Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S698
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: RECURSO
ALEGAÇÕES
CONCLUSÕES
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
CONTRATO DE TRABALHO
Nº do Documento: SJ20060713006984
Data do Acordão: 07/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA NEGADA COM UNANIMIDADE
Sumário : I - O critério subjacente à definição da conformidade das «conclusões» das alegações de recurso com o comando do art. 690.º, n.º 1, do CPC está conexionado com a correspondente aptidão daquelas para exercerem a sua função delimitadora e sinalizadora do campo interventivo do tribunal de recurso.
II - Tendo nas alegações de revista o recorrente aludido a determinada «questão» decidida no recurso de apelação, mas não dirigindo qualquer específico reparo a essa decisão, nem levando a referida «questão» ao núcleo conclusivo recursório, é de concluir que a mesma não integra o objecto do recurso.
III - O legislador ao consagrar a necessidade de observância por parte do recorrente do disposto no art. 690.º-A, n.º 1, do CPC, pretendeu que o recorrente determinasse, de forma inquestionável, os pontos factuais de que discorda e os fundamentos por que discorda, bem como a solução que sustenta e os respectivos fundamentos.
IV - Não cumpre esse ónus o recorrente que não cuida de individualizar a matéria questionada, como também não tem o cuidado – designadamente quanto à prova testemunhal – de conexionar cada facto censurado com os elementos probatórios que lhe correspondem.
V - O convite ao aperfeiçoamento da alegação produzida - por eventual aplicação analógica do art. 690.º, n.º 4, do CPC - , só se justifica quando se evidencia prolixidade susceptível de legitimar alguma dúvida pontual sobre a pretensão deduzida e, a par disso, seja também notório um esforço de identificação dos pontos factuais censurados e dos elementos probatórios que viabilizam.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1- RELATÓRIO
1-1
AA intentou, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente do contrato individual de trabalho, contra “BB.”, pedindo seja declarada a natureza laboral da relação jurídica firmada entre as partes - e a consequente ilicitude do seu despedimento – bem como a condenação da Ré a pagar-lhe as componentes retributivas pretensamente em dívida, que discrimina, e os respectivos juros moratórios, além de uma indemnização por danos morais, e da fixação de uma sanção pecuniária compulsória, ambas devidamente quantificadas.
A Ré excepcionou a competência material do foro demandado, dizendo que a relação estabelecida entre ela e o Autor não é de trabalho subordinado mas consubstancia, ao invés um contrato de agência e, com base nessa qualificação, reclama a improcedência total da acção e a condenação do Autor como litigante de má fé.
1-2
Instruída e discutida a causa, a 1ª instância proferiu sentença, em que começa por rejeitar a defesa exceptiva da Ré, cujo conhecimento fora relegado para final, após o que julgou parcialmente procedente a acção, em consequência do que:
1 – declarou que o contrato que unia o Autor à Ré era um contrato de trabalho;
2 – declarou ilícito o despedimento do Autor;
3 – Condenou a Ré a pagar-lhe o correspondente ao valor das retribuições, que o Autor deixou de auferir no período compreendido entre 11/9/02, e o trânsito da sentença (incluindo o valor das proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal referentes ao mesmo período), acrescido de juros de mora a contar desse trânsito, a liquidar em execução de sentença, fixando-se, para o efeito e como valor de referência, a retribuição mensal em € 1.192,16;
4 – Condenou a Ré a pagar ao Autor uma indemnização no valor de € 17.882,42, acrescida de juros de mora “... a contar da presente data”;
5 – mais a condenou a pagar ao Autor a quantia global de € 2.980,40, referente aos proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal no ano de cessação do contrato de trabalho, acrescida de juros de mora, desde 31/10/01 até ao integral pagamento;
6 – julgou improcedente o pedido de condenação da Ré em indemnização por danos morais, de cujo pedido a absolveu, bem como o pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória;
7 – por fim, considerou também infundado o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé.
Em síntese, considerou a 1ª instância que os segmentos condenatórios, retributivos e ressarcitórios, acima transcritos decorriam da qualificação, que também operou, da relação jurídica firmada entre as partes como contrato de trabalho e do consequente despedimento ilícito de que foi alvo o Autor.
Inconformada com a decisão, dela apelou oportunamente a Ré: porém, sem qualquer êxito o fez, visto que o Tribunal da Relação confirmou integralmente a sentença apelada.
1-3
Continuando irresignada, a Ré pede a presente revista, em que reclama a sua absolvição integral por entender que o contrato ajuizado deve ser qualificado como “contrato de agência”, sendo, consequentemente lícita a sua denúncia por banda da Ré.
Nesse sentido, remata a respectiva minuta alegatória com as seguintes conclusões:
1 – a recorrente impugnou especificamente todos os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados;
2 – também precisou quais os meios probatórios, constantes do processo e do registo da gravação neste realizada, que impunham sobre os pontos da matéria de facto impugnados, decisão diversa da recorrida;
3 – a recorrente indicou os depoimentos em que se funda o recurso por referência ao assinalado na acta, precisando qual a cassete e o número de volta,
4 – impugnando, assim, a decisão sobre a matéria de facto no estrito cumprimento do art.º 690º - A do C.P.C..,
5 – da pena documental e testemunhal constante dos autos emergem todos os elementos caracterizadores do contrato de agência, nomeadamente:
- que o recorrido se obrigou a promover a celebração de contratos;
- que o recorrido, na sua qualidade de agente, actuou sempre por conta da recorrente;
- que o recorrido gozava de autonomia na organização da sua actividade e do seu próprio trabalho;
- que a relação contratual esclarecida entre ambos tinha carácter estável, tendo durado cerca de 10 anos;
- que a retribuição auferida pelo recorrido nunca incluiu qualquer remuneração fixa;
- que o recorrido, pelo menos desde 1989, já se encontrava inscrito na Segurança Social e colectado nas Finanças como trabalhador independente;
6 – o Acórdão recorrendo, ao caracterizar a relação contratual existente entre as partes, no período de 1992 a 2001, como contrato de trabalho, interpreta e aplica erradamente o disposto no art.º 1º do D.L. nº 49.408, de 24/11/69 e os art.ºs 1º, 6º e 7º do D.L. nº 178/86, de 3 de Julho na redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 118/93, de 13 de Abril;
7 – o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão recorrendo e, consequentemente, deve ser ordenado que os autos baixem ao Tribunal “a quo” para que aí seja correctamente julgada a matéria de facto impugnada;
8 – Se assim se não entender e face à matéria de facto dada como provados, deve, mesmo assim, ser julgado procedente o recurso, revogando-se o dito Acórdão e decidindo-se, face ao acervo fáctico, apurado, que a relação existente entre as partes consubstancia um contrato de agência e não qualquer outro tipo legal.
9 – Além dos preceitos já supra citados, foram violados os art.ºs 519º e 690º A do C.P.C..
1-4
O recorrido contra-alegou, sustentando a improcedência total do recurso e a consequente confirmação do julgado.
1-5
No mesmo sentido se expressou a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, a cujo Parecer a recorrente não respondeu.
1-6
Corridos os vistos legais legais, cumpre decidir.
2 – FACTOS
As instâncias deram como provada a seguinte factualidade.
1 – o A. preenchia, a pedido da R., um relatório de despesas, pensado, criado e elaborado por esta;
2 – a R. pagava mensalmente, em média, ao A. uma quantia de € 150, em cheque ou em numerário, a título de despesas;
3 – o A. utilizava um cartão “Galp – Frota”, fornecido pela R. e pago por esta, com um “plafond” médio de € 250 mensais;
4 – o A. enviou à R. em 31/8/01, a carta junta a fls. 57-60 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
5 – carta, essa que não recebeu resposta da R.;
6 – o A. “barricou-se” nas instalações da R., sitas em Sacavém, atravessando um armário no meio do corredor;
7 – No dia 11/10/01, foi entregue ao A. o doc. junto a fls. 64, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e no qual consta, nomeadamente, que “... está dispensado de comparecer nas instalações da empresa ... até ao final do mês, de Outubro de 2001, prazo reputado bastante para esclarecer qual a situação contratual do mesmo (contrato de trabalho, contrato de prestação de serviços, contrato de agência ou outro) e, consequentemente, para pôr termo ao contrato que se concluir ser existente”;
8 – no dia 22/10/01, o A. recebeu da R. a carta junta a fls. 65, cujo conteúdo se dá integralmente reproduzido, constando nomeadamente da mesma – “Assunto: denúncia do contrato de agência (...), denúncia essa que produzirá efeitos a partir do próximo dia 31 do corrente mês de Outubro de 2001”;
9 – no dia 22/10/01, o A. remeteu à R. a carta junta a fls. 67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
10 – carta essa que não mereceu resposta da R.;
11 – a R. enviou aos seus clientes e colaboradores via e-mail, a comunicação junta a fls. 68, cujo teor se dá por integralmente reproduzida;
12 – foi publicado na revista “Exame” o artigo junto a fls. 61-63, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
13 – o A, em 20/9/82, celebrou com a R. o contrato de trabalho referido na resposta ao art.º 21º da B.I. e, posteriormente, em data não concretamente apurada do início do ano de 1992, acordou com a R. proceder à venda de material informático;
14 – as funções de vendedor de material informático, iniciadas em 1992, eram realizadas, “sob autoridade e direcção da Ré”, (esta expressão veio a ser suprimida pelo Tribunal da Relação), competindo ao A: A) visitar os clientes da R.; B) e recebê-los, o que poderia fazer nas instalações da R.; c) proceder ao transporte e entrega dos produtos; D) e vender os produtos fabricados, montados e comercializados pela R.;
15 – o A. ocupou sucessivamente as funções, designadas pela A., de “empregado de armazém”, em 1982 e, a partir de 1992, de “vendedor”, integrado no departamento comercial;
16 – com as funções de “vendedor”, cabia ao A. “sob autoridade e direcção da Ré”, (expressão suprimida):
A – visitar os clientes daquela; B – promover os produtos comercializados, fabricados e montados pela R.; C- receber e encaminhar as reclamações dos clientes da R.; D – acompanhar as necessidades de fornecimento dos clientes da R.; E – elaborar relatórios de visita aos clientes da R.; G – assistir às reuniões promovidas pela R.; H – e cumprir as instruções emanadas dos seus superiores hierárquicos;
17 – o A. tinha de elaborar mapa de quilómetros por si efectuados durante o desempenho das suas funções, que tinha de ser entregue ao Sr. CC ou ao Sr. DD;
18 – o A. recebia da R. as explicações necessárias para tomar conhecimento dos preços, características e modo de funcionamento dos produtos fabricados e comercializados pela R.;
19 – o A. tinha que elaborar um programa de visitas, de acordo com os interesses da R. e dos clientes desta, sendo a R. que delimitava geograficamente a área onde o A. exercia a sua actividade, tendo em conta os demais vendedores;
20 – a R. controlava a assiduidade do A., bem como a sua actividade;
21 – o horário de trabalho do A. tinha início cerca das 10 horas e terminava às 10 horas, com intervalo para almoço;
22 – a R. estipulava os objectivos de vendas para o A., de acordo com o interesse comercial dela;
23 – pela prestação do seu trabalho, o A. auferia, a título de remuneração mensal paga pela R., uma quantia monetária variável, apurada de acordo com um esquema em vigor de comissões e prémios, em percentagem não concretamente apurada;
24 – era a A. quem autorizava a ida de férias do A. e colegas de trabalho, após estes apresentaram o respectivo plano;
25 – o A. utilizava os seguintes instrumentos de trabalho fornecidos e colocados à sua disposição pela R. e propriedade desta: A – material promocional de produtos fabricados, montados e comercializados pela R.; B – folhas, papel, esferográficas, computador, secretária, cadeiras, instalações e cartões de visita; C – telefone fixo e móvel, fornecidos e pagos pela R.;
26 – o A. trabalhava nas instalações da R., quando não se encontrava em actividade de visitas a clientes no exterior;
27 – ao A. não mais foram atribuídas funções a partir de 11/10/01, sem que lhe fosse remetida ou entregue qualquer “nota de culpa”;
28 – o A. celebrou um contrato de trabalho a termo certo, em 20/9/82, para desempenhar as funções de empregado de armazém no armazém da BB, sito na Rua....., nº..... em Lisboa, dando-se por reproduzido o doc. fls. 98;
29 – Em 1/11/85, o A. celebrou um contrato de trabalho a termo certo com a sociedade comercial “EE ”, dando-se por reproduzido, o doc. fls. 49;
30 – a referida empresa “EE”, por carta de 13/7/87, comunicou por escrito ao A. a decisão de rescisão desse contrato de trabalho, comunicação que este recebeu em 16/7/87, conforme doc. fls. 100, que se reproduz;
31 – o A. deu início à exploração do restaurante......, no C.C. Amoreiras, tendo constituído a sociedade “ ...., Lda.ª”, com Registo na C.R.C. de 6/11/87;
32 – o A. e a esposa, FF, adquiriram as quotas da sociedade “...... Ld.ª”, com sede na Rua....., nº..... , em Lisboa, com registo de aquisição na C.R.C. de 2/10/89;
33 – Sociedade que se dedica ao comércio a retalho de têxteis, onde a A. desempenha as funções de gerente;
34 – em data não concretamente apurada, o A. voltou a ser admitido ao serviço da sociedade “EE”;
35 – o A. manteve-se ao serviço da “EE” até 31/12/90;
36 – nesta data, cessou funções na “EE”;
37 – durante o ano de 1991, o A. esteve ausente nos E.U.A.;
38 – período em que não teve qualquer relação com a sociedade “EE”;
39 – no início do ano de 1992, o A. e a R. celebraram um contrato, nos termos do qual o A. se comprometeu a promover, por conta da Ré, a venda dos produtos comercializadas por esta, mediante retribuição;
40 – o A. surge nas declarações de IRS, referentes aos anos de 1991 e 1992, integrado na categoria “C”;
41 – integrando, a partir de 1996, a categoria “B”;
42 – O A. emitiu e entregou à R. recibos de “prestação de serviços”;
43 – não constitui função de um adjunto de direcção visitar clientes, vender produtos, receber e encaminhar reclamações de clientes ou dar assistência técnica;
44 – o A. tinha que informar dos Kms andados com determinada viatura para manter a segurança da mesma;
45 – a declaração de rendimentos do A., referente ao ano de 2000, regista rendimentos de 2.868.083$00;
46 – o art.º referido em 12 motivou a apresentação de uma queixa-crime contra o director da revista “Exame”, a qual corre termos sob o NUIPC 13865/02. 2TDLSB-02, 6ª Secção do D.I.A.P.;
47 – o A. tinha à sua disposição uma viatura exclusiva para uso profissional, consentindo a R. que aquele a utilizasse para uso pessoal, incluindo os fins de semana.
São estes os factos.
3 - DIREITO
3-1-1
Exercendo os recursos a função de impugnação das decisões judiciais – art.º 677º do C.P.C. – cabe ao recorrente expor ao Tribunal Superior as razões da sua discordância, por forma a que esse órgão emita sobre elas o necessário juízo da sua procedência ou improcedência.
Com as normas atinentes à interposição de recurso e apresentação de alegações, pretendeu o legislador criar um conjunto de regras de natureza prática, a observar pelos recorrentes, que permitam ao Tribunal “ad quem” apreender, de forma clara, as razões fácticas e jurídicas que corporizam a dissidência relativamente ao julgado, de modo a que o Tribunal as aprecie com rigor: nem mais nem menos, do que é pedido, com ressalva das matérias oficiosamente cognoscíveis.
A exigência da apresentação de “conclusões” insere-se neste mesmo propósito mas desta feita, tendo especificamente em vista a apresentação de um quadro sintético – em resumo – das questões que se pretende ver apreciadas, de modo a que o Tribunal percepcione, rápida e facilmente, o fundamento do recurso, assim se assegurando, em última instância, “... a defesa dos direitos e a objectividade da sua realização” (cfr. Ac. T.C. nº 715/96 in D.R. II Série, de 18/3/97).
Deste modo, o critério subjacente à definição da conformidade das “conclusões” com o comando do art.º 690º nº1 do C.P.C. está necessariamente conexionado com a correspondente aptidão para exercerem a sua função deliaritadora e sinalizadora do campo interventivo do Tribunal de recurso.
É essa função das “conclusões” que legitima a existência de normas processuais que exigem a sua dedução e que cominam o seu desrespeito com o não conhecimento do recurso.
Compreende-se esta exigência legal e as gravosas consequências que extrai do seu incumprimento, sabido, como é, que o objecto dos recursos é delimitado pelo núcleo conclusivo das respectivas alegações – cfr. o citado art.º 690º nº1 e o art.º 684º nº3 do mesmo compêndio adjectivo – de cujo postulado decorre que o poder censório do Tribunal “ad quem” está necessariamente circunscrito às “questões” que, não sendo do conhecimento oficioso, tenham sido levadas efectivamente àquele núcleo conclusivo, não podendo ser sindicadas quaisquer outras, mesmo que dilucidadas no próprio texto alegatório.
3-1-2
Compulsando as alegações da revista, constata-se que a recorrente começa por retomar uma das questões suscitadas na apelação, directamente conexionada com a decisão atinente à matéria de facto.
Nesse outro recurso – e na parte ora útil – salientava a recorrente que a sentença da 1ª instância operara uma deficiente reprodução da concreta factualidade dada como provada após o julgamento, extraindo desse vício uma pretensa nulidade decisória, “... uma vez que os factos atrás referidos, e que fundamentam a decisão recorrenda, não se mostram conformes com o que, efectivamente, foi dado como provado a fls. 192 dos autos”.
Neste particular entendeu o Tribunal da Relação que, não tendo o vício em apreço sido deduzido, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, lhe estava vedado o seu conhecimento – art.º 77º nº1 do C.P.T. – sendo que tal vício até foi “rectificado” na 1ª instância.
Ainda que tenha repristinado agora a referida questão – conforme dissemos – a verdade é que a recorrente não dirige qualquer específico reparo à decisão da Relação.
Por outro lado – e aqui decisivamente – não cuidou de levar a “questão” do núcleo conclusivo recursório.
Tanto basta, à luz das considerações anteriormente referidas, para concluir que a assinalada “questão” não integra o objecto da presente revista.
3.1-3
Cingindo-nos, como imposta, às “conclusões” da minuta alegatória, verifica-se que a recorrente questiona dois dos segmentos decisórios do Acórdão impugnado:
- o que rejeitou a impugnação da decisão factual da 1ª instância por entender que a ali apelante não havia satisfatoriamente cumprido o disposto no art.º 690º -A nº1 do Cód. Proc. Civil;
- o que, face ao acervo fáctico apurado, qualificara como “contrato de trabalho” a relação jurídica aprazada entre as partes.
Sendo assim, também o objecto da revista se circunscreve a duas questões:
1ª – a de saber se a recorrente observou, ou não, em sede de apelação, o referido ónus do art.º 690º-A nº1;
2º - a de qualificar a assinalada relação jurídica.
3.2
Ao recorrente da matéria de facto, no âmbito da apelação, impõe-se desde logo, a necessária observância, sob pena de rejeição do recurso, do ónus previsto no citado art.º 690º A nº1:
- a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – al. A);
- a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizados, que impunham, sobre a factualidade impugnada, decisão diversa da recorrida – al. B).
O Acórdão da Relação rejeitou a reclamada reapreciação da decisão factual, dizendo que a recorrente “... não especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.
E, particularizando, acrescenta:
“Com efeito, embora refira excertos de alguns depoimentos testemunhais, com indicação da localização dos mesmos nas cassetes, e aluda a determinados documentos, se bem que muitas vezes se refira aos documentos junto aos autos (que já levam mais de oitocentos e cinquenta folhas) em termos absolutamente vagos e genéricos, não concretiza quais dos factos dados como provados que não o deveriam ter sido, da que deveriam tê-lo sido em termos diferentes, nem quais, dos alegados e julgados não provados, deveriam ter sido dados como provados”.
Vejamos.
É notório, antes do mais, que a recorrente não teve a preocupação de separar claramente as questões suscitadas, designadamente no que respeita à impugnação da decisão factual, em cujo âmbito se lhe impunham cuidados redobrados, atentos os ónus que lhe cabia observar.
Com efeito, torna-se patente que a ali apelante, começando as suas alegações com a dedução da já referida nulidade decisória, e tendo logo anunciado que se seguiria a impugnação da decisão fáctica, acabou por entrar perfunctóriamente nesta última questão, “misturou-a”, de seguida, com a qualificação jurídica do contrato e só veio a retomar ulteriormente a sua abordagem com a referência, que faz, à “prova testemunhal” e à “prova documental”.
Por outro lado, ao censurar as respostas dadas à “Base Instrutória”, salienta a recorrente que o Tribunal “a quo”... andou mal, dando como provados factos que a prova documental desmente e apreciando a prova testemunhal em desconformidade com o que efectivamente foi dito por algumas testemunhas ( que identifica)”.
A referência, aos concretos “pontos” censurados é deixada para momento ulterior mas, mesmo assim, limitava-se a recorrente a dizer que “...algumas, das afirmações que antecedem” – trata-se de factualidade dada como provada – não podem deixar de ser tidas “... como da mais pura ficção piedosa, mormente quando se diz que o Autor tinha o seu local de trabalho nas instalações da Ré e que cumpria o horário de trabalho determinado por esta”.
Mas quando, mais tarde, reproduz alguns extractos da prova testemunhal – supostamente limitados àquelas matérias, - já parece alargar a sua censura a outros pontos factuais, designadamente, “... à autonomia com que o recorrido, desempenhava as suas funções”, “... à retribuição que auferia” e, enfim, “... à marcação e gozo de férias”.
Ora, parece de todo evidente que o legislador, ao consagrar o ónus plasmado no art.º 690-A nº1, pretendeu que o recorrente determinasse, de forma inquestionável, a pontos factuais de que discorda e os fundamentos por que discorda, bem como a solução que sustenta e os respectivos fundamentos.
Não foi esse, manifestamente, o caso, com evidente prejuízo para a necessária inteligibilidade dos reparos produzidos e das soluções reclamadas.
Esta conduta da recorrente, que não pode deixar de recuar como vício procedimental, estende-se aos meios probatórios aduzidos, na vertente documental.
Com efeito, a recorrente factualiza aquilo que, em sua óptica, deveria ter sido dado como provado, com base na “... extensa prova documental carreada para os autos por ambas as partes”, de que apenas particulariza uma pequena parte, fazendo-o, aliás, sem o necessário rigor sistemático:” (v. ofício da Seg. Social, de Fevereiro de 2004, a fls... dos autos), (outra informação da Seg. Social, dada entrada no Tribunal a quo em 14 de Abril de 2004, a fls. ... dos autos), (declarações de IRS respeitantes aos anos de 1997 a 2001, juntas aos autos por requerimento de 25/2/04, a fls...) e (v. doc. 8, junto com a contestação).”
Ora, mesmo a entender-se que a situação jurídica em análise pode comportar um convite de aperfeiçoamento da alegação produzida – por aplicação analógica do art.º 690º nº4 do C.P.C. – sempre nos parece que esse convite só deve justificar-se quando se evidencie alguma prolixidade susceptível de legitimar alguma dúvida pontual sobre a pretensão deduzida mas, a par disso, seja disso, seja também notório um esforço de identificação dos pontos factuais censurados e dos elementos probatórios que viabilizam essa censura.
Mas não foi esse o caso: a recorrente não só não cuidou de individualizar a matéria questionada, como também não teve o cuidado – designadamente quanto à prova documental – de conexionar cada facto censurado com os elementos probatórios que lhe correspondiam.
Não se mostrando minimamente cumprido o ónus em análise, resta sufragar a solução que desse vício extraiu o Acórdão impugnado.
3-3-1
As instâncias qualificaram o contrato ajuizado como contrato de trabalho, reclamando a Ré que a própria factualidade provada evidencia a celebração de um contrato de agência.
Na definição legal, contrato de trabalho é aquele mediante o qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta (art.ºs da L.C.T. e 1152º do Cod. Civil).
Decorre desta definição que a “subordinação jurídica “do trabalhador à sua entidade patronal constitui o elemento essencialmente caracterizador e diferenciador do contrato de trabalho, que o permite distinguir de outros afins, designadamente o contrato de agência.
Conforme escreve Galvão Telles, a referida subordinação consiste em poder a entidade empregadora orientar, de algum modo e em si mesma, a actividade exercida, quanto mais não seja no tocante ao lugar e ao modo da sua prestação (cfr. “Contratos Civis”, pags. 62 e 63).
No mesmo sentido se orienta Monteiro Fernandes: “ Para que se reconheça a existência de um contrato de trabalho, é fundamental que, na situação concreta, decorram as características da subordinação jurídica por parte do trabalhador (...). A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato, face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem” (in “Direito do Trabalho”, 11ª ed., pag. 131).
Apesar desta convergente orientação, nem sempre é fácil identificar, no plano concreto, os elementos diferenciadores dos diversos contratos afins.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm-se socorrido, nessa tarefa distintiva, da verificação, ou não, de determinados índices, a apreciar em concreto e interdependentes entre si.
Ainda segundo Monteiro Fernandes, constituem índices de subordinação “… a vinculação em local definido pelo empregador, a existência de contrato externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa – tudo elementos retirados da situação típica de integração numa organização técnico-laboral, predisposta e gerida, por outrém. Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, por regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. São ainda referidos indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem” (in “ob. cit.”, pág. 143).
Também Pedro Romano Martinez, referindo que o critério-base para a qualificação do contrato de trabalho será sempre o da subordinação jurídica, pondera a necessidade de recorrer a métodos indiciários negociais internos e externos (in “Manual de Direito de Trabalho”, pags. 306 a 311).
No âmbito dos índices internos, alude àqueles que já acima se mostram descritos e, quanto aos índices externos, particulariza os seguintes: o facto de o prestador de serviço desenvolver a sua actividade ou actividade idêntica para diferentes beneficiários – o que indicia uma independência não enquadrável na subordinação da relação laboral – a inscrição, na Repartição de Finanças, como trabalhador dependente ou independente e a declaração de rendimentos, a inscrição do prestador de actividade na Segurança Social e ainda o facto de ele se encontrar sindicalizado – situação indiciadora de que o contrato é de trabalho.
Num Parecer publicado na R.D.E.S. (Ano XXIX, nº1 – Jan – Mar. de 1987, págs. 57 a 80), Fernando Ribeiro Lopes conclui que a “subordinação jurídica” se concretiza na dependência do trabalhador perante vários direitos ou poderes da entidade patronal, entre os quais avultam:
1 – o poder determinativo da função, corporizado na faculdade atribuída à entidade patronal, de escolher, dentro do género de trabalho em que se integra a categoria do trabalhador, actividade de que ela carece. A tal direito corresponde, na esfera do trabalhador, um dever de conduta direccionado para a realização da função efectivamente escolhida pela entidade patronal;
2 – o poder conformativo da prestação, consistente na faculdade, que a actividade patronal tem de especificar os termos em que deve ser prestado o trabalho, o que se projecta na esfera do trabalhador através de um dever de obediência;
3 – o poder-dever, de elaborar um horário de trabalho, a que corresponde o dever de assiduidade e pontualidade por banda do trabalhador.
Acrescenta o mesmo Autor que o modelo actual da relação de trabalho ainda contém, por via de regra, algumas especificidades cujo fundamento já não radica na “subordinação jurídica” do trabalhador: a propriedade dos meios de trabalho, a pertença do local de trabalho e a modalidade da retribuição.
Caberá referir em suma que a assinalada “subordinação jurídica” terá que decorrer de vários indícios, como sejam a organização do trabalho, o resultado do trabalho, a propriedade dos instrumentos de trabalho, o lugar do trabalho, o respectivo horário, a retribuição, a prestação do trabalho a um único empresário, a existência, ou não, de ajudantes do prestador de trabalho e, enfim, os descontos efectuados para a Segurança Social e IRS como trabalhador independente ou dependente.
Como quer que seja, torna-se patente que cada um dos referidos indícios, tomados de per si, assumem natural relatividade, o que implica a necessidade de formulação de um juízo global, face à relação jurídica concreta.
É dizer que a pretendida qualificação do contrato deve ser feita caso a caso, comportando necessariamente alguma margem de indeterminação e até de subjectividade na valoração dos indícios disponíveis.
3.3.2
Escalpelizada, em termos genéricos, a caracterização do contrato de trabalho, é altura de também aludir ao contrato de agência ainda que perfunctóriamente, dado que apenas releva a sua caracterização no confronto com o vínculo laboral.
Nos termos do art.º 1º nº1 do D.L. nº 178/84, de 3 de Julho, “Agência é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta de outra a celebração de contratos de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa jorna ou determinado circulo de clientes”.
E, segundo o art.º 7º do mesmo diploma, “o agente é obrigado, designadamente:
A) a respeitar as instruções da outra parte que não punham em causa a sua autonomia;
B) a fornecer as informações que lhe foram pedidas de que se mostrem necessárias a boa gestão, mormente as respeitantes à solvabilidade dos clientes;
C) a esclarecer a outra parte sobre a situação do mercado e perspectivas da sua evolução;
D) a prestar contas, nos termos acordados, ou sempre que isso se justifique”.
Conforme observa Lacerda Barata (in “Anotações ao Novo Regime do Contrato de Agência, LEX - Edições Jurídicas, 1994, pág. 12),” ... são elementos essenciais do contrato de agência: 1 – a obrigação de promoção de contratos; 2 – a actuação do agente por conta do principal; 3 – a autonomia do agente; 4 – a estabilidade do vínculo; 5 – a onerosidade do negócio”.
A “autonomia”, como elemento preponderante do contrato em análise, constitui o contraponto essencial da “subordinação jurídica” inerente ao contrato de trabalho.
Essa autonomia, não sendo absoluta – pois o agente deve corresponder às orientações recebidas do principal, adequar a sua actuação à política económica da empresa e prestar regularmente contas da sua actividade – deve ter necessariamente, ainda assim, o âmbito bastante para impedir que o principal interfira de algum modo, na organização e no método de trabalho o agente. (cfr. Pinto Monteiro in “Contrato de Agência” Anotação, 3ª edição, pags. 40-41 e 62-63).
Saliente-se ainda que a obrigação principal de agente é a de promover a celebração de contratos por conta do principal mas não a de os concretizar, salvo se a outra parte lhe tiver conferido, expressamente e por escrito, os necessários poderes para o efeito – art.º 2º nº1 do diploma citado.
3-3-3
É altura de reverter ao concreto dos autos.
As considerações precedentes já permitem perceber como é difícil distinguir tipos negociais que tenham, como aqui, vincada similitude na sua execução prática.
Essas dificuldades vêm-se acentuando com a “mutação que o modelo tradicional da relação de trabalho tem vindo a sofrer, a que não são alheios os fenómenos da desmaterialização do trabalho, da terciarização da economia, da proletarização das profissões liberais e do surgimento de novas estruturas empresariais”, como se disse no Acórdão desta Secção de 28/6/06 (Proc. nº 892/06 – Rel. Cons. Sousa Peixoto).
De resto – acrescenta o mesmo Aresto, citando Pedro Martinez, “... há hoje uma multiplicidade de profissões que podem ser exercidas com autonomia ou mediante contrato de trabalho. E a autonomia técnica e a criatividade que são inerentes a algumas delas tornam por vezes difícil a qualificação de uma determinada situação jurídica em concreto”.
O caso dos autos não escapa a essa dificuldade, decorrendo do acervo factual a existência de elementos que favorecem um e outro dos tipos contratuais em confronto.
Como elementos abonatórios do contrato de agência evidenciam-se: os termos do contrato celebrado entre as partes no início de 1992, nos termos do qual o Autor se comprometeu a promover, por conta da Ré, a venda dos produtos que esta comercializava; a delimitação geográfica da área de actuação do Autor; a remuneração variável, reportada à atribuição de comissões e prémios; as declarações do Autor para efeitos fiscais, onde o mesmo se integra, inicialmente na classe “C” e, ulteriormente, na classe B; a emissão e entrega à Ré, por parte do Autor, de recibos de “prestação de serviços”.
Em contrapartida, o elenco seguinte aponta claramente para o vínculo laboral: o pagamento mensal ao Autor, em cheque ou numerário, de €150 a título de despesas; a utilização, pelo mesmo, de um cartão “Galp Frota” fornecido pela Ré, com um plafond médio mensal de €250; a cedência, também pela Ré, de uma viatura para uso profissional e pessoal; o contrato, pela Ré, dos quilómetros percorridos pelo Autor; era a Ré que estipulava os objectivos de vendas a promover pelo Autor, de harmonia com o seu interesse comercial; era a Ré que autorizava a ida de férias do Autor e demais colegas, após a apresentação, por estes, do respectivo plano; quando não se encontrava em visitas a clientes no exterior, o Autor trabalhava nas instalações da Ré, onde se sujeitava a um horário de trabalho (das 10h às 19h, com intervalo para o almoço) e onde utilizava os seguintes instrumentos de trabalho fornecidos pela Ré: material promocional dos produtos fabricados montados e comercializados pela Ré, folhas, papel, esferográficas, secretária, computador e cartões de visita; o Autor dispunha de telefone fixo e de telemóvel, fornecidos e pagos pela Ré; aquando do início das suas funções, na sequência do contrato aprazado em 1992, o Autor ficou integrado no departamento comercial, com as funções – assim designadas pela Ré – de “vendedor”.
Sendo embora certo que o regime fiscal do Autor e a emissão de “recibos verdes” constituem indícios importantes da existência de um contrato de agência, importa reconhecer – como fizeram as instâncias – que o número e relevância dos demais elementos (local de trabalho, horário de trabalho, utilização nos termos referidos, de viatura e utensílios da empresa, a definição dos objectivos de vendas e a integração do Autor no departamento comercial da Ré) apontam decisivamente para a qualificação do vínculo como contrato de trabalho.
No necessário juízo global a que cabe proceder, toda essa factualidade revela uma acentuada ingerência da Ré, quer na organização, quer no conteúdo e no modo de exercício da actividade do Autor, evidenciando que essa actividade era exercida sob a “autoridade e direcção” da Ré.
Nestes termos, somos a concluir que não merece qualquer censura a qualificação do contrato operada pelas instâncias.
E, não vindo questionadas as consequências jurídicas que dessa qualificação se extraiu, a revista da Ré não pode deixar de improceder totalmente.
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4 - DECISÃO
Em face do exposto, acordam em negar a revista, confirmando o Acórdão impugnado.
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Custas pela Ré

Lisboa, 13 de Julho de 2006

Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis