Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2372
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO DE ALMEIDA
Descritores: ERRO DE CÁLCULO
RECTIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
PODERES DA RELAÇÃO
Nº do Documento: SJ20060919023726
Data do Acordão: 09/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Erro de escrita ou de soma pode ser corrigido a todo o tempo, inclusive depois do trânsito.
II - Se o autor nas contra-alegações de recurso para a Relação reconheceu que a sentença incorreu num erro material, não se compreende que tenha que ser o tribunal que cometeu esse erro a rectificá-lo, já que não foi pedido, nem o juiz dele se apercebeu.
III - Se as partes e o juiz, por iniciativa própria podiam fazer suprir o erro material, por maioria de razão essa rectificação pode ser feita pela Relação, se entender que não há excesso na condenação em 1.ª instância, mas sim erro de soma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


A) No Tribunal Judicial de Setúbal, AA intentou acção com processo ordinário contra BB e mulher, pedindo que sejam condenados a:

A reconhecerem a resolução do contrato de empreitada celebrado com o autor e a pagarem a este a quantia de 4.139.585$00, a título de obras executadas e não pagas;

A pagarem a quantia de 2.088.125$00, a título de lucros cessantes quantias, pedindo ainda um reconhecimento de direito de retenção sobre a moradia em construção.

Alega que no exercício da sua actividade de construtor civil acordou com os Réus a construção de uma moradia e acordado também o preço da respectiva empreitada.
Os Réus contestaram e deduziram pedido reconvencional, alegando defeitos na construção e atrasos relativamente ao prazo acordado, referindo ter o Autor abandonado a obra em Julho de 1998.

B) Após resposta o Autor veio a desistir do pedido de retenção sobre o imóvel.
Seleccionada a matéria de facto assente e aquela que deveria ser provada, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os Réu a pagarem ao Autor a quantia de €53.972,51 acrescida de juros, desde a citação à taxa de 10% ao ano até 17/4/99à taxa de 7%até 12/04/03 e à taxa de 4% ao ano desde 13/04/03 até integral pagamento.

C) Desta decisão recorreram os Réu alegando que a sentença condenou em quantia superior á pedida, e que os quesitos 1º e 36º dados como provados provieram de depoimento de testemunhas que não «merecem credibilidade na isenção, sendo certo que nenhuma delas possui a razão de ciência adequada…»
A Relação veio a decidir que não houve condenação para além do pedido, mas antes erro na soma das quantias em que assentou a condenação, e entendendo tratar-se de erro de escrita e não de julgamento, rectificou-a. Quanto á matéria de facto, dado o modo como foi impugnada limitou-se a referir a fundamentação das respostas.

D) Inconformados recorrem agora de revista, e alegando formulam estas conclusões:

1 - No caso concreto o autor intentou uma acção declarativa de condenação contra os réus e solicitou ao Tribunal que os réus fossem condenados, a pagarem, ao Autor a quantia de 4.139.585$00, a título de Obras executadas e não pagas e a quantia de 2.088.125$00, a título de lucros cessantes sobre as obras que faltam realizar.
2 - Realizou-se o julgamento e decidiu o meritíssimo juiz a quo, a acção parcialmente procedente e consequentemente condenou os réus a reconhecerem a resolução do contrato de empreitada celebrado com o autor e a pagar a este a quantia total de 53.972, 51 Euros ( cinquenta e três mil, novecentos e setenta e dois euros e cinquenta e um cêntimos), a crescida de juros calculados desde a citação - 18/11/98 - à taxa de 10% ao ano até 17/04/99 , à taxa de 7% ao ano até 12/04/03 e à taxa de 4% ao ano desde 13/04/03 até integral pagamento.

3 - Sobre este conspecto, o Tribunal da Relação de Évora entendeu que não se tratava de um erro de julgamento, mas de um mero lapso material, rectificável nos termos do artigo 667 n. ° 1 do C. P. C

4 - Salvo devido respeito tal tese não é de acolher.

5- Com efeito, conforme se alcança do Ac. STJ de 28/06/1994: Col. Jur /ACSTJ, 1994, 2° -165:
«Nos termos dos artigos 667° e 716° do C. P. C, as meras inexactidões devidas a lapso manifesto, só são corrigíveis na instância onde foram cometidas, por iniciativa dos próprios Juízes ou das partes, e não pela via de recurso."

6 - Isto significa, mormente, que a rectificação de erros materiais da sentença ou do Acórdão da 2a instância só pode ser feita pelo Tribunal que cometeu esse erro, por iniciativa dos próprios Juízes ou das partes e não por via de recurso.

7 - Por isso, o Tribunal da Relação de Évora faz uma interpretação errada da referida norma.

8 - Cautelarmente se diz que da leitura da decisão conclui-se que o meritíssimo Juiz condenou em quantia superior à do pedido.

9 - As causas de nulidade da sentença estão taxativamente enunciadas no artigo 668 do C.P.C.

10 - De harmonia com o estatuído na alínea e) do n. ° 1 do apontado preceito é nula a sentença : Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

11 - Ao condenar em quantia superior o Juiz excede o limite estipulado pela lei em condenar.

12 - No caso concreto temos sem margem de dúvidas uma condenação que foi em quantidade superior ao pedido inicial.

13 - Acresce que, deu-se como provado o artigo 1° da base instrutória, bem como o artigo 36°.

14 - Analisando os depoimentos gravados das testemunhas que depuseram sobre esta matéria, os mesmos não oferecem qualquer credibilidade nem isenção, sendo certo que nenhuma delas possui a razão de ciência adequada para que o Tribunal afira positivamente tais depoimentos.

15- Por isso, tem de haver um nexo lógico definido pelo padrão do cidadão médio entre a razão de ciência invocada pelas testemunhas bem como a forma e o modo como depõe em tribunal (analisados os seus depoimentos) e a sua valorização judicial.

16 - Assim, não obstante as limitações supra invocadas pelos recorrentes afigura-se de elementar bom senso que seja possível sindicar depoimentos das testemunhas pelo Tribunal da Relação por forma a aferir da sua credibilidade ou não perante o Juiz de Primeira instância.

17 - É que nos presentes autos bastaria uma leitura simples dos depoimentos das referidas testemunhas para se avaliar que as mesmas são completamente descontextualizadas e não têm uma mínima correspondência com a realidade ainda que imperfeitamente expressa.

18 —Em suma, tais artigos, nomeadamente 1° e 36° só podiam ter uma resposta negativa.

19 — Foram violadas, entre outras, 668 n.º 1 alínea e), artigo 712 n.º 1 alínea a) bem como o artigo 716° e 667 todos do C.P.C. as normas supracitadas.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

E) Os Factos:

1 – No início de Fevereiro de 1997 o réu marido solicitou ao autor a elaboração de um orçamento para construção de uma moradia a construir no lote 0, sito no lugar do ...., concelho de ...., tendo o mesmo elaborado o orçamento de fls. 20 que foi entregue ao réu marido no dia 6 de Fevereiro de 1997, nos termos do qual o valor da construção da moradia ascenderia a 20.500.000$00 (vinte milhões e quinhentos mil escudos)

2 – No acto de adjudicação o autor e o réu marido acordaram que o pagamento do preço seria efectuado escalonadamente em função dos trabalhos que fossem sendo executados e após solicitação verbal do primeiro ao segundo

3 – Os réus depois de analisarem o orçamento apresentado pelo autor adjudicaram alguns dias depois, a construção da moradia, tendo-se iniciado a construção em meados de Setembro de 1997

4 – No acto da adjudicação os réus não pagaram qualquer importância por conta do preço da obra

5 – No âmbito do acordado, cabia ao autor o fornecimento dos materiais e ferramentas necessários à boa execução da obra, tendo ficado acordado que os azulejos, mosaicos, tacos, louças de casa de banho, torneiras, armários de cozinha e a lareira não podiam ascender, respectivamente a 2.500$00/m2, 2.800$00/m2, 90.000$00, 80.000$00, 500.000$00 e 150.000$00.

6 – Para efectuarem o primeiro pagamento da obra os réus entregaram ao autor um automóvel em 1997

7 – Os réus pagaram ao autor as seguintes quantias em dinheiro por conta da obra: 1600 contos em Janeiro de 1998, 2000 contos em 10 de Fevereiro de 1998 e 3000 contos em 22 de Abril de 1998

8 – O autor enviou aos réus, que a receberam, a carta de 28 de Agosto de 1998, junta a fls. 28 a 30 dos autos

9 – O autor fez enviar aos réus que a receberam, a carta de 15 de Setembro de 1998, junta a fls. 31 a 34 dos autos

10 – O autor entregou aos réus a quantia de 400 contos em Novembro de 1997

11 – O preço indicado no orçamento referido em 1 não foi incluído IVA

12 – As condições climatéricas, designadamente ao fortes e continuadas chuvas que caracterizaram o Inverno de 1997/1998, determinaram algum atraso no andamento da construção

13 – O autor e os réus atribuíram ao automóvel referido em 6 o valor de 3.200 contos

14 – Alguns dias após a entrega da viatura o réu pediu ao autor que lhe emprestasse a quantia de 400.000$00

15 – Fixando-se assim o primeiro pagamento em 2.800.000$00

16 – Na varanda de trás da moradia houve uma alteração relativamente ao que estava inicialmente projectado

17 – Em Setembro de 1998 o autor tinha gasto na moradia a quantia de cerca de 66.826,00€

18 – Em meados do mês de Julho, atento o valor de obras realizadas e em execução e os valores entregues pelos réus, o autor solicitou-lhes a entrega de 4.000.000$00

19 – Foi por os réus não terem pago esses 4.000.000$00 que o autor lhes enviou a carta referida em 9

20 – Não obstante o réu nada mais ter pago desde 22 de Abril de 1998, o autor, passado o período de férias de grande parte do pessoal no mês de Agosto, fez deslocar para a obra, na primeira semana de Setembro, 3 trabalhadores que ali permaneceram a trabalhar até ao dia 10 de Setembro de 1998

21 – 0 Autor teria um lucro de cerca de 20% no valor total da obra

22 – Quando o autor saiu da obra faltava apenas realizar a colocação de aduelas e azulejos;

23 – A fixação do estuque

24 – A colocação das lareiras

25 – A colocação dos mosaicos, tacos, pilares em mármore e rodapés

26 – O assentamento das portas interiores e roupeiros

27 – O telhado não estava totalmente realizado

28 – Faltava executar os passeios

30 – E pintar a casa, colocar alumínios e gradeamentos

31 – Os réus encontram-se a viver numa casa arrendada pagando a renda mensal de 8.494$00

32 – A ré sofreu perturbações nervosas devido ao atraso que sofreu a conclusão da moradia

33 – Houve problemas com o licenciamento da garagem

F) O âmbito de apreciação do recurso, determina-se pelas conclusões (art. 684 nº 3 e 690 nº 1 do Código Processo Civil ) ressalvando-se, como é óbvio, as questões de que importe conhecer oficiosamente.

Das precedentes conclusões, os recorrentes começam por invocar a nulidade da sentença, que vem prevista na alínea e) do n°1 do art. 668 do CPC, por considerarem que a sentença condenou em quantia superior à peticionada.

Vejamos, então:

Os recorrentes impugnaram a matéria de facto! com esta argumentação, e no que se refere ao quesito 1º e 36º.
Face ao preceituado no art. 690 A do Código do Processo Civil, é imposto ao impugnante o ónus de:

Circunscrever ou delimitar o âmbito de recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento - o ponto ou pontos da matéria de facto - da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;

Fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda da decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios (constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnada pelo recorrente;

No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso. Indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.°-C.

A alteração das respostas dadas à matéria de facto só pode ser alterada, nos termos do disposto no Artigo 712 do Código de Processo Civil, mas para tanto é necessário que do processo constem todos os elementos que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto posta em causa. Como é sabido fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas, consagrada no Artigo 655 n.º 1 do Código de Processo Civil, em princípio essa matéria é inalterável A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no Artigo 712 do Código de Processo Civil: onde se indicam as excepções à regra básica da imodificabilidade da decisão de facto.
Os recorrentes não procederam perante a Relação de acordo com o preceituado na lei processual. A sua discordância na resposta dada aos quesitos que indicam, provém, no seu entender, por os depoimentos:
«não serem precisos, nem concretos, nem as pessoas em causa possuírem conhecimentos técnicos adequados que lhes permita, com rigor, afirmar o que afirmaram».
A tónica da pretendida modificação das respostas, retiram-na os recorrentes da convicção com que ficaram dos depoimentos, e não em qualquer erro na apreciação concreta da prova.
Podem discordar da convicção do julgador que fundamentou as respostas, mas o que não se podem é substituir a quem julga, esse sim é quem tem que ficar convencido da exactidão do depoimento e através deles fundamentar ou explicitar a razão das respostas dadas. «A credibilidade e isenção» tem o lugar próprio para ser impugnada, como bem sabem os recorrentes, o que não justifica é em sede de recurso a alteração das respostas dadas aos quesitos que se sustentam no preceito processual acima invocado.
Não se entende muito bem este recurso interposto com base na nulidade do Artigo 668 n.º 1 alínea e) do Código Processo Civil. A condenação ilegal resulta da violação da regra constante do n.º l do art. 661.° sobre os limites da condenação.
A sentença será nula por condenar ilegalmente em quantidade superior. Ora no caso em apreço, a sentença condenou em quantia superior á devida e a referida nulidade existe, mas existe num contexto puramente formal, já que dos autos resulta que a condenação devia ser em quantia inferior, o que só beneficia o recorrente.
Acresce que essa nulidade a existir foi cometida na 1ª Instância e não na Relação. O que se pode dizer é que a Relação procedeu á rectificação de um erro de soma quando essa questão competia á 1ª Instância.
Não há dúvida que a incorrecção da decisão de 1ª Instância decorre de erro material material. Certo é também que a rectificação destes erros materiais pode ser realizada por simples despacho do juiz que pode ser da sua própria iniciativa (art. 667°, nº 1), mas, se for interposto recurso, a correcção só pode efectuar-se até à sua subida (art. 667°, nº 2 1ª parte). O lapso manifesto exige que as circunstâncias sejam de molde a admitir, sem qualquer dúvida que o juiz foi vitima de erro matéria, isto é, que tenha escrito uma coisa em vez de outra.
Mas as consequências de se entender que a Relação não pode conhecer do erro material patente e ostensivo determinaria a remessa do processo á 1ª Instância para esse erro ser rectificado com todos os prejuízos decorrentes da demora na resolução. Revogar a decisão recorrida «com todas as consequências legais» como pretendem os recorrentes não conduz a coisa nenhuma, é uma mera inutilidade.
Se o Autor os recorrentes e o juiz por iniciativa própria podiam fazer suprir o erro material, por maioria de razão essa rectificação pode ser feita pela Relação se entender que não há excesso na condenação mas sim erro de soma.
Por outro lado não foi pedido ao juiz a correcção de erro de escrita por entender-se que se tratava de excesso de pedio, logo não se aplica o n.º 2 do Artigo 667 do Código Processo Civil . Erro de escrita ou de soma pode ser corrigido a todo o tempo, inclusive depois do trânsito.

O Autor nas suas contra- alegações de recurso para a Relação reconheceu que a sentença incorreu num erro material, como se disse não se compreende que tenha que ser o tribunal que cometeu esse erro a rectificá-lo já que não foi pedido, nem o juiz dele se apercebeu.
Efectivamente, se considerarmos o que vem provado relativamente a montantes, temos a seguinte factualidade:
O Autor realizou trabalhos no valor de € 66.826,00 e que o Réu lhe pagou por conta dessas obras o valor de € 46.887,00.
Ora, pedindo o Autor o valor das obras executadas e não pagas, dúvidas não existem que o Autor tem direito à diferença entre aquelas verbas e que na sentença se consigna como sendo a quantia e € 19.939.00.
A este valor acresce o montante de € 7.085,51, que a sentença também consigna a título de lucros cessantes.
Ora, operando a soma dos dois valores temos o valor total de € 27.024,51 e não o valor que vem indicado na parte dispositiva da sentença.
Trata-se, cumpre salientar, não de um erro de julgamento, mas de um mero lapso material, rectificável.
«E quando o excesso da condenação em quantia superior ao pedido provem, apenas e, em exclusivo de um erro de cálculo, como aqui acontece, não se verifica a apontada nulidade da sentença, já que se trata de um situação perfeitamente rectificável»

F) Face ao que se deixou exposto acorda-se em negar a revista e, consequentemente, condena-se os Réu a pagarem ao Autor a quantia rectificada de 27.024,51, mantendo-se quanto ao mais o decidido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 19 de Setembro 2006

Ribeiro de Almeida (Relator)
Nuno Cameira
Sousa Leite