduz à prestação de garantia ao pagamento das rendas que fossem devidas pela cliente - no caso, D - à B, respeitantes ao contrato de ALD celebrado entre estas. Já a autora/recorrida perfilha entendimento diverso, sustentando que o dito contrato tem por objecto garantir o pagamento das rendas decorrentes do contrato de locação financeira do veículo acima identificado, que celebrou com a B.
A dilucidação da questão - posto que em causa está um negócio jurídico formal, como é o contrato de seguro - passa, fundamentalmente, pela análise e interpretação do clausulado vazado no documento que o titula, a apólice, com apelo às regras estabelecidas nos arts. 236º e 238º do CC.
Há ainda que ter em conta os factos apurados em julgamento, na medida em que possam contribuir para se alcançar a vontade real dos contraentes.
Vejamos, pois.
O contrato de seguro-caução, cuja disciplina se encontra no Dec-lei 183/88, de 24 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Dec-lei 127/91, de 12 de Março, é celebrado entre a empresa seguradora e o devedor da obrigação a garantir ou o seu contragarante, a favor do respectivo credor (art. 9º/2).
O seguro-caução é sempre contratado pelo devedor (ou eventual devedor) a favor do credor (ou eventual credor). Distingue-se do seguro de crédito, que é contratado pela seguradora com o credor da obrigação segura (art. 9º/1).
O contrato de seguro assume, no seguro-caução, a feição típica de um contrato a favor de terceiro, cobrindo, directa ou indirectamente, o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval - nele assumindo o devedor a posição de segurado e o credor a de beneficiário.
O seguro-caução tem, para assegurar a sua validade, de constar de uma apólice, instrumento que contém o clausulado que o rege - é, como já se deixou referido, um contrato formal, como resulta do art. 426º do CCom. (aplicável ex vi do n.º 1 do art. 1º do Dec-lei 183/88).
Vai, pois, descer-se à análise da apólice do seguro-caução aqui em causa, tentando surpreender, a partir da sua interpretação, o respectivo objecto.
O princípio interpretativo geral, em matéria de interpretação da declaração negocial, e válido para as declarações receptícias, vem enunciado no art. 236º do CC.
Do disposto no seu n.º 1 colhe-se que o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal - i.e., um declaratário medianamente esclarecido e diligente - colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
Importa, todavia, salientar que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (n.º 2 do citado art. 236º).
Nos negócios formais, decorre do n.º 1 do art. 238º que, em princípio, a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento. Essa regra não é, porém, absoluta, valendo um sentido que não tenha a dita correspondência no texto do documento se corresponder à vontade real das partes no negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (n.º 2 do mesmo preceito).

Para interpretarmos a apólice do seguro-caução teremos, antes de mais, de indagar as razões que subjazem à realização do seguro.
Perscrutando a apurada matéria de facto, verificamos que
- Em 22.07.92, a autora e a B celebraram entre si um contrato, através do qual a primeira deu, em locação financeira, à segunda, o veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno 45 S, de matrícula AI, sob as seguintes condições:
- duração do contrato: 36 meses;
- n.º e valor das prestações da renda: 12 rendas trimestrais, de 137.945$00 + IVA cada;
- residual: 77.524$00 + IVA(alíneas c) e d) dos Factos Assentes).
- Entre a C e a B foi celebrado, em 28.07.92, o contrato de "seguro de caução directa" de fls. 15/16;
- Nas negociações que precederam a celebração daquele contrato de locação financeira, a autora fez depender a conclusão do mesmo da obtenção, pela B, de um terceiro com capacidade financeira, da prestação de uma garantia para o caso de incumprimento (resposta ao quesito 1º).
- O contrato de "seguro de caução directa" celebrado entre a C e a B resultou dessa exigência da autora (resposta ao quesito 2º).

Volvendo agora a nossa atenção para a aludida apólice do seguro-caução, deparamos, logo nas "Condições Gerais", no cap. I, sob a epígrafe "Definições e objecto da Garantia", que integra os arts. 1º e 2º, com as seguintes menções:
Para os efeitos do presente contrato, considera-se:
TOMADOR DO SEGURO - A entidade que contrata com a C, sendo responsável pelo pagamento dos prémios;
BENEFICIÁRIO - A entidade a favor de quem reverte o direito de ser indemnizado pela C e que igualmente subscreve a apólice;
SINISTRO - O incumprimento atempado, pelo TOMADOR DO SEGURO, da obrigação assumida perante o BENEFICIÁRIO.
E, quanto ao "objecto da garantia", consta do art. 2º:
A C, com base na proposta subscrita pelo TOMADOR DO SEGURO e de acordo com o convencionado nas Condições Gerais, Especiais e Particulares deste contrato, garante ao BENEFICIÁRIO, pela presente apólice, até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que devia receber do TOMADOR DO SEGURO, em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida, conforme se expressa nas Condições Particulares (...).
Por seu turno, das "Condições Particulares" da apólice (fls. 15) constam, com interesse, as seguintes indicações:
Tomador do Seguro: B - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, SA
OBJECTO DA GARANTIA: Pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de 1.770.204$00, referentes ao veículo marca Fiat Uno 45 S, matrícula -AI
BENEFICIÁRIO: A - Comp. Port. Locação Fin. Mobiliária, SA
OBSERVAÇÕES: O seguro é feito pelo prazo de 36 meses, com início em 28.07.92 e termo em 27.07.95.
Verifica-se, assim, da articulação do clausulado das "Condições Gerais" com o das "Condições Particulares" da apólice, que
- é a B a tomadora do seguro;
- é a autora a beneficiária do mesmo, isto é, a entidade a favor de quem reverte o direito de ser indemnizado pela C;
- a C garante ao beneficiário (a autora), pela presente apólice, o pagamento da importância que este devia receber do tomador do seguro (a B), em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida;
- o objecto da garantia vem indicado como sendo o pagamento de 12 rendas trimestrais, referentes ao veículo Fiat Uno 45 S, de matrícula AI, e o prazo do contrato 36 meses, coincidindo com os termos do contrato de locação financeira celebrado entre a autora e a B.
Ora, de tudo isto, tendo em conta os princípios válidos em matéria de interpretação das declarações negociais, que acima deixámos expressos, colhe plena aceitação a tese de que o seguro-caução em causa se refere às rendas respeitantes ao contrato de locação financeira.
E esta tese sai ainda mais fortalecida se tivermos em conta a matéria de facto dada como assente e acima transcrita - designadamente o facto de o contrato de seguro-caução celebrado entre as rés ter sido consequência da exigência que a autora fez à B para que esta garantisse o cumprimento das obrigações que, como locatária, assumira no contrato de locação financeira, e ainda o teor do ofício de fls. 18, datado de 03.11.92 (escassos três meses após a celebração do contrato de seguro-caução), que a C dirigiu à autora:
De acordo com a solicitação dos nossos clientes ONDA/B, SA informamos que os seguros caução emitidos a vosso benefício cobrem, em caso de indemnização, o conjunto das rendas vencidas e não pagas bem como as vincendas, sendo o pagamento efectuado à vossa 1ª interpelação, sem qualquer formalidade, com prazo de 45 dias após a aludida interpelação.
De salientar é ainda - reforçando a conclusão acima expressa - que mereceu resposta de não provado o quesito 7º, cuja resposta afirmativa poderia trazer algum conforto à tese da recorrente, como logo resulta do seu teor:
A 1ª ré pretendia que a 2ª ré garantisse por seguro de caução as prestações a pagar pelos adquirentes dos veículos em regime de longa duração, garantia que a 1ª ré endossaria às companhias de locação financeira que entravam no negócio?
A recorrente C insurge-se contra a desconsideração, pela Relação, dos protocolos por ela celebrados com a B, que antecederam a celebração do contrato de seguro-caução e ao abrigo dos quais foi emitida a apólice - protocolos que, no seu entendimento, são fundamentais para se alcançar aquela que foi a efectiva vontade dos contraentes.
Mas, embora se aceite que a natureza formal do contrato não constitui obstáculo a que se lance mão, na interpretação da apólice respectiva, de elementos exteriores ou estranhos ao texto desta, designadamente aos protocolos a que alude a recorrente - mesmo que, como é o caso, neles não seja parte a autora - não se nos afigura que de tais protocolos possa extrair-se a conclusão avançada pela dita recorrente.
Diga-se, antes de mais, que o facto de se ter estabelecido, entre a seguradora e a B, por via protocolar, um determinado quadro de actuação, não significa uma necessária outorga do contrato em termos exactamente coincidentes.
De qualquer modo, sempre seria difícil, sem o recurso a malabarismos interpretativos, sustentar que o conteúdo dos protocolos juntos aos autos, tem alguma correspondência - ainda que imperfeitamente expressa - nos arts. 1º e 2º das "Condições Gerais" e na globalidade das "Condições Particulares" da apólice.
Mais.
Lendo, com a devida atenção, os protocolos de 15.11.91 e de 07.04.92, afigura-se-nos que eles não consentem a leitura e a exegese que do seu conteúdo faz a C - antes evidenciam a clara sem-razão da tese da dita recorrente.
Com eles, visaram as partes subscritoras - a C e a B - definir, fundamentalmente, um ponto específico do seu relacionamento contratual: o respeitante "à emissão de seguros de caução destinados a garantir o pagamento à B dos veículos vendidos por esta em aluguer de longa duração".
E quais são esses seguros-caução?
A resposta decorre logo do artigo 1º dos ditos protocolos: são "os seguros de caução que (a B) exigir aos seus clientes, destinados a garantir o pagamento das prestações de veículos adquiridos por aqueles, em aluguer de longa duração", e que se compromete a colocar na C.
É dizer: cura-se aqui dos seguros-caução em que os tomadores são os clientes da B, com as respectivas apólices emitidas em nome desses clientes, garantindo a B apenas o pagamento dos prémios (art. 2º dos protocolos).
E todo o demais clausulado nos arts. 3º a 7º daqueles protocolos respeita a esses, e só a esses, seguros-caução - aos celebrados pelos clientes da B, como tomadores, para garantia das prestações dos veículos por eles adquiridos em ALD.

Em contrapartida das vantagens para ela resultantes do regime desses seguros-caução - as acima sublinhadas e ainda a transferência, para si, da propriedade do veículo em caso de sinistro, prevista no art. 6º - a C compromete-se a emitir todas as apólices de seguro-caução, cujo tomador seja a B ou quem esta indicar, até ao montante de 5.000.000$00, mediante o pagamento de um prémio de 10.000$00, sendo que
- com a formalização da proposta de seguro-caução, a B indicará à C o respectivo beneficiário;
- em relação a estes seguros-caução, a B pagará à C, à primeira interpelação, a indemnização que, porventura, esta tenha de satisfazer em virtude do accionamento do seguro-caução (art. 8º dos protocolos).
Parece, pois, claro que os seguros-caução que tinham a finalidade apontada pela recorrente - garantir o pagamento à B das rendas devidas pelos seus clientes, locatários de ALD - eram apenas os que estes, como tomadores, celebravam com a C, em benefício da B (de que é exemplo o contrato junto a fls. 355), e não aqueles em que (como no caso em apreço) era esta última a tomadora.
Os seguros-caução em que a B figura como tomadora foram celebrados a coberto do apontado art. 8º dos protocolos, sendo claro que o seu objecto não pode ser o de lhe garantir o pagamento das rendas devidas em consequência do contrato de ALD. De outro modo, não se justificaria o pagamento, pela B à C, da indemnização que, em virtude do accionamento do seguro-caução, esta tenha sido forçada a satisfazer.
Esta indemnização não pode ser outra senão a referida no art. 2º das "Condições Gerais" da apólice do seguro-caução, acima transcrito - a quantia que o beneficiário (no caso, a autora) tem jus a receber do tomador do seguro (a B), em caso de incumprimento, por este último, da obrigação garantida.

Alude ainda a recorrente ao protocolo de 01.11.93, junto a fls. 114 e seguintes.
Certo é, porém, que este é muito posterior à celebração do contrato de seguro-caução de quo agitur, não podendo, por isso, o seu conteúdo ser aqui tido em conta.
Ele altera profundamente o sentido dos anteriores - designadamente o aludido art. 8º destes, cujo significado foi completamente subvertido pelo art. 15º daquele - só podendo ser considerado como elemento de interpretação dos contratos posteriores à sua elaboração.
Basta, aliás, atentar no teor do n.º 1 do seu art. 5º para se concluir que o contrato de seguro-caução aqui em causa é totalmente estranho ao ideário de tal protocolo. Na verdade, aí se estabelece a obrigatoriedade de inserção de uma cláusula, nas Condições Particulares das Apólices, que não consta das Condições Particulares da apólice do seguro-caução objecto dos presentes autos - cláusula que, pela sua importância e relevância, não deixaria de ser nestas inserida, se o aludido seguro-caução tivesse tido por matriz inspiradora a intenção de garantir o pagamento das rendas do aluguer de longa duração.
Como sucedeu, v.g., em contrato de idêntica natureza, que a recorrente juntou, por fotocópia, a fls. 202 e seguintes.

Existe, é certo, uma aparente coincidência entre a indicação do objecto da garantia, constante das ditas "Condições Particulares" - Pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de 1.770.204$00, referentes ao veículo marca Fiat Uno 45 S, matrícula AI - e a proposta de seguro junta pela seguradora recorrente com a sua contestação (fls. 119 e segts.). Esta proposta, elaborada pela B, foi por esta enviada à seguradora com a carta de fls. 118, da qual constam os seguintes elementos:
Assunto: D
N.º do contrato: T92.296
Duração do seguro: 36 meses
Tomador do seguro: B, SA
Beneficiário: A, SA
Prestação trimestral: 147.517$00
Capital seguro: 1.770.204$00
Objecto da garantia: 12 rendas trimestrais
Marca: Fiat Uno 45 S
Matrícula: AI.
E da proposta constam idênticas menções quanto à duração do contrato e à identidade do tomador e do beneficiário, sendo o capital a segurar indicado através da expressão aritmética 12X147.517$00=1.770.204$00.
Daqui extrai a seguradora recorrente que, sendo este expediente inequivocamente reportado ao contrato (de ALD) celebrado entre a B e a sua cliente D, a referência ao objecto da garantia, constante das "Condições Particulares" da apólice, não podia deixar de entender-se como visando igualmente aquele contrato: a coincidência na indicação do capital seguro era disso prova iniludível.
A conclusão da seguradora não é, porém, de aceitar.
Nada, efectivamente, autoriza a supor que a carta e a proposta a que vem de aludir-se visassem o contrato de ALD antes que o contrato de locação financeira.
A referência à locatária de ALD e ao número do contrato de ALD insere-se, a nosso ver, na obrigação que, de acordo com as "Condições Gerais" da apólice, recaía sobre o tomador do seguro (a B), de "fornecer à C, com exactidão, todos os elementos de informação relativos à operação a segurar" - entre os quais se contam, sem dúvida, a identificação do veículo a que o seguro respeita, a identidade do seu detentor e a qualidade em que este o detém.
Que não era o contrato de ALD o visado na carta e na proposta a que vimos aludindo, enviados pela B à seguradora recorrente, resulta claro deste dado irrefutável: o contrato de ALD efectivamente celebrado entre a B e D, respeitante ao veículo Fiat Uno 45 S AI, com o n.º T92. 0296 - que se acha igualmente nos autos (fls. 353/354) - não tem absoluta correspondência com os elementos referidos naquelas carta e proposta. Como se alcança das "Cláusulas Particulares" do contrato, o pagamento das rendas era mensal, sendo o primeiro aluguer de 454.396$00 e os restantes de 51.480$00.
Daí que não seja legítimo interpretar a referência ao objecto da garantia, contida nas "Condições Particulares" da apólice, que acima deixámos transcrita, como expressão da vontade real da seguradora de garantir o pagamento das quantias devidas à tomadora (B) pela cliente desta, no contrato de ALD. Tal sentido declarativo não tem um mínimo de correspondência no texto do documento, o que, como vimos, é razão bastante para o rejeitar.
Conclui-se, pois, de tudo quanto se deixou referido, que a garantia assumida pela seguradora recorrente através do seguro-caução dos autos, se destinou a cobrir o pagamento das rendas relativas ao contrato de locação financeira firmado entre a autora e a B, e não as rendas devidas a esta última pela sua cliente D, respeitantes ao contrato de aluguer de longa duração.
E não vale o argumento, in extremis avançado pela recorrente, de que este entendimento - o de que o seguro-caução em análise garante o pagamento das rendas referentes ao contrato de locação financeira - levaria a concluir "pela nulidade do contrato em sede interpretativa, sob pena de se fazer valer o negócio com um sentido totalmente contrário à vontade das partes nele intervenientes".
Deixando de lado a equivocidade da expressão - o que deve entender-se por nulidade do contrato em sede interpretativa? - o argumento dá por demonstrado o que importaria demonstrar - que a intenção e vontade das partes ao contratarem o seguro-caução consistia na prestação de garantia ao pagamento das rendas por parte dos clientes da B, locatários nos contratos de ALD - e que demonstrado não está, como irrefutavelmente decorre de tudo quanto supra se deixou referido.

5.3. Do pedido reconvencional da C

O pedido reconvencional - formulado para a hipótese de o Tribunal vir a considerar (como efectivamente é o caso) que o seguro-caução em apreço garante o pagamento das rendas do contrato de locação financeira - vem fundado na responsabilidade da autora que, por não ter dado adequado cumprimento ao disposto nos arts. 10º e 14º das "Condições Gerais" da apólice, teria causado prejuízos à reconvinte.
No dizer desta, a autora pactuou com o ilícito procedimento da B, pois não promoveu, como devia, a resolução do contrato a seguir ao não pagamento da primeira renda, deixando que ele chegasse ao termo da sua vigência, nem reclamou de imediato a devolução do veículo, permitindo que a inadimplente B continuasse a receber as rendas pagas pela locatária do contrato de ALD, e possibilitando que o veículo continuasse a ser utilizado e a deteriorar-se, desprotegendo o direito de regresso da reconvinte e o direito desta a receber o veículo.
Tal pretensão foi, como vimos, julgada improcedente logo na 1ª instância. E a Relação confirmou, também nesta parte, a respectiva sentença.
Quid juris?
Em acórdão recente deste Tribunal (6), em que foi relator o também aqui relator, e em que a situação de facto era em tudo idêntica à que se verifica nos presentes autos, deixou-se expresso o entendimento de que, sendo o contrato de seguro-caução um contrato a favor de terceiro, o disposto nas cláusulas supra indicadas, das "Condições Gerais" da apólice, não vinculam o terceiro beneficiário: este, não sendo parte no contrato, e não tendo, consequentemente, assumido as obrigações consagradas nas ditas cláusulas, não podia ser responsabilizado pela violação das mesmas.
Afigura-se-nos, porém, após nova e mais aprofundada reflexão sobre a questão, que este entendimento, que radica no chamado princípio da relatividade dos efeitos contratuais - segundo o qual os compromissos contratuais vinculam, com força de lei, as partes que os assumem, mas apenas as partes que os assumem, não podendo criar obrigações a cargo de terceiros estranhos ao contrato (7) - não pode aqui aceitar-se nos moldes acima enunciados.
É que o contrato de seguro-caução em análise, não obstante celebrado apenas entre a B e a C, criou duas relações jurídicas: uma, entre o tomador (B) e a seguradora; outra, entre a seguradora e o terceiro beneficiário (a A). A primeira é uma normal relação contratual, envolvendo direitos e obrigações de diversa natureza para ambas as partes; a segunda é uma relação que se concretiza num direito de crédito do beneficiário em relação à seguradora e na correspectiva obrigação desta.
Mas esta segunda relação é originada e modelada pela primeira, pois a pretensão do beneficiário radica no contrato celebrado entre o tomador e a seguradora, não podendo aquele ter mais direitos do que os que de tal contrato resultam. São, por isso, oponíveis ao beneficiário, por parte da seguradora, todos os meios de defesa derivados do contrato de seguro-caução, como flui do disposto no art. 449º do CC - e, entre eles, os efeitos da falta de participação do sinistro.
A este respeito, consta do art. 10º das "Condições Gerais" da apólice:
1. (...).
2. O beneficiário obriga-se, sob pena de responder por perdas e danos:
a) A participar à C a ocorrência do sinistro o mais rapidamente possível, mas em prazo nunca superior a oito dias, a contar da verificação do sinistro ou da data em que dele teve conhecimento, expondo pormenorizadamente todas as circunstâncias que possam interessar à determinação dos eventuais prejuízos, independentemente de querer ou não responsabilizar o tomador do seguro.
b) A tomar as medidas ao seu alcance para evitar ou limitar os prejuízos, não alterar a sua avaliação e proteger o direito de regresso da C.
c) A fazer as diligências necessárias no sentido de esclarecimento dos factos, comunicando-os à C e permitindo-lhe que nelas colabore e as oriente (...).
E no art. 14º das mesmas "Condições Gerais":
A C fica sub-rogada nos direitos do beneficiário, sobre o tomador do seguro ou contra terceiros, emergentes do presente contrato, até à concorrência da indemnização paga, obrigando-se o beneficiário a abster-se de praticar quaisquer actos ou omissões que possam prejudicar a sub-rogação, sob pena de responder por perdas e danos.
Decorre das normas contratuais transcritas, além do mais, a obrigação, para a recorrida A, de participar à recorrente, no prazo de oito dias, a ocorrência do sinistro, isto é, o incumprimento, pela B, das obrigações assumidas através do contrato de locação financeira.
E, estando assente que a recorrida só deu cumprimento a tal obrigação muito para além do decurso do aludido prazo de oito dias, tal implicaria a sua responsabilização pelos prejuízos eventualmente daí decorrentes para a seguradora recorrente.
Por outro lado, a seguradora, no caso de satisfazer as obrigações do tomador do seguro, indemnizando o beneficiário, ficaria sub-rogada nos direitos deste, na medida em que tais direitos fossem por ela satisfeitos. E também nesta matéria o beneficiário podia incorrer em responsabilidade civil perante a recorrente se, por acção ou omissão, prejudicasse o exercício do direito de sub-rogação, por parte desta, causando-lhe danos.
Diga-se, porém, que entre as obrigações da A, resultantes do transcrito art. 10º, não se engloba a de resolver o contrato de locação financeira, face ao não pagamento das rendas por banda da B. Tinha a A o direito de optar pela resolução - não tinha o dever de o fazer.
Quanto ao veículo objecto do contrato de locação financeira, não se vê como é que a continuação da sua utilização, e consequente deterioração, desprotegeu o direito da recorrente/reconvinte.
O veículo é propriedade da locadora, que apenas reclamou da C o valor das rendas, relativas ao contrato de locação financeira, vencidas e não pagas pela B, acrescidas dos respectivos juros moratórios. Daí que, como assinala a sentença da 1ª instância, "nunca o veículo locado podia servir de garantia em sede de direito de regresso da ré seguradora" - e, assim, "a continuação da sua utilização pela B, SA, com a consequente deterioração do mesmo, nenhum prejuízo causou à ré seguradora".
Last but not least: para que a reconvenção pudesse lograr êxito, sempre a seguradora deveria alegar e provar a ocorrência de concretos prejuízos, causados pela conduta da recorrida e fundantes da indemnização peticionada. Todavia, não o fez, limitando-se, como bem assinalam as instâncias, a alegar, conclusivamente, que a recorrida prejudicou gravemente o seu direito de regresso, causando-lhe prejuízos, não concretizando esses prejuízos, e votando, assim, ao malogro a viabilidade do pedido reconvencional.
E, por outro lado, não tendo a recorrente satisfeito à recorrida os montantes cujo pagamento garantiu, não pode falar-se de direito de sub-rogação nem, consequentemente, de actos ou omissões que hajam prejudicado o exercício desse (ainda inexistente) direito.
Não merece, assim, qualquer censura, a decisão das instâncias, na parte em que julgou improcedente a reconvenção.
Claudicando, assim, a posição da recorrente no que concerne às questões suscitadas nas conclusões da sua alegação, e indemonstrada que se acha a invocada violação dos preceitos legais nelas referidos, não pode deixar de concluir-se pela improcedência do recurso.
6.

Nos termos que se deixam expostos, os Juízes deste Supremo Tribunal:
a) decidem não tomar conhecimento do objecto do recurso subordinado interposto pela ré B, por inadmissibilidade deste, condenando a recorrente nas custas respectivas;
b) negam a revista da ré C, confirmando, assim, o douto acórdão recorrido. A recorrente suportará as custas deste recurso

Lisboa, 9 de Outubro de 2003
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) Cód. Proc. Civil Anotado, vol. V, 1953, pág. 284/285.
(2) F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Proc. Civil, 3ª ed., pág. 80.
(3) Sic, nos acórdãos de 12.07.01 (proc. 1885/01), de 27.09.01 (proc. 2105/01) e de 24.01.02 (proc. 4072/01), todos desta Secção.
(4) Vejam-se ainda, além dos citados na nota anterior, os acórdãos de 11.07.00 (proc. 1630/00) e de 31.10.00 (proc. 2604/00).
(5) Cf., neste sentido, o acórdão de 24.01.02, citado na nota 3.
(6) Ac. de 26.06.03, na revista 2045/02, desta 2ª Secção.
(7) Cf. Enzo Roppo, O Contrato, Liv. Almedina, 1988, págs. 129/130.