Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2139/20.7T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: NULIDADE DE DECISÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO GROSSEIRO
CONHECIMENTO OFICIOSO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A oposição entre os fundamentos e a decisão, podendo constituir a causa de nulidade da sentença prevista na alínea c), do nº1 do art. 615º do CPC, não consubstancia erro grosseiro enquanto fundamento da responsabilidade civil extracontratual do Estado, para efeitos do art. 13º da Lei nº 67/2007 (RRCEE);

II – Trata-se de numa nulidade, como as das alíneas b), d) e e), da mesma norma, que não é de conhecimento oficioso, devendo ser suscitada em sede de recurso de apelação, ou incidentalmente perante o juiz, consoante a sentença admita ou não recurso ordinário;

III – Em face do disposto no nº2 do art. 13º da RRCEE, o reconhecimento judicial do erro terá de ser demonstrado, não através da acção de responsabilidade civil que se destine a efectivar direito de indemnização pelo exercício da função jurisdicional, mas no próprio processo em que foi cometido o erro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA, instaurou acção declarativa de condenação contra o Estado Português, por alegado erro judiciário, nos termos do regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEE), aprovado pela Lei 67/2007 de 31 de dezembro.

Pede a condenação do Réu a pagar-lhe:

a)- A quantia de 53.894,05 (71.589,05 - 18.000,00€),


b)- A quantia de 3.233,64, relativa aos juros de mora, sobre tal quantia de 35.894,28, contados nos termos das ditas sentenças, desde a data da prolacção da sentença de Instância, em 12.10.2018 até ao momento da instauração da presente acção(…).


Devidamente citado, o Ministério Público contestou, arguindo a excepção peremptória da falta do pressuposto a que alude o n.º 2 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, pelo que a acção deve improceder.


Realizada a audiência prévia, foi proferido saneador-sentença que absolveu o Réu do pedido, em face da procedência da excepção deduzida pelo Réu.


Inconformada, a Autora interpôs recurso de revista per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:


A


1ª. - A Recorrente tem direito a receber a quantia de € 53.859,05, a título de dano biológico, por força das próprias sentenças transitadas em julgado

2ª. É absolutamente irrelevante – por desnecessária e sem sentido algum, porque violadora dos princípios consagrados no nosso ordenamento jurídico – a exigência de uma prévia revogação da decisão danosa, conferindo ou reconhecendo um direito, porquanto o mesmo se encontra já atribuído pelas próprias 2 sentenças recorridas, ambas transitadas em julgado.

Tendo a sentença de 1ª instância declarado, com contas detalhadas:

“Aplicando estes dados obtemos os resultado de €71.859,05 (€1.287,22*55 anos*1,5%= 71.859.05.

Dada a circunstância de a antecipação do recebimento do capital constituir um benefício para quem o recebe, por não ser a mesma coisa receber uma quantia de uma só vez ou recebê-la em diversas parcelas ao longo do tempo, justificar-se-ia que àquele valor se descontasse ¼, com, o que se obteria o valor final de €17.964,76” – fls…dos presentes autos.


B


Tendo o acórdão da Relação de Guimarães mantido – na íntegra – tal decisão, de 1ª instância, tendo ambas as sentenças condenado a Ré Seguradora a pagar à Recorrente uma indemnização de apenas €18.000,00, não obstante haverem declarado o direito de receber a quantia de €71.859,5, à qual mandava deduzir a quantia de €18.000,00, ou seja, a quantia de €53.859,05,

Impõe-se se conclua que:

- Ambas as sentenças cometeram erro judiciário palmar, supino, crasso, gravemente negligente, intolerável, grosseiro

- Tal tipo de erro conduziu a uma decisão aberrante, com grave prejuízo material para a ora Recorrente.


C


Atentas as conclusões anteriores, importa concluir que:

No caso concreto dos autos, a exigência de uma prévia revogação da decisão danosa, como decorre da sentença recorrida, sempre constituiria um manifesto atentado ao princípio da proporcionalidade, no caso concreto, em favor do lesante, como decorre do recente Ac. STJ e 05.06.2018, Ana Paula Boularot.


D


A previsão do art. 13º do RJRCEEP, de que haverá responsabilidade por actos jurisdicionais “stricto sensu”, em caso de decisões manifestamente inconstitucionais ou ilegais inspirou-se na jurisprudência comunitária, que decidiu, atendendo às especificidades da função jurisdicional, que só poderá haver responsabilidade do Estado resultante de uma violação do direito comunitário por decisão jurisprudencial no caso excepcional de o juiz ter ignorado, de modo manifesto, o direito aplicável. 

E


O disposto no art. 13º/2 do RJRCEEP revela-se em oposição à jurisprudência do TJUE, porquanto exige que haja uma prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, o que no caso dos autos, é inaplicável, pois que:

a) estamos perante duas decisões judiciais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto;

Isto é,

b) – Não se trata de responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos.

c) – Invoca-se, como causa de pedir da responsabilização civil extracontratual do Estado, tal erro grosseiro.

d) – A Autora (lesada) interpôs recurso ambas as decisões, impugnando-a, primeiro junto do Tribunal da Relação de Guimarães, depois junto do STJ e, finalmente, por força da não admissibilidade do recurso de revista, por o valor do processo não o admitir, novamente junto do Tribunal de 2ª instância.

Ou seja,

e) – Percorreu/esgotou todas as instâncias recorríveis, impugnando as decisões das duas referidas instâncias, não só relativamente à questão da indemnização ora em causa, conforme resulta dos documentos juntos aos autos com a p.i., com a contestação (cf. fls. 260 destes autos).


F


Declarando ambas as decisões, transitadas em julgado:

Ora, tendo em conta os critérios jurisprudenciais e as circunstâncias do caso, e adoptando a fundamentação e fórmula de cálculo proposta no Ac. TRG, de 10.04.2014, a expectativa de vida da A., em termos estatísticos (pelo menos, mais 55 anos) – de acordo com os elementos fornecidos pelo INE relativamente à esperança média de vida – sendo de 77,36 para os homens e 83,23 para as mulheres – o grau de incapacidade que a afecta (0,06), e ainda julgando como equitativo para efeito de base de cálculo, a média de €1.533,00 x 14, uma IPG de 0,06, com uma taxa de juro de 1,5%, a perda salarial cifra-se em €1.287,72 (21.462x0,06); aplicando estes dados obtemos o resultado de €71.859,05 (€1.287,22 x 55 anos x 1,5% =€71.859,05) valor ao qual é deduzida a quantia de €18.000,00.

Importa concluir que:

1º: - Cabendo à A. o declarado direito de receber a diferença entre esses dois valores - €53.859,05 – é absolutamente irrelevante, por desnecessário e sem sentido algum, a exigência de uma revogação da decisão danosa, conferindo/ reconhecendo um direito, que já se encontra atribuído, por tais sentenças transitadas em julgado;

2ª. Reconhecido que está o direito a receber €53.895,05, mas condenando-se a pagar apenas €18.000,00, só há uma coisa a fazer: Declarar tal tipo de erro e indemnizar a A., nos termos do disposto na Lei nº 7/007 de 31.12;

3ª. Ao decidir de forma diferente, a sentença subverteria, desde logo, o consagrado princípio da divisão de poderes, assim como o da efetivação de um direito constitucionalmente previsto no art. 22º da CRP.


G.


A sentença recorria viola as Directivas Comunitárias:

1º.

As jurisdições nacionais devem, dentro do possível, interpretar o respectivo direito nacional à luz doas Directivas Comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas. É a chamada obrigação de “interpretação conforme” (Ac. STJ de 04.10.2007, RLJ, ano 137º, nç 3946, pag. 44).

2º.

Impõe-se, por isso, com vista ao respeito pelo princípio da primazia do direito comunitário em relação ao direito infra-constitucional e pelas soluções que o próprio legislador nacional sufragou, o entendimento de que o regime emergente do DL nº 14/96 de 06.03, pretende regular não apenas as situações ocorridas posteriormente à sua entrada em vigor como também as anteriores que ainda não tenham sido objecto de decisão transitada em julgado.

O legislador por densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa (…) constitui pressuposto da responsabilidade.

Conforme as alusões que acima fizemos à jurisprudência e a Doutrina, a Lei não pode restringir arbitrária ou desproporcionalmente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no art. 22º da CRP.


H


No caso concreto dos autos, comprovada fica a incompatibilidade com o direito da União Europeia a solução.


Com efeito, na sequência dos desenvolvimentos do direito da União Europeia, em especial por força da jurisprudência Kobler e Traghetti, é hoje consensual a admissibilidade a responsabilidade de um Estado membro da União, em consequência de violação do direito da União imputável ao exercício da função jurisdicional, mesmo que tal violação resulte da decisão de um tribunal que decida em última instância.


No caso dos autos, a norma do nº2 do art. 13º do RCEEP viola o princípio da igualdade, por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erro judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objecto de recurso.


I


No caso concreto – porque houve recurso e, após irem os autos ao STJ, um pedido de reapreciação ou de reforma da sentença recorrida, já em 2ª instância – a exigência de uma prévia revogação sempre representaria:

a) Retirar da esfera do lesado a via indemnizatória de reparação “por circunstâncias estritamente processuais”, significa uma ilegítima restrição do direito fundamental à efectiva tutela jurisdicional, “tanto mais chocante quanto o dano não resulta de ilicitudes comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros, imputáveis precisamente a quem a Constituição comete a tarefa de proteger os direitos e interesses legalmente protegidos”.

b) – O reexercício da função jurisdicional sobre a mesma questão.


J


No presente processo, que é indemnizatório, o Juiz não vai rever as duas sentenças para as confirmar ou revogar antes tem de apreciá-las sob uma perspectiva específica – que é a sua relevância como fonte do dever de indemnizar – e com um objectivo específico – que é o de reconhecer o correspondente direito indemnizatório.

Ou seja,

Neste processo indemnizatório, o que está em causa é efeito jurídico-material decorrente da sentença, e não a sentença como acto decisório com certo conteúdo e com determinados efeitos.


L


Pode haver razões de peso que justifiquem a modelação do direito à indemnização, sempre que este interfira com a lógica de organização e funcionamento do próprio sistema judiciário.

São tais razões que também podem justificar a solução do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, mas sempre cotejada com os parâmetros constitucionais da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva.

Por isso, importa concluir que:

No caso dos autos e pelas razões acima invocadas de todo se não justifica a intervenção da figura contida no nº 2 do artº 13º, do RCEEP.

Porquanto:

 a) Disso não resulta a desautorização de uma decisão transitada em julgado, desde logo porque o direito material da Recorrente à indemnização de €53.894,05, existe reconhecido e declarado nas sentenças transitadas em julgado;

b) No quadro do direito da União Europeia e face à impossibilidade de os cidadãos demandarem directamente os Estados membro junto do Tribunal de Justiça, é assegurada a primazia e efectividade do direito da União Europeia e da jurisprudência do TJUE, juntamente com a tutela jurisdicional.


M

Tendo em conta que:

O direito que ambas as sentenças reconhecem à ora Autora – receber uma indemnização de €53.894,05 – mas condenando a ré Seguradora a pagar, apenas, a quantia de €18.000,00.

Importa concluir que:

1. Não se pode falar em “probabilidade séria” de ocorrer um “erro grosseiro”, antes tem que se considerar verificado um óbvio erro grosseiro, o que, por si só, dispensa a prévia revogação da decisão jurisdicional, pela razão simples de que a objectividade, segurança e a certeza jurídica de modo algum ficam postas em causa.

2. Sequer necessário recorrer à existência no processo de documentos ou outros meios de prova plena, que impliquem necessariamente decisão diversa da proferida, porquanto em ambas as sentenças está reconhecido – expressamente – o referido direito a indemnização por dano biológico.


N

A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 22º e 202º da CRP, 576º, nº3, 607º, nºs 3 e 4, 13º do RJRCEE, assim como o primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional.

*


Em contra alegações o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1 Não se verifica nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, inexistindo, desde logo, qualquer ato ilícito.

2. Mesmo que se verificassem os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes da função jurisdicional, a falta do requisito da prévia revogação da decisão danosa pela instância competente, determina só por si, a improcedência da ação, conduzindo à absolvição do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pela autora.

3. Não foram violadas quaisquer disposições legais, nomeadamente o disposto nos art.s 22º e 202º da Constituição da República Portuguesa, 576º, nº 3 e nº 4 do C.P.C., 607º, nºs 3 e 4 do C.P.C. ou no art. 13º do RJRCEE.

4.  Sendo totalmente correta a sentença, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso interposto pela autora AA.


///


No recurso está em discussão saber se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado por erro judiciário. 

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.


///


Fundamentação.

A decisão recorrida assentou na seguinte factualidade:

1. No dia 11 de Junho de 2015, a ora Autora instaurou no Tribunal Judicial da comarca ... uma acção cível de indemnização contra a Companhia de Seguros Lusitânia, S.A, acção que ali correu termos com o nº 2281/15.6T8VCT.

2. Nesse processo foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, e consequentemente, condenar a Companhia de Seguros Lusitânia, S.A. a pagar à autora AA, as seguintes quantias:

- €4.223,25 (quatro mil duzentos e vinte e três euros e vinte e cinco cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a citação da e até efectivo e integral pagamento;

- €9.000,00 (nove mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros legais, à taxa de 4%, contados desde a data da prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

- 18.000,00 (dezoito mil euros), a título de indemnização pelo dano biológico, acrescida de juros legais, à taxa de 4%, contados desde a data da prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.

3.


A autora apresentou recurso de apelação de tal decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães o qual manteve a decisão da primeira instância.

4.

A autora apresentou recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, que  não foi admitido.

5.


A autora não arguiu qualquer nulidade ou correção de lapsos materiais ou rectificação das duas decisões judiciais proferidas na primeira instância e na Relação de Guimarães.

6.


Não existe decisão revogatória das decisões judiciais supra referidas.


O direito.


Na petição inicial da presente acção a Recorrente diz que a mesma “tem por fundamento a responsabilidade civil extracontratual do Estado – Lei nº 67/2007, de 13.12 – por decisão judiciária manifestamente inconstitucional, ilegal e injustificada resultante de um erro judiciário grosseiro, crasso, palmar, indesculpável, gravemente negligente ou mesmo culposo em que não teria caído qualquer juiz minimamente cuidadoso.


A Recorrente acusa de erro grosseiro a decisão proferida no P. nº 2281/15.6T8VCT (Juízo Local Cível ... -Juiz ...), uma acção de indemnização com base em acidente de viação,  intentada pela ora Recorrente contra a Companhia de Seguros Lusitânia SA, cuja sentença foi integralmente confirmada pelo  Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04.04.2019.


Concretamente, está em causa o segmento decisório da sentença referente à indemnização pelo dano patrimonial futuro (dano biológico), fixado em €18.000,00, valor mantido pela Relação e que, segundo a Recorrente, constitui um erro crasso, por na sentença lhe ter sido reconhecido direito à indemnização de €53.859,05.


A acção improcedeu na 1ª instância – foi interposta revista per saltum (art.678º do CPC) – por não se verificar o pressuposto do nº2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, a saber, a prévia revogação da decisão danosa.

Impõe-se previamente uma breve referência aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado por erro judiciário.


Tal responsabilidade tem fundamento no art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e encontra-se plasmada na lei ordinária, através dos artigos 12º e 13º da Lei nº 67/2007 de 31.12., que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas, (RRCEE).


No que especificamente respeita à responsabilidade por erro judiciário, rege o art. 13º do RRCEE que estatui:

1. Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2 – O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.


A consagração da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, como referido no acórdão deste STJ de 12.07.2018, CJ/STJ, II, pag. 177, “é novidade introduzida pelo regime criado pelo RRCEE, assim assumindo como certa ideia, hoje consensual, de que o Estado deve ressarcir os danos decorrentes de acto ilícito e culposo cometido exercício da função jurisdicional por um dos seus servidores, tal como sucede como os provocados no âmbito das demais responsabilidades estaduais.”


Estando em causa a responsabilidade civil extracontratual do Estado por alegado erro grosseiro de uma decisão judicial, é imperioso tomar em conta os princípios constitucionais, todos concretizados na lei ordinária, que definem a estrutura do poder judicial, a organização dos tribunais e o estatuto dos juízes.

Assim, é de referir que:

Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art. 202, nº2º da CRP);

Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º da CRP);

As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei (art. 205º da CRP);

Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei (art. 216º, nº2, da CRP);

Os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade e ambiguidade da lei, ou em caso de dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado (art. 3º, nº 2, do EMJ- Lei 21/85 de 30.07);

Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores de decisões proferidas, em via de recurso, pelo tribunais superiores (art. 4º, nº2 do EMJ);

Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas sua decisões (art. 5º, nº1 do EMJ);


Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar (art 5º, nº2 do EMJ).


É perante este quadro legal que há que avaliar acerca da existência de um erro de direito cometido em acto jurisdicional e da sua relevância enquanto facto gerador de responsabilidade.


É entendimento pacífico que apenas o erro evidente, crasso, indesculpável, inadmissível e sem justificação, que só por desatenção ou desleixo foi cometido, pode ser qualificado como erro grosseiro para efeitos do art. 13º do RRCEE.


O Conselheiro Carlos Alberto Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 2ª edição, pag. 262), escreve o seguinte:

“O erro de direito, enquanto fundamento de responsabilidade civil, deverá revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito.”

No mesmo sentido, se exprime o Professor Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, 7ª edição, pag.674:

“Sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer acto de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito  e pela valoração das provas. (…) Só nos casos de dolo ou culpa grave, “a culpa do juiz” tem de se integrar na ideia de funcionamento defeituoso do serviço de justiça”, também sob pena de se pôr em causa as dimensões fundamentais do iusdicere (autonomia e independência).”


Na jurisprudência do STJ e sem preocupação de se ser exaustivo, citam-se as seguintes decisões:

Ac. STJ de 28.02.2012, CJ/STJ, I, pag. 105:

“Os actos de interpretação das normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função, jurisdicional, são insindicáveis;

O erro de direito só constituirá fundamento de responsabilidade quando, salvaguardada a referida essência da função jurisdicional, seja grosseiro, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.”


(Ac. STT 23.10.2014, P. 1668/12):

“O erro de direito para fundamentar a obrigação de indemnizar terá de ser escandaloso, grasso, supino, procedente de culpa grave do errante, sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como de “erro grosseiro”.”

(Ac. STJ de 24.2.2015, CJ/STJ, I, pag. 114 e ss);

“O erro de direito terá de ser manifestamente inconstitucional ou ilegal; não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso, indesculpável, que o magistrado tem o dever de não cometer.”

No acórdão supra citado de 28.02.2012 (Nuno Cameira), teceram-se as seguintes considerações que pela sua pertinência se transcrevem:

“ (…) a ciência do Direito não é exacta, faz parte da sua essência, a controvérsia, a argumentação e interpretação. Por outro lado, como alguém já lembrou, o número de casos excederá sempre o número de leis; e como não vivemos num mundo ideal, perfeito, nem o legislador é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tribunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Enfim, a verdade absoluta é inatingível: tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos, e terminando nos juízes, tem o dom da infabilidade; todos estão sujeitos a errar e a induzir em erro.”


E acrescenta este douto aresto:

“A culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante a decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o “iter” decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido.”


Esclarecido o que deve entender-se por “erro grosseiro”, para efeitos do art. 13º da Lei nº 67/2007, é altura de reverter ao caso dos autos.


Na acção que correu termos sob o nº 2281/15.6T8VCT, a ora Recorrente peticionou, após ampliação do pedido, a condenação da Ré a pagar-lhe as seguintes indemnizações:

- €14.184,46, a título de perdas salariais;

- €55.000,00, por perda de capacidade de trabalho e de ganho (dano biológico);

- €15.000,00 por danos não patrimoniais.


Na 1ª instância a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo a indemnização por dano biológico sido fixada em €18.000,00, constando o seguinte da respectiva fundamentação:

“… tendo em conta os critérios jurisprudenciais e as circunstâncias do caso, e adoptando a fundamentação e fórmula de cálculo proposta no Ac. TRG, de 10.04.2014, a expectativa de vida da A., em termos estatísticos (pelo menos, mais 55 anos) – de acordo com os elementos fornecidos pelo INE relativamente à esperança média de vida – sendo de 77,36 para os homens e 83,23 para as mulheres – o grau de incapacidade que a afecta (0,06), e ainda julgando como equitativo para efeito de base de cálculo, a média de €1.533,00 mensais temos o seguinte: para o rendimento anual de €21.462,00 (€1.533x14 meses), uma IPG de 0,06, com uma taxa de juro de 1,5%, a perda salarial cifra-se em €1.287,72 (21.462x0,06); aplicando estes dados obtemos o resultado de €71.859,05 (€1.287,22 x 55 anos x 1,5% =€71.859,05).

Dada a circunstância de a antecipação do recebimento do capital constituir um benefício para quem o recebe, por não ser a mesma coisa receber uma quantia de uma só vez ou recebê-la em diversas parcelas ao longo do tempo, justificar-se-ia que àquele valor se descontasse ¼, com que se obteria o valor final de €17.964,76.

Assim sendo, entendemos equitativo arredondar esta indemnização para o valor de €18.000,00 (dezoito mil euros).

Trata-se de uma valor que entendemos consonante com as indemnizações fixadas a título de dano biológico, resultante da perda de capacidade de ganho arbitradas em outros casos, tendo naturalmente em conta as especificidades de cada um. Indicam-se as seguintes:

(…).”


A Recorrente interpôs recurso da sentença, com impugnação da matéria de facto, e insurgindo-se contra os valores indemnizatórios a título de dano biológico e danos não patrimoniais, pugnando pela sua alteração para €70.000,00 e 25.000,00, respetivamente.


A Relação de Guimarães negou provimento à apelação, e confirmou os valores indemnizatórios, fundamentando como segue a decisão quanto ao dano biológico:

“A Recorrente pretende que este valor seja elevado para €70.000,00 para ressarcimento dos “danos patrimoniais por ela sofridos, decorrentes da diminuição da sua capacidade de trabalho e de ganho/dano biológico.

Põe em relevo, para tal, reproduzindo-o, o quadro fáctico resultante dos factos provados nºs 18 e 29 a 34.

Argumenta para justificar tal pretensão, que, mesmo a manter-se inalterada aquela matéria, sempre a indemnização está muito longe de ser justa e adequada.

Nenhuma crítica concreta, porém, aduz contra qualquer dos múltiplos fundamentos expostos pelo tribunal a quo e por este utilizados para chegar ao resultado adequado.

Na verdade, reproduzindo, ao longo das suas alegações a este respeito, conceitos teóricos sobre o dano e sua reparação, bem com sobre os critérios prático-jurisprudenciais aludidos em alguns arestos que cita, mais não faz do que repetir, em abstrato, elementos confluente (pontuação com que as sequelas foram valorizadas, resultados das fórmulas e tabelas matemáticas, equidade, esperança média de vida, correcção pelo recebimento imediato da indemnização) que, a seu ver, devem ser atendidas em circunstâncias similares, mas sem a menor alusão a que estas noções e critérios não tenham porventura sido (devidamente) tidas em conta e estes factores (justamente) aplicados e nas operações respectivas ou no resultado achado exista algum erro que deva ser corrigido.

Assim, esquecendo até o pedido a tal respeito formulado na ampliação (€55.000,00), tomou como rendimento anual o de 17.500,00€ (quando a sentença até considerou como base o de 21.462,00€, resultante da média mensal apurada a partir dos vencimentos provados no ponto 31), multiplicou igualmente por 6% (seis pontos) e, ainda, 58 anos de vida esperada (86 a seu ver face de à expectativa de evolução futura – menos os 28 que a Autora tinha à data do acidente (…),  assim obtendo o valor de 60.900,00€, que afoitamente arredondou para 70.000,00€, por viver no ... e lá haver aumentos anuais de rendimentos (esquecendo por certo que, querendo referir-se aos laborais, a verdade é que, entretanto – sem qualquer nexo demonstrado com o acidente – perdeu o emprego, nenhum outro tendo conseguido, afirmando-se privada de rendimentos, a não ser os de “um ou outro trabalho de limpeza.”

Por isso e porque, afinal, nenhuma crítica a recorrente tece ao modo como foram valorizados os factos à luz daqueles critérios nem as demais com que o tribunal operou, designadamente as circunstâncias concretas do caso (que, como se sabe, muito pesam na ponderação equitativa em ordem a ajustar a indemnização à ideia de justiça que ressuma do caso concreto em confronto com outros similares) e a necessária correcção imposta pelo recebimento antecipado, deparamo-nos com a inexistência de verdadeiros fundamentos alegados que, uma vez por nós devidamente reapreciados e eventualmente julgados correctos e meritórios (procedentes), possam sustentar a alteração do valor fixado.

Como bem diz a apelada, “não há qualquer justificação para a alteração dos montantes indemnizatórios fixados”.

Daí que tal questão deva improceder.”


Resulta do exposto, que a afirmação da Recorrente segundo a qual a indemnização de €53.859,05 “foi-lhe reconhecida por duas sentenças” não tem, com o devido respeito, fundamento.


A indemnização pelo dano biológico foi fixada na sentença em €18.000,00, como valor equitativo, em consonância com as indemnizações fixadas por dano biológico em casos semelhantes, como dela expressamente consta, valor que a Relação confirmou pelas razões supra transcritas.


É certo que a fundamentação da sentença, como decorre do excerto supra transcrito, parecia apontar para uma outra decisão, mais consentânea com os €53.859,05 defendidos pela Recorrente.


A situação poderia configurar a causa de nulidade a que alude o art. 615º, nº1, alínea c) do CPC – é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão - por falta de sintonia lógica entre a motivação e a decisão, um vício que não é de conhecimento oficioso, que carece de ser arguida incidentalmente perante o juiz, nos casos em que a sentença não admita recurso ordinário, ou em sede de apelação nos casos em que o admite (nº4 do art. 615º do CPC).


No caso vertente, no recurso de apelação da sentença a Recorrente tinha o ónus de arguir a nulidade da sentença, mas não o fez.


Não tendo sido arguida a nulidade da sentença, e não sendo de conhecimento oficioso, a Relação apenas conheceu das questões suscitadas que lhe cabia conhecer, a reapreciação da matéria de facto e os valores indemnizatórios fixados na sentença.  


É dizer que a Recorrente tinha ao seu dispor um meio para correcção do eventual erro cometido pela sentença, que seria o mecanismo normal para superar a incorreção da decisão judicial, que não usou, pretendendo agora responsabilizar o Estado por uma decisão judicial que, sem razão, reputa de enformada por erro grosseiro.


Os vícios previstos nas alíneas b) a e) do nº1 do art. 615º, que conduzem à nulidade da sentença, que em rigor, constituem situações de anulabilidade, (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º, pag. 735), não consubstanciam erro grosseiro enquanto fundamento da responsabilidade civil extracontratual do Estado, para efeitos do art. 13º da Lei nº 67/2007.


Ainda que a decisão proferida no P. 2281/15.6T8VCT estivesse inquinada por erro grosseiro, tal erro teria de ser reconhecido no próprio processo em que foi cometido, nos termos do nº 2 da Lei nº 67/2007.


Como referido no Acórdão do STJ de 24.02.2015, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo em que foi cometido e através dos competentes meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.”

Acrescenta:

“Constituiria, na verdade, evidente ilogismo institucional que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente “desautorizada” por outro tribunal, porventura de diferente espécie.

Acompanhando Cardoso da Costa, pode acrescentar-se que a revogação da decisão danosa há-de constar de decisão definitiva, isto é, transitada em julgado, e é aí que terá de ser reconhecido o pressuposto substantivo da responsabilidade – “o carácter manifesto do erro de direito ou o carácter grosseiro do erro na apreciação dos factos.” Por outro lado, a revogação deve emanar de um tribunal superior em via de recurso ou do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando tal seja admissível (através de reclamação ou pedido de reforma – cfr. art. 616º do CPC.

“Onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais, ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade”.


No mesmo sentido Carlos Cadilha, obra citada, pag. 276:

“O reconhecimento judicial do erro constitui um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional, sendo uma condição prévia à demonstração da ilicitude, como pressuposto necessário do direito à indemnização.

Se não se fizer a prova no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder. Se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria em causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil.”


Estas considerações, com as quais inteiramente concordamos, tem plena aplicação ao caso dos autos.


Ainda que a sentença de 1ª instância proferida na acção nº 2281/15.6T8VCT tivesse incorrido em erro grosseiro, e vimos já que não, tendo a mesma sido mantida pelo tribunal de recurso, não se verifica o pressuposto da responsabilidade civil do Estado.


Na conclusão H, a Recorrente sustenta que a norma do nº2 do art. 13º do RCEEP viola o princípio da igualdade, por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erro judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objecto de recurso.

           

Sucede que a sentença pretensamente inquinada por erro judiciário era, como foi, passível de recurso, sem que na apelação tal questão tenha sido suscitada.


A alegação de violação do princípio da igualdade não tem a menor consistência.

Como observado no Ac. do STJ de 24.02.2015, “o princípio da igualdade exige um tratamento igual para o que é igual e tratamento diverso para situações diferentes.

Ora, como parece evidente, é bem distinta, podendo ter tratamento diferenciado, a situação de uma decisão transitada em julgado, que não pode ser perturbada na sua eficácia, e uma decisão que pode vir a ser revogada em recurso e que deixa, por isso, de produzir efeitos”.


Com o que improcedem na totalidade as conclusões da Recorrente.


Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 21.03.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva